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1 PROPOSTA DE TRABALHO PARA MESA-REDONDA Violência e fanatismo: a dissolução do sujeito no grupo Ligia Gama e Silva Furtado de Mendonça1 Rita Maria Manso de Barros2 Resumo: Por mais que este assunto esteja em foco atualmente devido à guerras religiosas, terrorismos etc, e seja sistematicamente atrelado ao uso psicanalítico do termo destrutividade, gostaríamos de demonstrar através deste trabalho que o fanatismo engloba algo além destas questões. Encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérir um fanatique” (2006) alguns caminhos que podem nos ser útil na argumentação. Este autor é um israelense que cresceu em meio a conflitos entre palestinos e israelenses e, por isso, é uma pessoa apta para falar de um tema como este, como ele mesmo diz na introdução de seu livro. Segundo este autor, o fanatismo é uma constante da natureza humana, portanto dizer que ele é identificado somente em manifestantes, terroristas etc. não seria correto. Foi, então, a partir de sua reflexão sobre a religião que Freud produz uma de suas obras mais importante, de onde se extrai substratos fundamentais para se compreender o fanatismo: a formação de grupos, a partir da obra, “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921). Palavras-chave: Fanatismo, sujeito, violência, psicanálise, religião, grupos. Violência e fanatismo são temas que podem ser interligados atualmente devido à guerras religiosas, terrorismos, etc, e está sistematicamente atrelado ao uso psicanalítico do termo destrutividade. No entanto, gostaríamos de demonstrar através deste trabalho que o fanatismo engloba algo além destas questões. Na falta de uma melhor definição para o que viria ser um fanático e, claro, o fanatismo, encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérir um fanatique” (2006) alguns caminhos que podem ser bem usados durante este trabalho. Segundo Amos Oz, o fanatismo é uma constante da natureza humana, portanto dizer que ele é identificado somente em manifestantes, terroristas, etc não seria correto. 1 Graduanda do Curso de Psicologia da UERJ. Participante do Convênio do Laboratório de Psicopatologia Clínica e Psicanálise da Universidade de Toulouse II, Le Mirail. 2 Psicanalista. Pesquisadora. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica Psicanalítica da UERJ. 2 O fanatismo pode aparecer também sob uma forma tranqüila e civilizada. O autor ainda expressa que o fanatismo não deu inicio através das doutrinas religiosas ou das noções de Estado e governo: ele seria mais antigo que tudo isso. Na sua descrição de como identificar um fanático, o autor afirma que forçar o outro à mudança caracteriza a essência do fanático, e sua vertente moralizadora começaria em casa, com a reação clássica de querer mudar um parente para seu próprio bem. Depois, ele expõe o fanático como um altruísta. De uma forma sarcástica, ele demonstra que o fanático se preocupa freqüentemente mais com os outros do que com ele mesmo: ele quer salvar a alma dos outros, livrá-los do pecado, abrir seus olhos, modificar seus hábitos alimentares, etc. Ele tem mais interesse nos outros que nele mesmo, “pelo simples fato que ele não tem muita personalidade ou nenhuma personalidade”. Após, Amos Oz apresenta soluções para “curar” um fanático. Uma delas é fazê- los recorrer à imaginação. É necessário tentar sempre imaginar o outro quando há uma disputa, uma indignação e quando estamos certos do nosso direito. A outra forma de curar um fanático é através do senso de humor; ter humor significa ‘zombar’ de si mesmo, ter noção do relativo, se ver através do olhar dos outros, não se levar tão a sério, estejamos certos ou errados. Sua terceira solução é ter a capacidade de se tornar uma “quase ilha”, em relação à famosa frase “nenhum homem é uma ilha”. Sobre isso, ele comenta que ninguém entre nós é uma quase-ilha, uma parte ligada ao continente, e outra virada para o oceano. Uma parte é ligada à família, aos amigos, a uma cultura, uma tradição, um país, uma nação, um sexo, uma língua, etc., enquanto que a outra quer ficar sozinha, de frente para o mar. Segundo ele, nós deveríamos ter o direito de sermos quase-ilhas. Todo sistema político e social que tende a nos transformar numa ilha darwiniana, e assim transformar também o resto da humanidade em um inimigo ou 3 rival, é uma monstruosidade. No entanto, ao mesmo tempo, todo sistema político, econômico, social e ideológico que procura nos transformar em uma simples molécula do continente não é menos monstruoso. Concluindo sua idéia, o senso de humor, o poder de imaginar o outro e de reconhecer a quase-ilha podem ser, em parte, o meio de lutar contra o gene do fanatismo que todos nós portamos. Através desta breve exposição, pode-se constatar que o fanatismo não se associa apenas à doutrina religiosa. E todos esses exemplos de atos fanáticos poderiam ser atribuídos a um sentimento religioso, lembrando que “religião” provém do latim re- ligare, que significa “ligar com”, “ligar novamente”, restabelecer a ligação perdida com nossas raízes. E a partir daí que se facilita a compreensão acerca do “sentimento oceânico”, enunciado por Freud em “O Mal- Estar na Civilização” (1930), como um sentimento de amparo a que somos impelidos pelo desejo de unidade e identificação com o universo em que vivemos. Para Freud, o sentimento oceânico não é fonte das necessidades religiosas, mas foi vinculado a elas posteriormente, logo, este sentimento não estaria calcado em uma impressão que transcende o homem e que o liga misticamente ao universo, e que, assim, o ajuda a aceitar e lidar com as intempéries da vida. Este sentimento acalentaria nossa necessidade de nos re-ligarmos a uma fase primitiva do sentimento do eu, quando éramos seres humanos ilimitados em suas relações com o mundo. Foi, então, a partir de uma reflexão sobre uma questão religiosa que Freud produz sua principal obra acerca da civilização, e nela se extrai substratos importantes que permitirão a compreensão sobre uma das questões fundamentais que remontam ao fanatismo: a formação de grupos, que vem a ser melhor apresentada e explicitada em uma outra obra, “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921). 4 No “Mal-Estar...” é demonstrado o conflito a que o ser humano é submetido entre as exigências das suas pulsões e as restrições impostas pela civilização. Freud identifica que os esforços do ser humano perante a vida são para obter felicidade, portanto, sua força motriz seria o princípio do prazer. Sendo assim, surge uma tendência a isolar do eu qualquer fonte de desprazer, e é através desta luta do homem com o seu mundo exterior que se inicia um processo de diferenciação do eu com este mundo externo, sendo introduzido o principio de realidade no ser humano, que virá a estruturar todo o seu desenvolvimento posterior. O princípio de realidade tem como objetivo, no seu duelo com o princípio do prazer, capacitar o ser humano a construir defesas que o protejam dos desprazeres provenientes do mundo externo. Tendo em vista estas forças que agem no ser humano influenciando seu contato com o mundo externo, Freud analisa acerca das relações sociais, caracterizando-as como um dos aspectos da civilização e capazes de restringir a liberdade individual, conseqüentemente gerando um interminável conflito entre o ser humano e a civilização. Só seria possível o desenvolvimento civilizatório se as pulsões não estivessem “livres”, no sentido que os homens seriam regidos por princípios e leis, o que os assegurariam de certa segurança, em troca de uma parcela de liberdade. Ao remontar o mito de Totem e Tabu (1912), Freud deduz a universalidade de dois desejos recalcados: o incesto e o desejo de matar o Pai, cuja expressão se apresenta no “Complexo de Édipo”, e que nos leva a crer que estes, juntamente com o canibalismo,foram alvos das primeiras restrições à liberdade humana, sendo que a proibição do canibalismo já teria sido internalizada, mas o incesto e o parricídio são temidos pelos seres humanos somente à medida que há uma coerção externa, como apontou o autor em “Futuro de uma Ilusão” (1927, p.21). É em Totem e Tabu (1912) que Freud faz sua primeira grande síntese sobre a questão da religião ao mesmo tempo em que interpreta as origens da 5 civilização. Ele se apóia na observação das tribos primitivas a fim de destrinchar o sentido da sua organização social e religiosa, o totemismo, e suas regras sagradas que dirigem seu comportamento, o tabu. O objetivo deste ensaio é dar-se conta das proibições ligadas ao incesto e ao parricídio, da constituição do laço social, e do sentimento de culpa. Após seu interesse pelas formas primitivas da religião, Freud se foca nas suas manifestações contemporâneas através de uma analise sobre seus ritos e crenças. Desde seu artigo “Actions compulsionnelles et exercices religieux” (1907), ele opere uma aproximação entre os rituais religiosos e os privados da neurose obsessiva. Se admitimos que os rituais visam uma proteção frente a angustia, deve-se atribuir a mesma função aos rituais religiosos. Os rituais religiosos ‘sossegam’ então a angustia, mas eles também repousam em crenças que dão uma sensação de segurança. Desta vez a analogia não é mais com a neurose obsessiva, mas com a noção de alucinação. Freud mostra isso em “O futuro de uma ilusão” (1927), onde ele afirma que a religião é uma ilusão, porque deriva dos desejos humanos, e a realização deles é a motivação para crer. A essência da atitude religiosa é a busca pelo remédio para a sensação de insignificância diante do universo. A religião contribuiu para domar as pulsões, mas não fez nada que tornasse a humanidade feliz e reconciliada com a vida. Portanto, é impossível eliminar a religião pela força, de um só golpe, além disso, seria uma crueldade para alguns. E, caso o homem abandonasse de vez a religião teria que admitir para si mesmo que é desamparado no mundo e que não há uma providência que lhe criou e ampara. É devido a este sentimento de abandono do ser humano que nós necessitamos de uma proteção paternal – o Deus todo-poderoso dos monoteístas – como uma criança precisa de seu pai protetor. Além do sentimento de abandono, há um outro aspecto da nossa constituição que Freud explica: a agressividade. 6 Com esta breve exposição acerca da religião (segundo Freud), podemos observar que ela é um terreno fértil para a manifestação do fanatismo. Durante o percurso da civilização, sempre testemunhamos rivalidades entre paises vizinhos, culturas diferentes, e entre crenças religiosas também. A diferença é que os fanáticos levam essa rivalidade a sério – lembrando o que disse Amos Oz – e tentam impor a todo custo a superioridade da sua crença aos outros que não compartilham da mesma idéia. Pode haver fanáticos entre torcedores de futebol, na política, etc, mas parece que na religião, tudo já está praticamente pronto: já há um líder (onde veremos seu papel mais a frente), rituais, uma identificação entre os fieis e entre os fieis e o líder, entre outros. E o fanático, sem ter o interesse de se tornar quase-ilha, utiliza-se das doutrinas religiosas à sua própria maneira, tentando converter e ‘salvar’ os outros. A questão da sexualidade, sempre presente na obra freudiana, vem a colaborar com o conceito de identificação, citado acima, que é tão caro ao se discutir o laço existente entre fanáticos em um grupo. E é para alcançar este objetivo (não o referente a fanáticos, mas a membros de um grupo) que Freud (1921), no capítulo IV “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” intitulado de Sugestão e Libido, teoriza acerca do amor, mas não o diferencia em “categorias”: a diferença recai se a libido3 é inibida ou não na sua finalidade. Assim, um dos fatores sob os quais os seres humanos se unem é através dos laços libidinais, que, por sua vez, é regulada pela civilização, e não apenas pelo desejo do individuo. Sendo assim, Freud, neste mesmo texto, assimila que estas relações amorosas (ou laços emocionais/libidinais) também constituem a essência da mente grupal. 3 No texto “Sugestão e Libido”, Freud conceitua libido como “a expressão extraída da teoria das emoções”, dando este nome “à energia considerada como magnitude quantitativa (embora na realidade não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido sob a palavra ‘amor’”. 7 Esta questão também traz a tona o conceito de identificação, já que ela é a forma mais remota de um laço emocional com o outro. A identificação existente entre os componentes de um grupo fanático poderia ser aquela que surge “com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto sexual” (FREUD, 1921) e, provavelmente essa qualidade comum partilhada residiria na natureza do laço com o líder. O principal rejunte entre os membros de um grupo seria a ilusão que seu líder ama a todos de forma igual. Sendo os laços libidinais um dos responsáveis por manterem unidos os seres humanos, há outro aspecto da constituição humana que comunga desses mesmos poderes, mas que não alcança o mesmo fim: a agressividade, introduzida em alguns parágrafos acima. Caterina Koltai, em seu texto “A tentação do bem: o caminho mais curto para o pior...” relata que o homem primitivo era um ser apaixonado, sendo pior e mais cruel que os animais, e que “nada o impedia de matar e devorar seres de sua espécie, tanto que a história primitiva da humanidade é cheia de assassinatos e que [...] a ‘história mundial’ não passa de uma sucessão deles”. A contenção desta agressividade se apresenta como um desafio que o homem ainda não conseguiu vencer, e seria por isso que a guerra se apresente inevitável na civilização, “consubstancial à própria existência da sociedade” (KOLTAI, 2002). Sendo o ser humano possuidor de uma quota de agressividade, nenhum de nós pode tolerar uma aproximação extremamente íntima com o próximo. No capítulo VI de “Psicologia de Grupo...” – Outros Problemas e Linhas de Trabalho – Freud defende esta teoria ao dizer que mesmo que a relação emocional entre duas pessoas seja muito próxima (como, por exemplo, entre pais e filhos), ela contém “um sedimento de sentimentos de aversão e hostilidade”, o qual só não perceberíamos em conseqüência do recalque. No entanto, quando se trata de um grupo, no caso, de fanáticos, essa aversão e 8 hostilidade se desvanecem, nem que temporariamente. Num grupo, seus componentes se comportam de maneira uniforme e toleram-se mutuamente. Constata-se aí uma limitação do narcisismo, produzida por um laço libidinal com outras pessoas do grupo, mas que, no entanto, não atua fora dele. Seus sentimentos hostis são dirigidos para fora, ou seja, para um outro grupo rival, por exemplo, pois uma vez que o laço afetivo entre os membros e o líder de um grupo é abalado, o equilíbrio existente nele é desfeito, propiciando um investimento narcísico no eu – que outrora fora limitado – e que sentimentos hostis e aversivos se voltem para os componentes e o líder do grupo, o que resultaria no desmembramento do mesmo. Constata-se, então, que as restrições impostas ao homem quanto a sua sexualidade e agressividade são sacrifícios aos quais o homem tem que se submeter para que o processo civilizatório evolua. Ao mesmo tempo, a evolução da civilização não garante sua felicidade, muito pelo contrário, vai de encontro a ela, uma vez que estas restrições atravancam o principio do prazer, que é a principal fonte de felicidade para o homem. É inevitável ao falar em civilização, formação de grupos e fanatismo não introduziro conceito de pulsão freudiana. Implícita anteriormente em algumas partes deste texto, ela se mostra bastante útil para compreender-se sobre a natureza humana e seu conflito perante a civilização. Freud inicia a obra intitulada “Pulsões e seus destinos” dizendo que “uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente (…)” (apud GARCIA-ROZA, 1994). Como resumiram Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise (2004), as pulsões de vida “tendem a constituir unidades cada vez maiores, e a mantê-las” (pp. 414), e abrangeriam as pulsões sexuais e de autoconservação. As de morte, por sua vez, se contrapõem às pulsões de vida, e tendem “a uma redução completa das tensões” (pp. 9 407), ou seja, busca com que o indivíduo retorne ao estado anorgânico. Uma vez voltadas ao interior, elas tenderiam a autodestruição, e dirigidas ao exterior, manifestariam-se sob “a forma da pulsão de agressão ou destruição”. Como diz Freud (1933, apud KOLTAI, 2002), “nenhuma dessas duas pulsões é menos essencial do que a outra: os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de ambas (...) A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões em suas manifestações reais é, na verdade, o que até agora nos impedia de conhecê-las”. Constatadas a força e a importância dessas pulsões, cabe a cada indivíduo, em relacionamento com o mundo externo, a controlá-las, ou melhor, domesticá-las dentro do possível, pois uma pulsão de morte que não esteja fusionada a pulsão de vida pode ruir numa autoagressividade, que poderia ser exemplificado pelo suicídio, ou heteroagressividade, onde o assassinato serve de ilustração. Porém, a agressividade oriunda da fusão da pulsão de vida com a pulsão de morte não emboca numa destrutividade. É importante ressaltar que a agressividade está presente quando lutamos pelos nossos direitos, competimos uma vaga num emprego, impomos limites ao outro, seduzimos alguém, defendemos um ponto de vista, e em diversas outras situações do nosso cotidiano. Prosseguindo o dilema entre as pulsões e a civilização, Freud questiona qual seria o meio utilizado pela segunda na coerção da destrutividade humana. Ele encontra a resposta no sentimento de culpa, sendo a felicidade o preço que o ser humano paga pelo avanço da civilização, que se faz possível pela intensificação deste sentimento. Um dos motivos de certas doutrinas religiosas, como o cristianismo, conseguirem tantas adesões recai no fato dela não desprezar o papel do sentimento de culpa desempenhado na civilização, e prometer a redenção daqueles que pecam. 10 O sentimento de culpa, como Freud relata em “O Mal-Estar...” se estabelece através da tensão entre o eu e supereu, que demanda do sujeito uma necessidade de punição. Como se pode notar, a noção de sentimento de culpa só pode ser identificada a partir do reconhecimento do supereu, uma instância oriunda da introjeção da agressividade para o interior do próprio eu, e que atua sob a forma de consciência, como um vigilante sobre as ações e as intenções do eu e julgá-las, exercendo a censura. Mas o sentimento de culpa também pode ser originário do medo de uma autoridade que foi instituída com o processo civilizatório, representando a lei. Podemos inferir que o medo da autoridade é mais brando que o medo do supereu, pois enquanto que a autoridade exige a renúncia das satisfações das pulsões, uma vez que estas inviabilizariam a organização social, o supereu é mais exigente. Além da renúncia às pulsões, ele demanda do eu uma punição, uma vez que os desejos proibidos continuam existentes dentro do sujeito, impulsionados permanentemente pelo princípio do prazer. Como bem pontuou Freud nesta obra, “a civilização, portanto, consegue, dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada”. Poderíamos, então, concluir que, de alguma forma e por razões distintas em cada caso, os fanáticos não conseguiram ter seus desejos de agressão dominados pela civilização – utilizando as palavras de Freud - já que não observamos neles uma renúncia das satisfações das pulsões de forma satisfatória para manter o laço social. Daí pode-se especular duas possibilidades: ou o supereu não esta cumprindo o seu papel de introjetar a agressividade para o interior do próprio eu, ou a tensão estabelecida entre o eu e o supereu é de uma ordem insuportável para o sujeito que não há saída se não exteriorizá-la, culpar o outro por sua culpa, e punir o outro também por ela. 11 Essas noções são essenciais para prosseguir com a questão da formação de grupo, e, assim do fanatismo, já que o supereu assume um papel crucial para seu entendimento e também serve de apoio para compreender acerca de ideal do eu, outro conceito também de suma importância ao tratar deste tema. Apesar de em “Psicologia de Grupo e Análise do Eu” o termo supereu não estar presente, a sua compreensão clarifica muitas dúvidas que podem surgir na leitura deste texto. Freud considera imprescindível a figura do líder na formação de um grupo, e este também seria o principal motivo pelo qual ele refuta a teoria do instinto gregário, preferindo assim utilizar a analogia da horda primeva para teorizar sobre a formação de grupos. Freud abandona a proposta de Trotter (1916 apud FREUD, 1921) – que defende um institnto gregário inato ao seres humanos, constituindo assim uma analogia à multiceluraridade – para fortalecer a hipótese de que os fenômenos grupais possuem como origem um investimento afetivo sobre um objeto que não pode ser obtido, seguido pela identificação com os supostos "rivais". Em continuidade com esta teoria, Freud se aproxima da conjectura darwiniana, “segundo a qual a forma primitiva da sociedade humana era uma horda governada despoticamente por um macho poderoso” (FREUD, 1921). Este macho, pai primevo, ou líder não tem a necessidade de amar ninguém, e pode ser dominador, narcisista, independente e autoconfiante, e é extremamente necessário para os seguidores da horda, que têm “sede de obediência” (Le Bon, 1895 apud FREUD, 1921). Neste mesmo texto, Freud finaliza dizendo que “o pai primevo é o ideal do grupo, que dirige o eu no lugar do ideal do eu. A hipnose bem pode reinvidicar sua descrição como um grupo de dois. Aqui fica como definição para sugestão: uma convicção que não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em um vínculo erótico” (página). Freud assinala que há uma espécie de sugestão hipnótica na sustentação da natureza das pulsões que mantém o grupo unido – pulsões inibidas em sua finalidade - e na substituição do ideal do eu pelo objeto, ou seja, o líder, mas acrescenta ainda que é a 12 identificação com os outros indivíduos aquilo que talvez tenha tornado possível eles terem a mesma relação com o objeto, no caso, mais uma vez, o líder. Com isso, nos deparamos com a expressão tão nebulosa ideal do eu. As variações do seu conceito remetem ao fato que ele está acompanhado da elaboração progressiva da noção de supereu. De acordo com Laplanche e Pontalis (2004), é na obra freudiana “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914) que surge a expressão “ideal do eu” para designar uma “formação intrapsíquica relativamente autônoma que serve de referência ao ego para apreciar as suas relações efetivas. Sua origem é principalmente narcísica” (pp. 222). Na infância, o ideal da criança é ela mesma, e ela abandona este estado narcísico a partir das críticas dos seus pais. Sendo assim, o que o homem projeta diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdidona infância. Já em “Psicologia de Grupo...”, o ideal do eu é diferenciado do eu, e a ele são atribuídas as funções de auto-observação, consciência moral, censura dos sonhos, e a principal influência no recalque. Ainda complementa que ele é herdeiro da época em que o eu infantil desfrutava de auto-suficiência, e de forma gradual reúne a partir das influências do meio ambiente, “as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode estar sempre a altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego” (pp. 222). Isso permitiria compreender a fascinação amorosa, a dependência para com o hipnotizador, e a submissão ao líder, todos esses ilustrações de casos onde uma pessoa “estranha” é colocada pelo sujeito no seu lugar de ideal do eu. Através desta exposição, pode-se reparar como a violência perpassa sobre o tema do fanatismo. Os fanáticos, através de uma religião própria embasada em suas crenças e ideais rígidos, submetem os outros aos seus desejos próprios. E, centrando a violência no meio fanático, deparamo-nos com a questão da formação de grupo (e, 13 consequentemente, da identificação) e da importância de um líder, elementos estes imprescindíveis para compor uma legião de fanáticos, onde cada sujeito dissolve-se no grupo. A identidade de cada um é sobreposta por uma identidade grupal, e uma outra figura – o líder, no caso – assume o lugar do ideal do eu de seus fiéis. Referências bibliográficas: FREUD, Sigmund. (1907). Actions compulsionnelles et exercices religieux. In: Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 1974, p. 133-p. 142. _____ (1912). Totem e Tabu. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1974, p. 11-p. 191. _____ (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1990, p. 87-p. 180. _____ (1927). O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 15-p. 63. _____ (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997. GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo (1994). Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000. KOLTAI, Caterina. A tentação do bem: o caminho mais curto para o pior. Revista Agora. Rio de Janeiro, v. V, n. 1, p. 9-18, 2002. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste (1982). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2004. OZ, Amos. Comment guérir um fanatique. Ed. Arcades Gallimard, 2006.
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