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PROPOSTA DE TRABALHO PARA MESA-REDONDA
Violência e fanatismo: a dissolução do sujeito no grupo
Ligia Gama e Silva Furtado de Mendonça1
Rita Maria Manso de Barros2
Resumo: Por mais que este assunto esteja em foco atualmente devido à guerras
religiosas, terrorismos etc, e seja sistematicamente atrelado ao uso psicanalítico do
termo destrutividade, gostaríamos de demonstrar através deste trabalho que o fanatismo
engloba algo além destas questões. Encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérir
um fanatique” (2006) alguns caminhos que podem nos ser útil na argumentação. Este
autor é um israelense que cresceu em meio a conflitos entre palestinos e israelenses e,
por isso, é uma pessoa apta para falar de um tema como este, como ele mesmo diz na
introdução de seu livro. Segundo este autor, o fanatismo é uma constante da natureza
humana, portanto dizer que ele é identificado somente em manifestantes, terroristas etc.
não seria correto. Foi, então, a partir de sua reflexão sobre a religião que Freud produz
uma de suas obras mais importante, de onde se extrai substratos fundamentais para se
compreender o fanatismo: a formação de grupos, a partir da obra, “Psicologia de Grupo
e Análise do Ego” (1921). 
Palavras-chave: Fanatismo, sujeito, violência, psicanálise, religião, grupos.
Violência e fanatismo são temas que podem ser interligados atualmente devido à
guerras religiosas, terrorismos, etc, e está sistematicamente atrelado ao uso psicanalítico
do termo destrutividade. No entanto, gostaríamos de demonstrar através deste trabalho
que o fanatismo engloba algo além destas questões.
Na falta de uma melhor definição para o que viria ser um fanático e, claro, o
fanatismo, encontra-se na obra de Amos Oz “Comment guérir um fanatique” (2006)
alguns caminhos que podem ser bem usados durante este trabalho.
Segundo Amos Oz, o fanatismo é uma constante da natureza humana, portanto
dizer que ele é identificado somente em manifestantes, terroristas, etc não seria correto.
1 Graduanda do Curso de Psicologia da UERJ. Participante do Convênio do Laboratório de
Psicopatologia Clínica e Psicanálise da Universidade de Toulouse II, Le Mirail.
2 Psicanalista. Pesquisadora. Professora Adjunta do Programa de Pós-graduação em Pesquisa e Clínica
Psicanalítica da UERJ.
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O fanatismo pode aparecer também sob uma forma tranqüila e civilizada. O autor ainda
expressa que o fanatismo não deu inicio através das doutrinas religiosas ou das noções
de Estado e governo: ele seria mais antigo que tudo isso. 
Na sua descrição de como identificar um fanático, o autor afirma que forçar o
outro à mudança caracteriza a essência do fanático, e sua vertente moralizadora
começaria em casa, com a reação clássica de querer mudar um parente para seu próprio
bem. Depois, ele expõe o fanático como um altruísta. De uma forma sarcástica, ele
demonstra que o fanático se preocupa freqüentemente mais com os outros do que com
ele mesmo: ele quer salvar a alma dos outros, livrá-los do pecado, abrir seus olhos,
modificar seus hábitos alimentares, etc. Ele tem mais interesse nos outros que nele
mesmo, “pelo simples fato que ele não tem muita personalidade ou nenhuma
personalidade”.
Após, Amos Oz apresenta soluções para “curar” um fanático. Uma delas é fazê-
los recorrer à imaginação. É necessário tentar sempre imaginar o outro quando há uma
disputa, uma indignação e quando estamos certos do nosso direito. A outra forma de
curar um fanático é através do senso de humor; ter humor significa ‘zombar’ de si
mesmo, ter noção do relativo, se ver através do olhar dos outros, não se levar tão a sério,
estejamos certos ou errados. Sua terceira solução é ter a capacidade de se tornar uma
“quase ilha”, em relação à famosa frase “nenhum homem é uma ilha”. Sobre isso, ele
comenta que ninguém entre nós é uma quase-ilha, uma parte ligada ao continente, e
outra virada para o oceano. Uma parte é ligada à família, aos amigos, a uma cultura,
uma tradição, um país, uma nação, um sexo, uma língua, etc., enquanto que a outra quer
ficar sozinha, de frente para o mar. Segundo ele, nós deveríamos ter o direito de sermos
quase-ilhas. Todo sistema político e social que tende a nos transformar numa ilha
darwiniana, e assim transformar também o resto da humanidade em um inimigo ou
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rival, é uma monstruosidade. No entanto, ao mesmo tempo, todo sistema político,
econômico, social e ideológico que procura nos transformar em uma simples molécula
do continente não é menos monstruoso. Concluindo sua idéia, o senso de humor, o
poder de imaginar o outro e de reconhecer a quase-ilha podem ser, em parte, o meio de
lutar contra o gene do fanatismo que todos nós portamos. 
Através desta breve exposição, pode-se constatar que o fanatismo não se associa
apenas à doutrina religiosa. E todos esses exemplos de atos fanáticos poderiam ser
atribuídos a um sentimento religioso, lembrando que “religião” provém do latim re-
ligare, que significa “ligar com”, “ligar novamente”, restabelecer a ligação perdida com
nossas raízes. E a partir daí que se facilita a compreensão acerca do “sentimento
oceânico”, enunciado por Freud em “O Mal- Estar na Civilização” (1930), como um
sentimento de amparo a que somos impelidos pelo desejo de unidade e identificação
com o universo em que vivemos. Para Freud, o sentimento oceânico não é fonte das
necessidades religiosas, mas foi vinculado a elas posteriormente, logo, este sentimento
não estaria calcado em uma impressão que transcende o homem e que o liga
misticamente ao universo, e que, assim, o ajuda a aceitar e lidar com as intempéries da
vida. Este sentimento acalentaria nossa necessidade de nos re-ligarmos a uma fase
primitiva do sentimento do eu, quando éramos seres humanos ilimitados em suas
relações com o mundo.
Foi, então, a partir de uma reflexão sobre uma questão religiosa que Freud
produz sua principal obra acerca da civilização, e nela se extrai substratos importantes
que permitirão a compreensão sobre uma das questões fundamentais que remontam ao
fanatismo: a formação de grupos, que vem a ser melhor apresentada e explicitada em
uma outra obra, “Psicologia de Grupo e Análise do Ego” (1921). 
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No “Mal-Estar...” é demonstrado o conflito a que o ser humano é submetido
entre as exigências das suas pulsões e as restrições impostas pela civilização. Freud
identifica que os esforços do ser humano perante a vida são para obter felicidade,
portanto, sua força motriz seria o princípio do prazer. Sendo assim, surge uma
tendência a isolar do eu qualquer fonte de desprazer, e é através desta luta do homem
com o seu mundo exterior que se inicia um processo de diferenciação do eu com este
mundo externo, sendo introduzido o principio de realidade no ser humano, que virá a
estruturar todo o seu desenvolvimento posterior. O princípio de realidade tem como
objetivo, no seu duelo com o princípio do prazer, capacitar o ser humano a construir
defesas que o protejam dos desprazeres provenientes do mundo externo. Tendo em vista
estas forças que agem no ser humano influenciando seu contato com o mundo externo,
Freud analisa acerca das relações sociais, caracterizando-as como um dos aspectos da
civilização e capazes de restringir a liberdade individual, conseqüentemente gerando um
interminável conflito entre o ser humano e a civilização.
Só seria possível o desenvolvimento civilizatório se as pulsões não estivessem
“livres”, no sentido que os homens seriam regidos por princípios e leis, o que os
assegurariam de certa segurança, em troca de uma parcela de liberdade. Ao remontar o
mito de Totem e Tabu (1912), Freud deduz a universalidade de dois desejos recalcados:
o incesto e o desejo de matar o Pai, cuja expressão se apresenta no “Complexo de
Édipo”, e que nos leva a crer que estes, juntamente com o canibalismo,foram alvos das
primeiras restrições à liberdade humana, sendo que a proibição do canibalismo já teria
sido internalizada, mas o incesto e o parricídio são temidos pelos seres humanos
somente à medida que há uma coerção externa, como apontou o autor em “Futuro de
uma Ilusão” (1927, p.21). É em Totem e Tabu (1912) que Freud faz sua primeira grande
síntese sobre a questão da religião ao mesmo tempo em que interpreta as origens da
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civilização. Ele se apóia na observação das tribos primitivas a fim de destrinchar o
sentido da sua organização social e religiosa, o totemismo, e suas regras sagradas que
dirigem seu comportamento, o tabu. O objetivo deste ensaio é dar-se conta das
proibições ligadas ao incesto e ao parricídio, da constituição do laço social, e do
sentimento de culpa.
Após seu interesse pelas formas primitivas da religião, Freud se foca nas suas
manifestações contemporâneas através de uma analise sobre seus ritos e crenças. Desde
seu artigo “Actions compulsionnelles et exercices religieux” (1907), ele opere uma
aproximação entre os rituais religiosos e os privados da neurose obsessiva. Se
admitimos que os rituais visam uma proteção frente a angustia, deve-se atribuir a
mesma função aos rituais religiosos. Os rituais religiosos ‘sossegam’ então a angustia,
mas eles também repousam em crenças que dão uma sensação de segurança. Desta vez
a analogia não é mais com a neurose obsessiva, mas com a noção de alucinação. Freud
mostra isso em “O futuro de uma ilusão” (1927), onde ele afirma que a religião é uma
ilusão, porque deriva dos desejos humanos, e a realização deles é a motivação para crer.
A essência da atitude religiosa é a busca pelo remédio para a sensação de insignificância
diante do universo. A religião contribuiu para domar as pulsões, mas não fez nada que
tornasse a humanidade feliz e reconciliada com a vida. Portanto, é impossível eliminar
a religião pela força, de um só golpe, além disso, seria uma crueldade para alguns. E,
caso o homem abandonasse de vez a religião teria que admitir para si mesmo que é
desamparado no mundo e que não há uma providência que lhe criou e ampara. É devido
a este sentimento de abandono do ser humano que nós necessitamos de uma proteção
paternal – o Deus todo-poderoso dos monoteístas – como uma criança precisa de seu pai
protetor. Além do sentimento de abandono, há um outro aspecto da nossa constituição
que Freud explica: a agressividade.
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Com esta breve exposição acerca da religião (segundo Freud), podemos observar
que ela é um terreno fértil para a manifestação do fanatismo. Durante o percurso da
civilização, sempre testemunhamos rivalidades entre paises vizinhos, culturas
diferentes, e entre crenças religiosas também. A diferença é que os fanáticos levam essa
rivalidade a sério – lembrando o que disse Amos Oz – e tentam impor a todo custo a
superioridade da sua crença aos outros que não compartilham da mesma idéia. Pode
haver fanáticos entre torcedores de futebol, na política, etc, mas parece que na religião,
tudo já está praticamente pronto: já há um líder (onde veremos seu papel mais a frente),
rituais, uma identificação entre os fieis e entre os fieis e o líder, entre outros. E o
fanático, sem ter o interesse de se tornar quase-ilha, utiliza-se das doutrinas religiosas à
sua própria maneira, tentando converter e ‘salvar’ os outros.
A questão da sexualidade, sempre presente na obra freudiana, vem a colaborar
com o conceito de identificação, citado acima, que é tão caro ao se discutir o laço
existente entre fanáticos em um grupo. E é para alcançar este objetivo (não o referente a
fanáticos, mas a membros de um grupo) que Freud (1921), no capítulo IV “Psicologia
de Grupo e Análise do Ego” intitulado de Sugestão e Libido, teoriza acerca do amor,
mas não o diferencia em “categorias”: a diferença recai se a libido3 é inibida ou não na
sua finalidade. Assim, um dos fatores sob os quais os seres humanos se unem é através
dos laços libidinais, que, por sua vez, é regulada pela civilização, e não apenas pelo
desejo do individuo. Sendo assim, Freud, neste mesmo texto, assimila que estas relações
amorosas (ou laços emocionais/libidinais) também constituem a essência da mente
grupal.
3 No texto “Sugestão e Libido”, Freud conceitua libido como “a expressão extraída da teoria das
emoções”, dando este nome “à energia considerada como magnitude quantitativa (embora na realidade
não seja presentemente mensurável), daqueles instintos que têm a ver com tudo o que pode ser abrangido
sob a palavra ‘amor’”.
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Esta questão também traz a tona o conceito de identificação, já que ela é a forma
mais remota de um laço emocional com o outro. A identificação existente entre os
componentes de um grupo fanático poderia ser aquela que surge “com qualquer nova
percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é
objeto de instinto sexual” (FREUD, 1921) e, provavelmente essa qualidade comum
partilhada residiria na natureza do laço com o líder. O principal rejunte entre os
membros de um grupo seria a ilusão que seu líder ama a todos de forma igual.
Sendo os laços libidinais um dos responsáveis por manterem unidos os seres
humanos, há outro aspecto da constituição humana que comunga desses mesmos
poderes, mas que não alcança o mesmo fim: a agressividade, introduzida em alguns
parágrafos acima. Caterina Koltai, em seu texto “A tentação do bem: o caminho mais
curto para o pior...” relata que o homem primitivo era um ser apaixonado, sendo pior e
mais cruel que os animais, e que “nada o impedia de matar e devorar seres de sua
espécie, tanto que a história primitiva da humanidade é cheia de assassinatos e que [...] a
‘história mundial’ não passa de uma sucessão deles”. 
A contenção desta agressividade se apresenta como um desafio que o homem
ainda não conseguiu vencer, e seria por isso que a guerra se apresente inevitável na
civilização, “consubstancial à própria existência da sociedade” (KOLTAI, 2002).
Sendo o ser humano possuidor de uma quota de agressividade, nenhum de nós
pode tolerar uma aproximação extremamente íntima com o próximo. No capítulo VI de
“Psicologia de Grupo...” – Outros Problemas e Linhas de Trabalho – Freud defende
esta teoria ao dizer que mesmo que a relação emocional entre duas pessoas seja muito
próxima (como, por exemplo, entre pais e filhos), ela contém “um sedimento de
sentimentos de aversão e hostilidade”, o qual só não perceberíamos em conseqüência do
recalque. No entanto, quando se trata de um grupo, no caso, de fanáticos, essa aversão e
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hostilidade se desvanecem, nem que temporariamente. Num grupo, seus componentes
se comportam de maneira uniforme e toleram-se mutuamente. Constata-se aí uma
limitação do narcisismo, produzida por um laço libidinal com outras pessoas do grupo,
mas que, no entanto, não atua fora dele. Seus sentimentos hostis são dirigidos para fora,
ou seja, para um outro grupo rival, por exemplo, pois uma vez que o laço afetivo entre
os membros e o líder de um grupo é abalado, o equilíbrio existente nele é desfeito,
propiciando um investimento narcísico no eu – que outrora fora limitado – e que
sentimentos hostis e aversivos se voltem para os componentes e o líder do grupo, o que
resultaria no desmembramento do mesmo.
Constata-se, então, que as restrições impostas ao homem quanto a sua sexualidade
e agressividade são sacrifícios aos quais o homem tem que se submeter para que o
processo civilizatório evolua. Ao mesmo tempo, a evolução da civilização não garante
sua felicidade, muito pelo contrário, vai de encontro a ela, uma vez que estas restrições
atravancam o principio do prazer, que é a principal fonte de felicidade para o homem.
É inevitável ao falar em civilização, formação de grupos e fanatismo não
introduziro conceito de pulsão freudiana. Implícita anteriormente em algumas partes
deste texto, ela se mostra bastante útil para compreender-se sobre a natureza humana e
seu conflito perante a civilização. Freud inicia a obra intitulada “Pulsões e seus
destinos” dizendo que “uma pulsão nos aparecerá como sendo um conceito situado na
fronteira entre o mental e o somático, como representante psíquico dos estímulos que se
originam dentro do organismo e alcançam a mente (…)” (apud GARCIA-ROZA, 1994).
Como resumiram Laplanche e Pontalis no Vocabulário de Psicanálise (2004), as
pulsões de vida “tendem a constituir unidades cada vez maiores, e a mantê-las” (pp.
414), e abrangeriam as pulsões sexuais e de autoconservação. As de morte, por sua vez,
se contrapõem às pulsões de vida, e tendem “a uma redução completa das tensões” (pp.
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407), ou seja, busca com que o indivíduo retorne ao estado anorgânico. Uma vez
voltadas ao interior, elas tenderiam a autodestruição, e dirigidas ao exterior,
manifestariam-se sob “a forma da pulsão de agressão ou destruição”. Como diz Freud
(1933, apud KOLTAI, 2002), “nenhuma dessas duas pulsões é menos essencial do que
a outra: os fenômenos da vida surgem da ação confluente ou mutuamente contrária de
ambas (...) A dificuldade de isolar as duas espécies de pulsões em suas manifestações
reais é, na verdade, o que até agora nos impedia de conhecê-las”. 
Constatadas a força e a importância dessas pulsões, cabe a cada indivíduo, em
relacionamento com o mundo externo, a controlá-las, ou melhor, domesticá-las dentro
do possível, pois uma pulsão de morte que não esteja fusionada a pulsão de vida pode
ruir numa autoagressividade, que poderia ser exemplificado pelo suicídio, ou
heteroagressividade, onde o assassinato serve de ilustração. Porém, a agressividade
oriunda da fusão da pulsão de vida com a pulsão de morte não emboca numa
destrutividade. É importante ressaltar que a agressividade está presente quando lutamos
pelos nossos direitos, competimos uma vaga num emprego, impomos limites ao outro,
seduzimos alguém, defendemos um ponto de vista, e em diversas outras situações do
nosso cotidiano. 
Prosseguindo o dilema entre as pulsões e a civilização, Freud questiona qual
seria o meio utilizado pela segunda na coerção da destrutividade humana. Ele encontra a
resposta no sentimento de culpa, sendo a felicidade o preço que o ser humano paga pelo
avanço da civilização, que se faz possível pela intensificação deste sentimento. Um dos
motivos de certas doutrinas religiosas, como o cristianismo, conseguirem tantas adesões
recai no fato dela não desprezar o papel do sentimento de culpa desempenhado na
civilização, e prometer a redenção daqueles que pecam. 
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O sentimento de culpa, como Freud relata em “O Mal-Estar...” se estabelece
através da tensão entre o eu e supereu, que demanda do sujeito uma necessidade de
punição. Como se pode notar, a noção de sentimento de culpa só pode ser identificada a
partir do reconhecimento do supereu, uma instância oriunda da introjeção da
agressividade para o interior do próprio eu, e que atua sob a forma de consciência, como
um vigilante sobre as ações e as intenções do eu e julgá-las, exercendo a censura. 
Mas o sentimento de culpa também pode ser originário do medo de uma
autoridade que foi instituída com o processo civilizatório, representando a lei. Podemos
inferir que o medo da autoridade é mais brando que o medo do supereu, pois enquanto
que a autoridade exige a renúncia das satisfações das pulsões, uma vez que estas
inviabilizariam a organização social, o supereu é mais exigente. Além da renúncia às
pulsões, ele demanda do eu uma punição, uma vez que os desejos proibidos continuam
existentes dentro do sujeito, impulsionados permanentemente pelo princípio do prazer.
Como bem pontuou Freud nesta obra, “a civilização, portanto, consegue, dominar o
perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e
estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa
cidade conquistada”. Poderíamos, então, concluir que, de alguma forma e por razões
distintas em cada caso, os fanáticos não conseguiram ter seus desejos de agressão
dominados pela civilização – utilizando as palavras de Freud - já que não observamos
neles uma renúncia das satisfações das pulsões de forma satisfatória para manter o laço
social. Daí pode-se especular duas possibilidades: ou o supereu não esta cumprindo o
seu papel de introjetar a agressividade para o interior do próprio eu, ou a tensão
estabelecida entre o eu e o supereu é de uma ordem insuportável para o sujeito que não
há saída se não exteriorizá-la, culpar o outro por sua culpa, e punir o outro também por
ela. 
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Essas noções são essenciais para prosseguir com a questão da formação de
grupo, e, assim do fanatismo, já que o supereu assume um papel crucial para seu
entendimento e também serve de apoio para compreender acerca de ideal do eu, outro
conceito também de suma importância ao tratar deste tema. Apesar de em “Psicologia
de Grupo e Análise do Eu” o termo supereu não estar presente, a sua compreensão
clarifica muitas dúvidas que podem surgir na leitura deste texto.
Freud considera imprescindível a figura do líder na formação de um grupo, e
este também seria o principal motivo pelo qual ele refuta a teoria do instinto gregário,
preferindo assim utilizar a analogia da horda primeva para teorizar sobre a formação de
grupos. Freud abandona a proposta de Trotter (1916 apud FREUD, 1921) – que defende
um institnto gregário inato ao seres humanos, constituindo assim uma analogia à
multiceluraridade – para fortalecer a hipótese de que os fenômenos grupais possuem
como origem um investimento afetivo sobre um objeto que não pode ser obtido, seguido
pela identificação com os supostos "rivais". Em continuidade com esta teoria, Freud se
aproxima da conjectura darwiniana, “segundo a qual a forma primitiva da sociedade
humana era uma horda governada despoticamente por um macho poderoso” (FREUD,
1921). Este macho, pai primevo, ou líder não tem a necessidade de amar ninguém, e
pode ser dominador, narcisista, independente e autoconfiante, e é extremamente
necessário para os seguidores da horda, que têm “sede de obediência” (Le Bon, 1895
apud FREUD, 1921). Neste mesmo texto, Freud finaliza dizendo que “o pai primevo é o
ideal do grupo, que dirige o eu no lugar do ideal do eu. A hipnose bem pode reinvidicar sua
descrição como um grupo de dois. Aqui fica como definição para sugestão: uma convicção que
não está baseada na percepção e no raciocínio, mas em um vínculo erótico” (página).
Freud assinala que há uma espécie de sugestão hipnótica na sustentação da
natureza das pulsões que mantém o grupo unido – pulsões inibidas em sua finalidade - e
na substituição do ideal do eu pelo objeto, ou seja, o líder, mas acrescenta ainda que é a
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identificação com os outros indivíduos aquilo que talvez tenha tornado possível eles
terem a mesma relação com o objeto, no caso, mais uma vez, o líder.
Com isso, nos deparamos com a expressão tão nebulosa ideal do eu. As
variações do seu conceito remetem ao fato que ele está acompanhado da elaboração
progressiva da noção de supereu. De acordo com Laplanche e Pontalis (2004), é na obra
freudiana “Sobre o Narcisismo: uma introdução” (1914) que surge a expressão “ideal do
eu” para designar uma “formação intrapsíquica relativamente autônoma que serve de
referência ao ego para apreciar as suas relações efetivas. Sua origem é principalmente
narcísica” (pp. 222). Na infância, o ideal da criança é ela mesma, e ela abandona este
estado narcísico a partir das críticas dos seus pais. Sendo assim, o que o homem projeta
diante de si como seu ideal é o substituto do narcisismo perdidona infância. Já em
“Psicologia de Grupo...”, o ideal do eu é diferenciado do eu, e a ele são atribuídas as
funções de auto-observação, consciência moral, censura dos sonhos, e a principal
influência no recalque. Ainda complementa que ele é herdeiro da época em que o eu
infantil desfrutava de auto-suficiência, e de forma gradual reúne a partir das influências
do meio ambiente, “as exigências que este impõe ao ego, das quais este não pode estar
sempre a altura; de maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com seu
próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar satisfação no ideal do ego que
se diferenciou do ego” (pp. 222). Isso permitiria compreender a fascinação amorosa, a
dependência para com o hipnotizador, e a submissão ao líder, todos esses ilustrações de
casos onde uma pessoa “estranha” é colocada pelo sujeito no seu lugar de ideal do eu.
Através desta exposição, pode-se reparar como a violência perpassa sobre o
tema do fanatismo. Os fanáticos, através de uma religião própria embasada em suas
crenças e ideais rígidos, submetem os outros aos seus desejos próprios. E, centrando a
violência no meio fanático, deparamo-nos com a questão da formação de grupo (e,
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consequentemente, da identificação) e da importância de um líder, elementos estes
imprescindíveis para compor uma legião de fanáticos, onde cada sujeito dissolve-se no
grupo. A identidade de cada um é sobreposta por uma identidade grupal, e uma outra
figura – o líder, no caso – assume o lugar do ideal do eu de seus fiéis.
Referências bibliográficas:
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Névrose, psychose et perversion. Paris: PUF, 1974, p. 133-p. 142.
_____ (1912). Totem e Tabu. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas
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_____ (1921). Psicologia de grupo e análise do ego. In: Edição standard brasileira
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_____ (1927). O futuro de uma ilusão. In: Edição standard brasileira das obras
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_____ (1930). O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.
GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo (1994). Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge
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KOLTAI, Caterina. A tentação do bem: o caminho mais curto para o pior. Revista
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LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, Jean-Baptiste (1982). Vocabulário da psicanálise.
São Paulo: Martins Fontes, 2004.
OZ, Amos. Comment guérir um fanatique. Ed. Arcades Gallimard, 2006.

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