Buscar

TRABALHO E ESCRAVIDÃO NA GRÉCIA ANTIGA

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 62 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 62 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 62 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Título originalem francês: Travail & Esclavage en Grece Ancienne 
© Editions Complexe
Capa: Francis Rodrigues 
Tradução: Marina Appenzeller 
Produção: Veredas Editorial 
Copidesque: Luiz Roberto Malta 
Revisão: Luiz Roberto Malta
Maria Aparecida Monteiro Bessana
Dados de Catalogação na Publicação (C1P) Internacional 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Vemant, Jean-Pierre.
Trabalho e escravidão na Grécia antiga / Jean-Pierre Vemant, Pierre 
Vidal-Naquet ; tradução Marina AppenzeUer. - Campinas, SP : Papirus,
Bibliografia.
ISBN 85-308-0038-9
1. Civilização grega 2. Escravidão - Grécia 3. Trabalho e classes traba­
lhadoras- Grécia I. Vidal-Naquet, Piene, 1930- II. Título.
CDD-305.560938 
-306.30938 
-331.0938
89-0276 -938
índices para catálogo sistemático:
1. Grécia antiga: Civilização 938
2. Grécia antiga: Escravidão: Sociologia: 305.560938
3. Grécia antiga: Trabalho: Aspectos sociais 306.30938
4. Grécia antiga: Trabalho: Economia 331.0938
DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA 
© M.R. Comacchia & Cia. Ltda.
| | popifu/
Av. Francisco Glicério, 1314 - 2- andar 
Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736 
13013 - Campinas - SP - Brasil
proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão em 
forma idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer 
outro idioma.
OS ESCRAVOS GREGOS CONSTITUÍÁM 
UMA CLASSE?*
Na sociedade grega, os escravos constituíam umà classe? A ques­
tão é menos trivial do que talvez pareça, e colocá-la sob esta forma 
exige alguns esclarecimentos da parte do historiador da Grécia,
A meu ver, nossa concepção moderna de classe social está 
ligada a três ordens de fenômenos bem distintos que enumerarei 
aqui bem empiricamente e sem escolher:
1. Uma classe é um grupo de homens que ocupa um lugar 
bem definido na escala social. É o que exprimimos em linguagem 
comum quando falamos da “grande burguesia” ou da “pequena 
burguesia” , da pretensa “classe média” ou das “classes inferiores” . 
Sabemos com que sutileza empírica os autores anglo-saxões utiliza­
ram esse vocabulário. Evidentemente não é por acaso que o histo­
riador inglês Hill é que é o autor de um livro intitulado The Roman
* Primeira versão publicada em Raison présente, 6 (1968), depois em D. 
Roche (ed.), Ordres et classes, Colloque d’histoire social, Saint-Cloud, 
24-25 de maio de 1967, Paris-Haia, 1973, p. 29-36.
86
Middle Class1, consagrado a esses cavaleiros romanos a respeito 
dos quais C. Nicolet demonstrou em sua. tese^ que, até a época de 
Augusto, constituiram não uma classe, mas uma ordem.
2. Uma classe social ocupa um lugar definido nas relações 
de produção; esta é a principal contribuição do marxismo, e é inútil 
insistir nesse ponto.
3. Finalmente, uma classe social supõe a tomada de cons­
ciência de interesses comuns, o emprego de tuna linguagem co­
mum, uma ação comum no jogo político e social. Devemos isso 
também a Marx, e lembrarei simplesmente o trecho célebre do 18 
de Brumário de Luís Bonaparte sobre os pequenos camponeses 
parcelares franceses, “massa enorme cujos membros vivem todos 
na mesma situação, mas sem estarem unidos uns aos outros por re­
lações complexas” . E todos conhecem a conclusão de Marx, quan­
do joga com os dois sentidos possíveis da palavra “classe” : “Na 
medida em que milhares de famílias camponesas vivem em condi­
ções econômicas que as separam umas das outras e opõem seu tipo 
de vida, seus interesses e sua cultura aos das outras classes da so­
ciedade, constituem uma classe. Mas, na medida em que, entre 
camponeses parcelares, só existe uma solidariedade local e em que 
a identidade de seus interesses não cria entre eles qualquer comu­
nidade, qualquer ligação nacional, nem qualquer organização polí­
tica, eles não constituem uma classe”1 2 3.
Seria evidentemente fácil pegar essas três noções de nível, 
relações de produção e de consciência e tentar aplicá-las à Anti­
guidade clássica e aos escravos, mas antes de nos dedicarmos a es­
se joguinho, talvez para tomá-lo inútil, convém fazer um desvio. 
Meu primeiro ponto pode ser resumido desta forma: estamos acos­
tumados a imaginar a sociedade antiga como composta de senhores 
e escravos - e é o que o próprio Marx diz na abertura do Manifesto
1. Middle class.
2. Ordem eqüestre.
3. 18 de Brumário, p. 126-127 (trad. levemente modificada). Dou aqui o 
conjunto do texto de Marx para responder às objeções feitas a mim prin­
cipalmente por G. E. M. de Sainte-Croix; “Karl Marx”, p. 30-31.
87
Comunista - , mas é preciso observar o seguinte: 1) nem sempre foi 
assim, 2) mesmo na época clássica, confrontam-se dois tipos de so­
ciedade, dentre as quais apenas uma pode ser considerada como 
“escravista” no sentido preciso que se deve dar ao termo.
Boa grego, o escravo é o doutos, e essa palavra aparece já 
nas tabulinhas micênicas sob a forma doero, mas a presença do 
termo não significa que de fato a sociedade micênica assumia uma 
oposição clara e decisiva entre homens livres e escravos. De fato, o 
termo doero parece ter muitos sentidos. Distinguiremos o doero 
simplesmente, o doero dos deuses; introduziremos diferenças sutis: 
por exemplo, diremos de uma mulher que ela é filha de um doero e 
de uma mulher pertencente à classe dos oleiros. Os fatos são tão 
confusos que o historiador soviético J. A. Lencman, totalmente 
convencido da explicação “escravista” da sociedade micênica e 
por conseqãência da distinção radical nessá época entre homens li­
vres e escravos, escreveu a respeito do doero que, não fosse o pró­
prio termo, não teríamos qualquer motivo sério para considerar 
o doero como escravo4. Por que, nessas condições, não ir além?
Na sociedade homérica ou mais exatamente naquilo que 
chamamos tão impropriamente por esse nome, na sociedade evoca­
da e imaginada pelos poemas homéricos, há certamente escravos, 
mulheres raptadas, prisioneiros de guerra, escravos adquiridos por 
um embrião de comércio, mas o escravo não é o único em baixo da 
escala social e nem está tão mal situado. Muitos disseram e M. I. 
Finley mostrou melhor do que ninguém5 que o miserável por ex­
celência não é o escravo: é o trabalhador agrícola que só dispõe de 
seus braços, não tendo qualquer ligação permanente çom o domí­
nio, o oikos, é o tete. Em suma, tanto na sociedade homérica 
quanto na micênica, existe toda uma gama de estatutos entre o ho­
mem livre e o escravo.
4. Esclavage, p. 181.
5. Cf. Monde et Ulysse, p. 68-70 — afirmação todavia contestada por A. 
Mele, Società, p. 107 e ss.
88
Saltemos agora alguns séculos e consideremos a época 
clássica. Nela temos dois modelos antagônicos que se enfrentam 
ptíblica e também socialmente - digamos: o modelo ateniense e o 
modelo espartano. Aproximação decerto grosseira, pois há em Es- 
parta características totalmerite excepcionais que não permitem 
transformá-la nun\ Estado oligárquico, mas, assim mesmo, o que é 
verdadeiro para Esparta é Muitas vezes verdade, grosso modo, para 
a Tessália ou para Creta.
Em Atenas, reinava uma grande simplicidade que nos é 
familiar desde a primeira série ginasial. Existe o cidadão, o meteco, 
o escravo, com, é claro, distinções de acordo com o nível de fortu­
na, distinções entre a cidade e o campo, distinções também, acres­
centarei, de acordo com as idades, pois a “Constituição” ateniense 
opõe os “jovens” aos “velhos” .
É evidente que, no interior do mundo dos escravos, exis­
tem enormes diferenças. Não é a mesma coisa ser gendanne, fun­
cionário ou mineiro, ter uma barraca ou ser operário agrícola. Mas 
juridicamente, do ponto de vista do estatuto pessoal, essas distin­
ções não representam muita coisa, pelo menos no século V. En­
contrarei a melhor prova disso numa experiência por que passou 
mais de um ateniense. Tomemos como exemplo um homem que se 
declara cidadão e cujo estatuto é contestado; em primeiro lugar, se­
rá julgado pela assembléia de seu demo. Se esta declarar que ele 
não é cidadão, será reduzido ao estatuto de meteco, conservando 
desta forma sua liberdadepessoal, mas ele pode não aceitar a sen­
tença e, pelo processo da ephesis, transferir o debate para diante 
do tribunal popular da heliée. Ali, se perder o processo, será ven­
dido como escravo, Inversamente, um escravo libertado, antes de 
poder aspirar ao título de cidadão - destino normal de um liberto - , 
deverá contentar-se com o estatuto de meteco. Em suma, é claro, 
simples e radical, e isso mostra ao mesmo tempo que as três cate­
gorias da sociedade ateniense, cidadão, estrangeiro residente e es­
cravo - esse estrangeiro absoluto, esse outsider, como diz Finley - 
são efetivamente vividas como tal em Atenas.
89
Mas é o caso de insistir no fato de que, de modo algum es­
sas três categorias constituem uma classe em qualquer dos planos 
que definimos e isso mesmo se admitirmos com CL Mossé que, no 
século IV, é constituído um grupo de ricos reunindo ao mesmo 
tempo cidadãos e estrangeiros (inclusive antigos escravos) natura­
lizados6 7.
Nossos manuais de história também falam de uma divisão 
em três partes da sociedade em Esparta: os pares (os homoioi), os 
periecos e os hilotas mas essa divisão em nada corresponde à de 
Atenas. O hilota e o homoios são dois extremos, sem que possamos 
dizer que a categoria da liberdade se aplique perfeitamente aos pa­
res, nem a do escravo aos hilotas. Deixemos de lado os periecos, 
sobre os quais não sabemos praticamente nada e que são cidadãos 
das cidades incluídas no Estado lacedemoniano. Apesar de seu 
nome, os homoioi não formam ábsolutamente, mesmo no século V, 
um grupo social homogêneo. Deve-se insistir sobre a existência de 
grupos especializados dentro dos homoioi, como os criptas esses 
jovens que se lançam em feitos no campo?, como os trezentos hip- 
peis (cavaleiros), comandados pelos hÁppagretes e que, dè resto, 
apesar de seu nome, caminham a pé, como os agathoergoi, dos 
quais nos fala Heródoto (I, 67), recrutados entre os “cavaleiros” à 
razão de cinco por ano para cumprir missões secretas. Além disso, 
todo jovem espartano que sofreu o agôgê, a educação espartana, 
pode tomar-se homoios, mas nem todos tomam-se e constata-se, no 
século V, uma multiplicação de intermediários, uma profusão de 
categorias, dentre as quais algumas remontam a uma época muito 
antiga. Há o caso dos hypomeiones, espartanos que não têm con­
cessões hereditárias, dos klêros, há os que foram degradados por 
razões militares e que formam uma categoria especial chamada de 
tresantes ou seja, os medrosos8. Dp lado dos hilotas, a simplicida­
de também não reina mais. Um hilota pode ser um mothax, e as
6. Cl. Mossé, “Classes”, p. 27-28.
7. Ver, mais atrás, “Le chasseur noir”, p. 161-163.
8. Ver N. Loraux, “Belle mort”, p. 108-112.
90
fontes antigas explicam esse termo ora como designando o escravo 
nascido em casa, ora como o hilota criado com os espartanos e ten­
do passado pelo agôgê dos futuros pares. Libertado, o hilota irá 
tomar-se neodamodo, novo membro do damos, sem por isso tomar- 
se homoios. Em suma, a sociedade espartana caracteriza-se por 
ama gama de estatutos sem que se possa definir muito claramente 
onde começa a liberdade p onde acaba a escravidão, pois, mesmo 
os “iguais” , no fundo, não são homens livres no sentido ateniense 
do termo. Com muitas nuances, isso se aplica a outras sociedades 
rurais, principalmente a sociedade cretense. Ainda ali, temos uma 
prodigiosa multiplicidade de termos para definir os grupos servis e 
também por vezes os grupos de cidadãos de “exercício pleno” . 
Não devemos pois, deixar-nos enganar pelo fato de que uma mes­
ma palavra, douleia, a gente servil, designe ao mesmo tempo, num 
tratado do século V (Tucídides, V, 23), os escravos de Atenas e os 
hilotas de Esparta.
Agora coloquemos nossos grupos sociais em movimento. 
Que papel desempenharão os escravos nos conflitos sociais extre­
mamente violentos - sobretudo no século IV - que animam esses 
dois tipos de sociedades? A descrição mais surpreendente da luta 
de classes na Grécia clássica é provavelmente a que nos dá Platão 
no livro VII, no livro VIII e no início do livro IX da República. 
Pretenso admirador de Esparta, Platão tem, no entanto, uma “in­
formação” essencialmente ateniense e siciliana. Observou na Sicí­
lia o funcionamento de uma tirania militar é, sob a máscara da pas­
sagem da república ideal à timocracia, à oligarquia, à democracia, 
à tirania, extrai seu material da história revista e corrigida, tanto no 
século V como no IV. Qual o papel dos escravos em todos esses 
“acontecimentos”? Têm um papel menor, para não dizer papel al­
gum. No momento essencial a nossos olhos, aquele que suposta­
mente explica o advento da democracia, como procede Platão? Sua 
análise é, antes de mais nada, militar. Invoca a impossibilidade 
quase certa de as oligarquias fazerem a guerra: ou serão obrigadas 
a armar o povo e irão temê-lo mais do que ao inimigo, ou, se hão o 
fizerem, deixarão aparecer na batalha que são oligoi, pessoas pou-
91
co numerosas. E Platão evoca num texto impressionante (Repúbli­
ca, V m , 556 d), a presença lado a lado na frente de batalha de um 
lado do rico, alimentado à sombra e carregado de uma gordura 
abundante e, do outro lado, o pobre, o magro, queimado de sol e 
dizendo a si mesmo: “Essa gente só deve sua riqueza à covardia 
dos outros” . A democracia, diz-nos Platão, se estabelece “quando 
os pobres vitoriosos sobre seus inimigos, massacram uns, banem os 
outros e dividem igualmente com os restantes o governo e as ma­
gistraturas” . Sobre os escravos, nem uma palavra. Platão irá con­
tentar-se em falar metaforicamente da escravidão definindo as três 
classes da pessoa humana, a razão, a coragem e os desejos baixos, 
dizendo que nesse tipo de sociedade, a primeira e a segunda são 
escravas da terceira; e, quando definir o dêmos, irá defini-lo como 
composto de camponeses proprietários (autourgoi), de ociosos (a- 
pragmones) e de possuidores; evidentemente, em nenhum momen­
to, incluirá os escravos. Estes intervirão depois, no momento do 
advento da tirania Neste ponto, efetivamente, Platão admite que o 
tirano rouba os escravos de seu senhor, libeita-os para torná-los 
seus iguais, os iguais dos cidadãos, os quais, diz Platão, também 
assumem as insígnias da escravidão (Rêpublique, VIU, 569 ac). 
Trata-se de fato de um meio político que por vezes foi empregado e 
que é o objeto de um estudo recente9.
A descrição de Platão é plenamente confirmada pelo que 
sabemos da história de Atenas, talvez exceto bem no início da de­
mocracia no século VI, na época em que a distinção entre os ho­
mens livres e os escravos ainda não estava tão marcada quanto, di­
gamos, a partir do final do século VI. Existe em seguida uma rei­
vindicação coletiva dos escravos, que os tornaria uma classe no 
terceiro sentido que evoquei no início dessa breve exposição? Não, 
nem mesmo nos episódios mais dramáticos, quando vinte mil es­
cravos (que são.principalmente artesãos, cheirotechmi, homens 
que trabalham com suas mãos e entre eles sem dúvida muitos mi­
neiros) fogem aproveitando a ocupação pelos espartanos de Dece-
9. C. Mossé, “Rôle des esclaves”.
92
lia (Tucídides, VI, 27). Esses escravos nada reivindicam: nem o 
governo de Atenas, nem o acesso coletivo à cidadania; os que eram 
gregos reivindicam certamente sua cidadania de origem, todos rei­
vindicam sua liberdade, é bem natural, mas nenhum ambiciona tor­
nar-se estratego ou arconte em Atenas. Em determinados casos, no 
século IV, alguns çscravos tiveram essa ambição; em nenhum caso, 
trata-se de uma reivindicação coletiva do grupo dos escravos.
Isso significa que o escravo não tem um papel importante? 
É ele, no fundo, que toma possível o estatuto claro e definido do 
cidadão. O exemplo clássico, a partir do século VI, é o de Quios, a 
cidade onde, pela primeira vez, aparecem instituições democráticas 
e onde, diz-nos Teopompo, pela primeira vez, se adquiriu escravos 
no estrangeiro. Segundo a fórmula bem conhetida de Finley: “ Um 
aspecto da história grega é, em resumo,o avanço, de nãos dadas, 
da liberdade e da escravidão10 11” .
O escravo toma possível ò jogo social, não porque garanta 
a totalidade do trabalho material (isso jamais será verdade), mas 
porque seu estatuto de anticidadão, de estrangeiro absoluto, per­
mite que o estatuto do cidadão se desenvolva; porque o comércio 
de escravos e o comércio simplesmente, a economia monetária, 
permitem que um número bem excepcional de atenienses sejam ci­
dadãos, Isso quer dizer que o ponto de vista que defendo aqui é 
exatameníe o oposto do defendido por Henri Wallon e Fustel de 
Coulanges no século XIX. Ainda no século XX, o grande historia­
dor Corrado Barbagallo, num livro célebre11, explicava que a 
existência da escravidão corrompia e até envenenava as relações 
sociais entre as diversas classes. Creio que é exatamente o contrá­
rio. Estou convencido, que a oposição entre senhores e escravos é 
realmente a contradição fundamental do mundo antigo, mas, em 
nenhum momento, esses senhores e escravos se confrontam direta­
mente na prática social corrente. Para que me compreendam me­
lhor, tomo um exemplo fora do mundo antigo: na Florença do sécu-
10. Teopompo, fr. 122 (Jacoby); M. I. Finley, "Slave Labour”, p. 164.
11. C. Barbagallo, Déclin.
93
lo XIV - e, em geral, nas cidades italianas da Idade Média a 
contradição fundamental é a que opõe a cidade e o contado. Ássim 
que as portas de Florença são ultrapassadas, entra-se num espaço 
completamente diferente do da cidade; um camponês, um contadi- 
no, não é normalmente um cidadão de Florença. Não há qualquer 
dúvida sobre o fato de que Florença viveu em parte da exploração 
de seu campo e da dominação que exercia sobre ele, mas essa opo­
sição fundamental não impede que as lutas sociais em Florença do 
século XIV tenham oposto essencialmente grupos urbanos.
Examinemos agora as sociedades rurais de tipo espartano, 
tessaliano ou cretense. O contraste é impressionante. Exprime-se 
num fato simples: no momento da segunda guerra médica, Atenas e 
Esparta mobilizaram, uma e outra, a totalidade de seus recursos em 
homefls. Atenas mobiliza em sua frota mais de trinta mil cidadãos; 
Esparta apresenta em Platéia cinco mil hoplitas recrutados entre os 
homoioi, a mesma quantidade de periecos e trinta e cinco mil hilo­
tas. Esse simples fato cria entre os dois sistemas uma diferença 
fundamental. Exceto em casos totalmente excepcionais, nem se 
pensa em mobilizar escravos em Atenas e, se são utilizados nq 
exército, são libertados. O resultado é que, por mais afastado que 
seja o hilota do cidadão em pleno exercício, não deixa de desem­
penhar um papel e um papel capital no jogo político. Uma reivindi­
cação política dos hilotas é possível em Esparta, enquanto tuna rei­
vindicação política dos escravos em Atenas é propriamente incon­
cebível.
Em Esparta, essa reivindicação irá orientar-se em duas di­
reções possíveis: uma é a secessão, sonho dos hilotas de Messênia, 
que irá realizar-se quando a campanha de Epaminondas abrir cami­
nho para a reconstrução de Messênia; a outra é simplesmente a in­
tegração a Esparta, que não é menos importante. Os episódios do 
século IV são bem conhecidos; insistirei apenas num episódio que 
data da guerra do Peloponeso e que Tucídides nos contou (IV, 80). 
Os éforos fazem um dia uma proclamação solene para incitar os 
hilotas que estimam terem prestado mais serviços a Esparta a se
94
apresentarem para serem libertados. Os valorosos, os mais dignos 
com efeito se apresentam, como os éforos esperavam. Escolhe-se 
dois mil que, libertos, felizes, coroam suas cabeças. Apds o que 
desaparecem pura e simplesmente. Esse episódio mostra bastante 
bem, creio, ao mesmo tempo a força da reivindicação e também a 
violência da repressão, porque Esparta jogava sua existência nas 
revoltas dos hilotas. ym escravo que foge de Atenas não é grave, 
vinte mil escravos fugindo ho momento da guerra da Decelia é com 
certeza uma catástrofe. Mas vinte mil escravos são substituídos 
pela compra de outros escravos; em Esparta, não é o caso de com­
prar outros hilotas, pois um hilota não é um objeto que se compra 
no mercado: por isso, o movimento de luta dos hilotas recoloca to­
talmente em questão a ordem espartana. Ainda no final do século 
UI e no início do século n, o tirano Nábis tentou resolver o pro­
blema espartano; deu-se inclusive ao luxo de explicar a Flamúoio 
em um discurso que Tito Lívio reproduz a seu modo, que “nosso 
legislador não quis que a cidade estivesse em mãos de alguns cida­
dãos - o que vocês chamam de Senado ~ nem que uma ou duas or­
dens dominassem a cidade; ao contrário, acreditou que igualando 
as fortunas e as honras, m uitos homens pegariam em ar­
mas pela pátria” 12. A afirmação é realmente impressionante! O 
programa desenvolvido por Nábis sob a máscara de Licurgo, não 
passa, na verdade, do programa realizado por Atenas no século VI. 
Evidentemente, era um pouco tarde e só faltava, se ouso dizer, o 
que tomara possível o desenvolvimento ateniense e, antes de mais 
nada, os escravos. Vemos portanto como uma mesma palavra, 
doulos, pode designar realidades sociais profundamente diferentes. 
Mas o mais singular talvez seja ver quão tardiamente se tomou 
çonsciência dessa diferença. Quando? A resposta é clara: no século 
IV, quando as sociedades de tipo espartano, cretense ou tessaliano 
se desfazem. Então aparecem os teóricos, Platão, a escola de Aris­
tóteles, que raciocinam sobre esses estatutos estranhos que situam
12. Tito Lívio, XXXIV, 32, 18; cf. C. Mossé, “Nábis”.
95
o homem “entre os livres e os escravos13 14’’. Mas esse momento - 
aquele em que triunfa aparentemente a forma clássica da escravi­
dão, a escravidão mercadoria - é também aquele em que problemas 
inteiramente novos vão ser colocados na medida em que, no mundo 
helemstico, as forças de trabalho das quais depende 6 destino tanto 
das cidades gregas quanto das monarquias não serão mais essen­
cialmente a escravidão tal qual a conhecera a cidade clássica, mas 
a imensa massa de camponeses dependentes, do Egito ou do 
Oriente, exatamente os que Aristóteles transformava em “escravos 
naturais” .
Não abordarei aqui esses problemas, limitando-me a uma 
breve observação. O fenômeno das revoltas servis no século II e no 
início do século I não deve fazer com que acreditemos que existe a 
partir de então uma classe de escravos no sentido moderno do ter­
mo, reunindo toda ou a maioria da gente servil. Uma revolta como 
a da Sicília em 139-133 é, antes de mais nada, um levante de pas­
tores, de pastores armados num país dominado de longa data por 
um conflito tradicional entre agricultores e criadores, onde a pro­
priedade latifundiária assumira a forma de enormes empresas de 
criação de gado. Tal revolta não se distingue essencialmente, creio, 
das analisadas por E. Hobsbawn em seus Primitive Rebelsu . Em 
nenhum momento se esboça seriamente o ideal de uma sociedade 
sem classes. O chefe dos escravos revoltados, aliás, coroa-se rei; 
cunha moedas em nome de Antíoco e, nessas moedas, aparece uma 
velha divindade da Sicília, a Dèméter de Ena. Se isso tivesse dura­
do, não há a menor duvida de que os revoltados adquiririam escra­
vos15. Na medida em que os escravos da época helenístico-romana
13. Ver aqui abaixo, “Réflexions sur rhistoriographie grecque de l’esclava­
ge”; ver também M. I. Finley, “Between Slavery and Freedom”.
14. E. J. Hobsbawn, Primitifs.
15. Quando da segunda revolta dos escravos na Sicília, a partir.de 104 a.C., 
a cidade de Morgantina foi sitiada por escravos, comandados pelo rei 
Salvius; tanto do lado dos escravos quanto dos sitiados, prometeu-se a 
liberdade aos escravos de Morgantina que escolheriam o campo que 
quisessem (Diod. de Sic., 36, 4, 5-8); esse episódio limita a afirmação 
geral de Diodoro segundo a qual os homens livres pobres passavam de
96
não são sociahnente pulverizados como na cidade clássica, a orga­
nização de uma cidade é o limite de sua ação, falo bastante bem 
testemunhado pela historieta umpouco trágica contada na época 
helenfctica pelo historiador Ninfodoro de Siracusa, que me forne­
cerá uma conclusão16. A cena ocorre em Quios, cidade que viu os 
primeiros escravos comprados. Ali acontece uma fuga de escravos, 
entre os quais, lúna espécie de Robin Hood chamado Drimacos 
que, após vários episódios, propõe à gente de Quios resolver o 
problema. Conclui com eles um armistício, comprometendo-se a 
limitar as “recuperações” . Toda loja que for (moderadamente) pi­
lhada, será ornada de um selo que lhe evitará novos ataques. 
Quanto aos escravos em fuga, ele propõe devolver os que foram 
embora sem razões válidas. Se tiverem, disse ele, razões decisivas 
para ir embora, eu vou conservá-los a meu ladp, mas, caso contrá­
rio, eu vou devolvê-los a vocês. Imediatamente, passam a fugir 
muito menos escravos. Os que ele conservava eram, de resto, orga­
nizados militarmente e chegaram a temê-lo muito mais do que te­
miam seus senhores. Drimacos estendeu a bondade quando enve­
lheceu, e os quiotas começaram a oferecer uma recompensa pela 
sua cabeça e até chegavam a pedir a seu favorito para cortar a dita 
cabeça e ganhar, dessa forma, a grande recompensa prometida. Os 
cidadãos da ilha acabaram por transformar esse rebelde modelo 
num herói que lhes aparecia em sonho quando ocorriam turbilhões 
entre a gente servil.
A história não diz se ele pendurou na porta de seu campo, 
tal como o herói de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) de 
George Orwell, uma máxima que poderia ser enunciada dessa for­
ma: “Todos os escravos são iguais, mas alguns escravos são mais 
iguais que outros” 17.
bom grado para o lado dos rebeldes (Id, 36,11): no primeiro caso, te­
mos o relato dos fatos, no segundo, talvez tenhamos simplesmente uma 
afirmação teórica. Sobre esse episódio, ver M. I. Finley, Sicily, p. 
139-145 e A. Momigliano, Sagesses barbares, p. 47,
16. Fr. 4 (Jacoby), citado por Ateneu, VI, 265 c - 266 e. Sobre esse texto, 
cf. S. Mazzarino, Pensiero stqrico, p. 49-50 e 505, ne 363; as tentativas 
de A. Fuks, “Slave War” parà datar esses fatos que não são muito con­
vincentes.
17. Observar-se-á a adesão explícita de M. I. Finley, Ancient Slavery, p. 77, 
à argumentação desenvolvida neste ensaio.
97
REFLEXÕES SOBRE A HISTORIOGRAFIA 
GREGA DA ESCRAVIDÃO*
No livro VI1 de seu Banquete dos sofistas, tão rico em documentos 
sobre o vocabulário e a história da escravidão na Grécia, Ateneu 
cita um texto do historiador Teopompo de Quios, que se pode 
afirmar ter estado no centro da discussão desses últimos anos sobre 
a escravidão: “Os habitantes de Quios” , diz ele, “ foram os primei­
ros gregos após os tessalianos e os lacedemonianos a utilizarem es­
cravos, mas não os adquiriram da mesma maneira que os últimos. 
De fato, lacedemonianos e tessalianos constituíram, como veremos, 
sua categoria servil (douleia) a partir de gregos que habitavam an- * 1
* Publicado em Actes du Colloque 1971 sur resclavage (Annales litt. de 
rUniversité de .Besançon), Paris, 1973, p. 25-44; traduzido com algumas 
correções em L. Sichirollo (ed.), Schiavitu antica e moderna, Nápoles, 
1979, p. 159-181.
1. Em sua essência, essa exposição é a que foi apresentada oralmente em 
Besançon. Naturalmente levei em conta as observações que me foram 
feitas durante os debates e, desde a publicação, os trabalhos consagrados 
a essa questão por P. Lévêque, CL Mossé e J. Ducat.
98
tes deles a região que agora ocupam: os primeiros a partir dos 
aqueus, os tessalianos a partir dos perrebos e magnetes. Os primei­
ros designaram os povos reduzidos à escravidão de hilotas, è os 
segundos de penestes. Quanto à gente de Quios, transformaram 
bárbaros em seus servidores (oiketai) e pagando por isso um pre­
ço2”
Por que afirmar que esse texto famoso esteve no centro de 
todas as discussões? Aproximando esse fragmento do livro XVII 
da História Filípica da inscrição conhecida pelo nome de “Consti­
tuição de Quios3” , M. I. Finley lançou sua célebre fórmula: “Um 
aspecto da história grega, em suma, é o caminhar, de mãos dadas, 
da liberdade e da escravidão4” . Além disso, nosso texto opõe com 
perfeita clareza os dois tipos de “escravidão” conhecidos pelos 
gregos: por um lado, a escravidão hilótica, de outro, a escravidão- 
mercadoria (a chattel-slavery dos autores anglo-saxões). Ele ba­
seia-se de fato numa série de oposições muito claras. Oposição 
cronológica: antes, a velha escravidão (e antes ainda, nenhuma es­
cravidão); depois, a nova escravidão. Oposição de tipo, se ouso di­
zer, “nacional” ; os “antigos” escravos são gregos, os “novos” são 
bárbaros. Oposição finalmente sobre os modos de aquisição: os 
“antigos” escravos foram reduzidos à escravidão pela conquista 
militar; os “novos” , ao contrário, foram adquiridos com dinheiro 
por mecanismos do mercado.
Desde a publicação, em 1959, do livro de D. Lotze, cujo 
título se inspira numa fómula do gramático alexandrino Pólux, que 
tenta definir os que estão “entre os homens livres e os escravos”5, 
uma boa parte da discussão sobre a escravidão consistiu em medir
2. F. Gr. Hisu 115, fr. 122 in Ath., VI, 264 bc. Sobre Teopompo em geral, 
ver A. Momigliano, “Teopompo”, retomado com alguns complementos 
bibliográficos em Terzo contributo, I, p. 367-392.
3. A última edição é a de R. Meiggs e D. M. Lewis, Sekction, n2 8. Data-se 
hoje em dia esse texto de cerca de 570.
4. “Slave Labour”, p. 164, retomado em Stavery, p. 72; ver agora Ancient 
Stavery, p. 67-92.
5. D. Lotze, Metaxy; cf. Pollux, III, 83.
99
o alcance da distinção operada por Teopompo entre as duas “es­
cravidões” . (Falar de duas escravidões é, de resto, um abuso de 
linguagem, pois, precisamente, uma das categorias servis, a chat­
tel-slavery, tem um estatuto perfeitamente claro, enquanto a outra 
se recusa, por sua própria essência, às definições claras e distin­
tas.) Os trabalhos que exploraram esse campo são conhecidos por 
todos6. Na medida em que eu mesmo tentei desenvolver a discus­
são, meu esforço caminhou em duas direções. Retomando uma su­
gestão de Claude Mossé7, tentei mostrar que as duas categorias de 
escravos se opõem radicalmente no campo politico8. À inatividade 
política total dos “escravos-mercadorias” , mesmo quando concen­
trados em massas relativamente importantes como nas minas áticas 
do Láurio, corresponde a atividade política muito notável dos hi- 
lotas, penestes, etc. Uma aliança dos mineiros do Láurio com os 
tetes de Atenas para impor uma democracia mais radical é propria­
mente inconcebível; em compensação, pudemos ver em 397 em Es- 
parta, Cinadon tentar reunir contra os homoioi a totalidade das ca­
tegorias inferiores da população lacedemoniana; como diz, em Xe- 
nofonte9, o informante dos éforos: “Os responsáveis só se entende­
ram com um pequeno número de homens, dignos de confiança, mas 
estes disseram que o conjunto dos hibtas, dos neodamodes, dos 
inferiores (hipomeiones) e dos periecos eram cúmplices de pensa-
6. Ver em particular M. I. Finley, “Servile Statuses”, “Between Slavery 
and Freedom”; D. Lotze, “Woikees”; Cl. Mossé, “Rôle des esclaves”; P. 
Oliva, “Helots”; R. F. Willetts, “Servile System”. Falta, naturalmente 
muito para que os autores concordem uns com os outros, mesmo e so­
bretudo todos eles reivindicam o marxismo; desta forma, P. Oliva consi­
dera “não desenvolvida” uma forma de escravidão que Willetts considera 
com razão radicalmente diferente da escravidão clássica; mas, falando ele 
próprio de “servos”, cria uma confusão com a época da Idade Média 
européia. R. F. Willetts retomou o problema num artigo posterior (“Ter­
minology”, p. 67-68); a despeito de suas observações, não sei o que o 
impediria de utilizar o termo “bondsmen” ao invés de “servos”.
7. Em “Rôle des esclaves”.
8. P. Vidal-Naquet, “Êconomie et Société”, p. 127 e ss. assim como “Os 
escravos constituíam uma dasse?”, pg. 86 deste livro.
9. Xen. Hell. 111,4,4-11.
100
mento: de fato, toda vez que se tratava dos espartanos entre essa 
gente, nenhum deles escondia que não teria qualquerdesprazer em 
comê-los mesmo crus” . Essa oposição de comportamento parece- 
me até tão fundamental que podemos, quando se trata na época 
clássica de perturbações ou revoltas servis de caráter político (ou 
seja, não tendo çomo objetivo simplesmente a liberdade pessoal 
dos participantes), falar cóm certeza que se trata do tipo de escra­
vos que Teopompo considera como mais antigo que o outro, mes­
mo se os textos não nô-lo dizem formalmente10 11. À atividade de uns 
e a inatividade dos outros refletem-se, de resto, perfeitamente no 
domihio militar: os hilotas servem no exército lacedemoniano, os 
escravos só são alistados em Atenas nas situações excepcionais e 
urgentes11, e esse serviço implica a libertação.
Minha segunda abordagem foi muito diferente, pois ela 
enveredou pelo desvio do mito, da tradição lendária e da utopia12. 
Partindo do fato de que a cidade grega se baseia na exclusão das 
mulheres, dos escravos e dos estrangeiros (e também, provisoria­
mente dos jovens), tentei ver o que ocorria com as mulheres e os 
escravos nas situações imaginárias do “mundo invertido” , onde 
nos é apresentado de certa forma o inverso da sociedade “normal” . 
Ora, constata-se qué, quando estamos em Esparta, em Argos, na 
Lócrida, enfim, na região da escravidão “hilótica” , o “mundo in­
vertido” é um mundo governado por escravos e por mulheres. Ao 
contrário, Aristófanes pode, em A assembléia de mulheres, apre­
sentar uma sociedade onde as mulheres estão no poder, mas os es­
cravos continuam a trabalhar a terra; da mesma forma, em Lisís-
10. Ver abaixo o caso das perturbações de Herádides do Ponto no século 
• IV. Podemos também nos referir à tradição sobre a fundação de Éfeso
de um historiador desconhecido, Malakos, F. Gr. Hist.; 552, fr. 1, in 
Ath., VI, 267 ab. Éfeso teria sido fundada por mil escravos dos samia- 
nos revoltados que, após um acordo, teriam obtido o direito de emigrar. 
Se essa historieta tem o menor fundamento histórico, só pode se referir 
a dependentes rurais; é o que percebeu bem M. Sakellariou, Migration 
grecque, p. 127.
11. Ver. Y. Garlan, “Esclaves grecs”, 1.
12. Ver adiante “Esclavage et gynécocratie”.
101
trata, nenhum meteco, nenhum escravo é associado à tomada da 
Acrópole. Não se pode, nem se poderia cogitar de poder servil13.
É por um terceiro meio que gostaria de “testar” aqui a 
pertinência dessa oposição, o meio da historiografia. O texto de 
Teopompo que nos forneceu nosso ponto de partida, não é de fato 
escrito num momento qualquer. Pode-se datá-lo grosseiiamente dos 
anos trinta do século IV, do final do reino de Filipe ou do início da 
expedição de Alexandre14. Estamos, portanto, piecisamente no 
momento em que a Grécia se prepara para impor a servidão não 
mais aos gregos, mas aos bárbaros, igualmente no momento em que 
Aristóteles, que abandonou a Academia em 347, elabora a teoria 
do “escravo por natureza” e preocupa-se também com os hilotas da 
Lacedemônia e com os “periecos” de Creta. A posteridade de um 
texto como o de Teopompo pode ser percebida com bastante facili­
dade. Assim, na geração seguinte, Timeu também falará da intro­
dução dos escravos “comprados por dinheiro” , não em Quios, mas 
entre os gregos arcaicos que eram os locrianos e focidianos; eles 
sucedem não a populações gregas avassaladas, mas a grupos de Jo­
vens que faziam o trabalho doméstico15. O livro VI de Ateneu é, 
além disso, um testemunho suficiente do interesse dos historiadores 
e filólogos, principalmente na época helenística, em tomo de 
Aristófanes de Bizâncio, pelos estatutos servis que apareciam como 
estranhezas e sobrevivências16; é muito menos fácil remontar a 
épocas mais remotas.
13. Para uma aproximação análoga entre a mulher e o artesão, ver abaixo 
“Étude d’une ambigiüte”, p. 315; sobre LisCstrata, ver N. Loraux, 
“Acropole comique”.
14. Para a datação da História Filípica, ver W. R. Connor, Theopompus, p. 5.
15. F. Gr. Hist., 566, fr. 11-12, in Ath., VI, 264 cd e 272 ab ePolíbio, XII, 
5, 1 e ss.
16. Ver adiante ura certo número de referências. A. Momigliano sugere- 
me, na linha do texto de Teopompo, uma direção de pesquisa interes­
sante: pelo menos dois historiadores do final da época helenística, Posi- 
dônio de Apameu (F. Gr. Hist., 87, fr. 38) e Nicolas de Damas (F. Gr., 
Hist„ 90, fr. 95) recolheram historietas sobre as desgraças que aconte­
ceram com os quiotas depois da invenção da chattel-slavery. Sem dúvida 
devemos interpretar no mesmo sentido o episódio da revolta servil diri-
102
Há, no entanto, muitos sinais que mostram que, na época 
de Teopompo, na ausência de uma reflexão propriamente histórica 
sobre as origens da escravidão, as discussões sobre as melhores 
formas possíveis da escravidão e, conseqüentemente, sobre os mé­
ritos comparados da escravidão “hilótica” e da chattel-slavery, 
eram moeda corrente, O testemunho mais dato encontra-se talvez 
na última obra de Platão, publicada após sua morte (347), as 
Leis11. “Questão difícil” , diz Platão, “sob todos os pontos de 
vista, a dos servidores” : to ôe êrj tcov ottceixov xaXe-ira -jrWrryí8, 
e não se trata apenas de uma dificuldade teórica devido ao fato de 
que o gado humano é “pouco cômodo” (777b). “O hilotismo, tal 
como é praticado pelos lacedemonianos, oferece a quáse todos os 
gregos matéria de discussões e brigas, uns achando a instituição 
bem-vinda, outros não. Já se briga menos quanto à escravidão pra­
ticada pelos heracleotes desde a redução dos mariandinianos à.ser­
vidão e quanto ao povo peneste (ireveortKov eOvoç) dos tessalianos 
(776 c-d). Essas querelas têm uma razão prática que Platão expõe 
com muita clareza: as revoltas contínuas dos messenianos mostra­
ram o que uma cidade ganhava ao adquirir escravos que formavam 
um grupo e principalmente que falavam a mesma língua (777 cd). 
Se se quiser utilizar corretamente o trabalho servil, é preciso que 
os escravos sejam de certa forma pulverizados socialmente, isto é, 
que não sejam todos eles da mesma pátria e nem falem a mesma 
língua (777d). Em outros termos, é preciso que sejam estrangei­
ros* * * * 17 18 19, e recrutados num espaço geográfico amplo o suficiente para 
que não seja possível qualquer coerência nacional. A escolha de 
Platão está feita, feita a favor da “escravidão-mercadoria” . Platão
gida por Drimacos, tal como a narra Ninfodoros de Siracusa (F. Gr.
Hist., 572, ft. 4). Esses textos (citados por Ath., VI, 266 ef.) são carac­
terísticos da reação emocional de certos meios intelectuais do fim da
época helenfetica diante da chattel-slavery.
17. Ver G. R. Morrow, Plato’s Law of Slavery, p. 32-39.
18. Lois, VI, 776 b.
19. Voltarei mais tarde ao problema colocado pelos mariandinianos, depen­
dentes bitianos dos heracleotes.
103
chega, em suma, nas Leis, às consequências do axioma que coloca­
ra na República: não se deve reduzir os gregos à escravidão20. Es­
sa última máxima corria por toda a parte, mas Platão deu provas de 
originalidade dela tirando, com a nitidez típica das Leis, a oposição 
profunda que ele estabelece como Teopompo, mas antes de Teo- 
pompo, entre hilotas e escravos comprados no mercado. Neste 
ponto, Aristóteles quase que só fará reproduzi-lo21 aconselhando, 
ele também, a evitar os perigos revolucionários que ameaçaram 
tanto Esparta como a Tessália, por exemplo, pela aquisição de es­
cravos que não formam um grupo homogêneo.
Dito isso, pelo que sabemos, ninguém, antes de Teopom­
po, pensara em colocar essa oposição numa perspectiva histórica, 
distinguindo o antes dos hilotas e dos penestes e o depois dos es­
cravos comprados por dinheiro.
Voltemos, portanto, a esse texto capital, pois, à reflexão, 
comporta muitas singularidades. Teopompo identifica, como vimos, 
escravo, “comprado” com bárbaro, escravo “arcaico” com grego. 
É claro que essa primeira identificação coloca um problema de va­
lidade. De acordo com os estudos mais recentes, é certo que as 
grandes concentrações de escravos, em primeiro lugar as do Láurio 
ático, são majoritariamente formadas por não-gregos22,mas não é 
verdade que o comércio seja o método exclusivo de aquisição dos 
escravos: o rapto, a pirataria e sobretudo a guerra também desem­
penham um papel capital. Melhor, para muitos gregos (e para o 
próprio Platão), a escravidão podia parecer o horizonte possível de 
seu destino individual. Se do século IV remontarmos ao século 
precedente e principalmente aos autores trágicos, constatamos que 
a escravidão, longe de estar associada ao conceito de mercadoria e 
ao estatuto de bárbaro, aparecia como uma espécie de catástrofe in­
20. Rep., V. 469 c.
21. Pot., I, 1225 a 28; II, 1269 a 35 e ss. Sobre a teoria do escravo por na­
tureza e seus limites, ver V. Goldschmidt, “Théorie aristotélicienne” , 
artigo um pouco paradoxal.
22. Ver sobretudo S. Lauffer, Die Bergwerkssklaven.
104
dividual que podia ameaçar a todos, gregos ou bárbaros23. A in­
sistência de Teopompo - e de seus sucessores - sobre a compra 
tem certas causas gerais relativamente claras. O desenvolvimento - 
muito relativo - de uma atividade econômica com base no lucro, o 
que Aristóteles chama “crematística” , em suma, toda essa trans­
formação que, no século IV , anuncia a aventura helenística com 
tudo o que a caracteriza: d multiplicação, fora do mundo grego, das 
fontes de trabalho servil podem ser invocadas como testemunho.
Se quisermos todavia evitar as generalidades, é forçoso 
nos perguntarmos, antes de mais nada, como, antes de Teopompo, 
as pessoas imaginavam o início da escravidão24. Ora, é possível 
responder a essa questão mostrando que, nó mundo das cidades, 
onde a escravidão tinha efetivamente um papel essencial, o pro­
blema das origens é realmente colocado em termos de antes e de­
pois, mas o antes situava-se não como em Teopompo na história 
propriamente dita, mas na lenda e no mito.
O testemunho mais antigo nos conduz às próprias fontes da 
historiografia grega, pois nela vemos Heródoto opor um relato de 
seu predecessor Hecateu de Mileto a uma tradição ateniense25; 
trata-se de explicar a partida dos pelasgos da Ática em direção a 
Lemnos. Segundo Hecateu, os pelasgos foram expulsos injusta­
mente de uma terra que os atenienses lhes haviam concedido como 
recompensa pela construção da muralha primitiva da Acrópole. A 
versão ateniense, fragmento precioso de folclore, é diferente: “Os 
pelasgos, instalados ao pé do Himeto, dele se serviam como uma 
base para insultar os atenienses, como vai ser dito. Com regulari­
dade, suas mulheres e filhos26 * * * * iam buscar água na fonte das Nove
23. Ver V. Cuffel, “Concept of Slavery”.
24. A partir de agora, quando eu falar em escravidão, sem outra precisão, 
estarei sempre tratando da chattel-slavery.
25. Hdt., VI, 137, citando Hecateu (F. Gr. Hist., 1, fr. 127).
26. Todos os manuscritos, exceto apenas um, trazem esta última precisão,
suprimida pela maioria dos organizadores. De fato são as mulheres e
somente elas que os pelasgos raptarão. Mas é bem rtatural que Heródo­
to, ao descrever os tempos míticos, tenha atribuído o trabalho domésti­
co às mulheres e às crianças, ou seja, ao conjunto dos não-homens,
105
de Dédalo ou dos tripés de Hefestos, os quais, diz o poeta, iam por 
seus próprios pés à assembléia dos deuses, se, da mesma maneira, 
as navetas tecessem sozinhas e os plectros beliscassem sozinhos as 
cítaras, então, nem os chefes dos artesãos precisariam de operários, 
nem os senhores, de escravos”36.
Em todo caso, voltando-se ao passado ou para o futuro, os 
tempos sem escravos da cidade escravagista estão fora da história, 
num antes ou depois pré-cívico ou pós-cívico e até, em grande me­
dida, num antes ou depois da própria civilização. De resto, é bem 
notável que o único esforço sério de um historiador grego para re­
construir pela dedução racional o passado da Grécia - refiro-me 
à Arqueologia de Tucídides não faça qualquer menção ao início 
da escravatura. Acreditamos que é sublinhar suficientemente a ori­
ginalidade e a novidade da questão colocada por Teopompo, mas é 
também convidar-nos a questionar se não seria a reflexão sobre a 
outra forma de escravidão que estaria na origem da espécie de cri­
se testemunhada por Teopompo.
A teoria pela qual o historiador de Quios explica a origem 
dos hilotas e dos penestes é uma teoria da conquista, teoria pareci­
da com a que é expressa ou sugerida (as citações de Ateneu rara­
mente são explícitas) por inúmeros autores do século IV e da época 
helenM ca que trataram de Esparta, da Tessália, de Creta, de Hera- 
cléia do Ponto37. Dessa forma, o eubeiense Arquemacos conta co­
mo uma fração dos antigos beócios, no momento em que esses, 
pressionados pelos invasores tessalianos se dispunham a alcançar a 
região que mais tarde se tomou a Beócia, decidiu permanecer onde 
estava e concluiu com os tessalianos um pacto (homologia) pelo 
qual se comprotnetiam a ser seus escravos, sob a reserva de que
36. Arist., PoL, I, 1253 b 32-38; trata-se de fato, nessa passagem famosa, 
de uma referência quase explícita às situações cômicas.
37. Por exemplo Arquemacos (século III?), F. Gr. Hist., 424, fr. 1, in Ath. 
VI, 264 ab; Calístrato (discípulo de Aristófanes de Bizâncio, século II), 
F. Gr. Hist., 348, fr. 4, in Ath.; VI, 263 de; Filócrates (século IV?), F. 
Gr. Hist., 602, fr. 2 in Ath., VI, 264 a; Sosícrates (século II), F. Gr. 
Hist., 461, fr. 4, in Ath., VI, 263 f.
108
não seriam expulsos da região, nem mortos. Existem várias va­
riantes dessa teoria do contrato original de servidão: assim, Posi- 
dônio de Apaméia explica, depois de outros, que os mariandinianos 
tornaram-se os “escravos” dos heracleotes com a condição de que 
não seriam expulsos nem vendidos para os estrangeiros38.
Pode-se1 bem dizer que essa teoria obteve um imenso su­
cesso, pois, com várias nuanças, muitas vezes é assim que os histo­
riadores modernos imaginam o inicio do hilotismo; não, é claro, 
que retomemos por sua conta a historieta do contrato de servidão, 
mas a maioria deles admite que hilotas, penestes, charotes, etc. 
sejam os descendentes das populações pré-dóricas. A esse título, 
são os herdeiros de Teopompo, de Eforo e de alguns outros.'Natu­
ralmente, os documentos mais numerosos referem-se a Esparta, e é 
de Esparta e das origens do hilotismo, tal como os gregos imagi­
navam, que falarei agora. Não é o caso, decerto, de tratar o pro­
blema profundamente, nem de reanimar o debate que outrora opôs 
Kahrstedt e Ehrenberg antes que Henri Jeanmaire, em Couroi et 
Courètes, magistralmente, não desse razão nem a um nem a outro. 
A despeito dos esforços de Fr. Kiechle39, duvido que um dia se 
possa provar qualquer coisa sobre o assunto. Como dizia P. Rous­
sel, “fracassa-se em demonstrar que os periecos não eram dóricos e 
que a servidão dos hilotas resultou exclusivamente de um açambar- 
camento das terras em proveito dos invasores”40. Nenhum dos 
vestígios pié-dóricos que pudemos distinguir na linguagem falada 
ou escrita da Lacônia pode ser atribuído mais particularmente aos 
hilotas; isso deveria bastar para resolver o problema, ou melhor,
38. F. Gr. Hist., 87, fr. 8, in Ath., VI, 263 cd. Sobre a teoria análoga de 
Eforo a respeito da origem dos hilotas e de Teopompo a respeito dos 
mariandinianos, cf. adiante. Esse tema é retomado com alguns outros 
por J. Ducat, “Hilotisme”, principalmente p. 5-11.
39. Lakonien.
40. Sparte, p. 20. A discussão sobre a realidade da invasão dórica foi há 
pouco reativada e exalta os ânimos. Não pretendo, de forma alguma, 
nela me imiscuir, ao mesmo tempo que constato que a presença do dia­
leto dórico nas tabuinhas micênicas parece fora de dúvida (cf. J. Chad- 
wick, “Dorians").
109
para demonstrar que é insolúvel. Bem inspirado, no caso, A. J. 
Toynbee observou: “Há ao menos quatro tradições diferentes e ir­
reconciliáveis sobre a data e as circunstâncias do início do hilotis- 
mo. Isso sugere que essas quatro tradições são suposições e que 
não existia lembrança autêntica”41.
Mas, se o problema de fundo é insolúvel, o discurso sobre 
as origens merece, este sim,ser estudado em todas as suas varian­
tes, inclusive as que sabemos não terem a menor chance de revelar 
a verdade, exatamente como merece ser estudada a teoria difundida 
na França do século XVII ao século XIX que fez da nobreza os 
descendentes dos conquistadores francos e dos povos os descen­
dentes dos galo-romanos vencidos42. Coloquemos aqui alguns 
princípios de base, dentre os quais pelo menos o primeiro concerne 
à história propriamente dita e não somente o discurso sobre a histó­
ria.
1. Para um ateniense do século IV, a situação de depen­
dência à qual estão relegados gregos como os hilotas ou os penes- 
tes é surpreendente. Nossa atitude deve ser exatamente inversa. O 
que é surpreendente e até estupefaciente, se quisermos, no mundo 
mediterrânico do primeiro milênio, não é a dependência, mas a li­
berdade, quero dizer, por exemplo, a liberdade conquistada pelos 
camponeses atenienses desde Sólon. Devemos tentar compreender 
o que os gregos nos dizem a partir desse fundo de liberdade ou li­
beração.
2. O que é interessante e deve nos preocupar é que, num 
certo momento e não em outros, os historiadores gregos se per­
guntaram sobre a origem do hilotismo. Devemos tentar encontrar o 
porquê dessa interrogação.
3. O corpo social de Esparta estava dividido entre os hi­
lotas, os periecos e os homoioi; este é um dado que se impunha 
aos antigos como se impõe a nós. Trata-se de compreendê-lo e ex-
41. Problems, p. 195.
42. Para exemplos análogos na historiografia inglesa, M. I. Finley, Ances­
tral Constitution.
110
plicá-lo historicamente? Os gregos encontravam-se, na essência, 
exatamente na mesma situação que nós. Temos decerto sobre eles a 
vantagem da arqueologia, mas a arqueologia não descobriu até 
agora muitos hilotas, e a arqueologia não poderá explicar como se 
constituiu esse grupo social. Mas, afora isso que não conta muito, 
os gregos agiam como nós, elaboravam raciocínios a partir de da­
dos: os hilotas são, os periecos são.
A partir do momento em que colocamos questões, o núme­
ro de respostas não é ilimitado. O problema decerto é menos sim­
ples do que estou dizendo aqui; os gregos deviam levar em consi­
deração principalmente a existência de dois tipos de hilotas: hilotas 
da Lacônia e hilotas da Messênia, os últimos em permanente re­
volta para “restaurar” Messena, enquanto a reivindicação dos pri^ 
meiros é antes a de uma transformação revolucionária da sociedade 
lacedemoniana. Deviam levar em conta também uma tradição cujo 
testemunho mais antigo é fornecido pelos poemas de Tirteu: a for­
mação de Esparta é o resultado de uma invasão, a invasão dos dó- 
rios conduzidos pelos Heráclidas, num território outrora aqueu, 
cuja capital era Amicléia.
Mas, admitido isso, os historiadores da Antigüidade racio- 
cionavam como os modernos. Há algo mais impressionante, por 
exemplo, do que ver um contemporâneo como F. Gschnitzer colo­
car-se o problema da origem dos periecos em termos de alternativa 
lógica: ou os periecos são espartanos que perderam seus privilé­
gios, ou são não-espartanos que entraram sob condições particula­
res no Estado lacedemoniano43; como se a realidade histórica obe­
decesse sempre às leis de uma lógica de exclusão?
A partir dos dados que acabo de lembrar, quais as soluções 
possíveis para o problema espartano?
1. Seria possível não nos colocarmos absolutamente 
questões.
2. Seria possível admitir que a diferenciação dos lacede- 
monianos nas três categorias mencionadas era de origem interna e
43. F. Gschnitzer, Abhàngige Orte, p. 146-150.
111
resultado de uma evolução histórica ou de um acontecimento dra­
mático que se traduziria por exemplo pela concessão de um esta­
tuto.
3. Também seria possível dizer que periecos e hilotas 
eram descendentes das populações conquistadas, sem que essa de­
dução seja feita obrigatoriamente para todos os hilotas, pois os 
messianianos formavam uma categoria especial.
4. Seria também possível admitir que periecos e hilotas 
não tinham a mesma origem, que os primeiros levantavam um pro­
blema histórico e os outros não.
É claro que estou simplificando e seria fácil complicar as 
coisas44, mas, grosso modo, os historiadores gregos45 formularam 
exatamente as hipóteses que acabo de esboçar.
E Heródoto? Para ele, os dórios são um povo errante, mas 
que seu helenismo inato opõe aos jônios de Atenas, autóctones, 
decerto, mas também pelasgos - e. pelasgos mais helenizados do 
que gregos46. Obrigaram todos os povos pré-dóricos do Pelopone- 
so a emigrar, com três exceções diferentes uma da outra: os arcá- 
dios não emigraram47; os aqueus deixaram a Lacônia para alcançar 
a região do Peloponeso que se tomou Acaia (aqui obrigando os jô­
nios a ir embora)48; os cinurianos, instalados nas fronteiras de Ar- 
gos e da Lacônia, doricizaram-se49 50. Instalaram-se portanto no Pe­
loponeso, além dos dórios, possuidores de “cidades numerosas e 
célebres” , os etolianos de Elis, os dríòpes de Hermíone e Asine, os 
lemnianos, em outras palavras, os paroreates da costa oeste da pe­
nínsula30. Por outro lado, Heródoto conhece os messenianos que,
44. Mesmo assim, digamos desde já que as populações vítimas da invasão 
dórica ou emigraram em bloco ou podem ter permanecido em parte em 
terras ancestrais.
45. A pesquisa desse assunto é muito facilitada pelo belo livro de E. N. 
Tigerstedt, Legend.
46. Hdt., II, 17; 1 ,56.
47. Hdt., II, 171; VIII, 73.
48. Hdt., VIII, 73; cf. 1 ,145 e VII, 94.
49. Hdt., VIII, 73.
50. Ibid.
112
para ele, sem que ele o diga expressamente, são dórios com o 
mesmo direito que os espartanos, presentes no momento da con­
quista, presentes ao nascimento dos gêmeos fundadores das duas 
dinastias reais, Procles e Eurístenes51. Heródoto faz várias alusões 
ao que chamámos de terceira guerra de Messênia, que ele apresenta 
aliás como mais òu menos permanente desde o final das guerras 
médias52; mas jantais mistura as noções de hilotas e messenianos e, 
quando faz alusão aos hilotas, é sempre como homens submetidos a 
um estatuto de fato, sem jamais questionar absolutamente nada so­
bre a origem do estatuto53.
Tucídides raciocina de modo ligeiramente diferente. Tam­
bém ele conhece os messenianos sobre os quais, aliás, precisa que 
falem não somente o dório, mas exatamente até o dialeto dos lace- 
demonianos54. Quando conta a insurreição de 465(?), que atribui 
aos hilotas e periecos de Túria e Aitaia, acrescenta que “a maioria 
dos hilotas eram descendentes dos antigos messenianos reduzidos à 
escravidão, o que explica que se deu a todos o nome de messenia­
nos”55. No que diz respeito aos hilotas não messenianos, Tucídides 
não faz a menor alusão a uma origem não dórica: os espartanos 
desconfiam que os atenienses e não os hilotas pertençam a uma et­
nia diferente, desconfiança que justifica a seus olhos a expulsão 
do corpo expedicionário enviado por Atenas contra os insurretos 
do monte Itome56. Tucídides, afinal das contas, não colocou qual­
quer questão a respeito da origem dos hilotas não messenianos, dos 
quais fala várias vezes, insistindo sobretudo em como eram vigia­
dos de perto57.
É no entanto no século V que aparecem na literatura as 
primeiras teorias sobre a origem do estatuto dos hilotas da Lacônia,
51. Hdt., VI, 52.
52. Hdt., III, 47; V, 49; IX, 35,64.
53. Hdt., VI, 58,75, 80-81; VII, 229; VIII, 25; IX, 10 28-29, 80-85.
54. Tuc.,'III, 112,4; IV, 3,3.
55. Tuc., 1 ,102.
56. Tuc., 1 ,102, 3.
57. Ver sobretudo IV, 80.
113
e é surpreendente ver que várias versões exatamente opostas foram 
dadas sobre essa origem por contemporâneos.
Assim, Antíòco de Siracusa faz esse estatuto remontar à 
primeira guerra de Messênia, mas eis o que diz a esse respeito: “Os 
lacedemonianos que não participaram da expedição (contra os mes- 
sênios) foram decretàdos servos e chamados de hilotas” . Trata-se, 
portanto, de acordo com essa interpretação, de uma população la- 
cedemoniana reduzida a um estatuto inferior no decorrer da histó­
ria58, estatuto comparável ao dos “medrosos” (tresantes), ós co­vardes a quem o seu pouco valor condenava a uma degradação59.
A outra teoria, a da conquista, apresenta-se a principio, 
cronologicamente, sob a forma modesta de uma citação de Helani- 
cos de Lesbos no glossário de Hatpocration: “ Os hilotas são escra­
vos, mas não lacedemonianos de nascença; foram os primeiros en­
tre os habitantes da cidade de Helo a serem capturados60” . Por in­
termédio de um jogo de palavras a partir de Helo, cidade da Lacô- 
nia, e hilotas, nos é dada a versão da conquista desta forma. O 
testemunho de Helanicos é o único do século V, mas o sucesso 
dessa hipótese úo século seguinte seria considerável. Vimos que 
Teopompo (que assume como sua a absurda história de Helo) tam­
bém remete à conquista dórica. Quanto a seu contemporâneo Éfo- 
ro, igualmente aluno de Isócrates, do qual um longo fragmento foi
58. F. Gr. Hist., 555, fr. 13, in Estrab., VI, 3, 2. EKpiGricrav ÔauXoi kou 
«avop/aaGirçaav siAarres. A despeito das objeções de P. Levêque 
(Terre et Paysans, p. 115), não vejo como se pode achar que esse texto 
seja algo que não um relato sobre a origem do hilotismo. O relato com­
porta dois tempos: 1) decide-se que gente indigna deve ser reduzida à 
condição servil; 2) esses escravos tomam o nome de hilotas.
59. Hdt., VII, 23; Plut., Agésilas, 30; Licurgo, 21; Tucídides com certeza 
alude a esse estatuto em V, 34. Sobre os tresantes, ver N. Loraux, 
"Belle mort”, p. 111-112.
60. F. Gr. Hist., 4, fr. 188, in Harpocration s.v., eiW revet.v ver o comen­
tário de Jacoby ad. loc. A anedota etimológica sobre Helo é igualmente 
conhecida por Teopompo, F. Gr. Hist., 115, fr. 13, in ATH., VI, 272 a, 
assim como outros autores que são mencionados por J. Ducat, “Hilo­
tisme”, p. 9.
114
conservado por Estrabão61, seu relato é o seguinte: quando da in­
vasão dórica, a maioria dos aqueus abandonaram o pais, que foi 
dividido em seis seções (correspondentes aos seis mores do exér­
cito lacedemoniano clássico). Uma delas, Amicléia, foi concedida a 
Filonomos, o aqueu, que entregara o país e convencera seu chefe a 
emigrar62. Esparta'tomou-se o centro da realeza, mas envia-se reis 
locais para governar cada seção. Em virtude da falta de homens 
(.leipandria), os reis locais são convidados pelos heráclidas a ou­
torgarem o estatuto de coabitantes (synoikoi) a todos os estrangei­
ros que o pedissem. Esses estrangeiros, chamados de hilotas63, que 
são também os súditos e os periecos dos espartanos (twaKouovraç 
8 aTravTaç touç irepioiKovç SirapTtaTwv), recebem entretanto a 
igualdade de direitos com seus senhores, beneficiam-se da cidada­
nia e do acesso às magistraturas. Na geração seguinte, o rei Agis 
priva-os de sua cidadania e impõe-lhes um tributo. Todos aceitam, 
exceto os habitantes de Helo que querem separar-se do reino e que, 
uma vez submetidos, são decretados de estatuto servil, com a re­
serva expressa, porém, de que seus proprietários não poderiam li­
bertá-los, nem vendê-los no exterior. Tal é, em suma, o ponto de 
partida da teoria do contrato original de servidão que já tivemos a 
ocasião de examinar. Vê-se, além disso, a vantagem desse mito 
histórico criado por Éforo: permitia expor a existência tanto dos 
hilotas quanto dos periecos. Ambos eram “estrangeiros” , a princí­
pio admitidos na cidade lacedemoniana e depois rebaixados a seus 
respectivos níveis. Pode-se até suspeitar de que Éforo tentava na 
realidade conciliar duas tradições, a que via nos periecos e hilotas 
vítimas da conquista e a que os tomava espartanos degradados. 
Resta, no entanto, saber o que Éforo entendia exatamente por “es­
trangeiros” . O fragmento 117 que acabamos de analisar não dá
61. F. Gr. Hist., 70, fr. 116 e 117 in Estrab., VIII, 4 ,7 e 5 ,4 . O comentário 
de Jacoby esclarece todos os equívocos que, à primeira vista, esse texto 
poderia provocar.
62. Cf. Strab., VIII, 5,5.
63. Meineke propôs deslocar a menção dos hilotas após a da cidade de He- 
los.
115
qualquer precisão e, se nos basearmos nele, não seríamos absolu­
tamente obrigados a considerar esses “estrangeiros” aqueus64, mas 
o fragmento 116 referente aos messênios não deixa qualquer ddvi- 
da: “Quando Cresfontes dominou Messena, dividiu-a em cinco ci­
dades e instalou em Steniclaros, situada no centro da região, sua 
residência real. Enviou reis às outras cidades, Pulos, Rion, Mesola 
e Hiameitis, conferindo a todos os messênios direitos iguais aos 
dos dórios. Como os dórios se irritassem com isso, mudou de idéia; 
apenas Steniclaros recebeu estatuto de cidade e ali reuniu todos os 
dórios” . Não há portanto qualquer equívoco possível, os “estran­
geiros” são não-dórios e são os habitantes primitivos do país, pois 
é difícil imaginar que o que é válido para Messena não é válido pa­
ra Esparta.
Com diversas variantes, a versão de Éforo deveria obter 
um grande sucesso. Pausânias ainda se refere a uma versão próxi­
ma, por exemplo, quando faz o rei Alcamenos criar o estatuto hiló- 
tico muitas gerações após Agis65. Em suma, Pausânias é um pre­
cursor de F. Kiechle, que também dilui a conquista dórica em nu­
merosas etapas.
Mas faltava muito para que no século IV essa versão - que 
Éforo não inventara - obtivesse a unanimidade. Quando Platão, na 
República (portanto, antes de Éforo) trata da passagem da cidade 
modelo à cidade “timocrática” de tipo lacedemoniano, ele resume 
da seguinte forma sintética a constituição da antiga Esparta: “Após 
muita violência e luta, combinam dividir entre si e apropriar-se da 
terra e das casas, e os que consideravam outrora seus concidadãos 
(ou seja, os membros das classes inferiores) homens livres, amigos 
e pais de criação agora são seus vassalos, tratam-nos de períecos e 
servidores (oiketai), enquanto eles próprios continuam a preocupar- 
se com a guerra e a vigilância dos outros”<5<5. Não há a menor
64. Assim raciocinava, por exemplo, L. Pareti, Sparta arcaica, p. 190-191.
65. Paus, III, 20, 6. Plutarco tem outro candidato: o rei Soos (cf. Lycurgue,
2, 1).
66. Rep,, VIII, 547 b-c, trad. E. Chambry levemente modificada. O texto é 
de difícil interpretação, pois joga com dois planos: de um lado, Platão
116
alusão a uma origem “aquéia” dos periecos e dos hílotas, e não se 
encontrará igualmente qualquer menção a isso no livro XD das Leis, 
quando Platão expõe o estabelecimento das três cidades dòricas de 
Esparta, Messena e Argos; é a evolução interna e, somente ela, que 
explica o sucesso de Esparta e a decadência rápida das duas outras 
cidades67. ‘
Quanto a Isòcrates, conheceu e apresentou, seguindo a ló­
gica de seus discursos, versões muito diversas. Em Arquidamos, 
que, em 366, concede ficticiamente a palavra a um príncipe espar­
tano, este reconhece nos messenianos dórios cujos ancestrais ti­
nham sido outrora dominados pelos lacedemonianos como punição 
pelo assassinato de seu rei fundador, Ciesfontes. Mas Arquidamos 
recusa-se a identificar os “messenianos” recém-liberados por Epa- 
minondas com os messenianos de antanho. “São, na realidade hi- 
lotas que estão instalando em nossas fronteiras68” . Essa versão não 
é, pois, incompatível com a teoria da conquista. Mas no Panate- 
naico, redigido de 342 a 339, portanto depois do livro correspon­
dente de Éforo, Isòcrates conta uma história inteiramente diferente 
e que parece um tanto com a contrapartida da das Leis de Platão. 
Enquanto Messena e Argos passam por uma evolução parecida com 
a de outras cidades gregas, ou seja, da oligarquiá à democracia, 
Esparta caracteriza-se pela permanência da stasis. Ao invés de in­
tegrarem-no à comunidade, os espartanos transformam seu povo em 
periecos: Tov ô-rprov -irspioiKov«; iroi/qcracrôcn, KoeraarotuXeu- 
<ra|xevous ctvrcov ra s i|/uxas au&ev lyrTov tcíç tcov oiketwv. O
conta como os cidadãos da cidade modelo que possuíam tudo em co­
mum, chegam à divisão das terras e à especialização da casta dirigente 
apenas na função guerreira; por outro, conta de seu modo o estabeleci­
mento do Estado espartano. Acrescentemos que o estatuto de “cida­
dãos" dos membros-dasclasses inferiores da sociedade platônica 6 ex- 
tfemamente duvidoso, e a Aristóteles agradou sublinhar as contradições 
reais e imaginárias do texto (Pol., II, 1264 a 25 e ss.) Mas precisamente 
essa observação deveria nos incitar a admitir que Platão segue aqui uma 
versão “histórica” da história espartana.
67. Lois, III, 683 a e s.
68. Archidamos, 16, 28, 87.
117
que significa a última expressão? Por que essa alusão à escraviza­
ção das almas populares, comparada ao tratamento inflingido aos 
escravos? Não pode se tratar apenas dos periecos, pois Isócrates 
esclarece que os espartanos se arrogam o direito de condenar essa 
gente à morte sem julgamento, o que pode convir apenas aos hilo­
tas. O texto só é coerente se admitirmos que o autor colocou numa 
mesma categoria o conjunto das populações dependentes, ou seja, 
os periecos e os hilotas69, e que talvez faça alusão à presença em 
Esparta, provável no século IV, de escravos de tipo clássico70.
Acabamos de examinar os tipos de explicações históricas a 
respeito do hilotismo. É fácil ver o que os opõe radicalmente em 
seu conjunto ao que nos diz Teopompo do início da escravidão. 
Qualquer que seja a explicação dada, o hilotismo é sempre apre­
sentado como tendo suas origens não antes da história, mas na 
história. Qualquer que seja a explicação proposta, os homens em 
questão são sempre apresentados como tendo sido livres. Não é por 
acaso que Teopompo, que, por um lado, nos explica como as víti­
mas da invasão dórica se tomaram hilotas, nos explique também 
como durante as guerras da Messênia, um certo número de hilotas, 
os Eupenaktoi, foram admitidos paia substituir nos leitos de cam­
panha dos espartanos os homoioi que tombaram na guerra71. O fe­
nômeno de escravização é, neste caso, reversível. Um hilota foi li­
vre, pode tomar a sê-lo, não é, de forma alguma, escravo por natu­
reza. Pelo contrário, não se compra homens livres, mas escravos, e
69. Panathenaique, 177-180. Esse texto foi objeto de diversas interpreta­
ções: Ci. Mossé (“Perièques”) estima que Isócrates alude aos periecos e 
apenas a eles; J. Ducat contesta minha interpretação, ao mesmo tempo 
que admite, como eu, que talvez exista aí “uma confusão (mais ou me­
nos voluntária, num texto violentamente polêmico) com o estatuto dos 
hilotas” (“Hilotisme”, p. 9).
70. Platão faz alusão à presença de escravos; cf. Ale., 122 d, texto que Cl. 
Mossé me assinala. Pode-se todavia interpretar o texto de forma dife­
rente e achar que Isócrates alude aqui aos escravos em geral.
71. F. Gr. Hist., 115, fr. 171, in Ath., VI, 271 cd; cf. S. Pembroke, “Lo- 
cres”, p. 1246. Teopompo, ele próprio, aproxima esses Epeunaktqi de 
uma categoria servil de Sícion, os Katõnakophoroi, fr. 176, in Ath., VI, 
271 d.
118
somente antes da história houve uma época sem escravos. Já o 
destino dos escravos não é reversível.
A historiografia grega constituíra-se no final do século VI 
no contexto da cidade, e a cidade servia-lhe de referência; os hilo- 
tas nela tinham seu espaço, pois faziam parte, mesmo no grau mais 
inferior, do Estado lacedemoniano; os escravos-mercadorias, estes 
são propriedades privadas (mesmo que por vezes cidades os pos­
suam); inserem-se com muito mais dificuldade na história. Mas, 
precisamente, Teopompo, cuja obra principal, a História Filípica é, 
como seu título indica, centrada na pessoa do rei da Macedônia, 
marca uma reviravolta nesse campo.
Seria preciso acrescentar que os hilotas e assimilados são 
gregos e os outros, ao menos para a historiografia, bárbaros? Mas 
seria possível objetar com o caso dos mariandinianos, entre outros, 
e é preciso responder a essa objeção.
Coloquemos aqui uma hipótese de partida. Entre os fatores 
de helenização das populações bárbaras na época clássica, não se­
ria preciso atribuir um lugar importante à servidão rural, da qual 
muitas delas foram vítimas? O exemplo mais antigo que se pode 
dar é provavelmente o dos Kyllirioi de Siracusa, dos quais Heró- 
doto nos diz que, pouco antes da tomada de poder por Gelão, ex­
pulsaram, aliados ao dêmos, os Gamoroi, ou seja, os oligarcas, na 
cidade72. Acho que seria inútil procurarmos um único exemplo de 
aliança entre o povo de uma cidade grega e os círculos livres. Mas 
o caso mais notável é talvez o dos mariandinianos de Heracleu do 
Ponto, sobre os quais estamos relativamente bem informados, pro­
vavelmente graças ao fato de o tirano de Heracléia, Clearco, ter si­
do discípulo de Platão e Isócrates73.
Os mariandinianos são conhecidos no século V como um 
povo bárbaro bitiano ou paflagoniano em cujo território os hera- 
cleotes fundaram sua cidade, mas que também possui o antro de
72. VII, 155.
73. Cf. Memnon, F. Gr. Hist., 434, fr. 1, in Photíus, Bibl., 224.
119
Cérbero74. São apresentados de bom grado como bárbaros, mas 
bárbaros familiares, se ouso dizer, como poderíam sê-lo os caria- 
nos75 desde os tempos de Homero. Esse caráter bárbaro não desa­
parece completamente mais tarde76. Os mariandimanos continuam 
bárbaros77, mas, na verdade, o geógrafo Estrabão não sabe muito o 
que fazer com eles. São caucones, povo conhecido por Homero, 
mas que desapareceu, são bitianos, dos quais, nem dialeto, nem et­
nia, os diferencia78? Estrabão não conhece mais, a não ser indire­
tamente, mariandiniànos trabalhando o solo para os cidadãos de 
Heracléia.
A historiografia do século IV classifica-os, como vimos, 
ao lado dos hilotas e dos penestes, e o próprio Teopompo, ao que 
parece, abre um espaço para eles entre os povos que concluíram o 
que chamamos de contrato original de servidão79. Essa classifica­
ção nãò implica que tenham se helenizado em larga medida? Duas 
ordens de fato müitam a favor dessa hipótese. A história de Hera-
74. Hecateu, F. Gr. Hist., 1,198; Hdt., 1 ,28, III, 90, VII, 72; Anab., VI, 2, 
1. Sobre os mariandimanos, toda a documentação está agora reunida 
por D. Asheri, “Herakleia Pontike”, p. 17-23.
75. Assim Ferécrates, fr. 68 {Kock, I, p. 163) in Ath., XIV, 653 a, onde se 
zomba de seu dialeto e das confusões que acarreta; ver também sobre os 
cantos de luta que a eles se atribui, Nymphis, F. Gr. Hist., 432, fr. 5, in 
Ath., XIV, 619 b-620 c. Pausânias, V, 26 ,5 conhece ainda em Olímpia 
uma dedicatória feita pelos megarianos e feócios, fundadores de Hera­
cléia, “sobre os bárbaros mariandinianos”.
76. C f., por exemplo, o autor anônimo do Périple du Pont-Euxin, 27 
(G.G.M., I, p. 408). Eustathe, entre outros, faz alusão, por sua vez, a 
seu veneno, o acônito (Commentaire à Denys le Périégète, G.GM., II, 
p. 354).
77. O testemunho mais tardio é uma inscrição funerária da época imperial 
conservada por Constantino Porfirogeneta em Livre des thèmes (C.I.G. 
3188), relatando a carreira de um procônsul; ela situa o país dos ma­
riandinianos entre a Galácia e o Ponto.
78. Estrab., XII, 3 ,2 -9 .
79. F. Gr. Hist., 115, fr. 388, in Estrab., XII, 3 ,4 .0 texto de Estrabão não 
diz formalmente que Teopompo é responsável por essa afirmação. Por 
sua vez, Callstrato afirma que se lhes deu o nome de “portadores de tri­
buto” (dôrophoroi) para evitar aquilo que o termo servidores (oikétai) 
tinha de amargo (cf. F. Gr. Hist., 347, fr. 4, in Ath., VI, 263 de).
120
cléia na época clássica é particularmente agitada, como comprovam 
principalmente as numerosas alusões de Aristóteles a revoluções 
que abalaram a cidade80. Indiscutivelmente Heracléia oferece a 
notável particularidade de que pôde, pelo menos por um certo tem­
po, possuir uma frota bem numerosa, apesar de uma população ci­
tadina pequena e isso, preçisa Aristóteles, graças à sua grande po­
pulação “de periecos e camponeses (geôrgoi)” (ou seja, mariandi- 
nianos)81; mas podemos nos perguntar se essa situação não se 
prolongou pelo século IV. De fato, um texto de Eneu, o tacticiano, 
sobre o qual D. M. Pippidi chamou a atenção82 83, mostra que se ope­
rou em Heracléia uma profunda reforma constitucional de tipo 
clisteniano. Querendo facilitar a vigilância dos ricos, os pobres 
substituiram um sistema quecomportava as três tribos dóricas, cada 
uma tendo doze centúrias (hékatostyes), por um sistema de sessenta 
centúrias o que toma muito verossímil a presença de dez tribos. Tal 
reforma não foi acompanhada de uma ampliação do corpo cívico, 
na ausência do qual ela perderia grande parte de seu sentido? Pelo 
menos, é uma hipótese que podemos formular. Em 364, o tirano 
Clearco toma o poder e apóia-se no dêmos. Impõe uma divisão de 
terras, liberta os escravos dos grandes e impõe casamentos força­
dos entre esses escravos e as filhas desses grandes88. Quem são es­
ses escravos? Muito provavelmente mariandinianos, uma parte dos 
quais foi libertada84. O episódio das núpcias é, de resto, caracte­
rístico: só se encontra esse topos nas cidades que possuem depen-
80. Pol., V, 1304 b 31,1305 b 4. Sobre a história de Heracléia, e principal- 
mente da tirania de Clearco, breve resumo de W. Hoepfner, Herakleia 
Pontike, p. 9-14; ver D. Asheri, “Herakleia Pontike”; sobre ã tirania, a 
obra básica continua sendo H. Apel, Tyrannis.
81. Pol., VII, 1327 b 10-15.0 termo periecos designa praticamente sempre 
em Aristóteles as populações rurais escravizadas. Cf. R. F. Wiliets “In­
terregnum”, p. 496.
82. Eneu, XI, 10-11 (Dain-Bon); D . M. Pippidi, “Luttes politiques”.
83. Ver Justino, XVI, 3-5. Se a plebs de Justino é evidentemente o dêmos, 
seus senatores são muito provavelmente oligoi mais do que bouleutes.
84. C f. Cl. Mossé, “Rôle des esclaves”, p. 357-359.
121
dentes rurais85. Esses escravos que se casara com mulheres hera- 
cleotes não são bárbaros helenizados? Ainda aqui podemos pelo 
menos colocar a questão.
Mas também é possível abordar esse problema por um ou­
tro ângulo. Desde o século V com Herodoro, na época helen&tico- 
romana com Promatidas, Anfiteos, Ninfis, Domitius-Calístrato e 
Memnon, Heracléia teve toda uma escola de historiadores e mitó- 
grafos86 87; seus fragmentos foram principalmente conservados pelos 
escólios das Argonáuticas de Apolônio de Rodes nas quais todo 
ura episódio acontecia na região dos mariandinianos.
Essa mitografia nada nos diz sobre os mariandinianos en­
quanto dependentes rurais, mas o que nos diz não deixa de ser inte­
ressante num outro nível. Desde o seu desembarque na costa da 
Ásia menor, os argonautas encontram dois tipos de bárbaros: com a 
hostilidade sem nuança dos brebices da Mísia contrasta a amizade 
sem reservas dos inimigos dos brebices, os mariandinianos e seu 
rei Licos, com o qual os heróis concluem um pacto no templo de 
H om onokP, talvez transposição mítica do contrato original de 
servidão. O tema do tom bárbaro é, em si, bastante banal (basta 
peasar na lenda da fundação de Marselha); o mais interessante é a 
mitologia insistir numa das razões dessa boa acolhida: o rei Licos é 
por parte de seu pai Dascilos, o neto de Tântalo, portanto o sobri­
nho do firígio Pelops e é para homenagear Pelops que acolhe bem 
os heróis do navio Argo88. Ora, principalmente na época helenísti-
85. Aos exemplos enumerados adiante em “Esclavage et gynécocratie”, 
p. 274-276, podemos acrescentar o de Nabis que também impôs casa­
mentos entre os hilotas e as mulheres espartanas; cf. sobre esses fatos 
Pol. XVI, 13, 1 e os estudos de Cl. Mossé, “Nabis” e B. Shimron, “Na­
bis”. Mantenho no conjunto essa afirmação apesar das objeções de D. 
Asheri “Mariage forcé”.
86. Seus fragmentos são reunidos sob o n3 3 1 e os n-s 430-434 do corpus 
de Jacoby; spbre os mariandinianos e suas minas de ferro, ver L. Ro- 
bert, Asie mineure, p. 5-10.
87. Ap. de Rh., Arg, Ú , 352 e ss., 722 e ss.
88. Nymphis, F. Gr. Hist., 432, fr. 4, in Scholies d a p . de Rh., II 752. Ê 
possível, mas apenas possível, qne Heródoto tenha aludido igualmente a 
esse parentesco: F. Gr. Hist., 31, fr. 4 9 .0 texto infelizmente é elíptico e 
corrompido.
122
ca, o parentesco com os deuses e heróis da Grécia foi sem qualquer 
dúvida um dos modos de expressão da helenização89, e o rei Licos 
pode ser considerado como o herói, rejeitado para o passado, da 
helenização dos mariandinianos.
Se é èsse o caso, os mariandinianos não constituem exce­
ção à regra, e potíe-se dizer deles o que se pode dizer dos hilotas e 
penestes. Dá-se uma explicação histórica de sua escravização por­
que sua servidão não é concebida como eterna: julga-se que pelo 
menos um certo número deles pode escapar dela.
É possível ver para que tipo de conclusão caminha essa 
exposição. Formulemo-la de maneira clara. Na atitude intelectual 
de Teopompo, foi a reflexão histórica em tomo dos escravos de ti­
po “hilótico” que serviu de modelo para a reflexão sobre o início 
da chattel-slavery. Esta, em todo caso, não tinha qualquer espécie 
de precedente.
As causas dessa preeminência dos hilotas, se é possível di­
zer, não são difíceis de descobrir. Ao longo de toda época clássica, 
procuraríamos em vão o menor sinal de uma crise do sistema es­
cravista90. Poderíamos dizer ao contrário que a crise permanente 
do velho modo rural de dependência é uma das características prin­
cipais da história grega e isso desde a época arcaica. No século V, 
quando os hilotas de Messênia se revoltam, isso não constitui um 
fato novo91. No final do século o mais tardar, são os penestes da 
Tessália que entram em movimento92. No século IV, todo o equilí-
89. O melhor exemplo que conheço disso é a inscrição ainda inédita desco­
berta por H. Metzger no Lètôon de Xantos (século III) e que estabelece 
toda uma genealogia comum entre os lícios e os dórios da metrópole. 
Os lícios se contavam, sabemos; entre as populações mais profunda­
mente helenizadas. Ver, em geral, D. Musti, Syngéneia.
90. Essa frase suscitou, por razões que me escapam, ásperas discussões. Ver 
por exemplo D. Musti, “Valore di scambio”, p. 170-171. Parece-me 
que seu sentido é claro: a Antigüidade clássica atravessou séculos sem 
um confronto maior entre homens livres e escravos.
91. Vet, no entanto, as reservas de J. Ducat, “Hilotisme”, p. 24-38 e seu 
estudo sobre o “Mépris des hilotes”.
92. Xen., Hell., II, 3,36; cf. Cl. Mossé, “Rôle des esclaves” , p. 354-355.
123
brio político e social da principal cidade arcaica, Esparta, é des­
truído. A construção de M essena, concebida e vivida desde 369 
como uma ressurreição, com toda a extraordinária balbúrdia que 
esse acontecim ento provocou no m undo grego e principalm ente a 
cham ada à diáspora m esseniana refugiada um pouco por toda par­
te , de N aupacte à S icília, sem dúvida fo i o principal acontecim ento 
que fez com que os historiadores refletissem sobre o destino dos 
hilotas. Mesmo C reta não m ais aparece como o santuário que foi 
por muito tempo. A ristóteles descreve-a como devendo provavel­
m ente sua salvação à sua situação insular - “ a classe dos periecos 
se mantém tranquila em C reta, enquanto os hilotas se revoltam com 
fteqüência” mas ele acrescenta imediatamente que “ a chegada 
recente de um exército do exterior fez saltar aos olhos de todos a 
fraqueza das instituições cretenses” 93.
A história dos hilotas é portanto filha da crise do sistema; 
mas ainda podemos prolongar essas reflexões. O modo rural de de­
pendência cuja presença na Á sia os gregos constatarão, e do qual 
suas cidades se beneficiarão amplamente94 não é fundamentalmente 
diferente do que os gregos conheceram diretam ente com os hilotas 
e os penestes. Também seria interessante descobrir em que medida 
a conquista helenística não foi em parte trunfo desses mesmos 
camponeses gregos liberados parcialm ente pelas perturbações do 
século IV e também jogados para fora de seus contextos sociais 
tradicionais95. Pensemos, por exemplo, nos arqueiros cretenses. E 
podemos questionar se a escravização dos bárbaros, dos escravos 
naturais descritos p o í A ristóteles não é uma conseqãência da li­
bertação desse grupo de gregos.
Mas isso é uma outra história.
93. Pol. II, 1272 b 15-23; sobre essa invasão, talvez sobre a de Falaicos e 
seus mercenários em 345, ou a de A gis em 333, ver a discussão ap. H. 
Van Effenterre, Crète,

Outros materiais