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Título originalem francês: Travail & Esclavage en Grece Ancienne © Editions Complexe Capa: Francis Rodrigues Tradução: Marina Appenzeller Produção: Veredas Editorial Copidesque: Luiz Roberto Malta Revisão: Luiz Roberto Malta Maria Aparecida Monteiro Bessana Dados de Catalogação na Publicação (C1P) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Vemant, Jean-Pierre. Trabalho e escravidão na Grécia antiga / Jean-Pierre Vemant, Pierre Vidal-Naquet ; tradução Marina AppenzeUer. - Campinas, SP : Papirus, Bibliografia. ISBN 85-308-0038-9 1. Civilização grega 2. Escravidão - Grécia 3. Trabalho e classes traba lhadoras- Grécia I. Vidal-Naquet, Piene, 1930- II. Título. CDD-305.560938 -306.30938 -331.0938 89-0276 -938 índices para catálogo sistemático: 1. Grécia antiga: Civilização 938 2. Grécia antiga: Escravidão: Sociologia: 305.560938 3. Grécia antiga: Trabalho: Aspectos sociais 306.30938 4. Grécia antiga: Trabalho: Economia 331.0938 DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA © M.R. Comacchia & Cia. Ltda. | | popifu/ Av. Francisco Glicério, 1314 - 2- andar Fone: (0192) 32-7268 - Cx. Postal 736 13013 - Campinas - SP - Brasil proibida a reprodução total ou parcial por qualquer meio de impressão em forma idêntica, resumida ou modificada, em língua portuguesa ou qualquer outro idioma. OS ESCRAVOS GREGOS CONSTITUÍÁM UMA CLASSE?* Na sociedade grega, os escravos constituíam umà classe? A ques tão é menos trivial do que talvez pareça, e colocá-la sob esta forma exige alguns esclarecimentos da parte do historiador da Grécia, A meu ver, nossa concepção moderna de classe social está ligada a três ordens de fenômenos bem distintos que enumerarei aqui bem empiricamente e sem escolher: 1. Uma classe é um grupo de homens que ocupa um lugar bem definido na escala social. É o que exprimimos em linguagem comum quando falamos da “grande burguesia” ou da “pequena burguesia” , da pretensa “classe média” ou das “classes inferiores” . Sabemos com que sutileza empírica os autores anglo-saxões utiliza ram esse vocabulário. Evidentemente não é por acaso que o histo riador inglês Hill é que é o autor de um livro intitulado The Roman * Primeira versão publicada em Raison présente, 6 (1968), depois em D. Roche (ed.), Ordres et classes, Colloque d’histoire social, Saint-Cloud, 24-25 de maio de 1967, Paris-Haia, 1973, p. 29-36. 86 Middle Class1, consagrado a esses cavaleiros romanos a respeito dos quais C. Nicolet demonstrou em sua. tese^ que, até a época de Augusto, constituiram não uma classe, mas uma ordem. 2. Uma classe social ocupa um lugar definido nas relações de produção; esta é a principal contribuição do marxismo, e é inútil insistir nesse ponto. 3. Finalmente, uma classe social supõe a tomada de cons ciência de interesses comuns, o emprego de tuna linguagem co mum, uma ação comum no jogo político e social. Devemos isso também a Marx, e lembrarei simplesmente o trecho célebre do 18 de Brumário de Luís Bonaparte sobre os pequenos camponeses parcelares franceses, “massa enorme cujos membros vivem todos na mesma situação, mas sem estarem unidos uns aos outros por re lações complexas” . E todos conhecem a conclusão de Marx, quan do joga com os dois sentidos possíveis da palavra “classe” : “Na medida em que milhares de famílias camponesas vivem em condi ções econômicas que as separam umas das outras e opõem seu tipo de vida, seus interesses e sua cultura aos das outras classes da so ciedade, constituem uma classe. Mas, na medida em que, entre camponeses parcelares, só existe uma solidariedade local e em que a identidade de seus interesses não cria entre eles qualquer comu nidade, qualquer ligação nacional, nem qualquer organização polí tica, eles não constituem uma classe”1 2 3. Seria evidentemente fácil pegar essas três noções de nível, relações de produção e de consciência e tentar aplicá-las à Anti guidade clássica e aos escravos, mas antes de nos dedicarmos a es se joguinho, talvez para tomá-lo inútil, convém fazer um desvio. Meu primeiro ponto pode ser resumido desta forma: estamos acos tumados a imaginar a sociedade antiga como composta de senhores e escravos - e é o que o próprio Marx diz na abertura do Manifesto 1. Middle class. 2. Ordem eqüestre. 3. 18 de Brumário, p. 126-127 (trad. levemente modificada). Dou aqui o conjunto do texto de Marx para responder às objeções feitas a mim prin cipalmente por G. E. M. de Sainte-Croix; “Karl Marx”, p. 30-31. 87 Comunista - , mas é preciso observar o seguinte: 1) nem sempre foi assim, 2) mesmo na época clássica, confrontam-se dois tipos de so ciedade, dentre as quais apenas uma pode ser considerada como “escravista” no sentido preciso que se deve dar ao termo. Boa grego, o escravo é o doutos, e essa palavra aparece já nas tabulinhas micênicas sob a forma doero, mas a presença do termo não significa que de fato a sociedade micênica assumia uma oposição clara e decisiva entre homens livres e escravos. De fato, o termo doero parece ter muitos sentidos. Distinguiremos o doero simplesmente, o doero dos deuses; introduziremos diferenças sutis: por exemplo, diremos de uma mulher que ela é filha de um doero e de uma mulher pertencente à classe dos oleiros. Os fatos são tão confusos que o historiador soviético J. A. Lencman, totalmente convencido da explicação “escravista” da sociedade micênica e por conseqãência da distinção radical nessá época entre homens li vres e escravos, escreveu a respeito do doero que, não fosse o pró prio termo, não teríamos qualquer motivo sério para considerar o doero como escravo4. Por que, nessas condições, não ir além? Na sociedade homérica ou mais exatamente naquilo que chamamos tão impropriamente por esse nome, na sociedade evoca da e imaginada pelos poemas homéricos, há certamente escravos, mulheres raptadas, prisioneiros de guerra, escravos adquiridos por um embrião de comércio, mas o escravo não é o único em baixo da escala social e nem está tão mal situado. Muitos disseram e M. I. Finley mostrou melhor do que ninguém5 que o miserável por ex celência não é o escravo: é o trabalhador agrícola que só dispõe de seus braços, não tendo qualquer ligação permanente çom o domí nio, o oikos, é o tete. Em suma, tanto na sociedade homérica quanto na micênica, existe toda uma gama de estatutos entre o ho mem livre e o escravo. 4. Esclavage, p. 181. 5. Cf. Monde et Ulysse, p. 68-70 — afirmação todavia contestada por A. Mele, Società, p. 107 e ss. 88 Saltemos agora alguns séculos e consideremos a época clássica. Nela temos dois modelos antagônicos que se enfrentam ptíblica e também socialmente - digamos: o modelo ateniense e o modelo espartano. Aproximação decerto grosseira, pois há em Es- parta características totalmerite excepcionais que não permitem transformá-la nun\ Estado oligárquico, mas, assim mesmo, o que é verdadeiro para Esparta é Muitas vezes verdade, grosso modo, para a Tessália ou para Creta. Em Atenas, reinava uma grande simplicidade que nos é familiar desde a primeira série ginasial. Existe o cidadão, o meteco, o escravo, com, é claro, distinções de acordo com o nível de fortu na, distinções entre a cidade e o campo, distinções também, acres centarei, de acordo com as idades, pois a “Constituição” ateniense opõe os “jovens” aos “velhos” . É evidente que, no interior do mundo dos escravos, exis tem enormes diferenças. Não é a mesma coisa ser gendanne, fun cionário ou mineiro, ter uma barraca ou ser operário agrícola. Mas juridicamente, do ponto de vista do estatuto pessoal, essas distin ções não representam muita coisa, pelo menos no século V. En contrarei a melhor prova disso numa experiência por que passou mais de um ateniense. Tomemos como exemplo um homem que se declara cidadão e cujo estatuto é contestado; em primeiro lugar, se rá julgado pela assembléia de seu demo. Se esta declarar que ele não é cidadão, será reduzido ao estatuto de meteco, conservando desta forma sua liberdadepessoal, mas ele pode não aceitar a sen tença e, pelo processo da ephesis, transferir o debate para diante do tribunal popular da heliée. Ali, se perder o processo, será ven dido como escravo, Inversamente, um escravo libertado, antes de poder aspirar ao título de cidadão - destino normal de um liberto - , deverá contentar-se com o estatuto de meteco. Em suma, é claro, simples e radical, e isso mostra ao mesmo tempo que as três cate gorias da sociedade ateniense, cidadão, estrangeiro residente e es cravo - esse estrangeiro absoluto, esse outsider, como diz Finley - são efetivamente vividas como tal em Atenas. 89 Mas é o caso de insistir no fato de que, de modo algum es sas três categorias constituem uma classe em qualquer dos planos que definimos e isso mesmo se admitirmos com CL Mossé que, no século IV, é constituído um grupo de ricos reunindo ao mesmo tempo cidadãos e estrangeiros (inclusive antigos escravos) natura lizados6 7. Nossos manuais de história também falam de uma divisão em três partes da sociedade em Esparta: os pares (os homoioi), os periecos e os hilotas mas essa divisão em nada corresponde à de Atenas. O hilota e o homoios são dois extremos, sem que possamos dizer que a categoria da liberdade se aplique perfeitamente aos pa res, nem a do escravo aos hilotas. Deixemos de lado os periecos, sobre os quais não sabemos praticamente nada e que são cidadãos das cidades incluídas no Estado lacedemoniano. Apesar de seu nome, os homoioi não formam ábsolutamente, mesmo no século V, um grupo social homogêneo. Deve-se insistir sobre a existência de grupos especializados dentro dos homoioi, como os criptas esses jovens que se lançam em feitos no campo?, como os trezentos hip- peis (cavaleiros), comandados pelos hÁppagretes e que, dè resto, apesar de seu nome, caminham a pé, como os agathoergoi, dos quais nos fala Heródoto (I, 67), recrutados entre os “cavaleiros” à razão de cinco por ano para cumprir missões secretas. Além disso, todo jovem espartano que sofreu o agôgê, a educação espartana, pode tomar-se homoios, mas nem todos tomam-se e constata-se, no século V, uma multiplicação de intermediários, uma profusão de categorias, dentre as quais algumas remontam a uma época muito antiga. Há o caso dos hypomeiones, espartanos que não têm con cessões hereditárias, dos klêros, há os que foram degradados por razões militares e que formam uma categoria especial chamada de tresantes ou seja, os medrosos8. Dp lado dos hilotas, a simplicida de também não reina mais. Um hilota pode ser um mothax, e as 6. Cl. Mossé, “Classes”, p. 27-28. 7. Ver, mais atrás, “Le chasseur noir”, p. 161-163. 8. Ver N. Loraux, “Belle mort”, p. 108-112. 90 fontes antigas explicam esse termo ora como designando o escravo nascido em casa, ora como o hilota criado com os espartanos e ten do passado pelo agôgê dos futuros pares. Libertado, o hilota irá tomar-se neodamodo, novo membro do damos, sem por isso tomar- se homoios. Em suma, a sociedade espartana caracteriza-se por ama gama de estatutos sem que se possa definir muito claramente onde começa a liberdade p onde acaba a escravidão, pois, mesmo os “iguais” , no fundo, não são homens livres no sentido ateniense do termo. Com muitas nuances, isso se aplica a outras sociedades rurais, principalmente a sociedade cretense. Ainda ali, temos uma prodigiosa multiplicidade de termos para definir os grupos servis e também por vezes os grupos de cidadãos de “exercício pleno” . Não devemos pois, deixar-nos enganar pelo fato de que uma mes ma palavra, douleia, a gente servil, designe ao mesmo tempo, num tratado do século V (Tucídides, V, 23), os escravos de Atenas e os hilotas de Esparta. Agora coloquemos nossos grupos sociais em movimento. Que papel desempenharão os escravos nos conflitos sociais extre mamente violentos - sobretudo no século IV - que animam esses dois tipos de sociedades? A descrição mais surpreendente da luta de classes na Grécia clássica é provavelmente a que nos dá Platão no livro VII, no livro VIII e no início do livro IX da República. Pretenso admirador de Esparta, Platão tem, no entanto, uma “in formação” essencialmente ateniense e siciliana. Observou na Sicí lia o funcionamento de uma tirania militar é, sob a máscara da pas sagem da república ideal à timocracia, à oligarquia, à democracia, à tirania, extrai seu material da história revista e corrigida, tanto no século V como no IV. Qual o papel dos escravos em todos esses “acontecimentos”? Têm um papel menor, para não dizer papel al gum. No momento essencial a nossos olhos, aquele que suposta mente explica o advento da democracia, como procede Platão? Sua análise é, antes de mais nada, militar. Invoca a impossibilidade quase certa de as oligarquias fazerem a guerra: ou serão obrigadas a armar o povo e irão temê-lo mais do que ao inimigo, ou, se hão o fizerem, deixarão aparecer na batalha que são oligoi, pessoas pou- 91 co numerosas. E Platão evoca num texto impressionante (Repúbli ca, V m , 556 d), a presença lado a lado na frente de batalha de um lado do rico, alimentado à sombra e carregado de uma gordura abundante e, do outro lado, o pobre, o magro, queimado de sol e dizendo a si mesmo: “Essa gente só deve sua riqueza à covardia dos outros” . A democracia, diz-nos Platão, se estabelece “quando os pobres vitoriosos sobre seus inimigos, massacram uns, banem os outros e dividem igualmente com os restantes o governo e as ma gistraturas” . Sobre os escravos, nem uma palavra. Platão irá con tentar-se em falar metaforicamente da escravidão definindo as três classes da pessoa humana, a razão, a coragem e os desejos baixos, dizendo que nesse tipo de sociedade, a primeira e a segunda são escravas da terceira; e, quando definir o dêmos, irá defini-lo como composto de camponeses proprietários (autourgoi), de ociosos (a- pragmones) e de possuidores; evidentemente, em nenhum momen to, incluirá os escravos. Estes intervirão depois, no momento do advento da tirania Neste ponto, efetivamente, Platão admite que o tirano rouba os escravos de seu senhor, libeita-os para torná-los seus iguais, os iguais dos cidadãos, os quais, diz Platão, também assumem as insígnias da escravidão (Rêpublique, VIU, 569 ac). Trata-se de fato de um meio político que por vezes foi empregado e que é o objeto de um estudo recente9. A descrição de Platão é plenamente confirmada pelo que sabemos da história de Atenas, talvez exceto bem no início da de mocracia no século VI, na época em que a distinção entre os ho mens livres e os escravos ainda não estava tão marcada quanto, di gamos, a partir do final do século VI. Existe em seguida uma rei vindicação coletiva dos escravos, que os tornaria uma classe no terceiro sentido que evoquei no início dessa breve exposição? Não, nem mesmo nos episódios mais dramáticos, quando vinte mil es cravos (que são.principalmente artesãos, cheirotechmi, homens que trabalham com suas mãos e entre eles sem dúvida muitos mi neiros) fogem aproveitando a ocupação pelos espartanos de Dece- 9. C. Mossé, “Rôle des esclaves”. 92 lia (Tucídides, VI, 27). Esses escravos nada reivindicam: nem o governo de Atenas, nem o acesso coletivo à cidadania; os que eram gregos reivindicam certamente sua cidadania de origem, todos rei vindicam sua liberdade, é bem natural, mas nenhum ambiciona tor nar-se estratego ou arconte em Atenas. Em determinados casos, no século IV, alguns çscravos tiveram essa ambição; em nenhum caso, trata-se de uma reivindicação coletiva do grupo dos escravos. Isso significa que o escravo não tem um papel importante? É ele, no fundo, que toma possível o estatuto claro e definido do cidadão. O exemplo clássico, a partir do século VI, é o de Quios, a cidade onde, pela primeira vez, aparecem instituições democráticas e onde, diz-nos Teopompo, pela primeira vez, se adquiriu escravos no estrangeiro. Segundo a fórmula bem conhetida de Finley: “ Um aspecto da história grega é, em resumo,o avanço, de nãos dadas, da liberdade e da escravidão10 11” . O escravo toma possível ò jogo social, não porque garanta a totalidade do trabalho material (isso jamais será verdade), mas porque seu estatuto de anticidadão, de estrangeiro absoluto, per mite que o estatuto do cidadão se desenvolva; porque o comércio de escravos e o comércio simplesmente, a economia monetária, permitem que um número bem excepcional de atenienses sejam ci dadãos, Isso quer dizer que o ponto de vista que defendo aqui é exatameníe o oposto do defendido por Henri Wallon e Fustel de Coulanges no século XIX. Ainda no século XX, o grande historia dor Corrado Barbagallo, num livro célebre11, explicava que a existência da escravidão corrompia e até envenenava as relações sociais entre as diversas classes. Creio que é exatamente o contrá rio. Estou convencido, que a oposição entre senhores e escravos é realmente a contradição fundamental do mundo antigo, mas, em nenhum momento, esses senhores e escravos se confrontam direta mente na prática social corrente. Para que me compreendam me lhor, tomo um exemplo fora do mundo antigo: na Florença do sécu- 10. Teopompo, fr. 122 (Jacoby); M. I. Finley, "Slave Labour”, p. 164. 11. C. Barbagallo, Déclin. 93 lo XIV - e, em geral, nas cidades italianas da Idade Média a contradição fundamental é a que opõe a cidade e o contado. Ássim que as portas de Florença são ultrapassadas, entra-se num espaço completamente diferente do da cidade; um camponês, um contadi- no, não é normalmente um cidadão de Florença. Não há qualquer dúvida sobre o fato de que Florença viveu em parte da exploração de seu campo e da dominação que exercia sobre ele, mas essa opo sição fundamental não impede que as lutas sociais em Florença do século XIV tenham oposto essencialmente grupos urbanos. Examinemos agora as sociedades rurais de tipo espartano, tessaliano ou cretense. O contraste é impressionante. Exprime-se num fato simples: no momento da segunda guerra médica, Atenas e Esparta mobilizaram, uma e outra, a totalidade de seus recursos em homefls. Atenas mobiliza em sua frota mais de trinta mil cidadãos; Esparta apresenta em Platéia cinco mil hoplitas recrutados entre os homoioi, a mesma quantidade de periecos e trinta e cinco mil hilo tas. Esse simples fato cria entre os dois sistemas uma diferença fundamental. Exceto em casos totalmente excepcionais, nem se pensa em mobilizar escravos em Atenas e, se são utilizados nq exército, são libertados. O resultado é que, por mais afastado que seja o hilota do cidadão em pleno exercício, não deixa de desem penhar um papel e um papel capital no jogo político. Uma reivindi cação política dos hilotas é possível em Esparta, enquanto tuna rei vindicação política dos escravos em Atenas é propriamente incon cebível. Em Esparta, essa reivindicação irá orientar-se em duas di reções possíveis: uma é a secessão, sonho dos hilotas de Messênia, que irá realizar-se quando a campanha de Epaminondas abrir cami nho para a reconstrução de Messênia; a outra é simplesmente a in tegração a Esparta, que não é menos importante. Os episódios do século IV são bem conhecidos; insistirei apenas num episódio que data da guerra do Peloponeso e que Tucídides nos contou (IV, 80). Os éforos fazem um dia uma proclamação solene para incitar os hilotas que estimam terem prestado mais serviços a Esparta a se 94 apresentarem para serem libertados. Os valorosos, os mais dignos com efeito se apresentam, como os éforos esperavam. Escolhe-se dois mil que, libertos, felizes, coroam suas cabeças. Apds o que desaparecem pura e simplesmente. Esse episódio mostra bastante bem, creio, ao mesmo tempo a força da reivindicação e também a violência da repressão, porque Esparta jogava sua existência nas revoltas dos hilotas. ym escravo que foge de Atenas não é grave, vinte mil escravos fugindo ho momento da guerra da Decelia é com certeza uma catástrofe. Mas vinte mil escravos são substituídos pela compra de outros escravos; em Esparta, não é o caso de com prar outros hilotas, pois um hilota não é um objeto que se compra no mercado: por isso, o movimento de luta dos hilotas recoloca to talmente em questão a ordem espartana. Ainda no final do século UI e no início do século n, o tirano Nábis tentou resolver o pro blema espartano; deu-se inclusive ao luxo de explicar a Flamúoio em um discurso que Tito Lívio reproduz a seu modo, que “nosso legislador não quis que a cidade estivesse em mãos de alguns cida dãos - o que vocês chamam de Senado ~ nem que uma ou duas or dens dominassem a cidade; ao contrário, acreditou que igualando as fortunas e as honras, m uitos homens pegariam em ar mas pela pátria” 12. A afirmação é realmente impressionante! O programa desenvolvido por Nábis sob a máscara de Licurgo, não passa, na verdade, do programa realizado por Atenas no século VI. Evidentemente, era um pouco tarde e só faltava, se ouso dizer, o que tomara possível o desenvolvimento ateniense e, antes de mais nada, os escravos. Vemos portanto como uma mesma palavra, doulos, pode designar realidades sociais profundamente diferentes. Mas o mais singular talvez seja ver quão tardiamente se tomou çonsciência dessa diferença. Quando? A resposta é clara: no século IV, quando as sociedades de tipo espartano, cretense ou tessaliano se desfazem. Então aparecem os teóricos, Platão, a escola de Aris tóteles, que raciocinam sobre esses estatutos estranhos que situam 12. Tito Lívio, XXXIV, 32, 18; cf. C. Mossé, “Nábis”. 95 o homem “entre os livres e os escravos13 14’’. Mas esse momento - aquele em que triunfa aparentemente a forma clássica da escravi dão, a escravidão mercadoria - é também aquele em que problemas inteiramente novos vão ser colocados na medida em que, no mundo helemstico, as forças de trabalho das quais depende 6 destino tanto das cidades gregas quanto das monarquias não serão mais essen cialmente a escravidão tal qual a conhecera a cidade clássica, mas a imensa massa de camponeses dependentes, do Egito ou do Oriente, exatamente os que Aristóteles transformava em “escravos naturais” . Não abordarei aqui esses problemas, limitando-me a uma breve observação. O fenômeno das revoltas servis no século II e no início do século I não deve fazer com que acreditemos que existe a partir de então uma classe de escravos no sentido moderno do ter mo, reunindo toda ou a maioria da gente servil. Uma revolta como a da Sicília em 139-133 é, antes de mais nada, um levante de pas tores, de pastores armados num país dominado de longa data por um conflito tradicional entre agricultores e criadores, onde a pro priedade latifundiária assumira a forma de enormes empresas de criação de gado. Tal revolta não se distingue essencialmente, creio, das analisadas por E. Hobsbawn em seus Primitive Rebelsu . Em nenhum momento se esboça seriamente o ideal de uma sociedade sem classes. O chefe dos escravos revoltados, aliás, coroa-se rei; cunha moedas em nome de Antíoco e, nessas moedas, aparece uma velha divindade da Sicília, a Dèméter de Ena. Se isso tivesse dura do, não há a menor duvida de que os revoltados adquiririam escra vos15. Na medida em que os escravos da época helenístico-romana 13. Ver aqui abaixo, “Réflexions sur rhistoriographie grecque de l’esclava ge”; ver também M. I. Finley, “Between Slavery and Freedom”. 14. E. J. Hobsbawn, Primitifs. 15. Quando da segunda revolta dos escravos na Sicília, a partir.de 104 a.C., a cidade de Morgantina foi sitiada por escravos, comandados pelo rei Salvius; tanto do lado dos escravos quanto dos sitiados, prometeu-se a liberdade aos escravos de Morgantina que escolheriam o campo que quisessem (Diod. de Sic., 36, 4, 5-8); esse episódio limita a afirmação geral de Diodoro segundo a qual os homens livres pobres passavam de 96 não são sociahnente pulverizados como na cidade clássica, a orga nização de uma cidade é o limite de sua ação, falo bastante bem testemunhado pela historieta umpouco trágica contada na época helenfctica pelo historiador Ninfodoro de Siracusa, que me forne cerá uma conclusão16. A cena ocorre em Quios, cidade que viu os primeiros escravos comprados. Ali acontece uma fuga de escravos, entre os quais, lúna espécie de Robin Hood chamado Drimacos que, após vários episódios, propõe à gente de Quios resolver o problema. Conclui com eles um armistício, comprometendo-se a limitar as “recuperações” . Toda loja que for (moderadamente) pi lhada, será ornada de um selo que lhe evitará novos ataques. Quanto aos escravos em fuga, ele propõe devolver os que foram embora sem razões válidas. Se tiverem, disse ele, razões decisivas para ir embora, eu vou conservá-los a meu ladp, mas, caso contrá rio, eu vou devolvê-los a vocês. Imediatamente, passam a fugir muito menos escravos. Os que ele conservava eram, de resto, orga nizados militarmente e chegaram a temê-lo muito mais do que te miam seus senhores. Drimacos estendeu a bondade quando enve lheceu, e os quiotas começaram a oferecer uma recompensa pela sua cabeça e até chegavam a pedir a seu favorito para cortar a dita cabeça e ganhar, dessa forma, a grande recompensa prometida. Os cidadãos da ilha acabaram por transformar esse rebelde modelo num herói que lhes aparecia em sonho quando ocorriam turbilhões entre a gente servil. A história não diz se ele pendurou na porta de seu campo, tal como o herói de Animal Farm (A Revolução dos Bichos) de George Orwell, uma máxima que poderia ser enunciada dessa for ma: “Todos os escravos são iguais, mas alguns escravos são mais iguais que outros” 17. bom grado para o lado dos rebeldes (Id, 36,11): no primeiro caso, te mos o relato dos fatos, no segundo, talvez tenhamos simplesmente uma afirmação teórica. Sobre esse episódio, ver M. I. Finley, Sicily, p. 139-145 e A. Momigliano, Sagesses barbares, p. 47, 16. Fr. 4 (Jacoby), citado por Ateneu, VI, 265 c - 266 e. Sobre esse texto, cf. S. Mazzarino, Pensiero stqrico, p. 49-50 e 505, ne 363; as tentativas de A. Fuks, “Slave War” parà datar esses fatos que não são muito con vincentes. 17. Observar-se-á a adesão explícita de M. I. Finley, Ancient Slavery, p. 77, à argumentação desenvolvida neste ensaio. 97 REFLEXÕES SOBRE A HISTORIOGRAFIA GREGA DA ESCRAVIDÃO* No livro VI1 de seu Banquete dos sofistas, tão rico em documentos sobre o vocabulário e a história da escravidão na Grécia, Ateneu cita um texto do historiador Teopompo de Quios, que se pode afirmar ter estado no centro da discussão desses últimos anos sobre a escravidão: “Os habitantes de Quios” , diz ele, “ foram os primei ros gregos após os tessalianos e os lacedemonianos a utilizarem es cravos, mas não os adquiriram da mesma maneira que os últimos. De fato, lacedemonianos e tessalianos constituíram, como veremos, sua categoria servil (douleia) a partir de gregos que habitavam an- * 1 * Publicado em Actes du Colloque 1971 sur resclavage (Annales litt. de rUniversité de .Besançon), Paris, 1973, p. 25-44; traduzido com algumas correções em L. Sichirollo (ed.), Schiavitu antica e moderna, Nápoles, 1979, p. 159-181. 1. Em sua essência, essa exposição é a que foi apresentada oralmente em Besançon. Naturalmente levei em conta as observações que me foram feitas durante os debates e, desde a publicação, os trabalhos consagrados a essa questão por P. Lévêque, CL Mossé e J. Ducat. 98 tes deles a região que agora ocupam: os primeiros a partir dos aqueus, os tessalianos a partir dos perrebos e magnetes. Os primei ros designaram os povos reduzidos à escravidão de hilotas, è os segundos de penestes. Quanto à gente de Quios, transformaram bárbaros em seus servidores (oiketai) e pagando por isso um pre ço2” Por que afirmar que esse texto famoso esteve no centro de todas as discussões? Aproximando esse fragmento do livro XVII da História Filípica da inscrição conhecida pelo nome de “Consti tuição de Quios3” , M. I. Finley lançou sua célebre fórmula: “Um aspecto da história grega, em suma, é o caminhar, de mãos dadas, da liberdade e da escravidão4” . Além disso, nosso texto opõe com perfeita clareza os dois tipos de “escravidão” conhecidos pelos gregos: por um lado, a escravidão hilótica, de outro, a escravidão- mercadoria (a chattel-slavery dos autores anglo-saxões). Ele ba seia-se de fato numa série de oposições muito claras. Oposição cronológica: antes, a velha escravidão (e antes ainda, nenhuma es cravidão); depois, a nova escravidão. Oposição de tipo, se ouso di zer, “nacional” ; os “antigos” escravos são gregos, os “novos” são bárbaros. Oposição finalmente sobre os modos de aquisição: os “antigos” escravos foram reduzidos à escravidão pela conquista militar; os “novos” , ao contrário, foram adquiridos com dinheiro por mecanismos do mercado. Desde a publicação, em 1959, do livro de D. Lotze, cujo título se inspira numa fómula do gramático alexandrino Pólux, que tenta definir os que estão “entre os homens livres e os escravos”5, uma boa parte da discussão sobre a escravidão consistiu em medir 2. F. Gr. Hisu 115, fr. 122 in Ath., VI, 264 bc. Sobre Teopompo em geral, ver A. Momigliano, “Teopompo”, retomado com alguns complementos bibliográficos em Terzo contributo, I, p. 367-392. 3. A última edição é a de R. Meiggs e D. M. Lewis, Sekction, n2 8. Data-se hoje em dia esse texto de cerca de 570. 4. “Slave Labour”, p. 164, retomado em Stavery, p. 72; ver agora Ancient Stavery, p. 67-92. 5. D. Lotze, Metaxy; cf. Pollux, III, 83. 99 o alcance da distinção operada por Teopompo entre as duas “es cravidões” . (Falar de duas escravidões é, de resto, um abuso de linguagem, pois, precisamente, uma das categorias servis, a chat tel-slavery, tem um estatuto perfeitamente claro, enquanto a outra se recusa, por sua própria essência, às definições claras e distin tas.) Os trabalhos que exploraram esse campo são conhecidos por todos6. Na medida em que eu mesmo tentei desenvolver a discus são, meu esforço caminhou em duas direções. Retomando uma su gestão de Claude Mossé7, tentei mostrar que as duas categorias de escravos se opõem radicalmente no campo politico8. À inatividade política total dos “escravos-mercadorias” , mesmo quando concen trados em massas relativamente importantes como nas minas áticas do Láurio, corresponde a atividade política muito notável dos hi- lotas, penestes, etc. Uma aliança dos mineiros do Láurio com os tetes de Atenas para impor uma democracia mais radical é propria mente inconcebível; em compensação, pudemos ver em 397 em Es- parta, Cinadon tentar reunir contra os homoioi a totalidade das ca tegorias inferiores da população lacedemoniana; como diz, em Xe- nofonte9, o informante dos éforos: “Os responsáveis só se entende ram com um pequeno número de homens, dignos de confiança, mas estes disseram que o conjunto dos hibtas, dos neodamodes, dos inferiores (hipomeiones) e dos periecos eram cúmplices de pensa- 6. Ver em particular M. I. Finley, “Servile Statuses”, “Between Slavery and Freedom”; D. Lotze, “Woikees”; Cl. Mossé, “Rôle des esclaves”; P. Oliva, “Helots”; R. F. Willetts, “Servile System”. Falta, naturalmente muito para que os autores concordem uns com os outros, mesmo e so bretudo todos eles reivindicam o marxismo; desta forma, P. Oliva consi dera “não desenvolvida” uma forma de escravidão que Willetts considera com razão radicalmente diferente da escravidão clássica; mas, falando ele próprio de “servos”, cria uma confusão com a época da Idade Média européia. R. F. Willetts retomou o problema num artigo posterior (“Ter minology”, p. 67-68); a despeito de suas observações, não sei o que o impediria de utilizar o termo “bondsmen” ao invés de “servos”. 7. Em “Rôle des esclaves”. 8. P. Vidal-Naquet, “Êconomie et Société”, p. 127 e ss. assim como “Os escravos constituíam uma dasse?”, pg. 86 deste livro. 9. Xen. Hell. 111,4,4-11. 100 mento: de fato, toda vez que se tratava dos espartanos entre essa gente, nenhum deles escondia que não teria qualquerdesprazer em comê-los mesmo crus” . Essa oposição de comportamento parece- me até tão fundamental que podemos, quando se trata na época clássica de perturbações ou revoltas servis de caráter político (ou seja, não tendo çomo objetivo simplesmente a liberdade pessoal dos participantes), falar cóm certeza que se trata do tipo de escra vos que Teopompo considera como mais antigo que o outro, mes mo se os textos não nô-lo dizem formalmente10 11. À atividade de uns e a inatividade dos outros refletem-se, de resto, perfeitamente no domihio militar: os hilotas servem no exército lacedemoniano, os escravos só são alistados em Atenas nas situações excepcionais e urgentes11, e esse serviço implica a libertação. Minha segunda abordagem foi muito diferente, pois ela enveredou pelo desvio do mito, da tradição lendária e da utopia12. Partindo do fato de que a cidade grega se baseia na exclusão das mulheres, dos escravos e dos estrangeiros (e também, provisoria mente dos jovens), tentei ver o que ocorria com as mulheres e os escravos nas situações imaginárias do “mundo invertido” , onde nos é apresentado de certa forma o inverso da sociedade “normal” . Ora, constata-se qué, quando estamos em Esparta, em Argos, na Lócrida, enfim, na região da escravidão “hilótica” , o “mundo in vertido” é um mundo governado por escravos e por mulheres. Ao contrário, Aristófanes pode, em A assembléia de mulheres, apre sentar uma sociedade onde as mulheres estão no poder, mas os es cravos continuam a trabalhar a terra; da mesma forma, em Lisís- 10. Ver abaixo o caso das perturbações de Herádides do Ponto no século • IV. Podemos também nos referir à tradição sobre a fundação de Éfeso de um historiador desconhecido, Malakos, F. Gr. Hist.; 552, fr. 1, in Ath., VI, 267 ab. Éfeso teria sido fundada por mil escravos dos samia- nos revoltados que, após um acordo, teriam obtido o direito de emigrar. Se essa historieta tem o menor fundamento histórico, só pode se referir a dependentes rurais; é o que percebeu bem M. Sakellariou, Migration grecque, p. 127. 11. Ver. Y. Garlan, “Esclaves grecs”, 1. 12. Ver adiante “Esclavage et gynécocratie”. 101 trata, nenhum meteco, nenhum escravo é associado à tomada da Acrópole. Não se pode, nem se poderia cogitar de poder servil13. É por um terceiro meio que gostaria de “testar” aqui a pertinência dessa oposição, o meio da historiografia. O texto de Teopompo que nos forneceu nosso ponto de partida, não é de fato escrito num momento qualquer. Pode-se datá-lo grosseiiamente dos anos trinta do século IV, do final do reino de Filipe ou do início da expedição de Alexandre14. Estamos, portanto, piecisamente no momento em que a Grécia se prepara para impor a servidão não mais aos gregos, mas aos bárbaros, igualmente no momento em que Aristóteles, que abandonou a Academia em 347, elabora a teoria do “escravo por natureza” e preocupa-se também com os hilotas da Lacedemônia e com os “periecos” de Creta. A posteridade de um texto como o de Teopompo pode ser percebida com bastante facili dade. Assim, na geração seguinte, Timeu também falará da intro dução dos escravos “comprados por dinheiro” , não em Quios, mas entre os gregos arcaicos que eram os locrianos e focidianos; eles sucedem não a populações gregas avassaladas, mas a grupos de Jo vens que faziam o trabalho doméstico15. O livro VI de Ateneu é, além disso, um testemunho suficiente do interesse dos historiadores e filólogos, principalmente na época helenística, em tomo de Aristófanes de Bizâncio, pelos estatutos servis que apareciam como estranhezas e sobrevivências16; é muito menos fácil remontar a épocas mais remotas. 13. Para uma aproximação análoga entre a mulher e o artesão, ver abaixo “Étude d’une ambigiüte”, p. 315; sobre LisCstrata, ver N. Loraux, “Acropole comique”. 14. Para a datação da História Filípica, ver W. R. Connor, Theopompus, p. 5. 15. F. Gr. Hist., 566, fr. 11-12, in Ath., VI, 264 cd e 272 ab ePolíbio, XII, 5, 1 e ss. 16. Ver adiante ura certo número de referências. A. Momigliano sugere- me, na linha do texto de Teopompo, uma direção de pesquisa interes sante: pelo menos dois historiadores do final da época helenística, Posi- dônio de Apameu (F. Gr. Hist., 87, fr. 38) e Nicolas de Damas (F. Gr., Hist„ 90, fr. 95) recolheram historietas sobre as desgraças que aconte ceram com os quiotas depois da invenção da chattel-slavery. Sem dúvida devemos interpretar no mesmo sentido o episódio da revolta servil diri- 102 Há, no entanto, muitos sinais que mostram que, na época de Teopompo, na ausência de uma reflexão propriamente histórica sobre as origens da escravidão, as discussões sobre as melhores formas possíveis da escravidão e, conseqüentemente, sobre os mé ritos comparados da escravidão “hilótica” e da chattel-slavery, eram moeda corrente, O testemunho mais dato encontra-se talvez na última obra de Platão, publicada após sua morte (347), as Leis11. “Questão difícil” , diz Platão, “sob todos os pontos de vista, a dos servidores” : to ôe êrj tcov ottceixov xaXe-ira -jrWrryí8, e não se trata apenas de uma dificuldade teórica devido ao fato de que o gado humano é “pouco cômodo” (777b). “O hilotismo, tal como é praticado pelos lacedemonianos, oferece a quáse todos os gregos matéria de discussões e brigas, uns achando a instituição bem-vinda, outros não. Já se briga menos quanto à escravidão pra ticada pelos heracleotes desde a redução dos mariandinianos à.ser vidão e quanto ao povo peneste (ireveortKov eOvoç) dos tessalianos (776 c-d). Essas querelas têm uma razão prática que Platão expõe com muita clareza: as revoltas contínuas dos messenianos mostra ram o que uma cidade ganhava ao adquirir escravos que formavam um grupo e principalmente que falavam a mesma língua (777 cd). Se se quiser utilizar corretamente o trabalho servil, é preciso que os escravos sejam de certa forma pulverizados socialmente, isto é, que não sejam todos eles da mesma pátria e nem falem a mesma língua (777d). Em outros termos, é preciso que sejam estrangei ros* * * * 17 18 19, e recrutados num espaço geográfico amplo o suficiente para que não seja possível qualquer coerência nacional. A escolha de Platão está feita, feita a favor da “escravidão-mercadoria” . Platão gida por Drimacos, tal como a narra Ninfodoros de Siracusa (F. Gr. Hist., 572, ft. 4). Esses textos (citados por Ath., VI, 266 ef.) são carac terísticos da reação emocional de certos meios intelectuais do fim da época helenfetica diante da chattel-slavery. 17. Ver G. R. Morrow, Plato’s Law of Slavery, p. 32-39. 18. Lois, VI, 776 b. 19. Voltarei mais tarde ao problema colocado pelos mariandinianos, depen dentes bitianos dos heracleotes. 103 chega, em suma, nas Leis, às consequências do axioma que coloca ra na República: não se deve reduzir os gregos à escravidão20. Es sa última máxima corria por toda a parte, mas Platão deu provas de originalidade dela tirando, com a nitidez típica das Leis, a oposição profunda que ele estabelece como Teopompo, mas antes de Teo- pompo, entre hilotas e escravos comprados no mercado. Neste ponto, Aristóteles quase que só fará reproduzi-lo21 aconselhando, ele também, a evitar os perigos revolucionários que ameaçaram tanto Esparta como a Tessália, por exemplo, pela aquisição de es cravos que não formam um grupo homogêneo. Dito isso, pelo que sabemos, ninguém, antes de Teopom po, pensara em colocar essa oposição numa perspectiva histórica, distinguindo o antes dos hilotas e dos penestes e o depois dos es cravos comprados por dinheiro. Voltemos, portanto, a esse texto capital, pois, à reflexão, comporta muitas singularidades. Teopompo identifica, como vimos, escravo, “comprado” com bárbaro, escravo “arcaico” com grego. É claro que essa primeira identificação coloca um problema de va lidade. De acordo com os estudos mais recentes, é certo que as grandes concentrações de escravos, em primeiro lugar as do Láurio ático, são majoritariamente formadas por não-gregos22,mas não é verdade que o comércio seja o método exclusivo de aquisição dos escravos: o rapto, a pirataria e sobretudo a guerra também desem penham um papel capital. Melhor, para muitos gregos (e para o próprio Platão), a escravidão podia parecer o horizonte possível de seu destino individual. Se do século IV remontarmos ao século precedente e principalmente aos autores trágicos, constatamos que a escravidão, longe de estar associada ao conceito de mercadoria e ao estatuto de bárbaro, aparecia como uma espécie de catástrofe in 20. Rep., V. 469 c. 21. Pot., I, 1225 a 28; II, 1269 a 35 e ss. Sobre a teoria do escravo por na tureza e seus limites, ver V. Goldschmidt, “Théorie aristotélicienne” , artigo um pouco paradoxal. 22. Ver sobretudo S. Lauffer, Die Bergwerkssklaven. 104 dividual que podia ameaçar a todos, gregos ou bárbaros23. A in sistência de Teopompo - e de seus sucessores - sobre a compra tem certas causas gerais relativamente claras. O desenvolvimento - muito relativo - de uma atividade econômica com base no lucro, o que Aristóteles chama “crematística” , em suma, toda essa trans formação que, no século IV , anuncia a aventura helenística com tudo o que a caracteriza: d multiplicação, fora do mundo grego, das fontes de trabalho servil podem ser invocadas como testemunho. Se quisermos todavia evitar as generalidades, é forçoso nos perguntarmos, antes de mais nada, como, antes de Teopompo, as pessoas imaginavam o início da escravidão24. Ora, é possível responder a essa questão mostrando que, nó mundo das cidades, onde a escravidão tinha efetivamente um papel essencial, o pro blema das origens é realmente colocado em termos de antes e de pois, mas o antes situava-se não como em Teopompo na história propriamente dita, mas na lenda e no mito. O testemunho mais antigo nos conduz às próprias fontes da historiografia grega, pois nela vemos Heródoto opor um relato de seu predecessor Hecateu de Mileto a uma tradição ateniense25; trata-se de explicar a partida dos pelasgos da Ática em direção a Lemnos. Segundo Hecateu, os pelasgos foram expulsos injusta mente de uma terra que os atenienses lhes haviam concedido como recompensa pela construção da muralha primitiva da Acrópole. A versão ateniense, fragmento precioso de folclore, é diferente: “Os pelasgos, instalados ao pé do Himeto, dele se serviam como uma base para insultar os atenienses, como vai ser dito. Com regulari dade, suas mulheres e filhos26 * * * * iam buscar água na fonte das Nove 23. Ver V. Cuffel, “Concept of Slavery”. 24. A partir de agora, quando eu falar em escravidão, sem outra precisão, estarei sempre tratando da chattel-slavery. 25. Hdt., VI, 137, citando Hecateu (F. Gr. Hist., 1, fr. 127). 26. Todos os manuscritos, exceto apenas um, trazem esta última precisão, suprimida pela maioria dos organizadores. De fato são as mulheres e somente elas que os pelasgos raptarão. Mas é bem rtatural que Heródo to, ao descrever os tempos míticos, tenha atribuído o trabalho domésti co às mulheres e às crianças, ou seja, ao conjunto dos não-homens, 105 de Dédalo ou dos tripés de Hefestos, os quais, diz o poeta, iam por seus próprios pés à assembléia dos deuses, se, da mesma maneira, as navetas tecessem sozinhas e os plectros beliscassem sozinhos as cítaras, então, nem os chefes dos artesãos precisariam de operários, nem os senhores, de escravos”36. Em todo caso, voltando-se ao passado ou para o futuro, os tempos sem escravos da cidade escravagista estão fora da história, num antes ou depois pré-cívico ou pós-cívico e até, em grande me dida, num antes ou depois da própria civilização. De resto, é bem notável que o único esforço sério de um historiador grego para re construir pela dedução racional o passado da Grécia - refiro-me à Arqueologia de Tucídides não faça qualquer menção ao início da escravatura. Acreditamos que é sublinhar suficientemente a ori ginalidade e a novidade da questão colocada por Teopompo, mas é também convidar-nos a questionar se não seria a reflexão sobre a outra forma de escravidão que estaria na origem da espécie de cri se testemunhada por Teopompo. A teoria pela qual o historiador de Quios explica a origem dos hilotas e dos penestes é uma teoria da conquista, teoria pareci da com a que é expressa ou sugerida (as citações de Ateneu rara mente são explícitas) por inúmeros autores do século IV e da época helenM ca que trataram de Esparta, da Tessália, de Creta, de Hera- cléia do Ponto37. Dessa forma, o eubeiense Arquemacos conta co mo uma fração dos antigos beócios, no momento em que esses, pressionados pelos invasores tessalianos se dispunham a alcançar a região que mais tarde se tomou a Beócia, decidiu permanecer onde estava e concluiu com os tessalianos um pacto (homologia) pelo qual se comprotnetiam a ser seus escravos, sob a reserva de que 36. Arist., PoL, I, 1253 b 32-38; trata-se de fato, nessa passagem famosa, de uma referência quase explícita às situações cômicas. 37. Por exemplo Arquemacos (século III?), F. Gr. Hist., 424, fr. 1, in Ath. VI, 264 ab; Calístrato (discípulo de Aristófanes de Bizâncio, século II), F. Gr. Hist., 348, fr. 4, in Ath.; VI, 263 de; Filócrates (século IV?), F. Gr. Hist., 602, fr. 2 in Ath., VI, 264 a; Sosícrates (século II), F. Gr. Hist., 461, fr. 4, in Ath., VI, 263 f. 108 não seriam expulsos da região, nem mortos. Existem várias va riantes dessa teoria do contrato original de servidão: assim, Posi- dônio de Apaméia explica, depois de outros, que os mariandinianos tornaram-se os “escravos” dos heracleotes com a condição de que não seriam expulsos nem vendidos para os estrangeiros38. Pode-se1 bem dizer que essa teoria obteve um imenso su cesso, pois, com várias nuanças, muitas vezes é assim que os histo riadores modernos imaginam o inicio do hilotismo; não, é claro, que retomemos por sua conta a historieta do contrato de servidão, mas a maioria deles admite que hilotas, penestes, charotes, etc. sejam os descendentes das populações pré-dóricas. A esse título, são os herdeiros de Teopompo, de Eforo e de alguns outros.'Natu ralmente, os documentos mais numerosos referem-se a Esparta, e é de Esparta e das origens do hilotismo, tal como os gregos imagi navam, que falarei agora. Não é o caso, decerto, de tratar o pro blema profundamente, nem de reanimar o debate que outrora opôs Kahrstedt e Ehrenberg antes que Henri Jeanmaire, em Couroi et Courètes, magistralmente, não desse razão nem a um nem a outro. A despeito dos esforços de Fr. Kiechle39, duvido que um dia se possa provar qualquer coisa sobre o assunto. Como dizia P. Rous sel, “fracassa-se em demonstrar que os periecos não eram dóricos e que a servidão dos hilotas resultou exclusivamente de um açambar- camento das terras em proveito dos invasores”40. Nenhum dos vestígios pié-dóricos que pudemos distinguir na linguagem falada ou escrita da Lacônia pode ser atribuído mais particularmente aos hilotas; isso deveria bastar para resolver o problema, ou melhor, 38. F. Gr. Hist., 87, fr. 8, in Ath., VI, 263 cd. Sobre a teoria análoga de Eforo a respeito da origem dos hilotas e de Teopompo a respeito dos mariandinianos, cf. adiante. Esse tema é retomado com alguns outros por J. Ducat, “Hilotisme”, principalmente p. 5-11. 39. Lakonien. 40. Sparte, p. 20. A discussão sobre a realidade da invasão dórica foi há pouco reativada e exalta os ânimos. Não pretendo, de forma alguma, nela me imiscuir, ao mesmo tempo que constato que a presença do dia leto dórico nas tabuinhas micênicas parece fora de dúvida (cf. J. Chad- wick, “Dorians"). 109 para demonstrar que é insolúvel. Bem inspirado, no caso, A. J. Toynbee observou: “Há ao menos quatro tradições diferentes e ir reconciliáveis sobre a data e as circunstâncias do início do hilotis- mo. Isso sugere que essas quatro tradições são suposições e que não existia lembrança autêntica”41. Mas, se o problema de fundo é insolúvel, o discurso sobre as origens merece, este sim,ser estudado em todas as suas varian tes, inclusive as que sabemos não terem a menor chance de revelar a verdade, exatamente como merece ser estudada a teoria difundida na França do século XVII ao século XIX que fez da nobreza os descendentes dos conquistadores francos e dos povos os descen dentes dos galo-romanos vencidos42. Coloquemos aqui alguns princípios de base, dentre os quais pelo menos o primeiro concerne à história propriamente dita e não somente o discurso sobre a histó ria. 1. Para um ateniense do século IV, a situação de depen dência à qual estão relegados gregos como os hilotas ou os penes- tes é surpreendente. Nossa atitude deve ser exatamente inversa. O que é surpreendente e até estupefaciente, se quisermos, no mundo mediterrânico do primeiro milênio, não é a dependência, mas a li berdade, quero dizer, por exemplo, a liberdade conquistada pelos camponeses atenienses desde Sólon. Devemos tentar compreender o que os gregos nos dizem a partir desse fundo de liberdade ou li beração. 2. O que é interessante e deve nos preocupar é que, num certo momento e não em outros, os historiadores gregos se per guntaram sobre a origem do hilotismo. Devemos tentar encontrar o porquê dessa interrogação. 3. O corpo social de Esparta estava dividido entre os hi lotas, os periecos e os homoioi; este é um dado que se impunha aos antigos como se impõe a nós. Trata-se de compreendê-lo e ex- 41. Problems, p. 195. 42. Para exemplos análogos na historiografia inglesa, M. I. Finley, Ances tral Constitution. 110 plicá-lo historicamente? Os gregos encontravam-se, na essência, exatamente na mesma situação que nós. Temos decerto sobre eles a vantagem da arqueologia, mas a arqueologia não descobriu até agora muitos hilotas, e a arqueologia não poderá explicar como se constituiu esse grupo social. Mas, afora isso que não conta muito, os gregos agiam como nós, elaboravam raciocínios a partir de da dos: os hilotas são, os periecos são. A partir do momento em que colocamos questões, o núme ro de respostas não é ilimitado. O problema decerto é menos sim ples do que estou dizendo aqui; os gregos deviam levar em consi deração principalmente a existência de dois tipos de hilotas: hilotas da Lacônia e hilotas da Messênia, os últimos em permanente re volta para “restaurar” Messena, enquanto a reivindicação dos pri^ meiros é antes a de uma transformação revolucionária da sociedade lacedemoniana. Deviam levar em conta também uma tradição cujo testemunho mais antigo é fornecido pelos poemas de Tirteu: a for mação de Esparta é o resultado de uma invasão, a invasão dos dó- rios conduzidos pelos Heráclidas, num território outrora aqueu, cuja capital era Amicléia. Mas, admitido isso, os historiadores da Antigüidade racio- cionavam como os modernos. Há algo mais impressionante, por exemplo, do que ver um contemporâneo como F. Gschnitzer colo car-se o problema da origem dos periecos em termos de alternativa lógica: ou os periecos são espartanos que perderam seus privilé gios, ou são não-espartanos que entraram sob condições particula res no Estado lacedemoniano43; como se a realidade histórica obe decesse sempre às leis de uma lógica de exclusão? A partir dos dados que acabo de lembrar, quais as soluções possíveis para o problema espartano? 1. Seria possível não nos colocarmos absolutamente questões. 2. Seria possível admitir que a diferenciação dos lacede- monianos nas três categorias mencionadas era de origem interna e 43. F. Gschnitzer, Abhàngige Orte, p. 146-150. 111 resultado de uma evolução histórica ou de um acontecimento dra mático que se traduziria por exemplo pela concessão de um esta tuto. 3. Também seria possível dizer que periecos e hilotas eram descendentes das populações conquistadas, sem que essa de dução seja feita obrigatoriamente para todos os hilotas, pois os messianianos formavam uma categoria especial. 4. Seria também possível admitir que periecos e hilotas não tinham a mesma origem, que os primeiros levantavam um pro blema histórico e os outros não. É claro que estou simplificando e seria fácil complicar as coisas44, mas, grosso modo, os historiadores gregos45 formularam exatamente as hipóteses que acabo de esboçar. E Heródoto? Para ele, os dórios são um povo errante, mas que seu helenismo inato opõe aos jônios de Atenas, autóctones, decerto, mas também pelasgos - e. pelasgos mais helenizados do que gregos46. Obrigaram todos os povos pré-dóricos do Pelopone- so a emigrar, com três exceções diferentes uma da outra: os arcá- dios não emigraram47; os aqueus deixaram a Lacônia para alcançar a região do Peloponeso que se tomou Acaia (aqui obrigando os jô nios a ir embora)48; os cinurianos, instalados nas fronteiras de Ar- gos e da Lacônia, doricizaram-se49 50. Instalaram-se portanto no Pe loponeso, além dos dórios, possuidores de “cidades numerosas e célebres” , os etolianos de Elis, os dríòpes de Hermíone e Asine, os lemnianos, em outras palavras, os paroreates da costa oeste da pe nínsula30. Por outro lado, Heródoto conhece os messenianos que, 44. Mesmo assim, digamos desde já que as populações vítimas da invasão dórica ou emigraram em bloco ou podem ter permanecido em parte em terras ancestrais. 45. A pesquisa desse assunto é muito facilitada pelo belo livro de E. N. Tigerstedt, Legend. 46. Hdt., II, 17; 1 ,56. 47. Hdt., II, 171; VIII, 73. 48. Hdt., VIII, 73; cf. 1 ,145 e VII, 94. 49. Hdt., VIII, 73. 50. Ibid. 112 para ele, sem que ele o diga expressamente, são dórios com o mesmo direito que os espartanos, presentes no momento da con quista, presentes ao nascimento dos gêmeos fundadores das duas dinastias reais, Procles e Eurístenes51. Heródoto faz várias alusões ao que chamámos de terceira guerra de Messênia, que ele apresenta aliás como mais òu menos permanente desde o final das guerras médias52; mas jantais mistura as noções de hilotas e messenianos e, quando faz alusão aos hilotas, é sempre como homens submetidos a um estatuto de fato, sem jamais questionar absolutamente nada so bre a origem do estatuto53. Tucídides raciocina de modo ligeiramente diferente. Tam bém ele conhece os messenianos sobre os quais, aliás, precisa que falem não somente o dório, mas exatamente até o dialeto dos lace- demonianos54. Quando conta a insurreição de 465(?), que atribui aos hilotas e periecos de Túria e Aitaia, acrescenta que “a maioria dos hilotas eram descendentes dos antigos messenianos reduzidos à escravidão, o que explica que se deu a todos o nome de messenia nos”55. No que diz respeito aos hilotas não messenianos, Tucídides não faz a menor alusão a uma origem não dórica: os espartanos desconfiam que os atenienses e não os hilotas pertençam a uma et nia diferente, desconfiança que justifica a seus olhos a expulsão do corpo expedicionário enviado por Atenas contra os insurretos do monte Itome56. Tucídides, afinal das contas, não colocou qual quer questão a respeito da origem dos hilotas não messenianos, dos quais fala várias vezes, insistindo sobretudo em como eram vigia dos de perto57. É no entanto no século V que aparecem na literatura as primeiras teorias sobre a origem do estatuto dos hilotas da Lacônia, 51. Hdt., VI, 52. 52. Hdt., III, 47; V, 49; IX, 35,64. 53. Hdt., VI, 58,75, 80-81; VII, 229; VIII, 25; IX, 10 28-29, 80-85. 54. Tuc.,'III, 112,4; IV, 3,3. 55. Tuc., 1 ,102. 56. Tuc., 1 ,102, 3. 57. Ver sobretudo IV, 80. 113 e é surpreendente ver que várias versões exatamente opostas foram dadas sobre essa origem por contemporâneos. Assim, Antíòco de Siracusa faz esse estatuto remontar à primeira guerra de Messênia, mas eis o que diz a esse respeito: “Os lacedemonianos que não participaram da expedição (contra os mes- sênios) foram decretàdos servos e chamados de hilotas” . Trata-se, portanto, de acordo com essa interpretação, de uma população la- cedemoniana reduzida a um estatuto inferior no decorrer da histó ria58, estatuto comparável ao dos “medrosos” (tresantes), ós covardes a quem o seu pouco valor condenava a uma degradação59. A outra teoria, a da conquista, apresenta-se a principio, cronologicamente, sob a forma modesta de uma citação de Helani- cos de Lesbos no glossário de Hatpocration: “ Os hilotas são escra vos, mas não lacedemonianos de nascença; foram os primeiros en tre os habitantes da cidade de Helo a serem capturados60” . Por in termédio de um jogo de palavras a partir de Helo, cidade da Lacô- nia, e hilotas, nos é dada a versão da conquista desta forma. O testemunho de Helanicos é o único do século V, mas o sucesso dessa hipótese úo século seguinte seria considerável. Vimos que Teopompo (que assume como sua a absurda história de Helo) tam bém remete à conquista dórica. Quanto a seu contemporâneo Éfo- ro, igualmente aluno de Isócrates, do qual um longo fragmento foi 58. F. Gr. Hist., 555, fr. 13, in Estrab., VI, 3, 2. EKpiGricrav ÔauXoi kou «avop/aaGirçaav siAarres. A despeito das objeções de P. Levêque (Terre et Paysans, p. 115), não vejo como se pode achar que esse texto seja algo que não um relato sobre a origem do hilotismo. O relato com porta dois tempos: 1) decide-se que gente indigna deve ser reduzida à condição servil; 2) esses escravos tomam o nome de hilotas. 59. Hdt., VII, 23; Plut., Agésilas, 30; Licurgo, 21; Tucídides com certeza alude a esse estatuto em V, 34. Sobre os tresantes, ver N. Loraux, "Belle mort”, p. 111-112. 60. F. Gr. Hist., 4, fr. 188, in Harpocration s.v., eiW revet.v ver o comen tário de Jacoby ad. loc. A anedota etimológica sobre Helo é igualmente conhecida por Teopompo, F. Gr. Hist., 115, fr. 13, in ATH., VI, 272 a, assim como outros autores que são mencionados por J. Ducat, “Hilo tisme”, p. 9. 114 conservado por Estrabão61, seu relato é o seguinte: quando da in vasão dórica, a maioria dos aqueus abandonaram o pais, que foi dividido em seis seções (correspondentes aos seis mores do exér cito lacedemoniano clássico). Uma delas, Amicléia, foi concedida a Filonomos, o aqueu, que entregara o país e convencera seu chefe a emigrar62. Esparta'tomou-se o centro da realeza, mas envia-se reis locais para governar cada seção. Em virtude da falta de homens (.leipandria), os reis locais são convidados pelos heráclidas a ou torgarem o estatuto de coabitantes (synoikoi) a todos os estrangei ros que o pedissem. Esses estrangeiros, chamados de hilotas63, que são também os súditos e os periecos dos espartanos (twaKouovraç 8 aTravTaç touç irepioiKovç SirapTtaTwv), recebem entretanto a igualdade de direitos com seus senhores, beneficiam-se da cidada nia e do acesso às magistraturas. Na geração seguinte, o rei Agis priva-os de sua cidadania e impõe-lhes um tributo. Todos aceitam, exceto os habitantes de Helo que querem separar-se do reino e que, uma vez submetidos, são decretados de estatuto servil, com a re serva expressa, porém, de que seus proprietários não poderiam li bertá-los, nem vendê-los no exterior. Tal é, em suma, o ponto de partida da teoria do contrato original de servidão que já tivemos a ocasião de examinar. Vê-se, além disso, a vantagem desse mito histórico criado por Éforo: permitia expor a existência tanto dos hilotas quanto dos periecos. Ambos eram “estrangeiros” , a princí pio admitidos na cidade lacedemoniana e depois rebaixados a seus respectivos níveis. Pode-se até suspeitar de que Éforo tentava na realidade conciliar duas tradições, a que via nos periecos e hilotas vítimas da conquista e a que os tomava espartanos degradados. Resta, no entanto, saber o que Éforo entendia exatamente por “es trangeiros” . O fragmento 117 que acabamos de analisar não dá 61. F. Gr. Hist., 70, fr. 116 e 117 in Estrab., VIII, 4 ,7 e 5 ,4 . O comentário de Jacoby esclarece todos os equívocos que, à primeira vista, esse texto poderia provocar. 62. Cf. Strab., VIII, 5,5. 63. Meineke propôs deslocar a menção dos hilotas após a da cidade de He- los. 115 qualquer precisão e, se nos basearmos nele, não seríamos absolu tamente obrigados a considerar esses “estrangeiros” aqueus64, mas o fragmento 116 referente aos messênios não deixa qualquer ddvi- da: “Quando Cresfontes dominou Messena, dividiu-a em cinco ci dades e instalou em Steniclaros, situada no centro da região, sua residência real. Enviou reis às outras cidades, Pulos, Rion, Mesola e Hiameitis, conferindo a todos os messênios direitos iguais aos dos dórios. Como os dórios se irritassem com isso, mudou de idéia; apenas Steniclaros recebeu estatuto de cidade e ali reuniu todos os dórios” . Não há portanto qualquer equívoco possível, os “estran geiros” são não-dórios e são os habitantes primitivos do país, pois é difícil imaginar que o que é válido para Messena não é válido pa ra Esparta. Com diversas variantes, a versão de Éforo deveria obter um grande sucesso. Pausânias ainda se refere a uma versão próxi ma, por exemplo, quando faz o rei Alcamenos criar o estatuto hiló- tico muitas gerações após Agis65. Em suma, Pausânias é um pre cursor de F. Kiechle, que também dilui a conquista dórica em nu merosas etapas. Mas faltava muito para que no século IV essa versão - que Éforo não inventara - obtivesse a unanimidade. Quando Platão, na República (portanto, antes de Éforo) trata da passagem da cidade modelo à cidade “timocrática” de tipo lacedemoniano, ele resume da seguinte forma sintética a constituição da antiga Esparta: “Após muita violência e luta, combinam dividir entre si e apropriar-se da terra e das casas, e os que consideravam outrora seus concidadãos (ou seja, os membros das classes inferiores) homens livres, amigos e pais de criação agora são seus vassalos, tratam-nos de períecos e servidores (oiketai), enquanto eles próprios continuam a preocupar- se com a guerra e a vigilância dos outros”<5<5. Não há a menor 64. Assim raciocinava, por exemplo, L. Pareti, Sparta arcaica, p. 190-191. 65. Paus, III, 20, 6. Plutarco tem outro candidato: o rei Soos (cf. Lycurgue, 2, 1). 66. Rep,, VIII, 547 b-c, trad. E. Chambry levemente modificada. O texto é de difícil interpretação, pois joga com dois planos: de um lado, Platão 116 alusão a uma origem “aquéia” dos periecos e dos hílotas, e não se encontrará igualmente qualquer menção a isso no livro XD das Leis, quando Platão expõe o estabelecimento das três cidades dòricas de Esparta, Messena e Argos; é a evolução interna e, somente ela, que explica o sucesso de Esparta e a decadência rápida das duas outras cidades67. ‘ Quanto a Isòcrates, conheceu e apresentou, seguindo a ló gica de seus discursos, versões muito diversas. Em Arquidamos, que, em 366, concede ficticiamente a palavra a um príncipe espar tano, este reconhece nos messenianos dórios cujos ancestrais ti nham sido outrora dominados pelos lacedemonianos como punição pelo assassinato de seu rei fundador, Ciesfontes. Mas Arquidamos recusa-se a identificar os “messenianos” recém-liberados por Epa- minondas com os messenianos de antanho. “São, na realidade hi- lotas que estão instalando em nossas fronteiras68” . Essa versão não é, pois, incompatível com a teoria da conquista. Mas no Panate- naico, redigido de 342 a 339, portanto depois do livro correspon dente de Éforo, Isòcrates conta uma história inteiramente diferente e que parece um tanto com a contrapartida da das Leis de Platão. Enquanto Messena e Argos passam por uma evolução parecida com a de outras cidades gregas, ou seja, da oligarquiá à democracia, Esparta caracteriza-se pela permanência da stasis. Ao invés de in tegrarem-no à comunidade, os espartanos transformam seu povo em periecos: Tov ô-rprov -irspioiKov«; iroi/qcracrôcn, KoeraarotuXeu- <ra|xevous ctvrcov ra s i|/uxas au&ev lyrTov tcíç tcov oiketwv. O conta como os cidadãos da cidade modelo que possuíam tudo em co mum, chegam à divisão das terras e à especialização da casta dirigente apenas na função guerreira; por outro, conta de seu modo o estabeleci mento do Estado espartano. Acrescentemos que o estatuto de “cida dãos" dos membros-dasclasses inferiores da sociedade platônica 6 ex- tfemamente duvidoso, e a Aristóteles agradou sublinhar as contradições reais e imaginárias do texto (Pol., II, 1264 a 25 e ss.) Mas precisamente essa observação deveria nos incitar a admitir que Platão segue aqui uma versão “histórica” da história espartana. 67. Lois, III, 683 a e s. 68. Archidamos, 16, 28, 87. 117 que significa a última expressão? Por que essa alusão à escraviza ção das almas populares, comparada ao tratamento inflingido aos escravos? Não pode se tratar apenas dos periecos, pois Isócrates esclarece que os espartanos se arrogam o direito de condenar essa gente à morte sem julgamento, o que pode convir apenas aos hilo tas. O texto só é coerente se admitirmos que o autor colocou numa mesma categoria o conjunto das populações dependentes, ou seja, os periecos e os hilotas69, e que talvez faça alusão à presença em Esparta, provável no século IV, de escravos de tipo clássico70. Acabamos de examinar os tipos de explicações históricas a respeito do hilotismo. É fácil ver o que os opõe radicalmente em seu conjunto ao que nos diz Teopompo do início da escravidão. Qualquer que seja a explicação dada, o hilotismo é sempre apre sentado como tendo suas origens não antes da história, mas na história. Qualquer que seja a explicação proposta, os homens em questão são sempre apresentados como tendo sido livres. Não é por acaso que Teopompo, que, por um lado, nos explica como as víti mas da invasão dórica se tomaram hilotas, nos explique também como durante as guerras da Messênia, um certo número de hilotas, os Eupenaktoi, foram admitidos paia substituir nos leitos de cam panha dos espartanos os homoioi que tombaram na guerra71. O fe nômeno de escravização é, neste caso, reversível. Um hilota foi li vre, pode tomar a sê-lo, não é, de forma alguma, escravo por natu reza. Pelo contrário, não se compra homens livres, mas escravos, e 69. Panathenaique, 177-180. Esse texto foi objeto de diversas interpreta ções: Ci. Mossé (“Perièques”) estima que Isócrates alude aos periecos e apenas a eles; J. Ducat contesta minha interpretação, ao mesmo tempo que admite, como eu, que talvez exista aí “uma confusão (mais ou me nos voluntária, num texto violentamente polêmico) com o estatuto dos hilotas” (“Hilotisme”, p. 9). 70. Platão faz alusão à presença de escravos; cf. Ale., 122 d, texto que Cl. Mossé me assinala. Pode-se todavia interpretar o texto de forma dife rente e achar que Isócrates alude aqui aos escravos em geral. 71. F. Gr. Hist., 115, fr. 171, in Ath., VI, 271 cd; cf. S. Pembroke, “Lo- cres”, p. 1246. Teopompo, ele próprio, aproxima esses Epeunaktqi de uma categoria servil de Sícion, os Katõnakophoroi, fr. 176, in Ath., VI, 271 d. 118 somente antes da história houve uma época sem escravos. Já o destino dos escravos não é reversível. A historiografia grega constituíra-se no final do século VI no contexto da cidade, e a cidade servia-lhe de referência; os hilo- tas nela tinham seu espaço, pois faziam parte, mesmo no grau mais inferior, do Estado lacedemoniano; os escravos-mercadorias, estes são propriedades privadas (mesmo que por vezes cidades os pos suam); inserem-se com muito mais dificuldade na história. Mas, precisamente, Teopompo, cuja obra principal, a História Filípica é, como seu título indica, centrada na pessoa do rei da Macedônia, marca uma reviravolta nesse campo. Seria preciso acrescentar que os hilotas e assimilados são gregos e os outros, ao menos para a historiografia, bárbaros? Mas seria possível objetar com o caso dos mariandinianos, entre outros, e é preciso responder a essa objeção. Coloquemos aqui uma hipótese de partida. Entre os fatores de helenização das populações bárbaras na época clássica, não se ria preciso atribuir um lugar importante à servidão rural, da qual muitas delas foram vítimas? O exemplo mais antigo que se pode dar é provavelmente o dos Kyllirioi de Siracusa, dos quais Heró- doto nos diz que, pouco antes da tomada de poder por Gelão, ex pulsaram, aliados ao dêmos, os Gamoroi, ou seja, os oligarcas, na cidade72. Acho que seria inútil procurarmos um único exemplo de aliança entre o povo de uma cidade grega e os círculos livres. Mas o caso mais notável é talvez o dos mariandinianos de Heracleu do Ponto, sobre os quais estamos relativamente bem informados, pro vavelmente graças ao fato de o tirano de Heracléia, Clearco, ter si do discípulo de Platão e Isócrates73. Os mariandinianos são conhecidos no século V como um povo bárbaro bitiano ou paflagoniano em cujo território os hera- cleotes fundaram sua cidade, mas que também possui o antro de 72. VII, 155. 73. Cf. Memnon, F. Gr. Hist., 434, fr. 1, in Photíus, Bibl., 224. 119 Cérbero74. São apresentados de bom grado como bárbaros, mas bárbaros familiares, se ouso dizer, como poderíam sê-lo os caria- nos75 desde os tempos de Homero. Esse caráter bárbaro não desa parece completamente mais tarde76. Os mariandimanos continuam bárbaros77, mas, na verdade, o geógrafo Estrabão não sabe muito o que fazer com eles. São caucones, povo conhecido por Homero, mas que desapareceu, são bitianos, dos quais, nem dialeto, nem et nia, os diferencia78? Estrabão não conhece mais, a não ser indire tamente, mariandiniànos trabalhando o solo para os cidadãos de Heracléia. A historiografia do século IV classifica-os, como vimos, ao lado dos hilotas e dos penestes, e o próprio Teopompo, ao que parece, abre um espaço para eles entre os povos que concluíram o que chamamos de contrato original de servidão79. Essa classifica ção nãò implica que tenham se helenizado em larga medida? Duas ordens de fato müitam a favor dessa hipótese. A história de Hera- 74. Hecateu, F. Gr. Hist., 1,198; Hdt., 1 ,28, III, 90, VII, 72; Anab., VI, 2, 1. Sobre os mariandimanos, toda a documentação está agora reunida por D. Asheri, “Herakleia Pontike”, p. 17-23. 75. Assim Ferécrates, fr. 68 {Kock, I, p. 163) in Ath., XIV, 653 a, onde se zomba de seu dialeto e das confusões que acarreta; ver também sobre os cantos de luta que a eles se atribui, Nymphis, F. Gr. Hist., 432, fr. 5, in Ath., XIV, 619 b-620 c. Pausânias, V, 26 ,5 conhece ainda em Olímpia uma dedicatória feita pelos megarianos e feócios, fundadores de Hera cléia, “sobre os bárbaros mariandinianos”. 76. C f., por exemplo, o autor anônimo do Périple du Pont-Euxin, 27 (G.G.M., I, p. 408). Eustathe, entre outros, faz alusão, por sua vez, a seu veneno, o acônito (Commentaire à Denys le Périégète, G.GM., II, p. 354). 77. O testemunho mais tardio é uma inscrição funerária da época imperial conservada por Constantino Porfirogeneta em Livre des thèmes (C.I.G. 3188), relatando a carreira de um procônsul; ela situa o país dos ma riandinianos entre a Galácia e o Ponto. 78. Estrab., XII, 3 ,2 -9 . 79. F. Gr. Hist., 115, fr. 388, in Estrab., XII, 3 ,4 .0 texto de Estrabão não diz formalmente que Teopompo é responsável por essa afirmação. Por sua vez, Callstrato afirma que se lhes deu o nome de “portadores de tri buto” (dôrophoroi) para evitar aquilo que o termo servidores (oikétai) tinha de amargo (cf. F. Gr. Hist., 347, fr. 4, in Ath., VI, 263 de). 120 cléia na época clássica é particularmente agitada, como comprovam principalmente as numerosas alusões de Aristóteles a revoluções que abalaram a cidade80. Indiscutivelmente Heracléia oferece a notável particularidade de que pôde, pelo menos por um certo tem po, possuir uma frota bem numerosa, apesar de uma população ci tadina pequena e isso, preçisa Aristóteles, graças à sua grande po pulação “de periecos e camponeses (geôrgoi)” (ou seja, mariandi- nianos)81; mas podemos nos perguntar se essa situação não se prolongou pelo século IV. De fato, um texto de Eneu, o tacticiano, sobre o qual D. M. Pippidi chamou a atenção82 83, mostra que se ope rou em Heracléia uma profunda reforma constitucional de tipo clisteniano. Querendo facilitar a vigilância dos ricos, os pobres substituiram um sistema quecomportava as três tribos dóricas, cada uma tendo doze centúrias (hékatostyes), por um sistema de sessenta centúrias o que toma muito verossímil a presença de dez tribos. Tal reforma não foi acompanhada de uma ampliação do corpo cívico, na ausência do qual ela perderia grande parte de seu sentido? Pelo menos, é uma hipótese que podemos formular. Em 364, o tirano Clearco toma o poder e apóia-se no dêmos. Impõe uma divisão de terras, liberta os escravos dos grandes e impõe casamentos força dos entre esses escravos e as filhas desses grandes88. Quem são es ses escravos? Muito provavelmente mariandinianos, uma parte dos quais foi libertada84. O episódio das núpcias é, de resto, caracte rístico: só se encontra esse topos nas cidades que possuem depen- 80. Pol., V, 1304 b 31,1305 b 4. Sobre a história de Heracléia, e principal- mente da tirania de Clearco, breve resumo de W. Hoepfner, Herakleia Pontike, p. 9-14; ver D. Asheri, “Herakleia Pontike”; sobre ã tirania, a obra básica continua sendo H. Apel, Tyrannis. 81. Pol., VII, 1327 b 10-15.0 termo periecos designa praticamente sempre em Aristóteles as populações rurais escravizadas. Cf. R. F. Wiliets “In terregnum”, p. 496. 82. Eneu, XI, 10-11 (Dain-Bon); D . M. Pippidi, “Luttes politiques”. 83. Ver Justino, XVI, 3-5. Se a plebs de Justino é evidentemente o dêmos, seus senatores são muito provavelmente oligoi mais do que bouleutes. 84. C f. Cl. Mossé, “Rôle des esclaves”, p. 357-359. 121 dentes rurais85. Esses escravos que se casara com mulheres hera- cleotes não são bárbaros helenizados? Ainda aqui podemos pelo menos colocar a questão. Mas também é possível abordar esse problema por um ou tro ângulo. Desde o século V com Herodoro, na época helen&tico- romana com Promatidas, Anfiteos, Ninfis, Domitius-Calístrato e Memnon, Heracléia teve toda uma escola de historiadores e mitó- grafos86 87; seus fragmentos foram principalmente conservados pelos escólios das Argonáuticas de Apolônio de Rodes nas quais todo ura episódio acontecia na região dos mariandinianos. Essa mitografia nada nos diz sobre os mariandinianos en quanto dependentes rurais, mas o que nos diz não deixa de ser inte ressante num outro nível. Desde o seu desembarque na costa da Ásia menor, os argonautas encontram dois tipos de bárbaros: com a hostilidade sem nuança dos brebices da Mísia contrasta a amizade sem reservas dos inimigos dos brebices, os mariandinianos e seu rei Licos, com o qual os heróis concluem um pacto no templo de H om onokP, talvez transposição mítica do contrato original de servidão. O tema do tom bárbaro é, em si, bastante banal (basta peasar na lenda da fundação de Marselha); o mais interessante é a mitologia insistir numa das razões dessa boa acolhida: o rei Licos é por parte de seu pai Dascilos, o neto de Tântalo, portanto o sobri nho do firígio Pelops e é para homenagear Pelops que acolhe bem os heróis do navio Argo88. Ora, principalmente na época helenísti- 85. Aos exemplos enumerados adiante em “Esclavage et gynécocratie”, p. 274-276, podemos acrescentar o de Nabis que também impôs casa mentos entre os hilotas e as mulheres espartanas; cf. sobre esses fatos Pol. XVI, 13, 1 e os estudos de Cl. Mossé, “Nabis” e B. Shimron, “Na bis”. Mantenho no conjunto essa afirmação apesar das objeções de D. Asheri “Mariage forcé”. 86. Seus fragmentos são reunidos sob o n3 3 1 e os n-s 430-434 do corpus de Jacoby; spbre os mariandinianos e suas minas de ferro, ver L. Ro- bert, Asie mineure, p. 5-10. 87. Ap. de Rh., Arg, Ú , 352 e ss., 722 e ss. 88. Nymphis, F. Gr. Hist., 432, fr. 4, in Scholies d a p . de Rh., II 752. Ê possível, mas apenas possível, qne Heródoto tenha aludido igualmente a esse parentesco: F. Gr. Hist., 31, fr. 4 9 .0 texto infelizmente é elíptico e corrompido. 122 ca, o parentesco com os deuses e heróis da Grécia foi sem qualquer dúvida um dos modos de expressão da helenização89, e o rei Licos pode ser considerado como o herói, rejeitado para o passado, da helenização dos mariandinianos. Se é èsse o caso, os mariandinianos não constituem exce ção à regra, e potíe-se dizer deles o que se pode dizer dos hilotas e penestes. Dá-se uma explicação histórica de sua escravização por que sua servidão não é concebida como eterna: julga-se que pelo menos um certo número deles pode escapar dela. É possível ver para que tipo de conclusão caminha essa exposição. Formulemo-la de maneira clara. Na atitude intelectual de Teopompo, foi a reflexão histórica em tomo dos escravos de ti po “hilótico” que serviu de modelo para a reflexão sobre o início da chattel-slavery. Esta, em todo caso, não tinha qualquer espécie de precedente. As causas dessa preeminência dos hilotas, se é possível di zer, não são difíceis de descobrir. Ao longo de toda época clássica, procuraríamos em vão o menor sinal de uma crise do sistema es cravista90. Poderíamos dizer ao contrário que a crise permanente do velho modo rural de dependência é uma das características prin cipais da história grega e isso desde a época arcaica. No século V, quando os hilotas de Messênia se revoltam, isso não constitui um fato novo91. No final do século o mais tardar, são os penestes da Tessália que entram em movimento92. No século IV, todo o equilí- 89. O melhor exemplo que conheço disso é a inscrição ainda inédita desco berta por H. Metzger no Lètôon de Xantos (século III) e que estabelece toda uma genealogia comum entre os lícios e os dórios da metrópole. Os lícios se contavam, sabemos; entre as populações mais profunda mente helenizadas. Ver, em geral, D. Musti, Syngéneia. 90. Essa frase suscitou, por razões que me escapam, ásperas discussões. Ver por exemplo D. Musti, “Valore di scambio”, p. 170-171. Parece-me que seu sentido é claro: a Antigüidade clássica atravessou séculos sem um confronto maior entre homens livres e escravos. 91. Vet, no entanto, as reservas de J. Ducat, “Hilotisme”, p. 24-38 e seu estudo sobre o “Mépris des hilotes”. 92. Xen., Hell., II, 3,36; cf. Cl. Mossé, “Rôle des esclaves” , p. 354-355. 123 brio político e social da principal cidade arcaica, Esparta, é des truído. A construção de M essena, concebida e vivida desde 369 como uma ressurreição, com toda a extraordinária balbúrdia que esse acontecim ento provocou no m undo grego e principalm ente a cham ada à diáspora m esseniana refugiada um pouco por toda par te , de N aupacte à S icília, sem dúvida fo i o principal acontecim ento que fez com que os historiadores refletissem sobre o destino dos hilotas. Mesmo C reta não m ais aparece como o santuário que foi por muito tempo. A ristóteles descreve-a como devendo provavel m ente sua salvação à sua situação insular - “ a classe dos periecos se mantém tranquila em C reta, enquanto os hilotas se revoltam com fteqüência” mas ele acrescenta imediatamente que “ a chegada recente de um exército do exterior fez saltar aos olhos de todos a fraqueza das instituições cretenses” 93. A história dos hilotas é portanto filha da crise do sistema; mas ainda podemos prolongar essas reflexões. O modo rural de de pendência cuja presença na Á sia os gregos constatarão, e do qual suas cidades se beneficiarão amplamente94 não é fundamentalmente diferente do que os gregos conheceram diretam ente com os hilotas e os penestes. Também seria interessante descobrir em que medida a conquista helenística não foi em parte trunfo desses mesmos camponeses gregos liberados parcialm ente pelas perturbações do século IV e também jogados para fora de seus contextos sociais tradicionais95. Pensemos, por exemplo, nos arqueiros cretenses. E podemos questionar se a escravização dos bárbaros, dos escravos naturais descritos p o í A ristóteles não é uma conseqãência da li bertação desse grupo de gregos. Mas isso é uma outra história. 93. Pol. II, 1272 b 15-23; sobre essa invasão, talvez sobre a de Falaicos e seus mercenários em 345, ou a de A gis em 333, ver a discussão ap. H. Van Effenterre, Crète,
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