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1 1 SUMÁRIO 2 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 3 3 SAÚDE MENTAL ................................................................................. 4 4 SOFRIMENTO MENTAL ...................................................................... 5 4.1 Sofrimento Mental e Vulnerabilidade .................................................... 6 5 PERCEPÇÃO E CONCEITUAÇÃO DA LOUCURA ATRAVÉS DOS TEMPOS ...................................................................................................... 7 5.1 Loucura na Grécia antiga: a desrazão valorizada ................................ 8 5.2 Antiguidade clássica: o rompimento entre o místico e o racional ......... 9 5.3 Idade média: sai o leproso, entre o louco ........................................... 12 5.4 Século XVIII: a loucura como objeto do saber médico ....................... 12 5.5 Pós-guerra: momento propício para reformas .................................... 13 6 A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA E A POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL ..................................................................................................... 15 6.1 A regulamentação da atenção psicossocial em saúde mental no Brasil 19 6.2 O papel estratégico dos CAPS na atenção à saúde mental no Brasil 22 7 A NOVA CLASSIFICAÇÃO AMERICANA PARA OS TRANSTORNOS MENTAIS – O DSM-5 ................................................................................. 28 7.1 A história dos sistemas de classificação ............................................ 30 7.2 A história do DSM .............................................................................. 31 8 O DSM-5 ............................................................................................ 32 8.1 Transtornos do neurodesenvolvimento .............................................. 33 8.2 Gama da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos ..................... 34 8.3 Transtorno bipolar e outros transtornos relacionados ........................ 35 8.4 Transtornos depressivos .................................................................... 36 8.5 Transtornos de ansiedade .................................................................. 37 2 8.6 Transtorno obsessivo-compulsivo e outros transtornos relacionados 37 8.7 Trauma e transtornos relacionados ao estresse ................................ 39 8.8 Alimentação e transtornos alimentares .............................................. 42 8.9 Disfunções sexuais ............................................................................ 44 8.10 Disforia de gênero ........................................................................... 44 8.11 Transtornos parafílicos .................................................................... 45 8.12 Transtornos relacionados a substâncias e adição .......................... 46 8.13 Transtornos neurocognitivos ........................................................... 47 8.14 Transtornos de personalidade ......................................................... 48 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 50 3 2 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta , para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 4 3 SAÚDE MENTAL Fonte: pixabay.com Saúde Mental é o equilíbrio emocional entre o patrimônio interno e as exigências ou vivências externas. É a capacidade de administrar a própria vida e as suas emoções dentro de um amplo espectro de variações sem, contudo, perder o valor do real e do precioso. É ser capaz de ser sujeito de suas próprias ações sem perder a noção de tempo e espaço. É buscar viver a vida na sua plenitude máxima, respeitando o legal e o outro. É estar de bem consigo e com os outros. Aceitar as exigências da vida. Saber lidar com as boas emoções e também com as desagradáveis: alegria/tristeza; coragem/medo; amor/ódio; serenidade/raiva; ciúmes; culpa; frustrações. Reconhecer seus limites e buscar ajuda, quando necessário. Certo que os conceitos de saúde e doença mudam conforme mudam também as sociedades. Os avanços tecnológicos, científicos e até a economia influenciam nesta definição e na forma como as pessoas são tratadas. Houve um tempo em que as pessoas eram consideradas saudáveis ou doentes somente por se medir sua capacidade de trabalho. Dizia-se que era saudável aquele que conseguia trabalhar mais; já aquele que não conseguia era considerado doente. Hoje, sabe-se que saúde não é coisa simples. Ser saudável não significa apenas não ter doenças, depende de muitos fatores como boa alimentação, uma moradia adequada, contar com água e esgoto na comunidade. Também é condição de saúde ter trabalho e renda, educação, segurança, acesso aos serviços de saúde, 5 lazer e acesso a bens e serviços disponíveis na comunidade. Assim, só se tem saúde integral quando se tem saúde mental, equilíbrio social e boas condições de vida. 4 SOFRIMENTO MENTAL Fonte: pixabay.com No decorrer da história das sociedades humanas, já se ouviu falar de sofrimento mental de várias formas diferentes. O louco já foi considerado possuído pelo diabo e a loucura já foi considerada castigo de Deus, preguiça de trabalhar, desculpa de malandro, coisa de gente ruim, doença contagiosa e sem cura e até já se acreditou que a pessoa ficava louca por vontade própria. Hoje se tem uma visão diferente da loucura. Ao olhar um sujeito em sofrimento mental, não destaca nele somente suas fragilidades e limitações, procura-se destacar também seu lado saudável, suas potencialidades e capacidades. Ninguém está em sofrimento mental o tempo todo e ninguém é completamente doente. Há muitos aspectos saudáveis preservados e é através deles que as pessoas podem ser resgatadas para uma vida o mais normal possível. Neste contexto, entende-se a importância de se respeitar os modos diferentes de ser e de viver que cada pessoa tem, seu jeito de ver o mundo e de se relacionar com ele e com as pessoas. 6 4.1 Sofrimento Mental e Vulnerabilidade O sofrimento psíquico tem sido compreendido pela sociedade como objeto de intervenção da ciência médica. Nesse sentido, tal sofrimento tem recebido o rótulo de “doença mental”, merecendo diferentes nomenclaturas: loucura, alienação, doença mental, transtorno mental, sofrimento psíquico, que têm sido utilizados em diferentes momentos da história. Fato é que a convivência social da pessoa com sofrimento mental é restrita ou ocorre de forma precária, de modo que aquelas que apresentam transtornos graves ou gravíssimos são excluídas de qualquer convivência e, por isso, apresentam condição especial de vulnerabilidade, isto é, pode ser facilmente ofendido, atacado ou ferido, conforme refere a origem latina da palavra vulnerabilis, que causa lesão. O conceito de vulnerabilidade surgiu nos debates bioéticos nos anos 1990 com o sustoprovocado pelo amplo crescimento da epidemia causada pelo vírus HIV. A partir de então, percebeu-se que, mesmo pessoas economicamente privilegiadas seriam também vulneráveis e passíveis de serem contaminadas. Então, a vulnerabilidade passa a ser identificada por dois modos: como caracterização de situação de fragilidade particular por algumas pessoas e como condição humana universal. Historicamente, os vulneráveis são compreendidos como as crianças, os senis e os institucionalizados de qualquer ordem, sobretudo os deficientes mentais e físicos que apresentam elevado grau de vulnerabilidade (BARCHIFONTAINE, 2007, apud DEL’OLMO, 2017, p.199). Entretanto, a “desrazão” nem sempre foi vislumbrada como motivo de exclusão, não sendo considerado algo negativo. Na Grécia antiga, ela chegou a ser considerada até mesmo um privilégio. Note-se que filósofos, como Sócrates e Platão, destacaram o aspecto místico da loucura referindo a existência de uma loucura tida como divina, fazendo uso da palavra manikê para designar tanto o “divino” como “delirante”. Nesse aspecto, homens privilegiados poderiam acessar as verdades divinas. Aos poucos a loucura se distancia do místico e na antiguidade clássica, a partir da Renascença, passa a ser vista como representante do mal. 7 5 PERCEPÇÃO E CONCEITUAÇÃO DA LOUCURA ATRAVÉS DOS TEMPOS Fonte: pixabay.com A sociedade ocidental contemporânea produz e naturaliza uma visão do sofrimento psíquico como objeto de intervenção da ciência, seja ela médica ou de outras práticas “psi”. Nesse paradigma, o sofrimento psíquico recebe o rótulo de “doença mental”, com quadros nosológicos claramente delimitados. O objetivo final, ou seja, a cura, pode até ser conceituado de maneiras diferentes, mas, raramente, escapa à noção de (re) adaptação a um mundo do qual ele não faz parte ou ao qual se mostra estranho. Sabe-se que essa visão de mundo se arvora em ser “A Verdadeira” e que já foi assimilada a tal ponto que se corre até mesmo o risco do ridículo se tentar apresentar os fatos sob outra ótica. Entretanto, a história mostra que nem sempre foi assim: loucura, alienação, doença mental, transtorno mental, sofrimento psíquico não foram pensados de maneira uniforme nem ao longo da história, nem no mesmo espaço temporal. Vale destacar ainda que a forma como a experiência com a loucura vai sendo conceituada influencia diretamente os espaços e as práticas destinadas a ela. Sendo assim, essa reflexão visa reconstruir a trajetória da percepção da loucura desde a Grécia Antiga até os dias atuais, enfocando, principalmente, os períodos onde ocorreram mudanças significativas na forma de se perceber e atuar perante essa experiência. 8 É delimitado o lugar da loucura na história a partir das considerações acerca da relação entre a lepra e a loucura. A lepra foi representada como um mal contagioso com forte conotação moral -religiosa, que deveria ser segregado da sociedade. Com o tempo, o foco sobre a lepra foi sendo substituído pelas doenças venéreas, as quais passam a ser objeto de interesse das estruturas morais e religiosas da época. Apesar da exclusão social, os doentes acometidos de doenças venéreas vão se infiltrando nos hospitais, demonstrando resistências em sair. Este processo força a construção de casas especiais para esses doentes, não mais para sua exclusão, mas para o seu tratamento. As doenças venéreas tornam-se causa médica, inteiramente do âmbito do médico. Esta perspectiva de tratamento da doença venérea estabelece uma distinção entre a doença só moral, aquela que é associada à noção de pecado e de salvação, como a lepra, e a doença que pertence ao campo médico, aquela que merece tratamento com medicamentos. 5.1 Loucura na Grécia antiga: a desrazão valorizada A desrazão é entendida como tudo aquilo que uma sociedade enxerga como sendo seu outro: a estranheza, a ameaça, a alteridade radical. Essa dimensão pode ser identificada em diversas épocas e, inclusive, pode ser percebida como essencial nas mais variadas formações histórico-sociais. Entretanto, apesar desse lugar de exclusão sempre ter existido, nem sempre coube ao louco a tarefa de representar a desrazão. Inicialmente, por mais que pareça estranho aos olhos de hoje, pode-se afirmar que a experiência com a loucura nem sempre foi considerada algo negativo, muito menos uma doença. Pelo contrário, na Grécia antiga ela já foi considerada até mesmo um privilégio. Filósofos como Sócrates e Platão ressaltaram a existência de uma forma de loucura tida como divina e, inclusive, utilizavam a mesma palavra (manikê) para designar tanto o divinatório como o delirante. Era através do delírio que alguns privilegiados podiam ter acesso a verdades divinas. Isso não quer dizer que essas pessoas fossem consideradas normais ou iguais, mas que eram portadoras de uma desrazão, a qual, apesar de habitar a vizinhança do homem e do seu discurso, precisava ser mantida numa distância, separando o sagrado das experiências terrenas: A loucura não é o Outro do homem 9 (do qual ele possa se assenhorar), mas simplesmente o Outro. Este Outro ocupa o lugar de uma alteridade radical e exterior ao sujeito e alheia a qualquer tentativa de apropriação. Não pode ser considerado como uma outra faceta do mesmo, mas encarna uma diferença impossível de ser apreendida. Essa relação entre experiência mística e consciência crítica vai prevalecer por muito tempo e, somente no período conhecido como Antiguidade Clássica, vai se dissolver. 5.2 Antiguidade clássica: o rompimento entre o místico e o racional Paulatinamente, a loucura vai se afastando do seu papel de portadora da verdade e vai se encaminhando em uma direção completamente oposta. Na fascinante obra intitulada História da Loucura, pode-se perceber como esse corte entre misticismo e razão pode ser percebido em vários âmbitos da experiência humana. Um dos exemplos abordados na obra é a descrição de como se deu esse rompimento no espaço das artes, através da crescente dissociação entre imagem e escrita, observada nesse período. Com o fim do simbolismo gótico, a imagem é liberada da sabedoria e da lição que a ordenavam e começa a gravitar ao redor de sua própria loucura, através de abundância de significações, de multiplicação do sentido por ele mesmo: o sentido não é mais lido numa percepção imediata, a figura deixa de falar por si mesma. Entre o saber que a anima e a forma para qual se transpõe, estabelece-se um vazio. Ele está livre para o onirismo. Na pintura, pode-se destacar obras como a Nau dos Loucos, a Tentação de Lisboa e o Jardim das Delícias, as quais mostram animais, caras grotescas, pássaros de pescoço alongado. Esses elementos fascinam o espectador, encarnando a loucura em forma de tentação, expondo o mundo com tudo que nele existe de impossível, de fantástico, de inumano. As imagens, ainda que carregadas de fantasmas, exercem sobre o homem do século XV mais poderes de atração do que a realidade. Por outro lado, na produção escrita do mesmo período, a loucura atrai, mas não fascina, enquanto Bosh, Brughel e Dürer eram espectadores terrivelmente terrestres, e implicados nessa loucura que viam brotar à sua volta, Erasmo observa-a a uma distância suficiente para estar fora 10 de perigo; observa-a do alto do seu Olimpo, e se canta seus louvores é porque pode rir dela com o riso inextinguível dos deuses. Assim, essa brecha entre experiência mística e consciência crítica foi aberta durante a Renascença e nunca mais deixou de se abrir, acentuando um vazio entre o trágico e o crítico que nunca mais será preenchido. A loucura já não é mais porta-voz da verdade divina e em pouco tempo passará a ocupar o lugar de representante simbólico do mal. A Renascença (século XV ao XVII) evidenciou uma grande contradição. Por um lado, a segregação da loucura, por outro,a sua libertação, por meio da expressão das várias artes. Através dessa expressão, foi possível compreender as múltiplas formas de cuidar da loucura: como dominá-la, como exorcizá-la para que ocorra a remissão dos pecados, como extirpá-la da sociedade, enfim, como tratá-la. Assim, se na Renascença evidenciava-se a representação da loucura, mediante a incerteza entre a razão e a desrazão, na Era Clássica, destacava-se a cisão entre a loucura e a razão. Essa delimitação favorece o início do domínio da loucura pela medicina, originando a fase dos internamentos. O fato mais marcante da Era Clássica foi o internamento do louco. O objetivo do internamento ainda não estava atrelado à ideia de tratamento, mas ao de segregar. Além dos doentes venéreos e loucos, eram internados também devassos, dissipadores, homossexuais, blasfemadores. Assim, a grande internação foi marcada pela mistura indiscriminada, sem que houvesse preocupação em discernir os doentes dos não doentes, os criminosos dos alienados. Nos séculos XVII e XVIII, surgem as internações por tempo determinado em lugares reservados à loucura. Essas experiências marcam, mesmo que de forma rudimentar, a representação da loucura como doença. A Era Clássica também marca o nascimento do asilo implementado por Pinel que ressalta a necessidade de diferenciar os loucos dos criminosos comuns e mendigos. Pinel defende o tratamento do louco e critica as formas usadas naquele momento, a saber: o amontoado de doentes em lugares úmidos, frios e abafados. Propõe a quebra das correntes, a separação dos doentes e a sua colocação em lugares mais apropriados. Ao final do século XVIII, o personagem do médico, que até então ocupava uma posição secundária na vida do internamento, torna-se figura central do asilo. Este fato vai modificar o relacionamento entre a alienação e a medicina e comandará toda a experiência moderna da loucura. É nesse sentido que 11 caminha a psiquiatria no século XIX, convergindo para Freud, que aceitou o par médico-paciente. Isto significa que Freud desmistificou todas as estruturas asilares, transferindo os poderes dos asilos, sobre a existência do louco, para o médico. Pela situação psicanalítica, a alienação tornou-se desalienante, porque o louco passa a ser sujeito do médico. O pensamento moderno sobre a loucura é marcado pela ruptura das velhas formas de pensar, entre a antiguidade clássica e a modernidade. O século XIX é marcado pelo discurso da liberdade do louco. A liberdade proposta por Pinel era ambígua, pois só podia atuar no espaço fechado do internamento. A associação direta da loucura com o crime e o mal se desfaz, mas o louco é inserido nos mecanismos rigorosos do determinismo: “retirando as correntes que impediam o uso de sua livre vontade, mas para despojá-lo dessa mesma vontade, transferida e alienada no querer do médico” (FOUCAULT, 1978, apud VELÔSO, 2016, p. 174). A ideia de internamento é sofisticada, pois a internação visa à reprogramação do louco, mediante o ensino da disciplina e a retificação do pensar e do sentir. Na metade do referido século, procedeu-se a constatação de que os loucos não estavam obtendo a cura. Ao invés dela, muitas outras formas de loucura foram descobertas e registradas. Assim, à estrutura asilar, foi atribuída a fabricação da loucura. Uma nova mudança, então, se opera na ideia asilar: os asilos passam a ser usados como depósitos de loucos incuráveis. O século XX surge trazendo consigo as incertezas do passado quanto à elucidação da loucura. Demonstra que não existem significados científicos hegemônicos e nem representações sociais fixas. Esta instabilidade resulta de múltiplos fatores decorrentes da cultura, das ideologias, das representações sociais. A loucura conserva o seu enigma, que impede a solução do problema da divisão entre teorias psicológicas e somáticas. O conhecimento da doença mental ainda não é o suficiente para deslindá-la. O momento atual mostra que os aparatos discursivos sobre a loucura se configuram como linguagem de poder do médico e do psicólogo sobre o louco. Entretanto, por suas características de ruptura e pulverização dos discursos científicos, pelo despontar das práticas interdisciplinares, pelo questionamento de tudo o que predominou até agora acerca da forma de ver o mundo dos fenômenos humanos e sociais, o desenvolvimento da ciência sinaliza para uma 12 tomada de decisão cada vez mais sensível, exigente e atuante nas causas humanas e sociais. 5.3 Idade média: sai o leproso, entre o louco Até o final da Idade Média, aquele espaço da alteridade radical, referido anteriormente no início do texto, era representada pelo leproso. Encarnando o mal e representando o castigo divino, a lepra se espalha rapidamente causando pavor e sentenciando seus portadores à exclusão. Entretanto, com o fim das Cruzadas e a ruptura com os focos orientais de infecção, a lepra retira-se, deixando aberto um espaço que vai reivindicar um novo representante. [...] serão necessários quase dois séculos para que a loucura suceda a lepra em seus espaços de medos, reação de divisão, de exclusão e de purificação, para incluí-la nas formas de tratamento médico (FOUCAULT, 1978, apud VELÔSO, 2016, p. 172). Alguns séculos depois, essas estruturas de exclusão social passam a ser ocupadas pela figura do louco. Apesar de se perceber que desde a Idade Média já existiam mecanismos de exclusão do louco, ainda não é aí que a loucura vai ser percebida como um fenômeno que requeira um saber específico, pois os primeiros estabelecimentos criados para circunscrever a loucura destinavam-se simplesmente a retirar do convívio social as pessoas que não se adaptavam a ele. Somente no próximo período histórico é que se transformará essa relação. 5.4 Século XVIII: a loucura como objeto do saber médico É o século XVIII que vem, definitivamente, marcar a apreensão do fenômeno da loucura como objeto do saber médico, caracterizando-o como doença mental e, portanto, passível de cura. É o Século das Luzes, onde a razão ocupa um lugar de destaque, pois é através dela que o homem pode conquistar a liberdade e a felicidade. Ocorre valorização do pensamento científico e é em meio a esse contexto que ocorre o surgimento do hospital como espaço terapêutico. Entretanto, deve-se ter cuidado ao imprimir a esse acontecimento uma ótica humanitária e altruísta, pois essa medicalização do hospital não se deu visando uma ação positiva sobre o doente ou a doença, mas simplesmente uma anulação dos efeitos negativos do hospital. 13 Para garantir seu funcionamento, o modelo hospitalar necessitava da instauração de medidas disciplinares que viessem garantir a nova ordem. Assim, surge uma arte de delimitação desse espaço físico, onde são fundamentais os princípios de vigilância constante e registro contínuo, de forma a garantir que nenhum detalhe escape a esse sabe. Dentro desse espaço esquadrinhado, percebe-se uma institucionalização das relações lá exercidas, tornando-se um mundo à parte, afastando cada vez mais o indivíduo de suas relações exteriores. O discurso que alimenta esse sistema percebe os loucos como seres perigosos e inconvenientes que, em função de sua doença, não conseguem conviver de acordo com as normas sociais. Retira-se, então, desse sujeito todo o saber acerca de si próprio e daquilo que seria sua doença, ao mesmo tempo em que se delega esse saber ao especialista. 5.5 Pós-guerra: momento propício para reformas Somente no período pós-guerra desponta um cenário propício para o surgimento dos movimentos reformistas da psiquiatria na contemporaneidade. Começam a surgir, em vários países, questionamentos quanto ao modelo hospitalocêntrico, apontando para a necessidade de reformulação. Alguns desses movimentos colocavam em questão o próprio dispositivo médico psiquiátrico e as instituições aele relacionadas, como exemplo, a experiência de Franco Basaglia nas cidades italianas de Gorizia e Trieste, as quais tinham como principal referência a defesa da desinstitucionalização. Uma importante questão nessa concepção de reforma diz respeito ao conceito de doença mental, o qual passa a ser desconstruído para dar lugar a nova forma de perceber a loucura enquanto existência-sofrimento do sujeito em relação com o corpo social. A reforma psiquiátrica brasileira encontra seus principais fundamentos teóricos nessa concepção, propondo-se a seguir a visão teórica adotada na reforma italiana. Entretanto, vale ressaltar que o processo histórico do lidar com a loucura no Brasil teve peculiaridades que o distinguem bastante daquele observado na Europa. A atenção específica ao doente mental no Brasil teve início com a chegada da Família Real. Em virtude das várias mudanças sociais e econômicas ocorridas e para que se pudesse ordenar o crescimento das cidades e das populações, fez-se necessário o 14 uso de medidas de controle, entre essas, a criação de um espaço que recolhesse das ruas aqueles que ameaçavam a paz e a ordem sociais. Posteriormente, em 1852, é criado o primeiro hospício brasileiro. Tendo o hospital psiquiátrico como cenário e o isolamento como principal técnica, o psiquiatra passou a necessitar de um profissional que servisse de vigilante e, ao mesmo tempo, seguisse suas instruções quanto ao tratamento: o enfermeiro é um agente situado entre o guarda e o médico do hospício, devendo estabelecer entre aquele e o doente a corrente do olhar vigilante. Assim, no ano de 1890, foi criada a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras visando sistematizar a formação de enfermeiros para atuarem no espaço asilar. Num país subdesenvolvido, com um modelo de assistência à saúde centrado na prática curativa e assistencialista, foi fácil transformar a doença mental em mercadoria rentável. Ao se associar a lógica do capital (lucro) à lógica do modelo manicomial (poder disciplinar), não fica difícil perceber que a assistência se limitava ao mínimo que fosse preciso para manter os loucos sob dominação, sem precisar gastar muito. Na década de 70, não suportando a busca desenfreada pelo lucro dos empresários da saúde, a previdência social entra em crise, mostrando a ineficiência desse modelo e apontando para a necessidade de reformulação. Vale ressaltar que esses questionamentos vieram à tona em meio a um quadro político e econômico específico, caracterizado pelo fim do milagre econômico. Ocorre abertura gradual após anos de ditadura, permitindo a entrada em cena de novos atores, dando vez à manifestação das críticas e denúncias dos trabalhadores de saúde mental e outros setores da sociedade civil contra a precária assistência prestada aos doentes mentais. Em continuidade a esse processo, foram realizadas em 1987, 1992 e 2001, as Conferências Nacionais de Saúde Mental, que possibilitaram a delimitação dos objetivos da reforma psiquiátrica brasileira atual e a proposição de serviços substitutivos ao modelo hospitalar. Dentre os marcos conceituais desse processo destacam-se o respeito à cidadania e a ênfase na atenção integral, onde o processo saúde/ doença mental é entendido dentro de uma relação com a qualidade de vida. Atualmente, observa-se significativo avanço na implantação das propostas da reforma psiquiátrica brasileira. Entretanto, essas conquistas não têm se dado de forma homogênea por todo país. Em vários espaços ainda se enfrentam fortes obstáculos como, por exemplo, a 15 falta de decisão política de alguns gestores públicos e as resistências por parte dos donos de hospitais que não querem perder um negócio lucrativo. 6 A REFORMA PSIQUIÁTRICA BRASILEIRA E A POLÍTICA DE SAÚDE MENTAL Fonte: e-sanar.com.br A humanidade convive com a loucura há séculos e, antes de se tornar um tema essencialmente médico, o louco habitou o imaginário popular de diversas formas. De motivo de chacota e escárnio a possuído pelo demônio, até marginalizado por não se enquadrar nos preceitos morais vigentes, o louco é um enigma que ameaça os saberes constituídos sobre o homem. Na Renascença, a segregação dos loucos se dava pelo seu banimento dos muros das cidades europeias e o seu confinamento era um confinamento errante: eram condenados a andar de cidade em cidade ou colocados em navios que, na inquietude do mar, vagavam sem destino, chegando, ocasionalmente, a algum porto. No entanto, desde a Idade Média, os loucos são confinados em grandes asilos e hospitais destinados a toda sorte de indesejáveis – inválidos, portadores de doenças venéreas, mendigos e libertinos. Nessas instituições, os mais violentos eram acorrentados; a alguns era permitido sair para mendigar. No século XVIII, Phillippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria, propõe uma nova forma de tratamento aos loucos, libertando-os das correntes e transferindo-os http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/Mostra/pinel.html 16 aos manicômios, destinados somente aos doentes mentais. Várias experiências e tratamentos são desenvolvidos e difundidos pela Europa. O tratamento nos manicômios, defendido por Pinel, baseia-se principalmente na reeducação dos alienados, no respeito às normas e no desencorajamento das condutas inconvenientes. Para Pinel, a função disciplinadora do médico e do manicômio deve ser exercida com firmeza, porém com gentileza. Isso denota o caráter essencialmente moral com o qual a loucura passa a ser revestida. No entanto, com o passar do tempo, o tratamento moral de Pinel vai se modificando e esvazia-se das ideias originais do método. Permanecem as ideias corretivas do comportamento e dos hábitos dos doentes, porém como recursos de imposição da ordem e da disciplina institucional. No século XIX, o tratamento ao doente mental incluía medidas físicas como duchas, banhos frios, chicotadas, máquinas giratórias e sangrias. Aos poucos, com o avanço das teorias organicistas, o que era considerado como doença moral passa a ser compreendido também como uma doença orgânica. No entanto, as técnicas de tratamento empregadas pelos organicistas eram as mesmas empregadas pelos adeptos do tratamento moral, o que significa que, mesmo com uma outra compreensão sobre a loucura, decorrente de descobertas experimentais da neurofisiologia e da neuroanatomia, a submissão do louco permanece e adentra o século XX. A partir da segunda metade do século XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia, psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crítica e transformação do saber, do tratamento e das instituições psiquiátricas. Esse movimento inicia-se na Itália, mas tem repercussões em todo o mundo e muito particularmente no Brasil. Nesse sentido é que se inicia o movimento da Luta Antimanicomial que nasce profundamente marcado pela ideia de defesa dos direitos humanos e de resgate da cidadania dos que carregam transtornos mentais. Aliado a essa luta, nasce o movimento da Reforma Psiquiátrica que, mais do que denunciar os manicômios como instituições de violências, propõe a construção de uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias, profundamente solidárias, inclusivas e libertárias. No Brasil, tal movimento inicia-se no final da década de 70 com a mobilização dos profissionais da saúde mental e dos familiares de pacientes com transtornos http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/Mostra/basaglia.html http://www.ccs.saude.gov.br/memoria%20da%20loucura/Mostra/reforma.html 17 mentais. Esse movimento se inscreve no contexto de redemocratização do país e na mobilização político-social que ocorre na época. A reforma psiquiátrica no Brasil é um movimento histórico de caráter político, social e econômico influenciado pela ideologia de grupos dominantes. A influência da psiquiatria italiana, a partir demeados dos anos 80, ganhou força no país. Este movimento propunha o questionamento da suposta universalidade do racionalismo científico das psiquiatrias, desvelando sua pretensa neutralidade e a abertura de outras possibilidades de atenção, espaços e avanços técnicos. (DELGADO 1992, apud RIBEIRO 2009, p.21). Importantes acontecimentos como a intervenção e o fechamento da Clínica Anchieta, em Santos/SP, e a revisão legislativa proposta pelo então Deputado Paulo Delgado por meio do projeto de lei nº 3.657, ambos ocorridos em 1989, impulsionam a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Em 1990, o Brasil torna-se signatário da Declaração de Caracas a qual propõe a reestruturação da assistência psiquiátrica, e, em 2001, é aprovada a Lei Federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Dessa lei origina-se a Política de Saúde Mental a qual, basicamente, visa garantir o cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos, superando assim a lógica das internações de longa permanência que tratam o paciente isolando-o do convívio com a família e com a sociedade como um todo. A Política de Saúde Mental no Brasil promove a redução programada de leitos psiquiátricos de longa permanência, incentivando que as internações psiquiátricas, quando necessárias, se deem no âmbito dos hospitais gerais e que sejam de curta duração. Além disso, essa política visa à constituição de uma rede de dispositivos diferenciados que permitam a atenção ao portador de sofrimento mental no seu território, a desinstitucionalização de pacientes de longa permanência em hospitais psiquiátricos e, ainda, ações que permitam a reabilitação psicossocial por meio da inserção pelo trabalho, da cultura e do lazer. O conceito de loucura é uma construção histórica, antes do século XIX não havia o conceito de doença mental nem uma divisão entre razão e loucura. O trajeto histórico do Renascimento até a atualidade tem o sentido da progressiva separação e exclusão da loucura do seio das experiências sociais (FERNANDES e MOURA, 2009, apud SOUZA, 2019. p. 13). http://www.paulodelgado.com.br/ http://www.paulodelgado.com.br/ http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24138&janela=1 http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24138&janela=1 http://www6.senado.gov.br/legislacao/DetalhaDocumento.action?id=232459&titulo=LEI%2010216%20de%2006/04/2001%20%20-%20LEI%20ORDIN%C3%81RIA http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/visualizar_texto.cfm?idtxt=24134&janela=1 18 A população que sofre de algum transtorno mental é reconhecida como uma das mais excluídas socialmente. Essas pessoas apresentam redes sociais menores do que a média das outras pessoas. A segregação não é apenas fisicamente, permeia o corpo social numa espécie de barreira invisível que impede a quebra de velhos paradigmas. Vários estudos demonstram que a pessoa que sofre de transtorno mental severo e persistente, quando inserido em redes fortes de troca e suporte apresentam maior probabilidade de êxitos positivos no tratamento. A rede de atenção à saúde mental brasileira é parte integrante do Sistema Único de Saúde (SUS), rede organizada de ações e serviços públicos de saúde, instituído no Brasil pelas Leis Federais 8080/1990 e 8142/90. Leis, Portarias e Resoluções do Ministério da Saúde priorizam o atendimento ao portador de transtorno mental em sistema comunitário. Nos anos 70 dá-se início do processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil, um processo contemporâneo ao movimento sanitário, em favor da mudança dos modelos de atenção e gestão nas práticas de saúde, defesa da saúde coletiva, equidade na oferta dos serviços, e protagonismo dos trabalhadores e usuários dos serviços de saúde nos processos de gestão e produção de tecnologias de. O ano de 1978 marca o início efetivo do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos no Brasil. O Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), formado por trabalhadores integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas, surge neste ano. É sobretudo este Movimento que passa a protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais (BRASIL, 2005, apud OLIVEIRA, 2011, p.11). Em março de 1986 foi inaugurado o primeiro CAPS do Brasil, na cidade de São Paulo: Centro de Atenção Psicossocial Professor Luiz da Rocha Cergueira, conhecido como CAPS da Rua Itapeva. Em 1987 aconteceu em Bauru, SP o II Congresso Nacional do MTSM que adotou o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Neste mesmo ano, é realizada a I Conferência Nacional de Saúde Mental no Rio de Janeiro. 19 Em 1989 a Secretaria Municipal de Saúde de Santos (SP) deu início há um processo de intervenção em um hospital psiquiátrico, a Casa de Saúde Anchieta, local de maus-tratos e mortes de pacientes. É esta intervenção, com repercussão nacional, que demonstrou a possibilidade de construção de uma rede de cuidados efetivamente substitutiva ao hospital psiquiátrico. 6.1 A regulamentação da atenção psicossocial em saúde mental no Brasil No ano de 1989, dá entrada no Congresso Nacional o Projeto de Lei do deputado Paulo Delgado (PT/MG), que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país. A partir do ano de 1992, os movimentos sociais, inspirados pelo Projeto de Lei Paulo Delgado, conseguem aprovar em vários estados brasileiros as primeiras leis que determinam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental. A partir deste período a política do Ministério da Saúde para a saúde mental começa a ganhar contornos mais definidos. Na década de 90 é realizada a II Conferência Nacional de Saúde Mental e passam a entrar em vigor no país as primeiras normas federais regulamentando a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, e as primeiras normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos. Os NAPS/CAPS foram criados oficialmente a partir da Portaria GM 224/92 que regulamentou o funcionamento de todos os serviços de saúde mental em acordo com as diretrizes de descentralização e hierarquização das Leis Orgânicas do Sistema Único de Saúde. Essa Portaria define os NAPS/CAPS como unidades de saúde locais/regionalizadas que contam com uma população adscrita definida pelo nível local e que oferecem atendimento de cuidados intermediários entre o regime ambulatorial e a internação hospitalar; podem constituir-se também em porta de entrada da rede de serviços para as ações relativas à saúde mental e atendem também a pacientes referenciados de outros serviços de saúde, dos serviços de urgência psiquiátrica ou egressos de internação hospitalar. A Portaria GM 224/92 proíbe a existência de espaços restritivos e exige que seja resguardada a inviolabilidade da correspondência dos pacientes internados e feito o 20 registro adequado dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos efetuados nos pacientes. As novas normatizações do Ministério da Saúde de 1992, embora regulamentassem os novos serviços de atenção diária, não instituíam uma linha específica de financiamento para os CAPS e NAPS; e as normas para fiscalização e classificação dos hospitais psiquiátricos não previam mecanismos sistemáticos para a redução de leitos.O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação ganha impulso em 2002 com uma série de normatizações do Ministério da Saúde, que instituem mecanismos para a redução de leitos psiquiátricos a partir dos macros hospitais. A Portaria/GM nº 106 de 11 de fevereiro de 2000 institui os Serviços Residenciais Terapêuticos definidos como moradias ou casas inseridas, preferencialmente, na comunidade, destinadas a cuidar dos portadores de transtornos mentais, egressos de internações psiquiátricas de longa permanência, que não possuam suporte social e laços familiares e, que viabilizem sua inserção social. A Portaria 106 propõe as Residências Terapêuticas como uma modalidade assistencial substitutiva da internação psiquiátrica prolongada, sendo que a cada transferência de paciente do Hospital Especializado para o Serviço de Residência Terapêutica será reduzido ou descredenciado do SUS, igual n.º de leitos naquele hospital. É somente no ano de 2001 que a Lei Paulo Delgado (Lei 10.216) é sancionada no país. A aprovação, no entanto, é de um substitutivo do Projeto de Lei original, que traz modificações importantes no texto normativo. A Lei Federal 10.216 dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, mas não institui mecanismos claros para a progressiva extinção dos manicômios. Ao final do ano de 2001, em Brasília, é convocada logo após a promulgação da lei 10.216 a III Conferência Nacional de Saúde Mental, dispositivo fundamental de participação e de controle social. A promulgação da lei 10.216 impõe novo impulso e novo ritmo para o processo de Reforma Psiquiátrica no Brasil. É no contexto da promulgação da lei 10.216 e da realização da III Conferência Nacional de Saúde Mental, que a política de saúde 21 mental do governo federal, alinhada com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, passa a consolidar-se, ganhando maior sustentação e visibilidade. Linhas específicas de financiamento são criadas pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico e novos mecanismos são criados para a fiscalização, gestão e redução programada de leitos psiquiátricos no país (BRASIL, 2005, apud KOYAMA, 2009, p. 5). No Relatório Final da III Conferência é inequívoco o consenso em torno das propostas da Reforma Psiquiátrica, e são pactuados os princípios, diretrizes e estratégias para a mudança da atenção em saúde mental no Brasil. Desta forma, esse evento consolida a Reforma Psiquiátrica como política de governo, confere aos CAPS o valor estratégico para a mudança do modelo de assistência, defende a construção de uma política de saúde mental para os usuários de álcool e outras drogas, e estabelece o controle social como a garantia do avanço da Reforma Psiquiátrica no país. A Portaria/GM 336 de 19 de fevereiro de 2002 estabeleceu as modalidades dos Centros de Atenção Psicossocial como CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPS AD E CAPSi, definindo-os por ordem crescente de porte/complexidade e abrangência populacional. A Portaria/GM nº 251 de 31 de janeiro de 2002 estabelece diretrizes e normas para a assistência hospitalar em psiquiatria, reclassifica os hospitais psiquiátricos, define e estrutura a porta de entrada para as internações psiquiátricas na rede do SUS. Estabelece ainda que os hospitais psiquiátricos integrantes do SUS deverão ser avaliados por meio do PNASH – Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria. A Lei Nº 10.708 de 31 de julho de 2003 institui o auxílio-reabilitação psicossocial para assistência, acompanhamento e integração social, fora de unidade hospitalar, de pacientes acometidos de transtornos mentais, internados em hospitais ou unidades psiquiátricas. O auxílio é parte integrante de um programa de ressocialização de pacientes internados em hospitais ou unidades psiquiátricas, denominado "De Volta Para Casa", sob coordenação do Ministério da Saúde. A Portaria nº 52, de 20 de janeiro de 2004 institui o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar no SUS – 2004. Propõe que o processo de mudança do modelo assistencial deve ser conduzido de modo a garantir 22 uma transição segura, onde a redução dos leitos hospitalares possa ser planificada e acompanhada da construção concomitante de alternativas de atenção no modelo comunitário. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria); o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH); a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial e as Residências Terapêuticas, permitiram a redução de leitos psiquiátricos no país e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos. Em 2004 foi realizado em São Paulo o primeiro Congresso Brasileiro de Centros de Atenção Psicossocial, reunindo dois mil trabalhadores e usuários de CAPS. Em fevereiro de 2005 a Portaria nº 245 destina incentivo financeiro para implantação de Centros de Atenção Psicossocial e a Portaria nº 246 destina incentivo financeiro para implantação de Serviços Residenciais Terapêuticos. A Portaria nº 1.876 de 14 de agosto de 2006 instituiu Diretrizes Nacionais para Prevenção do Suicídio, a serem implantadas em todas as unidades federadas, respeitadas as competências das três esferas de gestão. E a Lei 11343 de 23 de agosto de 2006 institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas - Sisnad; prescreve medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes de drogas; estabelece normas para repressão à produção não autorizada e ao tráfico ilícito de drogas; define crimes e dá outras providências. 6.2 O papel estratégico dos CAPS na atenção à saúde mental no Brasil Os Centros de Atenção Psicossocial dentro da atual política de saúde mental do Ministério da Saúde são considerados dispositivos estratégicos para a organização da rede de atenção em saúde mental. Com a criação desses centros, possibilita-se a organização de uma rede substitutiva ao Hospital Psiquiátrico no país. Esses dispositivos foram criados para organizar a rede municipal de atenção a pessoas com transtornos mentais severos e persistentes. Os CAPS são serviços de saúde municipais, abertos, comunitários que oferecem atendimento diário. Eles devem ser territorializados, devem estar circunscritos no espaço de convívio social (família, escola, trabalho, igreja, etc.) daqueles usuários que os frequentam. Deve ser 23 um serviço que resgate as potencialidades dos recursos comunitários à sua volta, pois todos estes recursos devem ser incluídos nos cuidados em saúde mental. A reinserção social pode se estruturar a partir do CAPS, mas sempre em direção à comunidade. Seu objetivo é oferecer atendimento à população, realizar o acompanhamento clínico e a reinserção social dos usuários pelo acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. O CAPS, assumindo um papel estratégico na organização da rede comunitária de cuidados, farão o direcionamento local das políticas e programas de Saúde Mental desenvolvendo projetos terapêuticos e comunitários, dispensando medicamentos e acompanhando usuários que moram em residências terapêuticas, assessorando e sendo retaguarda para os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) e para a Estratégia Saúde da Família (ESF) no cuidado familiar (BRASIL, 2004, apud KOYAMA, 2009, p.5). As práticas realizadas nos CAPS se caracterizam por ocorrerem em ambiente aberto, acolhedor e inserido na cidade, no bairro. Os projetos desses serviços, muitas vezes, ultrapassama própria estrutura física, em busca da rede de suporte social, potencializadora de suas ações, preocupando-se com o sujeito e sua singularidade, sua história, sua cultura e sua vida quotidiana. Todo o trabalho desenvolvido no CAPS deverá ser realizado em um “meio terapêutico”, isto é, tanto as sessões individuais ou grupais como a convivência no serviço têm finalidade terapêutica. Isso é obtido através da construção permanente de um ambiente facilitador, estruturado e acolhedor, abrangendo várias modalidades de tratamento. Ao iniciar o acompanhamento no CAPS se traça um projeto terapêutico com o usuário e, em geral, o profissional que o acolheu no serviço passará a ser uma referência para ele. Cada usuário de CAPS deve ter um projeto terapêutico individual. Caracterizado como um conjunto de atendimentos que respeite a sua particularidade, que personalize o atendimento de cada pessoa na unidade e fora dela e proponha atividades durante a permanência diária no serviço, segundo suas necessidades, potencialidades e limitações. A depender do projeto terapêutico do usuário do serviço, o CAPS poderá oferecer, conforme as determinações da Portaria GM 336/02: atendimento Intensivo; atendimento Semi-Intensivo e atendimento Não-Intensivo. 24 O processo de construção dos serviços de atenção psicossocial tem revelado outras realidades: as teorias e os modelos prontos de atendimento vão se tornando insuficientes frente às demandas das relações diárias com o sofrimento e a singularidade desse tipo de atenção. É preciso criar, observar, escutar, estar atento à complexidade da vida das pessoas, que é maior que a doença ou o transtorno. Para tanto, é necessário que, ao definir atividades, como estratégias terapêuticas nos CAPS, se repensem os conceitos, as práticas e as relações que podem promover saúde entre as pessoas: técnicos, usuários, familiares e comunidade. Todos precisam estar envolvidos nessa estratégia, questionando e avaliando permanentemente os rumos da clínica e do serviço (BRASIL, 2004, apud GUSSI, 2017, p.1). Quando uma pessoa é atendida em um CAPS, ela tem acesso a vários recursos terapêuticos: atendimento individual; atendimento em grupo; atendimento para a família; atividades comunitárias; Assembleias ou Reuniões de Organização do Serviço. Dessa forma, o CAPS pode articular cuidado clínico e programas de reabilitação psicossocial. Os projetos terapêuticos devem incluir a construção de trabalhos de inserção social, respeitando as possibilidades individuais e os princípios de cidadania que minimizem o estigma e promovam o protagonismo de cada usuário frente à sua vida. Todas as ações e atividades realizadas no CAPS devem se estruturar de forma a promover as melhores oportunidades de trocas afetivas, simbólicas, materiais, capazes de favorecer vínculos e interação humana. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) por meio do Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP) em relatório sobre a atuação dos psicólogos nos Centros de Atenção Psicossocial fala sobre as principais dificuldades enfrentadas no trabalho nos CAPS. Dentre os principais problemas apontados pela pesquisa estão: a ausência de políticas locais (estaduais e municipais) e de investimentos nos CAPS e nos equipamentos de saúde mental; dificuldades na articulação com o Ministério da Saúde; em algumas regiões os municípios ainda estão com muitas dificuldades em implantar e administrar os Centros; a falta de recursos; a permanência de um modelo de atenção centrado na figura do médico; resistência por parte de alguns psiquiatras, que se posicionam como contrários ao movimento da Reforma Psiquiátrica por medo de perder espaço; a dificuldade de realizar atividades extramuros. 25 Em todos os relatos da pesquisa a questão da desarticulação ou mesmo inexistência de uma rede ampliada de atenção aos usuários dos CAPS foi apontada como uma das grandes dificuldades do trabalho neste contexto. Enfrenta-se a falta de integração entre os serviços existentes; dificuldades na atribuição das competências e atribuições de cada unidade de saúde; ausência de uma rede articulada (uma estratégia utilizada para o encaminhamento é o uso das relações entre os profissionais das diferentes instituições). Os relatos indicam que o CAPS é referência para outros serviços, porém há muita dificuldade de que estes serviços funcionem como referência para os CAPS. A ausência de uma rede de serviços de atenção à saúde mental da criança foi apontada como uma das dificuldades do trabalho em CAPS infantil. Problemas também foram relatadas especificamente no atendimento a usuários de álcool e drogas, como por exemplo a falta de uma rede de suporte para internação dos casos que necessitam de internação para desintoxicação em hospital geral. Em alguns CAPS falta estrutura física adequada, recursos materiais, recursos humanos. A falta de acessibilidade nos locais onde estão alguns CAPS, dificulta a locomoção de pessoas portadoras de algum tipo de necessidade especial. Além disso, há locais que não são adequados para garantir a qualidade dos atendimentos. A não adesão ao tratamento e às atividades oferecidas pelo serviço aparece como um desafio que necessita ser superado. Existem ainda as dificuldades relativas aos familiares e à sociedade. É preciso orientar constantemente as famílias para que essas possam auxiliar na continuidade do tratamento. Há ainda a questão do estigma associado aos transtornos mentais e aos preconceitos que circulam na sociedade relacionados aos portadores de problemas de saúde. A cultura “hospitalocêntrica” também é muito forte e se torna um desafio para os profissionais que atuam em CAPS. Segundo Prazeres e Miranda (2005) (apud Moura e Fernandes) os profissionais da saúde presentes nos serviços substitutivos ainda carregariam consigo os mesmos paradigmas das instituições psiquiátricas. Esse fato, segundo os autores, se expressaria em parte através das dificuldades apresentadas em referenciar os usuários para o serviço substitutivo demonstrando a possibilidade de um desejo de permanência por parte do hospital psiquiátrico na posição de poder historicamente construída. (PRAZERES, 2005, apud Moura, 2009, p.5). Os principais obstáculos verificados nessa passagem incluem dificuldades para superação do paternalismo, o recuperado tem dificuldades para encontrar emprego e 26 geralmente há a volta para a mesma dinâmica familiar e social que o levou ao manicômio. As novas políticas em saúde mental devem objetivar bem mais que o fechamento dos manicômios. Devem buscar visualizar e romper com as barreiras impostas pela própria sociedade. O doente mental, entretanto, enquanto inserido socialmente perderia suas características incompreensíveis à maioria da população na proporção em que sua própria enfermidade fosse parte de um contexto onde seriam respeitadas sua existência e suas razões. É preciso pensar na reforma psiquiátrica como um movimento social mais amplo, processo de desinstitucionalização do social onde é preciso produzir um olhar que abandona o modo de ver próprio da razão, abrir uma via de acesso à escuta qualificada da desrazão. A reforma deve buscar, antes de tudo, uma emancipação pessoal, social e cultural, que permita o não enclausuramentos de tantas formas de existência banidas do convívio social e que permita um olhar mais complexo que o generalizante olhar do igualitarismo de forma a buscar o convívio livre e tolerante com a diferença. Os primeiros passos para uma real reforma psiquiátrica implicam um imprescindível abandono do lugar de especialista ocupado por vários dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso requer atenção especial para as pequenas amarras responsáveis pela reprodução de valores, preconceitos, atrelados às ideias de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação.(ALVERGA, 2006, apud Moura, 2009, p.7). O portador de transtorno mental apresenta formas anticonvencionais de fazer- estar no mundo, sendo parte de uma minoria. A declaração universal dos direitos humanos prevê a ampla e irrestrita aplicação de seus princípios, entretanto, existe ainda a necessidade da implantação de leis que assegurem direitos universais aos ditos loucos. Requer-se antes de tudo um abandono do lugar de especialista ocupado por vários dos atores sociais envolvidos com a reforma. Este percurso exige atenção especial para as pequenas amarras responsáveis pela reprodução de valores, preconceitos, atrelados às ideias de controle, fixidez, identidade, normatização, subjugação. E a real mudança de postura se faz necessária para evitar a simples transposição de atitudes profissionais ligadas ao modelo hospitalar para o modelo de atenção primária. 27 É preciso entender o processo histórico que invalidou a loucura como manifestação subjetiva humana. Deve-se caminhar no sentido de compreender a mesma como uma forma de subjetividade válida, onde o maior desafio da reforma é sua despatologização. O processo de mudança de papéis se dá de forma lenta e gradual, mas os movimentos para tantos já foram iniciados. A formação dos profissionais inseridos no campo da saúde mental deve ter como objetivo a transformação das práticas profissionais na perspectiva da desinstitucionalização. Os princípios do SUS e da reforma psiquiátrica foram construídos para superar um modelo desumano baseado em medidas excludentes, hospitalocêntricas. Isso implica na necessidade de um processo de formação profissional mais contextualizado, com ênfase em medidas de promoção, prevenção e reabilitação, levando em conta as dimensões sociais, econômicas e culturais da população. Construir novas formas de atenção de lidar com a loucura e o sofrimento psíquico implica em romper com o modelo biomédico – influenciado pela abordagem biológica, individualista e a-histórica - e assumir o modelo psicossocial, que impele a uma abordagem mais complexa, incorporando a influência dos aspectos macrossociais ao fenômeno loucura e isso implica, obrigatoriamente, um repensar os processos de formação dos diferentes atores envolvidos nesse processo. As transformações propostas pelo complexo campo da Reforma Psiquiátrica brasileira apresentam grandes desafios, especialmente aos profissionais de saúde que cotidianamente têm a tarefa de expandir e consolidar essa mudança. Apesar dos avanços, na prática, os profissionais, nem sempre conseguem deixar de ter como foco principal o controle dos sintomas, dos corpos e das vontades de pessoas diagnosticadas como portadoras de transtornos mentais e a mudança de tal postura passa pela universidade, grande responsável pela formação profissional e que também precisa rever seu papel. 28 7 A NOVA CLASSIFICAÇÃO AMERICANA PARA OS TRANSTORNOS MENTAIS – O DSM-5 Fonte: dynamicinstitute.com Na contemporaneidade há um número exorbitante de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais em todas as partes do mundo. A história contada para a sociedade é a de que a psiquiatria havia progredido no tratamento dos transtornos mentais, os pesquisadores estariam descobrindo as causas biológicas destes transtornos e a indústria farmacêutica havia desenvolvido medicamentos eficazes para o tratamento. (WHITAKER, 2011, apud MARTINHAGO, 2019, p. 74). Porém, ao fazer uma análise da incidência de transtornos mentais dos últimos 50 anos, Whitaker (2011) constatou que há uma verdadeira epidemia de transtornos mentais. Esta epidemia instiga pesquisadores de diversas áreas do conhecimento a investigarem como chegamos a tal fenômeno no século XXI. Assim, buscamos delinear a trajetória histórica das classificações em psiquiatria, do século XIX até a atualidade. Desde a metade do século XIX, inicia-se uma nova forma de compreender e lidar com as doenças mentais. Os delírios, alucinações, atos violentos deixam de ser o foco da atenção e busca-se elaborar classificações de comportamentos e condutas que ocorrem na vida cotidiana dos sujeitos. Deste modo, vários comportamentos passam a ser considerados como desviantes e objeto de estudo e práticas médicas (CAPONI, 2012). No período que corresponde a segunda metade do século XIX e início do século XX, surgem as estratégias de intervenção e de gestão 29 das populações relacionadas à teoria da degeneração de Morel, cuja proposta é criar uma classificação das doenças mentais. A ideia era “substituir uma classificação sintomática por uma classificação etiológica das doenças mentais, pois somente com a determinação das causas poderiam ser elaborados um sistema classificatório de patologias e uma terapêutica adequada” (CAPONI, 2012, apud MARTINHAGO, 2019, p. 75). Emil Kraepelin, no fim do século XIX e início do século XX, foi considerado o grande sistematizador da psicopatologia descritiva, quem consolidou a propensão nosológica. No período de 30 anos, houve oito edições do seu Manual de psiquiatria, sendo que todas apresentaram alterações nosológicas. Na perspectiva de Kraepelin, tratava-se de distinguir os diversos modos de sofrimento mental com base na clínica, que assim teriam o mesmo estatuto das doenças físicas que a medicina tratava. O intuito de Kraepelin foi criar classificações de patologias psiquiátricas de modo que servissem como referência para a formação dos profissionais. As novas edições do Manual apresentavam ajustes, novos grupos de patologias, diagnósticos mais precisos, fundamentados nas descobertas científicas no campo da neurologia, das doenças cerebrais, da estatística médica, bem como estudos sobre herança. Nos Estados Unidos, o principal objetivo para desenvolver uma classificação de transtornos mentais era obter informações estatísticas. A primeira tentativa foi em 1840 a partir da medição da frequência de duas categorias - idiotice e insanidade – com a finalidade de constituir o Censo. Para o Censo do ano de 1880, haviam estabelecido sete categorias – mania, melancolia, monomania, paresia, demência, alcoolismo e epilepsia -, com o propósito de organizar o sistema asilar (APA, 2016, apud MARTINHAGO, 2019, p. 76). A última classificação que antecede o primeiro Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (conhecido como DSM, devido ao título original em inglês Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) surge em 1918, no Manual Estatístico para o Uso de Instituições de Insanos, com 22 categorias, entre elas, destacam-se a Psicose, Melancolia, Demência Precoce, Paranoia, Psiconeuroses e Neuroses. Até a Segunda Guerra Mundial, a psicanálise e a psiquiatria perpetuaram um sistema de trocas, o qual promoveu o progresso da psicopatologia, abarcou importações conceituais, criou campos de confluência metodológica, mutualismos 30 diagnósticos, derivações semiológicas e hipóteses etiológicas. No período entre os anos de 1900-1950, a psicanálise fundamentou a classificação norte-americana das doenças mentais, principalmente, com base nos conceitos de personalidade, estrutura e psicodinâmica. 7.1 A história dos sistemas de classificação A busca pelo conhecimento é uma característica fundamentalmente humana. Desde os tempos pré-históricos o homem tenta compreender, prever e controlar a natureza que o cerca. Hipócrates, quatro séculos antes de Cristo, é reconhecido no mundo ocidental como quem primeiro buscou descrever e categorizar quadros clínicos diagnosticáveis através da observação, prática que ficou conhecida como “método hipocrático”. Toda a história da Medicina é marcada por esse raciocínio clínico em que identificar e agrupar enfermidades que compartilham dos mesmos sinais e sintomas é a base para se buscar a origem desses males, prever sua evolução e buscar meios de tratamento. No campo da saúde mental, podemosatribuir ao psiquiatra alemão Emil Kraepelin (1856-1926) o desenvolvimento do primeiro sistema de classificação que, norteado por uma visão fenomenológica, considerava a origem orgânica das doenças psiquiátricas. Através de sua observação clínica, Kraepelin buscou identificar padrões de sintomas que permitissem a construção de diagnósticos sindrômicos. Em seu tratado, refutou a ideia de uma psicose única e apresentou o quadro de “Demência precoce”, distinguindo-o da “Psicose maníaco-depressiva”. No campo da saúde mental, podemos atribuir ao psiquiatra alemão Emil Kraepelin o desenvolvimento do primeiro sistema de classificação que, norteado por uma visão fenomenológica, considerava a origem orgânica das doenças psiquiátricas. Através de sua observação clínica, Kraepelin buscou identificar padrões de sintomas que permitissem a construção de diagnósticos sindrômicos. Em seu tratado, refutou a ideia de uma psicose única e apresentou o quadro de “Demência precoce”, distinguindo-o da “Psicose maníaco-depressiva”. A aplicação de métodos de classificação tem utilidades distintas, de acordo com o foco que se dá ao objeto estudado. Na Medicina, as ferramentas de classificação podem ser empregadas com objetivo clínico, científico e estatístico. É fundamental 31 que se tenha clareza sobre o tipo de informação que se pode obter com cada método, evitando assim a formulação de juízos distorcidos. 7.2 A história do DSM Em 1840, os EUA empreenderam um censo que contava com a categoria “idiotia/loucura”, procurando registrar a frequência de doenças mentais. Já no censo de 1880, as doenças mentais eram divididas em sete categorias distintas (mania, melancolia, monomania, paresia, demência, dipsomania e epilepsia). Observa-se assim que as primeiras classificações norte-americanas de transtornos mentais aplicadas em larga escala tinham objetivo primordialmente estatístico. No início do século XX o Exército norte-americano, juntamente com a Associação de Veteranos, desenvolveu uma das mais completas categorizações para aplicação nos ambulatórios que prestavam atendimento a ex-combatentes. Em 1948, sob forte influência desse instrumento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) incluiu pela primeira vez uma seção destinada aos Transtornos Mentais na sexta edição de seu sistema de Classificação Internacional de Doenças – cid-6. A primeira edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais (DSM) foi publicada pela Associação Psiquiátrica Americana (APA) em 1953, sendo o primeiro manual de transtornos mentais focado na aplicação clínica. O DSM-I consistia basicamente em uma lista de diagnósticos categorizados, com um glossário que trazia a descrição clínica de cada categoria diagnóstica. Apesar de rudimentar, o manual serviu para motivar uma série de revisões sobre questões relacionadas às doenças mentais. O DSM-II, desenvolvido paralelamente com a cid- 8, foi publicado em 1968 e era bastante similar ao DSM-I, trazendo discretas alterações na terminologia. Em 1980, a APA publicou a terceira edição do seu manual introduzindo importantes modificações metodológicas e estruturais que, em parte, se mantiveram até a recente edição. Sua publicação representou um importante avanço em termos do diagnóstico de transtornos mentais, além de facilitar a realização de pesquisas empíricas. O DSM-III apresentou um enfoque mais descritivo, com critérios explícitos de diagnóstico organizados em um sistema multiaxial, com o objetivo de oferecer ferramentas para clínicos e pesquisadores, além de facilitar a coleta de dados 32 estatísticos. Revisões e correções foram promovidas sobre o manual, levando à publicação do DSM-III-R, em 1987. A proliferação de pesquisas, revisões bibliográficas e testes de campo permitiu que, em 1994, a APA lançasse o DSM-IV. A evolução do manual representava um aumento significativo de dados, com a inclusão de diversos novos diagnósticos descritos com critérios mais claros e precisos. Uma revisão dessa edição foi publicada em 2000 como DSM-IV-TR e foi formalmente utilizada até o início de 2013. 8 O DSM-5 O DSM-5, oficialmente publicado em 18 de maio de 2013, é a mais nova edição do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais da Associação Psiquiátrica Americana. A publicação é o resultado de um processo de doze anos de estudos, revisões e pesquisas de campo realizados por centenas de profissionais divididos em diferentes grupos de trabalho. O objetivo final foi o de garantir que a nova classificação, com a inclusão, reformulação e exclusão de diagnósticos, fornecesse uma fonte segura e cientificamente embasada para sua aplicação em pesquisa e na prática clínica. Em seu aspecto estrutural o DSM-5 rompeu com o modelo multiaxial introduzido na terceira edição do manual. Os transtornos de personalidade e o retardo mental, anteriormente apontados como transtornos do Eixo II, deixaram de ser condições subjacentes e se uniram aos demais transtornos psiquiátricos no Eixo I. Outros diagnósticos médicos, costumeiramente listados no Eixo III, também receberam o mesmo tratamento. Conceitualmente não existem diferenças fundamentais que sustentem a divisão dos diagnósticos em Eixos I, II e III. O objetivo da distinção era apenas o de estimular uma avaliação completa e detalhada do paciente. Fatores psicossociais e ambientais (Eixo IV) continuam sendo foco de atenção, mas o DSM-5 recomendou que a codificação dessas condições fosse realizada com base no capítulo Fatores que Influenciam o Estado de Saúde e o Contato com os Serviços de Saúde (códigos Z00-Z99) da cid-10- cm. Por fim, a Escala de Avaliação Global do Funcionamento, anteriormente empregada no Eixo V, foi retirada do manual. Por diversos motivos entendeu-se que a nota de uma única escala não transmite informações suficientes e adequadas para a compreensão global do 33 paciente. A APA continua recomendando a aplicação das diversas escalas que possam contribuir com cada caso e apresenta algumas medidas de avaliação na Seção III do DSM-5. 8.1 Transtornos do neurodesenvolvimento Seguindo a proposta de lançar um olhar longitudinal sobre o curso dos transtornos mentais, o DSM-5 excluiu o capítulo “Transtornos geralmente diagnosticados pela primeira vez na infância ou na adolescência”. Parte dos diagnósticos do extinto capítulo passou a compor os “Transtornos do neurodesenvolvimento”. Os critérios para Deficiência Intelectual enfatizaram que, além da avaliação cognitiva, é fundamental avaliar a capacidade funcional adaptativa. Os “Transtornos de comunicação” agrupam antigos diagnósticos com discretas alterações quanto à divisão e nomenclatura. Os “Transtornos globais do desenvolvimento”, que incluíam o Autismo, Transtorno desintegrativo da infância e as Síndromes de Asperger e Rett, foram absorvidos por um único diagnóstico, “Transtornos da gama do autismo”. A mudança refletiu a visão científica de que aqueles transtornos são na verdade uma mesma condição com gradações em dois grupos de sintomas: Déficit na comunicação e interação social; Padrão de comportamentos, interesses e atividades restritos e repetitivos. Apesar da crítica de alguns clínicos que argumentam que existem diferenças significativas entre os transtornos, a APA entendeu que não há vantagens diagnósticas ou terapêuticas na divisão e observa que a dificuldade em subclassificar o transtorno poderia confundir o clínico dificultando um diagnóstico apropriado. Os critérios para o diagnóstico de Transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) são bastante similares aos do antigo manual. O DSM-5 manteve a mesma lista de dezoito sintomas divididos entre desatenção e hiperatividade/impulsividade. Os subtipos do transtorno foram substituídos por especificadores com o mesmo nome. Indivíduos até os dezessete anos de idade precisam apresentar seisdos sintomas listados, enquanto indivíduos mais velhos precisam de apenas cinco. A exigência de que os sintomas estivessem presentes até os sete anos de vida foi alterada. No novo manual, o limite é expandido 34 para os doze anos de idade. Além disso, o DSM-5 permitiu que o TDAH e os Transtornos da Gama do Autismo sejam diagnosticados como transtornos comórbidos. Ambas as alterações provocam polêmica pelo risco de gerarem uma superestimativa com aumento da incidência de TDAH na população geral. No entanto, a APA e outros diversos especialistas defendem a mudança como favorável. Os Transtornos específicos da aprendizagem deixaram de ser subdivididos em transtornos de leitura, cálculo, escrita e outros, especialmente pelo fato de que indivíduos com esses transtornos frequentemente apresentam déficits em mais de uma esfera de aprendizagem. Encerrando o capítulo, tiques, movimentos estereotipados e Síndrome de Tourette foram organizados como Transtornos motores. 8.2 Gama da esquizofrenia e outros transtornos psicóticos O diagnóstico de Esquizofrenia sofreu alterações significativas nesta nova versão do DSM. O critério que define a sintomatologia característica (Critério A) continua requerendo a presença de no mínimo dois dos cinco sintomas para ser preenchido, mas a atual versão exige que ao menos um deles seja positivo (delírios, alucinações ou discurso desorganizado). Embora os sintomas listados sejam os mesmos, o DSM-IV permitia que o Critério A fosse preenchido com apenas um sintoma nos casos de delírios bizarros ou alucinações auditivas de primeira ordem/schneiderianas (exemplo: vozes conversando entre si). No DSM-5 essa exceção foi retirada por se considerar que a classificação de um delírio como bizarro é pouco confiável, especialmente por esbarrar em questões culturais, e a definição de sintomas schneiderianos é pouco específica. O DSM-5 abandonou a divisão da esquizofrenia em subtipos: paranoide, desorganizada, catatônica indiferenciada e residual. Os subtipos apresentavam pouca validade e não refletiam diferenças quanto ao curso da doença ou resposta ao tratamento. O diagnóstico de Transtorno esquizoafetivo sofreu uma pequena alteração em seu texto, sendo exigido que um episódio de alteração importante do humor (depressão ou mania) esteja presente durante a maior parte do curso da doença, após o preenchimento do Critério A de esquizofrenia. A mudança busca aumentar a confiabilidade do diagnóstico, apesar de reconhecer que ele ainda é um grande 35 desafio para o clínico. Os critérios para o “Transtorno delirante” não exigem mais que os delírios apresentados não sejam bizarros. A demarcação entre o Transtorno Delirante e outras variantes psicóticas foi reforçada com a presença de critérios de exclusão que impedem que o diagnóstico seja efetuado na presença de quadros como o Transtorno obsessivo-compulsivo e o Transtorno dismórfico corporal. A catatonia não é mais apresentada como um subtipo da esquizofrenia ou uma classe independente. Na atual versão passa a ser dividida como: catatonia associada com outros transtornos mentais; catatonia associada com outras condições médicas; ou catatonia não-especificada. Aceita-se que o quadro possa ocorrer em diversos contextos e o diagnóstico requer a presença de no mínimo três dos doze sintomas listados. O DSM-5 permite que a catatonia seja empregada como um especificador no Transtorno depressivo, “Transtorno bipolar e Transtornos psicóticos, ou diagnosticada de forma isolada no contexto de outras condições médicas. 8.3 Transtorno bipolar e outros transtornos relacionados Os critérios diagnósticos para mania e hipomania no Transtorno bipolar passam a dar maior ênfase às mudanças no nível de atividades e na energia. O quadro misto deixa de ser um subtipo do Transtorno bipolar e se torna um especificador, com Características Mistas, que pode ser empregado inclusive na Depressão unipolar. O fato foi criticado por alguns especialistas como uma tentativa tendenciosa de conduzir o diagnóstico de qualquer transtorno de humor para o grupo bipolar. No entanto, a APA argumenta que o objetivo da mudança é auxiliar o clínico para melhor adaptar seu tratamento, visto que os indivíduos com sintomas mistos podem apresentar diferenças no curso da doença e na resposta aos psicofármacos. O capítulo do DSM-5 incluiu outro novo especificador, com Ansiedade, empregado para descrever a presença de sintomas ansiosos que não fazem parte dos critérios diagnósticos do Transtorno bipolar. O especificador com Ansiedade também pode ser aplicado nos Transtornos Depressivos e descreve sintomas como tensão, inquietação, dificuldade de concentração devido a uma preocupação, medo de que algo terrível possa acontecer e sensação de perda de controle sobre si mesmo. 36 8.4 Transtornos depressivos O capítulo dos Transtornos depressivos ganhou novos diagnósticos no DSM- 5, levantando discussões sobre a “patologização” de reações normais e a superestimativa do número de casos de depressão. O Transtorno disruptivo de desregulação do humor é um novo diagnóstico caracterizado por um temperamento explosivo com graves e recorrentes manifestações verbais ou físicas de agressividade desproporcionais, em intensidade ou duração, à situação ou provocação. Os sintomas devem se manifestar ao menos três vezes por semana, em dois ou mais ambientes, persistir por no mínimo um ano e o transtorno deve ser primeiramente identificado entre os seis e os dezoito anos de idade. O detalhamento desse quadro clínico busca ser suficiente para impedir que o diagnóstico seja aplicado a crianças saudáveis com comportamento de birra. Após uma série de estudos, o DSM-5 incluiu o Transtorno disfórico pré- -menstrual como um diagnóstico validado, e os diagnósticos de depressão crônica e distimia foram modificados passando a formar o “Transtorno depressivo persistente”. Os sintomas centrais do Transtorno depressivo importante (Maior) foram mantidos, aceitando agora especificadores como com Características mistas e com ansiedade. A presença de características mistas deve alertar o clínico para um possível quadro do campo bipolar. Um dos pontos de maior polêmica, no que diz respeito à depressão, foi a retirada do luto como critério de exclusão do Transtorno Depressivo Maior. No DSM-5 é possível aplicar esse diagnóstico mesmo àqueles que passaram pela perda de um ente querido há menos de dois anos. Apesar da preocupação com a possível abordagem médica de estados não patológicos, é importante atentar para a gravidade que estes quadros podem alcançar. O luto é um forte fator estressor e, como tal, pode desencadear transtornos mentais graves, portanto não se pode assumir que, por tratar-se de reação comum, não possa ser experimentado de forma patológica. Desta forma, o objetivo desta mudança é permitir que indivíduos que estejam passando por um sofrimento psíquico grave recebam atenção adequada, incluindo a farmacoterapia quando esta se fizer necessária. De todos os transtornos psiquiátricos, a depressão em específico é provavelmente a mais familiar para a população num todo. A totalidade da tristeza, da solidão e do desânimo, todos encontrados em diversas formas e intensidade como manifestações clínicas das síndromes depressivas, 37 habilitam-nas a compreender e a empatizar com um indivíduo deprimido deve sentir. Quão comum é a depressão? Qual é o impacto na nossa vida rotineira e na nossa sociedade? A organização Mundial da Saúde divulgou, há pouco tempo, que a depressão seria a principal causa de incapacitação no mundo nas próximas décadas (KESSLER,1994,2003 apud PATTERSON, 2010) 8.5 Transtornos de ansiedade O capítulo dos Transtornos de ansiedade foi reformulado nesta nova edição do manual e os diagnósticos de “Transtorno obsessivo-compulsivo”, “Transtorno de estresse agudo e Transtorno
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