
Apocalipticos e Integrados
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instâncias dos outros. Critlca dos três niveis Esse ideal de uma cultura democrática impõe uma revisão do conceito dos três níveis (high, mlddle e low), despojados, aqui, de algumas conotações que os tornam tabus perigosos. a) Os níveis não correspondem a uma nivelação classista. Isso já é ponto pacífico. Sabe-se que o gôsto high brow não é necessàriamente o das classes domi- nantes; assiste-se, assim, a curiosas convergências: a Rainha da Inglaterra gosta daquele quadro de Annigo- ni, que de um lado encontraria a anuência de um Kruschev, e do outro, ganharia os favores de um ope- rário impressionado com as ousadias do último abstra- cionistazB. Professôres universitários deleitam-se com a leitura de estórias em quadrinhos (ainda que com dife- rentes atitudes receptivas, como veremos), enquanto através de coleções populares, membros das classes ou- trora subalternas entram na posse dos valores supe- riores" da cultura. I (26) Cf G. DonFLes in Le oscitlazioni del gusto oP· c�t·, e no ì artiQo ` Kitsch e cultura", in: Aut Aut, janeiro de 1%3. 54 # b) Os três níveis não representam três graus de complexidade (pedantemente identificadas com o va- lor). Em outros têrmos: sòmente nas interpretações mais esnobes dos três níveis é que se identifica o "alto" com as obras novas e difíceis, compreensíveis apenas pelos happy few. Tomemos uma obra como O Leo- pardo. Independentemente de um juízo crítico de con- junto, a opinião comum a inscreve no nível "alto", pelo tipo de valores que veicula e pela complexidade das suas referências culturais. Todavia, socialògicamente falando, dela se fêz uma difusãa e uma degustação em nível middle brow. 4ra, o êxito alcançado no nível médio será sinal de um deperecimento do valor cultural real? Em certos casos, sim. Alguns romances italianos que recentemente alcançaram êxitos retumbantes de- viam seu sucesso justamente às razões facalizadas por MacDanald a prapósito de O Velho e o Mar: divulgam estilemas e atitudes culturais, agora esvaziados da sua fôrça inicial e acertadamente banalizados (com a cum- plicidade da habituação do gôsto através dos anos) e os colocam ao nível de um público preguiçoso que julga fruir valores culturais novos, quando, na realidade, só faz saquear um armazém estético já arruinado27. Mas para autros casos, o critério não é válido. Do mesmo modo, existem produtas de uma cultura lower brow, certas estórias em quadrinhos, por exempla, que são consumidos como praduto safisticado em nível high brow, sem qne isso constitua, necessàriamente, uma qualificação do praduta. Vemos, portanto, que a pa- norama é bastante mais complexo do que se crê. Exis- tem produtos que, nascidos em certo nível, resultam consumíveis em nível diverso, sem que o fato comparte um juízo de complexidade ou de valor. Ademais, fica em aberto o problema de tais produtos apresentarem duas possibilidades fruitivas diversas, oferecendo, dêsse modo, dois diferentes aspectos de complexidade. c) Os três níveis não caincidem, portanto, com três níveis de validade estética. Pode-se ter um produto high brow, que se recomende par suas qualidades de "vanguarda", e reclame, para ser desfrutado, um certo (27) BnRNARU ROSENBERG, no artigo citado in Mass Culture, fala de "bovarismo" como de tentação ·secreta dos fruidores da cultura de massa; bovarismo que os operadores dos mass media explorariam como alavanca de interêsse. 5s #preparo cultural (ou uma propensão à sofisticação), e todavia, mesmo no âmbito das apZeciações pxó- prias daquele nível, venha a ser julgado "feio" (sem que, por isso, seja low brow ) . E pode haver produto5 low brow, destinados a ser desfrutados por um vastís- simo público, que apresentem tais características de originalidade estrutural, e tamanha capacidade de supe- rarem os limites impostos pelo circuito de produção e consumo em que estão inseridos, que �nos permitam julgá-los como obras de arte dotadas de absoluta vali- dade (é o caso, ao que parece, das estórias em quadri- nhos como os Peanuts, de Charlie M. Schulz, ou do jazz nascido como mercadoria de consumo, e até como "música gastronômica", nas casas de tolerância de Nova Orleans) 2g. d) A transmigração de estilemas de um nível su- perior para um inferior não significa, necessàriamente, ue os citados estilemas tenham encontrado foros de q " " cidadania no nível inferior só porque se consumiram ou se "compromissaram". Em certos casos, é o que realmente acontece, em outros, assistimos a uma evo- lução do gôsto co�letivo que absorve e desfruta, em nível mais amplo, descobertas que deveram ser antecipadas por via puramente experimental, em nível mais restrito. Quando Vittorini, recentemente, falava da distinção entre uma literatura como "meio de produçâo" e uma literatura como "bem de consumo", evidentemente não pensava desprezar a segunda, identificando a primeira como a Literatura tout court. Sua intenção eÇa falar de diversas funções que a literatura exerce em diversos níveis. Creio que possa existir um romance entendido como obra de entretenimento (bem de consumo), do- tado de validade estética e capaz de veicular valores originais (não imitaçôes de valores já realizados), e que, todavia, tome como base comunicativa uma koiné estilística criada por outros experìmentos literários, os quais tiveram funçôes de proposta (talvez mesmo sem realizar valores estéticos perfeitos, mas só esboçcs de uma forma possível ) j9. (28) SBbre os Peanuts recomendamos a leitura do nosso O mundo de Mindutm. (29) Leia-se n capítulo A estrutura do mau 8ásto. 56 #Urna possivel conelusão, mais algumas propostas de pesquisa Tudo isso nos permite, portanto, adiantar uma in- terpretação do estado presente da nossa cultura, levando em canta uma sobrevirida complexidade da circulação dos valores ( teoréticas, práticos e estéticos ) . Numa época como a de Leonardo, a sociedade dividia-se em homens na posse dos instrumentos cultu- rais e homens dela excluídos. Os possuidores dos va- lores culturais dominavam a cultura no seu camplexo: Leonardo era um matemático e um técnico, projetava máquinas possíveis e aquedutos concretos. Com o d�- senvolvimento da cultura, assistimos, antes de mais nada, a uma estabilização de maior número de níveis teoréticos: entre pesquisa teórica e pesquisa experimen- tal criou-se um hiato e um sistema de "disparidade de desenvolvimento", que por vêzes apreserr:ou décalages de vários decênios, e até mais. Entre as pesquisas das geometrias não-euclidianas ou da física relativista e as suas aplicações na resolução de problemas tecnológicos concretas, houve um importantíssimo lapso de tempo. Sabemos, porém, que as descobertas einsteinianas não eram menos válidas pelo fato de não se lhes entrever a aplicação concreta, e que as mesmas pesquisas, aplica- das ao estudo dos fenòmenos nucleares, e daí a uma tecnolagia concretíssima, nem por isso se "consumiram" ou depauperaram. Essa disparidade de desenvolvimen- to e essa correlação entre níveis teorético-práticos diver- sos são hoje aceitas como fenômenos típicos da nossa cultura. Agora nos parece nece�sário reconhecer que tam- bém no campo dos valores estéticos se verificou uma especificação dos níveis, de tipo análogo: de um lado, a ação de uma arte de vanguarda, que nãct pretende nem deve pretender a uma imediata compreensibilida- de, e desenvolve ação de experimentação sôbre as for- mas passíveis (sem que por isso deva, necessàriamen- te, ainda que ocorra em certos casos, prosseguir igno- rando os autros problemas, e julgando-se a única criadora de valores culturais); d�� outro, um sistema de "traduções" e "mediações", às vêzes com desvios de decênios, pelo qual modos de formar (com os sis- 57 #temas de valores conexos) vão encontrar-se em níveis de mais vasta compreensibilidade, integrados agora na sensibilidade comum, numa dialética de recíprocas in- fluências bastante difíceis de definir, e que,