
Apocalipticos e Integrados
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for- neceriam material para um ótimo elzevir sôbre a cultu- ra de massa. Entenda-se bem, não queremos contes- tar a ninguém o direito de elaborar uma oposição entre o Espírito e a Massa, de julgar que a atividade cultu- ral deva ser definida nesses têrmos, e de dar testemu- nho dessa laceração de maneira a poder incutir-nos o máximo respeito. Ùnicamente, é bom que as ascendên- cias sejam esclarecidas e se ilumine o local histórica de uma polêmica que o advento macroscópico da socie- dade de ma,�sa devia reverdecer. Boa parte das formulações pseudo�marxistas da es- cola de Francfo�rte, por exemplo, manifestam seu pa- rentesco com a ideologia da "sagrada família" baueriana e dos movimentos colaterais. Inclusive a convicção de que o pensadnr (o "crítico") nâo poderá e não deverá propor remédios, mas, quando muito, testemunhar a própria dissensâo: "A crítica não constitui um partido, não quer ter nenhum partido para si, mas estar só, só, enquanto se aprofunda em seu objeto, só, quando a êle se contrapõe. Isola-se de tudo. . . Todo liame é, " para ela, uma cadeia . Esse trecho, do caderno VI da "Allgemeine Literaturzeitung", vai encontrar eco na intervenção de Koeppen, na "Norddeutsche Blaetterne" de 11 de agôsto de 1844, relativa ao problema da cen- sura: "A crítica está acima dos afetos e sentimentos , nãa conhece amor e ódio por coisa al.guma. Por isso não se põe contra a censura para lutar com ela. . . A crítica não se perde nos fatos, e não se pode perder nos fatos: por isso, é um contra-senso pretender dela que ániquile a censura com os fatos, e que busque na im- prensa a liberdade que Ihe pertence". Não será, por- tanto, descabido colacionar, ao lado dêsses trechos, as afirmações de Horkheimer, feitas um século depois, em polêmica com uma cultura pragmatista, acusada de desviar e consumir as energias necessárias à reflexão, na formulação de programas ativistas - a que êle opõe um "método da negação". E não por acaso, um estu- dioso de Adorno, embara afetuoso e consenciente como Renato Solmi, identificara nesse autor uma tentação especulativa, uma "crítica da praxis" pela qual o dis- 17 #curso filosófico evita deter-se nas condições e nos mo- dos concretos daquele "traspasse", que o pensamento deveria individuar numa situação, no instante mesmo em que a submete a uma crítica radical. O próprio Adorno, por lado, terminava os seus Minima Mora- lia encarando a filoso�fia como a tentativa de conside- rar tôdas as coisas do ponto de vista da redenção, re- velando o mundo nas suas fraturas, como surgirá um dia à luz messiânica; mas nessa atividade o pensamen- to envolve-se numa série de contradições tais que, de- vendo sofrê-las tôdas lùcidamente, "em relação à exi- gência que assim se lhe impõe, a própria questão da realidade e irrealidade da redenção se torna quase in- diferente". Ora, poder-se-á fàcilmente objetar com a res- posta que Marx dava a Bruno Bauer: as massas, tão logo adquiram consciência de classe, poderão tomar a direção da história e colocar-se como única e real al- ternativa ao vosso "Espirito" ("é preciso ter conhecido o estudo, a avidez de saber, a energia moral, o impulso para progredir sem descanso dos ouvriers franceses e inglêses para se poder ter uma idéia da humana nobre- za dêsse movimento" ) , ao passo que a resposta que a indústria da cultura de massa dá implìcitamente aos seus acusadores é: a massa, superadas as diferenças de classe, é, agora, a protagonista da história, e portanto sua cultura, a cultura produzida para ela, e por ela consumida, é um fato positivo. E é nesses têrtnos que a função dos apocalípticos tem uma validade própria, isto é, ao denunciar que a ideologia otimista dos integra- dos é prafundamente falsa e de má fé. Mas isso acon- tece (e é o que assinalaremos em alguns dos ensaios) justamente porque também o integrado, tal qual o apo- �alíptico, assume, com a máxima desenvoltura (mu- dando apenas o sinal algébrico), o conceito-fetiche de "massa". Produz para a massa, projeta uma educação de massa, e assim colabora para a redução a massa dos seus próprios sujeitos. Que, a seguir, estejam ou não em jôgo as chama- das massas, se têm elas, na realidade, um estômago mais forte do que crêem as seus manipuladores, se sabem exercer uma faculdade de discriminação sôbre produtos que lhe são oferecidos para consumo, se sa- 18 #bem resolver em estímulos positivos, voltando para em- pregos imprevistos, mensagens emitidas com intenção totalmente diversa - isso é autro problema. A existên- cia de uma categoria de operadores culturais que pro- duzem para as massas, usando na realidade as massas para fins de lucro, ao invés de oferecer-Ihes reais oca- siões de experiência crítica, é um fato assente: e a ope- ração cultural é julgadè pelas intenções que manifesta e pelo modo de estruturar suas mensagens. Mas, ao jul- gar êsses fenômenos, aa apacalíptico (que nos ajuda a fazê-lo) deve-se sempre opor, contudo, a única deci- são que êle não assume, aquela mesma que Marx sem- pre opunha aos teóricos da massa: "Se o homem é formado pelas circunstâncias, devemos tornar humanas as circunstâncias". O que, ao cantrário, se censura ao apocalíptico é o fato de jamais tentar, realmente, um estudo concreto dos pradutos, e das maneiras pelas quais são êles, na verdade, consumidos. O apocalíptico não só reduz os consumidores àquele fetiche indiferenciado que é o ho- mem-massa, mas - enquanto o acusa de reduzir todo praduto artístico, até o mais válido, a puro fetiche - reduz, êle próprio, a fetiche o produto de massa. E ao invés de analisá-lo, caso por caso, para fazer dêle emer- gir as características estruturais, nega-o em bloco. Quan- do o analisa, trai então uma estranha propensão emoti- va e manifesta um irresoluto complexo de amor-ódio - fazendo nascer a suspeita de que a primeira e mais ilustre vítima do produto de massa seja, justamente, o seu crítico virtuaso. �sse é um dos fenômenas mais curiosos e apaixo- nantes daquele fenômeno de indústria cultural que é a crítica apocalíptica à indústria cultural. Como a ma- nifestação, a duras penas mascarada, de uma paixão frustrada, de um amor traído; ou melhor; como a exibi- ção neurótica de uma sensualidade reprimida, seme- lhante à do moralista, que, denunciando a obscenidade de uma imagem, detém-se tão demorada é voluptuosa- mente sôbre o imundo objeto do seu desprêzo, que tra.i, naquele gesto, a sua real natureza de animal carnal e concupiscente. 19 # O fenômeno foi notado a propósito de muitas po- lêmicas contra o Kitsch, especialmente no âmbito cultu- ral alemão: assim observava Karl Markus Michel, anos atrás que - visto que até quem se sente imune a todo sentimentalismo não pode às vêzes· evitar que as lá- grimas Ihe corram pelas faces, embora sabendo de que ínfima qualidade seja o estímulo que o perturba - freqüentemente, o desejo do Kitsch, nos seus críticas, é tão intenso que se satisfaz através da sua condenação, realizada mediante um panegírico da arte, formulado segundo tôdas as boas regras da emotividade Kitsch. ; Assim o gesto do intelectual, colhido nas malhas da ; paixão pelo Kitsch, parece assemelhar-se ao do ricaço importunado por um pedinte, e que ordena ao criado: "Enxota daqui êste homem! Ele me parte o coração". Enxota daqui· êste homem, êle me parte o coração! Como não pensar nessa frase ante o seguinte trecho de Günther Anders, na nota 11 do seu ensaio sôbre a televisão, O mundo como fantasma e como matriz? "Numa exposição dedicada à TV, coube-me a sorte discutível de ver e ouvir um ator que recitava um sketch na sala ao lado, e assistir, ao mesmo tempo, às suas sete projeçôes televisionais. Digno de relêvo era: 1 ) que o atar se dividisse para os olhos em sete irmãos idênticos, embora tivesse uma só voz indivisa ressoando em ambas as salas; 2) que as imagens parecessem mais naturais que o original, porque o ator, justamente para dar naturalidade