Grátis
6 pág.

Mitos e verdades em ciência e religião - uma perspectiva histórica
UNIVERSO
Denunciar
Pré-visualização | Página 1 de 5
Atualização Rápida Mitos e verdades em ciência e religião: uma perspectiva histórica1 Myths and truths in science and religion: a historical perspective ronald l. nuMBErs, Ph.d. Hilldale Professor of the History of Science and Medicine, University of Wisconsin-Madison, Estados Unidos. Presidente da International Union of the History and Philosophy of Science, Division of History of Science and Technology. Tradução2 alExandrE sECh Junior, CristianE sChuMann silva Revisão da tradução alExandEr MorEira-alMEida Recebido: 23/9/2009 – Aceito: 24/9/2009 Numbers RL / Rev Psiq Clín. 2009;36(6):246-51 1 Este artigo é baseado numa conferência proferida em 11 de maio de 2006 no Howard Building do Downing College na Universidade de Cambridge, Reino Unido. Faz parte das atividades do Faraday Institute for Science and Religion da mesma universidade. O texto original encontra-se na página www.st-edmunds.cam.ac.uk/faraday/Lectures.php. Os tópicos abordados no presente artigo são desenvolvidos de modo mais completo em um livro recente editado pelo prof. Ronald L. Numbers, que é tema de uma resenha nesta edição da Revista de Psiquiatria Clínica: Galileo Goes to Jail and Other Myths about Science and Religion. Ronald L. Numbers (Org.). Harvard University Press, 2009. 2 Tradução autorizada pelo autor. Quando o tema é “Mitos e Verdades na Ciência e na Religião”, é lamentável o fato de que após anos, décadas de pesquisas realizadas por historiadores na História da Ciência e da Religião, os mesmos mitos antigos que temos corrigido repetidamente continuam a ter vida própria e a ser amplamente conhecidos pelo público em geral. Um dos maiores desafios, eu creio, para retificar a compreensão do público acerca da ciência e da religião atualmente é esclarecer os mitos que ainda persistem desde o passado. O público leigo, na medida em que pensa de alguma maneira a respeito dos problemas relacionados à ciência e à religião, tem a certeza de que a religião institucio- nalizada sempre se opôs ao progresso científico; teste- munhas disso são Copérnico, Galileu, Darwin, Freud, John Thomas Scopes. Eles sabem que a ascensão do Cristianismo exterminou a antiga ciência, que a Igreja Cristã Medieval suprimiu o crescimento da Filosofia Na- tural, que os cristãos medievais ensinavam que a Terra era plana, que a Igreja proibiu autópsias e dissecações durante a Idade Média e o Renascimento. Por outro lado, os religiosos sabem que a ciência teve papel preponderante na corrosão da fé por intermédio do Naturalismo e do antibiblicismo. Se quisermos que o público passe a ter uma visão renovada no que concerne ao relacionamento entre ciência e religião, acredito que devamos dissipar os antigos mitos que continuam a se passar por verdades históricas. E aqui devo deixar claro que me refiro a “mitos” no seu bom e antigo sentido ori- ginal, como ficção ou meia-verdade, não no sentido dos complexos estudos antropológicos e religiosos; assim, deixemos isso já definido. A comunidade acadêmica vem debatendo amplamen- te a melhor forma de caracterizar a relação histórica en- tre ciência e religião, e nenhuma generalização tem sido mais sedutora do que a do conflito. De fato, os dois livros mais lidos sobre a história da ciência e o Cristianismo têm em seus títulos as palavras “conflito” ou “guerra”. O primeiro dos livros a ser lançado foi o de John William Draper: A História do Conflito entre a Religião e a Ciên- cia (The History of the Conflict between Religion and Science). Lançado em meados da década de 1870, longe de ser uma história desapaixonada, constituiu-se num longo discurso contra os católicos romanos e o que estes fizeram para inibir o progresso científico. Draper argumentou que a antipatia do Vaticano pela ciência deixou suas mãos impregnadas de sangue. Pode parecer estranho o porquê de alguém – sendo um proeminente químico, fundador e primeiro Presidente da Sociedade Americana de Química, muito ativo no desenvolvimento da fotografia nos Estados Unidos – ter passado tanto tempo escrevendo um livro inteiro acu- sando os católicos. Draper tinha um filho pequeno que adoeceu gravemente e que possuía um livro favorito. A irmã de Draper, que era freira católica, vivia com eles e, antes que o menino viesse a falecer, tirou o livro dele Endereço para correspondência: Ronald L. Numbers. Department of Medical History and Bioethics University of Wisconsin 1300 University Avenue Madison, Wisconsin 53706. E-mail: rnumbers@wisc.edu 251Numbers RL / Rev Psiq Clín. 2009;36(6):246-51 porque ela não o achava suficientemente edificante. Pouco depois da morte, ela colocou o livro no lugar onde o menino sentava-se à mesa de jantar e Draper nunca a perdoou por isso. Essa parece ter sido, em grande parte, a fonte de sua animosidade contra o Catolicismo. Draper ignorou ou depreciou as contribuições cientí- ficas de muitos devotos católicos, de Copérnico e Galileu a Galvani e Pasteur. Apenas recentemente tivemos uma pesquisa de muito boa qualidade acerca do Catolicismo e a ciência moderna em seus primórdios realizada por John Heilbron, cujo trabalho premiado The Sun in The Church: Cathedrals as Solar Observatories (O Sol na Igre- ja: as Catedrais como Observatórios Solares) argumenta que a Igreja Católica Romana deu mais financiamento e apoio social ao estudo da astronomia por mais de seis séculos, desde a recuperação do conhecimento tradicional no final da Idade Média até o Iluminismo, do que qualquer instituição – e, provavelmente, mais do que todas as outras juntas. O que teríamos feito sem a Igreja Católica? A razão pela qual a Igreja inicialmente se interessou tanto pelos observatórios foi para estabelecer a data para a Páscoa, mas no final das contas esses observatórios foram utilizados para estudar a geometria do sistema solar bem como outros assuntos de interesse geral da Astronomia. Além disso, hoje sabemos que a escola médica Papal, San Viansa, atualmente a Universidade de Roma, foi durante anos, décadas e até mesmo séculos, no início do período moderno, a pioneira em estudos de anatomia e fisiologia. Andrew Dickson White, um historiador e o primeiro reitor da Universidade de Cornell em Nova Iorque, escreveu o segundo livro, um tratado monumental sobre História da Guerra da Ciência com a Teologia na Cristandade (History of the Warfare of Science with Theology in Christendom). Ele começou a proferir confe- rências sobre esse assunto no final da década de 1860, publicou um pequeno folheto antes de Draper, seguiu escrevendo capítulos durante anos e finalmente, em 1896, publicou essa obra-prima em dois volumes. Ele descreveu o conflito entre o Cristianismo e a ciência como uma série de batalhas travadas entre teólogos dogmáticos e de visão limitada e homens de ciência em busca da verdade. Tudo começou quando ele tentou obter financiamento público que o Congresso havia conferido a vários estados a fim de financiar o ensino de técnicas agrícolas e mecânicas. White estava deter- minado em Cornell a montar um refúgio para a ciência e não se curvar de forma alguma a quaisquer interesses religiosos. Ele foi bem-sucedido na competição contra muitos líderes de instituições religiosas que os tornou de algum modo críticos de Andrew Dickson White, por isso seu interesse na luta permanente entre a ciência e a religião. Segundo sua descrição: “Era um conflito antigo, uma guerra que perdurou mais do que as batalhas mais violentas, com ações mais persistentes, com estratégias mais vigorosas do que quaisquer dos relativamente insignificantes conflitos armados de Alexandre, César ou Napoleão”. White acreditava que algumas das batalhas mais sangrentas foram travadas entre os séculos XVI e XVII durante o período da assim chamada revolução cientí- fica, quando poderosos líderes da Igreja repetidamente tentaram silenciar os pioneiros da ciência moderna. Copérnico, ele disse, que havia ousado localizar o sol no centro do sistema solar, arriscou