um longo caminho, passando por diversas instâncias judiciárias, chegando finalmente à Vara de Execuções Penais, onde é decidido o destino final do apenado. Não é difícil se perceber o quanto o ‘Exame Criminológico’ é mais um instrumento de controle da vida do sujeito, um instrumento técnico travestido de uma roupagem cientifica, disfarçando atitudes e crenças preconceituosas e perversas. Como diz Foucault, os laudos e exames têm como função oferecer aos mecanismos e instâncias punitivas, tão somente uma justificativa legal, não apenas para condenar o individuo pelas infrações cometidas, mas também por aquilo que ele é ou por aquilo que ele virá a ser (Foucault, 2005). 68 Mas voltemos à esdrúxula situação de exame entre condenado e especialista, à qual Foucault utiliza o caráter grotesco, ubuesco 39 do discurso penal: Chamarei de “grotesco” o fato, para um discurso ou para um indivíduo, de deter por estatuto efeitos de poder de que sua qualidade intrínseca deveria privá-los. O grotesco ou, se quiserem, o “ubuesco” não é simplesmente uma categoria de injúrias [...]. O terror ubuesco, a soberania grotesca ou, em termos mais austeros, a maximização dos efeitos do poder a partir da desqualificação de quem os produz: isso, creio eu, não é um acidente na história do poder, não é uma falha mecânica. Parece-me que é uma das engrenagens que são parte inerente dos mecanismos de poder (FOUCAULT, 2001, p. 15). O perito psiquiátrico seria, nesse sentido, o próprio personagem Ubu: ele só pode exercer o terrível poder que lhe pedem para exercer (Foucault, 2001). Ao longo dos séculos o poder de julgar foi, em parte, transferido a instâncias que não as dos juízes de condenação: ‘juízes paralelos’ surgiram de instâncias anexas que se ocuparam em escusar o juiz mesmo da função de punir (Foucault, 1977 a). Agora, é o profissional ‘psi’ que o faz. É ele quem detém o saber sobre a verdade do paciente, é ele - esse pseudo-juiz modulador da pena (Foucault, 1974) - quem exerce o poder para mantê-lo encarcerado e, finalmente, é ele quem programa a sua vida futura dentro da instituição, produzindo verdades. Contudo, não é apenas através da execução de laudos e pareceres que ele exerce seu poder, mas também – e principalmente -, através de outras práticas de controle e de normatização. No Capítulo 3 iremos refletir com maior ênfase o papel do profissional ‘psi’ e as possíveis formas de resistência àquilo que aparece como inquestionável no interior do campo do instituído. Vimos que o dispositivo do exame é um tipo de estratégia para manejar os jogos de força numa determinada direção: ele é uma espécie de tecnologia que visa extrair do indivíduo um saber para, então, dar a ele uma forma (Maciel, 2011). Assim como o inquérito, ele é um procedimento jurídico de obtenção da verdade, que aparece travestido de cientificidade a partir do século XVII. Trata-se de uma tecnologia de poder que consiste em produzir verdades. Por conseguinte, os dispositivos psico-jurídicos 40 , grosso modo, gozam de certa regalia, pois “comportam presunções estatutárias de 39 O adjetivo ‘ubuesco’ foi introduzido em 1922, a partir da peça Ubu roi de A. Jarry. Este personagem é qualificado por um caráter cínico, comicamente cruel e covarde ao extremo. Na concepção foucaultiana, o ‘terror ubuesco’ é o exercício do poder através da desqualificação explícita de quem o exerce. 40 Dentre os diversos dispositivos do gênero, citamos - para efeitos de exemplificação -, os laudos de cessação de periculosidade, os de sanidade mental e os exames criminológicos. 69 verdade e de poder que lhe são inerentes, em função dos que as enunciam. [...] são uma espécie de supralegalidade de enunciados na produção da verdade judiciária” (Foucault, 2001, p. 14). Segundo Foucault, estes discursos presentes nos laudos do século XIX - imbricados no cruzamento da instituição jurídica e do saber médico -, têm um caráter muito particular. Em primeiro lugar porque eles têm o poder de estabelecer uma decisão judicial com respeito à liberdade ou à detenção de um homem. Ao mesmo tempo são discursos que detém tal poder por, justamente, apresentarem-se como discursos de verdade, por serem discursos dotados de um estatuto científico e formulados – de modo exclusivo –, por pessoas qualificadas para dizê-los (Fonseca, 2002, p. 74). Estes laudos apontam, com veemência, as condutas anormais e irregulares como origem e causa única do crime legitimando, assim, o poder de punir não exatamente a infração, mas o corpo mesmo do indivíduo. O que será julgado pela instância jurídico-psiquiátrica não será o delito cometido, mas tão somente as condutas irregulares consideradas agora como causa e lugar de formação do crime. O objetivo de tais dispositivos seria o de reconstituir a série do que poderíamos chamar de faltas sem infração, ou também de defeitos sem ilegalidade. Em outras palavras, mostrar como o indivíduo já se parecia com seu crime antes de o ter cometido. [...] O que é mais grave é que, na verdade, o que é proposto nesse momento pela psiquiatria não é a explicação do crime: na realidade, o que se tem de punir é a própria coisa, e é sobre ela que o aparelho judiciário tem de se abater (FOUCAULT, 2001, p. 21-24. Grifo nosso). Não nos enganemos com o fato desses discursos terem sido apenas práticas utilizadas há um século atrás. Em pleno século XX a psiquiatria continuava a responder ao aparelho judiciário dentro das mesmas descrições ubuescas, onde se buscavam os aspectos da hereditariedade e da ascendência, tentando se chegar à essência do indivíduo comprovando, assim, o seu caráter perigoso. Tipo criminale com fisionomia meno feroce, ma più repellente di quella del caso precedente. È um tipo di delinqüente-nato, ma anche di pazzo e, specialmente, di delirante cronico a nota sanguinaria persecutrice. Questo soggetto, impazzito in carcere, è forse sempre stato un paranoide per costituzione e, secondo noi, realizza assieme al caso precedente la fusione del tipo criminale col pazzesco. Da questa fusione scaturisce forse il tipo criminale più completo, meglio di quello che è legato soltanto alla primitività atavica (MANDALARI, 1901, p. 95) 41 . 41 “Individuo criminoso com fisionomia menos feroz, entretanto mais repelente do que o caso anterior. É um delinqüente-nato, mas também louco e, especialmente delirante crônico com sinal de perseguição sanguinária. Este doente mental encarcerado sempre foi um paranoide por constituição e, em nossa 70 Assim como o ‘Exame Criminológico’ - este na esfera criminal - existe outra forma de nosologização e de classificação, agora do indivíduo encarcerado em manicômio judiciário. Trata-se - no caso do paciente inimputável -, do ‘laudo de sanidade mental’, realizado por perito forense. Este tipo de exame é solicitado pelas instâncias judiciárias 42 a fim de assessorá-las tecnicamente no que diz respeito à aferição de sanidade mental do indivíduo que está sendo julgado. Neste caso, o perito forense elabora o laudo com o intuito de avaliar se o réu é ou não considerado inimputável. Deste modo, orientado pela psiquiatria, o direito penal confirma que – aferido o estado de inimputabilidade -, o doente mental não pode ser punido por culpabilidade. Conclui Brito e Souto (2007) que, enquanto no imputável a culpa produz censura, no caso do inimputável a reprovação penal passa a ser justificada pelo perigo que tal indivíduo representa para a sociedade. Como vimos na parte final do Capítulo 2, as medidas de segurança se fundamentam na presunção de periculosidade 43 , conceito duramente criticado por Eugenio Zaffaroni como uma das pretensões mais ambiciosas da criminologia ao aspirar medir a periculosidade de qualquer que