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o psiquiatra tenha duas posturas, uma como cidadão do Estado e outra como psiquiatra. Há somente uma: como homem. E como homem eu quero mudar a vida que levo, e para isso tenho que mudar essa organização social, não com revolução, mas apenas exercendo minha profissão de psiquiatra. Se todos os profissionais exercessem sua profissão, isso seria a verdadeira revolução. Mudando o campo institucional no qual eu trabalho, mudo a sociedade, e se isso for onipotência, viva a onipotência! (BASAGLIA, 1982, p. 150). 89 Parece-nos claro, portanto, que o profissional de saúde mental deva ser, antes de mais nada, crítico de suas condições de trabalho, pois sabemos que o campo do instituído com suas regras, hierarquias e conformação de espaço/tempo, acaba por assimilar os saberes ditos científicos - oriundos da psiquiatria, da psicologia e também do direito -, tomando-os como discursos de verdade. Assim sendo, ele corre o perigo de tornar-se, ele próprio, como profissional e como homem, reduzido ao silêncio (Veyne, 2004). De que maneira, então, seria possível produzirem-se práticas de saúde que não se tornem simples repetição de modelos herméticos e universais? Como fazer surgir novos modos de invenção do campo do instituído, a despeito de suas forças hegemônicas que remam incessantemente em direção oposta? Mais uma vez, os ‘dois Michel’ se complementam no que diz respeito às possibilidades de produção de novos modos e maneiras de ser, através, segundo Certeau, do uso de táticas e estratégias, que são nada menos do que a capacidade de resistência presente em todo e qualquer sujeito, conforme também constata Foucault. Enquanto que para Certeau, “o cotidiano se inventa com mil maneiras de caça não autorizada” (2005, p. 38), para Foucault, “jamais somos aprisionados pelo poder; podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa”. (1979 b, p. 241). O que nos leva a pensar que podemos e devemos nos insurgir contra a dominação, tentando lutar e subverter as relações perversas do poder, os enunciados definitivos sobre a verdade e, assim, podendo criar um mundo onde as subjetividades possam aflorar na sua diferença e alteridade e, principalmente, visando a constituição de um novo sujeito histórico. Acompanhando Foucault, acreditamos que não exista ‘a verdade’, mas verdades que vão se recriando sempre, podendo-se atribuir, a cada uma delas, várias e diferentes interpretações. É, portanto, através da instauração de novas verdades que o indivíduo vai se constituindo, criando-se a si próprio como sujeito-agente, historicamente em constante transformação, produzindo, a cada momento, novos meios de subjetivação. Dentro desta visão, entendemos o sujeito como aquele que, não somente se deixa regrar por valores, mas também aquele que é capaz de interrogar-se sobre esses valores e que, segundo Benilton Bezerra (2009), “seja capaz, em função dos dilemas que a vida lhe coloca, de tentar modificar o mundo em sociedade”. É como se o poder estimulasse o sujeito a resistir. Sem dúvida, a resistência se define nas relações de poder, isto é, não se trata de uma capacidade inata que antecede a 90 relação; mas, de fato a resistência ocorre na relação mesma. Para Foucault, ela pressupõe um sujeito ativo, capaz de dizer não. Ao analisarmos o campo do instituído, podemos notar que, apesar de não ocorrer com muita frequência, é possível observar-se um ou outro paciente que se nega a conversar com algum profissional da equipe que o atende. Uma vez não fosse esse comportamento visto como uma atitude de insubordinação - pelos profissionais mesmo do MJ -, poderíamos entendê-lo como um direito do paciente em não querer falar e, como assegura Bezerra, é neste momento - do querer exercer a liberdade - que o sujeito passaria da condição de sujeito-submetido a sujeito-agente. Concordando com o autor, podemos afirmar, com efeito, que não estamos condenados ao poder; é possível resistir a ele, criar linhas de fuga. Corroborando com esta idéia, trazemos a confirmação vinda de Certeau: [...] Cada vez mais coagido e sempre menos envolvido com esses enquadramentos, o indivíduo se destaca deles sem poder escapar-lhes, e só lhe resta a astúcia no relacionamento com eles, “dar golpes”, encontrar na megalópole eletrotecnicizada e informatizada a “arte” dos caçadores ou dos rurícolas antigos (CERTEAU, 2005, p. 52). Vemos, assim, nesses dois autores a preocupação em enfatizar a potência de vida presente no homem, seja ele quem for. Diríamos mais ainda: ambos se dedicam e se voltam ao ‘homem comum’, ao ‘homem ordinário’, aquele que inventa o cotidiano através das ‘artes de fazer’ e das táticas de resistência (Certeau, 2005). Ou como sustenta Foucault, aos ‘homens infames’, “àquelas pessoas absolutamente sem glória [...] que não mais existem senão através das poucas palavras terríveis que eram destinadas a torná-los indignos para sempre da memória dos homens” (Foucault, 1977 d p. 210). Deste modo, através de Certeau e Foucault certificamos a necessidade de se problematizar o papel do profissional ‘psi’ no que diz respeito à sua implicação e intervenção dentro do campo da saúde mental. Estamos nos referindo às práticas de resistência ao poder instituído, tanto por parte do sujeito internado quanto do próprio profissional ‘psi’. Ao criar o GIP (Groupe d´Information sur les Prisons) 55 Foucault se ocupou por preferir, segundo ele próprio, “um trabalho efetivo à loquacidade universitária e aos rabiscos de livros. [...] uma ação política concreta em favor dos 55 O Groupe d´Information sur les Prisons (GIP) foi um movimento de ação e de informação criado em 1971 com o objetivo de dar a palavra aos presos e, ao mesmo tempo, de permitir a mobilização de intelectuais e profissionais envolvidos no sistema prisional francês. Este movimento resultou na entrada da imprensa às prisões, condição até então negada pelas autoridades competentes da época. 91 prisioneiros” (Foucault, 1972 a, p.291). Ao organizar essa prática coletiva, Foucault criou condições para que os presos pudessem falar por si mesmos. No GIP todos podiam falar e, segundo o autor, qualquer um que tomasse a palavra, falava não porque tinha um título ou um nome, mas, simplesmente porque tinha algo a dizer. Para ele, a única palavra de ordem do GIP era ‘aos detentos, a palavra!’. Sua intenção não era outra senão a de dar a palavra àqueles que viviam no interior das prisões, ao invés de falar por ou sobre eles. Levando-se em consideração a presença, segundo Certeau, de relações de forças entre o fraco e o forte, pensamos que a ação de Foucault no GIP se manifesta como uma resistência que, desta vez, parte do pesquisador mesmo. Todavia, como se sabe, as instituições são dispositivos que produzem ‘subjetividades sujeitadas’ (Maciel, 2011), dadas as suas características de disciplina e de controle. Sendo assim, faz-se mister a criação de focos de resistência dentro do campo institucional mesmo a fim de que se possam produzir ‘subjetividades livres’, capazes de realizar escolhas. Ao se impedir, por exemplo, que o paciente do MJ possa optar em querer participar ou não de uma atividade terapêutica, minam-se as condições de possibilidades deste sujeito em se afirmar como sujeito-agente, facilitando, inversamente, a produção de condutas de submissão. É imprescindível colocarmos em questão algumas problematizações a respeito das ações desses pacientes que, a despeito da pressão exercida pelos jogos de poder no campo do instituído, apresentam maneiras de resistir, o que nos leva a concordar quando afirma Eduardo Passeti (2011) de que “o sujeito se constitui ao ser impedido de fazê- lo”. Dito de outra maneira e, aproveitando para citar Foucault, “é porque há possibilidade de resistência e resistência