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da posteridade (THOMPSON, 1992, p. 64). 101 Também Michel de Certeau, como vimos no capítulo anterior, harmoniza-se com essa idéia, fundamentando seus estudos na linguagem oral do homem comum, com suas palavras inventadas, com seus vocábulos únicos, particulares - o que nos faz lembrar as criativas expressões que alguns pacientes do MJ utilizam no seu falar cotidiano 63 . Para Certeau (2005), os relatos orais têm um papel fundamental na produção e na recriação mesma do indivíduo. Destarte, para o autor, a prática da oralidade é um ato produtivo, fecundo e criativo, que traz em si uma diversidade de códigos e de referências singulares. Mas nem todos comungam com esta preocupação, a de ouvir o homem comum, o desconhecido, o ‘diferente de nós’. Há aqueles que pretendem falar por essas chamadas minorias: a do louco, a dos perdedores, a dos ‘sem lugar’, acreditando que estas minorias de ‘pequenos homens’ necessitam do seu saber de especialista, de sua verdade dita científica para os fazerem existir. É como se esses ‘pequenos homens’ não pudessem falar do lugar mesmo de seus próprios saberes, de suas próprias experiências. Assim sendo, acabam por serem excluídos, conforme sugere José de Souza Martins: Basicamente, exclusão é uma concepção [...] que nega à vitima a possibilidade de construir historicamente seu próprio destino, a partir de sua própria vivência e não a partir da vivência privilegiada de outrem. (MARTINS, 2002, p. 45). As estratégias de saber e de poder, através do espaço institucional e do discurso jurídico-psiquiátrico, mantêm-se como o lugar e forma de produção da verdade. Assim é, e assim sempre foi a função do hospital psiquiátrico no século XIX: o lugar de classificação e diagnóstico, ou seja, o lugar de produção da verdade, espaço destinado ao confronto, à disputa entre vitória e submissão, ao jogo de domínio a ser exercido sobre o louco. O grande médico do asilo – seja ele Leuret, Charcot ou Kraepelin – é ao mesmo tempo aquele que pode produzir a doença pelo saber que dela tem, e aquele que pode produzir a doença em sua verdade e submetê-la, na realidade, pelo poder que sua vontade exerce sobre o próprio doente. Todas as técnicas ou procedimentos efetuados no asilo do século XIX [...] tinham por função fazer do personagem do médico o “mestre da loucura”; aquele que a faz se manifestar em sua verdade quando ela se esconde, quando permanece soterrada e silenciosa, e aquele que a domina, a acalma e a absorve depois de a ter sabiamente desencadeado (FOUCAULT, 1979 e, 122). 63 Incluídas em suas histórias ao final deste capítulo. 102 E foi assim que, justamente, pôde a linguagem da psiquiatria se estabelecer sobre o silêncio dos sujeitados (Bruni, 1989). Desta feita, constatamos que, promovendo o aparecimento dos invisíveis, a ‘história vista de baixo’ estabeleceu um rico diálogo com uma ferramenta utilizada como instrumento para desnaturalizar o naturalizado, para fazer falar o silêncio. Analisemos e reflitamos agora sobre essa importante ferramenta, qual seja, a História Oral. 5.2. Passeando pela História Oral na companhia de Foucault, Portelli e Coutinho Em meados do século XIX, havia dois tipos de pessoas que se destacavam como autores dos livros de história: eram os profissionais liberais, mais especificamente, os advogados, e os segmentos da sociedade tradicional, como a Igreja e os representantes da nobreza. Eram essas as pessoas que dominavam os estudos históricos da época. Somente nos idos de 1870, é que o lugar da história na sociedade francesa se alterou, momento em que se tentou, através de grande esforço coletivo, romper com o antigo panorama, até então instalado. Dessa forma, as novas elites republicanas - preocupadas com a utilização política que os conservadores faziam da história -, se empenharam em assumir o controle da produção da memória coletiva do país. Assim, a História como disciplina científica, se inicia no século XIX, relacionada aos Estados Nacionais, ‘inventando tradições’ e, como campo autônomo de saber, ela tenta se distinguir do mito, da fábula, do jornalismo mesmo, das superstições. A emergência do movimento contemporâneo da História Oral ocorreu em 1948 como uma técnica de documentação histórica, ao se começar a gravar as memórias de personalidades importantes da história norte-americana (Thompson, 1992). De acordo com Heliana Conde Rodrigues (2002), a despeito de experiências anteriores nas ciências sociais e da busca de precursores na Antiguidade, analistas do percurso da História Oral situam o começo do movimento no pós-guerra estadunidense - segundo um paradigma posteriormente designado como ‘modelo Columbia’ ou ‘modelo arquivístico’ -, e entendem a História Oral como uma metodologia de pesquisa surgida como forma de 103 valorização de memórias. Como história, ela evoca uma narrativa do passado; como oral, ela indica um meio de expressão. Segundo leciona Marieta de Moraes Ferreira (1996), a utilização do gravador com fins de coleta de depoimentos pessoais iniciou-se na década de 1940 com o jornalista Allan Nevins, que concebeu um programa de entrevistas voltado para a recuperação de informações sobre a atuação dos grupos dominantes norte-americanos. À época, o objetivo dos historiadores era colher os discursos dos ‘grandes homens’ - aqueles comprovadamente detentores de ‘vidas significativas’ - para registrar os fatos e legá-los à posteridade; o intuito era o de gerar documentos de homens públicos, herdando-os para o futuro da humanidade: a voz se torna letra, que passa a ser arquivada e destinada aos tempos vindouros... Desse modo, a História Oral passa a privilegiar o estudo das elites e a preencher as lacunas do registro escrito através da formação de arquivos com fitas transcritas. Ou seja, ela passa a se ocupar apenas em documentar a narrativa das grandes patentes, do alto escalão; seu intuito, inicialmente, era o de controlar as vozes da minoria. Ainda, segundo Ferreira (1996), o começo oficial da História Oral contemporânea no Brasil foi, aparentemente, marcado pelo mesmo modelo: o de uma ‘história das elites’ a ser arquivada sob o ‘modelo Columbia’. Tratava-se de uma história oral onde as minorias eram negadas, onde se pretendia fazê-las calar, ao invés de fazê-las falar. Era necessário apaziguar todo e qualquer murmúrio ou alvoroço. Aqui, acompanhando Foucault, indagaríamos porque o aleatório teria que ser tão ordenado, “o que há, enfim, de tão perigoso no fato de as pessoas falarem e de seus discursos proliferarem indefinidamente?” (Foucault, 1996, p. 8). Em boa hora surge principalmente na Itália, uma nova geração de oralistas preocupada agora em ouvir a ‘voz das minorias’, dos soldados rasos, dos ‘pequenos homens’, ou se quisermos seguir Foucault, dos ‘homens infames’, onde o adjetivo remete a ‘sem fama’, e não a qualquer condenação moral, mas tão somente àqueles sem importância, sem glória. Esta nova maneira de historiografar - conferindo existência ao invisível -, tenta resgatar a história de extratos sociais que não possuíam registros oficiais, contrapondo-se aos métodos da chamada ‘história tradicional’ que, segundo Burke (1992), preocupou-se sempre com uma história nacional, e não com a regional. Mas a nova historiografia, que teve lugar ao final dos anos 60 e início dos anos 70, principalmente nos Estados Unidos, promoveu uma reviravolta nos estudos 104 históricos, voltando-se para o estudo da cultura, da vida cotidiana, da vida privada, das crenças e das relações de poder nos mais diversos campos sociais. Ela afasta-se dos grandes paradigmas explicativos das ciências, passando a se preocupar agora com as interrogações do presente e a se interessar pelos aspectos simbólicos e culturais da sociedade. As lutas travadas