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a sua realidade, ele tem acesso a uma identidade social, que o faz saber quem ele é e aonde quer chegar. Quando se impede o sujeito de participar da sua realidade, está-se negando a sua existência como ser humano. José de Souza Martins (2002) denuncia o desencontro entre a forma como esses indivíduos e seus infortúnios se situam dentro da sociedade, e a maneira como os profissionais acadêmicos ou os de campo a percebem, isto é, de fora para dentro. Com frequência trazem prontas as suas teorias, tentando encaixá-las em conceitos pré-estabelecidos, procurando falar pela voz do outro, negando ao sujeito mesmo a possibilidade de construir historicamente seu próprio destino, a partir de sua própria história. Ao serem descritos e analisados através dos procedimentos psico-jurídicos, os pacientes são falados através da voz do pesquisador, que passa a ser o detentor da verdade sobre a história daqueles sujeitos. Mais uma vez podemos traçar um paralelo com a idéia de Foucault a respeito da verdade e do poder. Em conversa com Gilles Deleuze no capítulo intitulado Os intelectuais e o poder (1972 b), ele argumenta: Os intelectuais descobriram recentemente que as massas não necessitam deles para saber; elas sabem perfeitamente, claramente, muito melhor do que eles; e elas o dizem muito bem. Mas existe um sistema de poder que barra, proíbe, invalida esse discurso e esse saber. [...] quando os prisioneiros começaram a falar, viu-se que eles tinham uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, esse contra-discurso expresso pelos prisioneiros, ou por aqueles que são chamados de delinqüentes, é o que é fundamental, e não uma teoria sobre a delinqüência (FOUCAULT, 1979 b, 71 - 72). E complementando, Deleuze dirige-se a Foucault: “A meu ver, você foi o primeiro a nos ensinar - tanto em seus livros quanto no domínio da prática - algo de fundamental: a indignidade de falar pelos outros” (Foucault, 1979 b, p. 72). Mais uma vez, em seu belo artigo, Foucault: o silêncio dos sujeitos, José Carlos Bruni (1989) ratifica a posição de Foucault com relação ao tema, afirmando que ele não pretendia ‘dar voz à loucura’ nem tampouco tinha a intenção de ser o seu porta-voz. Constatamos a mesma preocupação sobre a ‘indignidade de se falar pelo outro’ em artigo de Walter Salles sobre um comentário de Alberto Granado, companheiro de Che Guevara, protagonizado no filme Diários de motocicleta, ao perceber que o ator Gael Garcia encontrava-se muito ansioso em ter que representar Guevara com exatidão: 111 Não quero me intrometer no filme, mas, se você me permite uma observação, não tente mimetizar Ernesto. Você tem a mesma idade que ele tinha quando fizemos a viagem, é igualmente inteligente e sensível, está lendo os mesmos livros que ele lia. Encontre a sua própria voz para viver esta história, e assim, você fará justiça a ele (SALLES, 2011 Grifo nosso). Da mesma forma, quando ouvimos Anderson, fica evidente - a despeito de seu estado delirante - que ele fala de um lugar que é mesmo seu: ninguém o representa; ele o faz por si mesmo. Isto nos remete, com pesar, a atitudes tomadas por alguns intelectuais que tentam se apropriar de histórias e experiências de vida, tanto de grupos quanto de movimentos culturais, travestindo as suas singularidades em discursos sociológicos, psicológicos e afins. Não é incomum assistirmos o contar-se a história da escravidão sem ter se ouvido o escravo; ou de se discutir a favela sem ouvir-se o favelado; ou ainda de se problematizar as questões da loucura sem se ouvir o louco. Os exemplos de atitudes distintas a essas são inúmeros. Acreditamos que, ao poder falar de si mesmo, ao invés de ser falado através do outro, isso permite ao sujeito apoderar-se daquilo que é mesmo seu. A história da loucura nos mostra a herança que a psiquiatria, e até mesmo a psicologia, nos legou com seus preceitos e classificações em relação ao louco-infrator e a todas as modalidades consideradas ‘fora da ordem’. É comum observar-se o prisioneiro sendo falado através do poder jurídico; o louco sendo representado através do poder psiquiátrico; o negro através do branco; a criança através do adulto. Segundo pensamos, ouvir o que esses pacientes têm a nos dizer, pode ser um caminho para se chegar a esses ‘pequenos homens’, às suas ‘memórias subalternas’, fazendo-as aflorar através de suas ricas e - ainda que para muitos -, estranhas histórias. 5.3. Com a palavra, o louco! Conforme discutíamos no subcapítulo anterior, ao falar com sua própria voz o paciente desafia os jogos validados pelo conhecimento científico que, via de regra, o fazem calar, impedindo-o de criar novos significados para a sua própria história de vida presente. Ao ser interrogado pelos ‘especialistas’ - sejam eles, psicólogos, psiquiatras, 112 assistentes sociais ou mesmo, peritos forense -, o que estes priorizam é, particularmente, aquilo que diz respeito à história mesma do crime e à doença daquele sujeito. Ou seja, supõe-se estar diante de alguém que, não só cometeu um delito como também de alguém que apresenta uma determinada patologia psíquica. Dito de outra maneira, o saber científico encontra-se pronto para evocar a figura do ‘louco-criminoso’. Uma vez categorizado como tal, este só poderá responder como tal: louco, criminoso e, portanto perigoso! Sobrar-lhe-ia espaço para deixar surgir suas outras facetas? Reservar-se-lhe-iam chances para atuar de novas e diferentes formas daquela que lhe foi atribuída? Pensamos que não! Diante da realidade apresentada no panorama médico-jurídico- institucional, podemos detectar uma forte tendência dos ‘especialistas’ em olhar para o sujeito inimputável como aquele que possui tão somente uma história de vida passada que, na melhor das hipóteses, confirma a sua história de vida presente; quanto à vida futura, nada lhe é guardado, a não ser se esperar que ele repita os mesmos erros, um dia, já cometidos. Ocorre que esses mesmos sujeitos, nosologizados como louco-criminosos, têm, certamente, outras histórias a contar: não só as histórias do passado como, também, histórias de vida presente e alguns planos para o futuro - ainda que fantasiosos ou mesmo delirantes. Por questões éticas e de preservação dessas pessoas, as informações a respeito das mesmas serão breves e ligeiramente modificadas; seus nomes serão, a partir de agora, fictícios, mas não as suas narrativas... Reproduzindo falas autorizadas por eles próprios, passo-lhes, agora, a palavra! História Um: Toledo tem 37 anos, é solteiro e mora com a mãe. Sobre o seu delito, ele relata, sem demonstrar nenhuma emoção: “Um dia, passeava eu no carro de um amigo quando minha atenção foi despertada para uma moça simpática que me concedeu o regozijo de aliciar-me namorado dela, só por aquele dia... Saímos juntos pra curtir e ficamos muito embriagados. Subimos para o alto da Av. Niemeyer e namorávamos na pedra quando ela se desvencilhou de mim e caiu no precipício. Ela caiu, e eu fui embora. Não podia prestar socorro porque era um abismo”. Diagnosticado como esquizofrênico paranoide, ele foi encaminhado ao MJ para cumprir medida de segurança, há cerca de 14 anos atrás. Toledo mostra-se não 113 responsabilizado pelo ato cometido, como se dele não participasse, colocando-se de fora da situação ocorrida. O paciente passa o seu tempo lendo jornais antigos e a lista telefônica. Mas a sua principal atividade e preocupação, àquela época, era a de se comunicar com a ex- primeira ministra da Inglaterra, para onde ele pretendia se mudar: “Ela é uma pessoa encantadora! Já lhe escrevi várias cartas, mas não fui correspondido nas tais epístolas e bulas. Mas se me for cabível, gostaria que ela me concedesse a honra de ser general de seu exército. Se for atendido nesse júbilo,