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chegarei então a imperador! Mas se ela me intitular como condesso, já é um bom início... Mas falando veridicamente, minha objetivação é ser general de seu exército. Só estou aguardando ela vir me buscar. Adentrarei o país dela como arqueólogo... Estou terminando de escrever uma carta pra ela, perguntando se ela aceita ser minha fiduciária. A senhora quer ouvir?” Por outro lado, Toledo também demonstra um aguçado juízo crítico ao tecer o seguinte comentário sobre o seu trabalho como nosso ‘secretário’: “Dra. Elza, a senhora me estressa porque faz tempestade em copo d’água, assim, à toa... Eu acabei embaralhando os nomes dos pacientes todos... não sei nem mais quem eu tenho que chamar na galeria! A senhora apronta esse sanhaço todo e eu é que me enrolo! Afinal, quem é maluco aqui, eu ou a senhora?... Ao invés da senhora me preparar, a senhora tá me despreparando psicologicamente! A senhora me estressa! A senhora é uma anti-manicomial!” Mais uma vez notamos que Toledo, assim como qualquer outro paciente internado no MJ, não atua e nem se comporta sob a aura da loucura durante as vinte e quatro horas do dia... A partir da convivência com nossos pacientes ao longo de todos esses anos, podemos afirmar que, assim como eles apresentam - aqui e ali -pensamentos e atitudes delirantes, do mesmo modo eles se mostram pessoas lúcidas, de afiado espírito crítico e de muita perspicácia. História Dois: Anderson tem 47 anos e encontra-se internado no MJ há mais de 28 anos. Jamais recebeu sequer uma visita de seus familiares. Seu pai, considerado um ‘coronel’ pela família e conhecido por todos na cidade onde morava, vivia para administrar seu grande comércio. Anderson e o pai nunca se deram bem. Conta-se que, durante uma briga, assassinou a própria mulher - mãe de Anderson - quando este tinha apenas nove anos de idade, motivo da revolta que o paciente nutria pelo pai. Ninguém 114 da família ousava enfrentá-lo, com exceção de Anderson, que o desafiava, reagindo à suas ofensas com novos insultos. Considerado um homem bastante agressivo, especialmente com suas mulheres - diz-se que tinha várias -, o pai de Anderson nunca o quis por perto: acusava-o de irresponsável, de ‘drogado’ e afirmou que, certa vez, ele havia assaltado uma de suas lojas. A cada investida do pai, Anderson reagia com veemência. Como não conseguia contê-lo, mandou que o trancassem em um quarto com grades, numa espécie de jaula de onde, transcorrido algum tempo, ele fugiu para Brasília e, de lá, para o Rio. Ninguém sabe, ao certo, como Anderson aqui chegou, mas ele afirma, com convicção: “Minha loucura não me ajuda a raciocinar, mas sei que cheguei aqui vindo pelo rio Delta... lá onde meu avô é o homem mais rico do lugar.” Consta de seus prontuários que ele foi acusado dos delitos de agressão, uso de drogas e roubo de carro. É fã incondicional das principais lendárias figuras do rock, paramentando-se com panos e fitas amarradas na cabeça, nos braços e nas pernas. Durante uma de suas idas à nossa sala, como era de seu costume, sentou-se calmamente em uma velha cadeira, cruzou as finas e longas pernas, passou as mãos pelos cabelos tingidos, olhou-nos bem nos olhos e falou: “Eu não sei se esse lugar aqui é um hospital ou uma prisão”... Exatamente em seguida, como se estivesse prosseguindo com o mesmo assunto e de maneira plenamente natural, retrucou: “Eu sou agente nº 1 da Polícia Federal. Sou treinado em Brasília. Eles viram o meu cabelo, mas não notaram que eu era louco; quando eu amarrei o cabelo assim, eles viram que eu era perturbado... Eu sou um Sebastian Bach perdido e fracassado, diferente daquele lá do Canadá”... História Três: Celso tem 46 anos e encontra-se internado no MJ há pouco mais de 19 anos sob o diagnóstico de esquizofrenia paranoide, não tendo apresentado, durante todo este período, qualquer episódio psiquiátrico. Com cerca de vinte e cinco anos, durante um de seus inúmeros surtos, Celso assassinou violentamente o pai que, segundo ele, lhe agredia fisicamente, assim como à sua mãe. Antes do delito, foi várias vezes internado em diferentes clinicas psiquiátricas. Sua família resume-se a ele e ao irmão. Pretende sair do MJ o quanto antes e quer terminar os seus estudos à noite. O paciente tem licença judicial para ir quinzenalmente à sua casa. Sobre o delito, ele comenta pesaroso: 115 “Eu não poderia ter cometido um delito como esse. Eu não cometeria isso nunca! Isso não se faz... Eu tenho que tomar minha medicação constantemente... isso aconteceu porque eu deixei de tomar os remédios... se eu sentir que isso vai acontecer de novo - mas eu sei que não vai! - aí eu mesmo chamo a polícia pra me trazer de volta pra cá... Eu tô indo no Engenho de Dentro pra fazer a praxiterapia. Lá eu conheci umas pessoas que eu fiquei amigo... A gente conversa muito... Eu quero voltar pros estudos...” Em certa ocasião fui à casa de Celso com ele, dirigindo o meu próprio carro; seu irmão nos aguardava. Era uma casa muito simples, de dois andares, na parte de baixo de uma das maiores favelas do Rio de Janeiro. Conversamos os três durante um bom tempo, quando Celso perguntou-me se eu não gostaria de ver o local onde havia ocorrido o delito. Subimos ao andar de cima e o paciente relatou calmamente, através de gestos, de que maneira havia assassinado o próprio pai. Com o mesmo tom de voz monocórdico e com a mesma quietação, Celso perguntou se já não era hora de irmos embora. Despedimo-nos de seu irmão e nos encaminhamos para um pequeno bar próximo à sua casa; sentamos para um rápido lanche. Por fim, pegamos o carro e retornamos ao MJ. Sentado no banco ao meu lado, Celso olhou-me sério e disse: “Dra. Elza, a senhora precisa ter mais calma no volante... tá muito afobada... a senhora pisa muito fundo nesse acelerador!”.... Pensamos que, assim como grande parte da história de alguns povos que só puderam ser conhecidas a partir de suas canções populares ou de outras formas alternativas de comunicação - à margem dos documentos oficiais -, também as histórias dos pacientes encarcerados possam ser mais facilmente conhecidas quando realmente acreditamos que eles têm o que dizer e, assim, passamos a ouvi-los, conhecendo alguns dos silêncios da história oficial, interessando-se para além dos enredos do crime e da doença. É justo afirmar que não se trata, absolutamente, de pessoas que não sabem o que dizem, ou que não tenham o que dizer; trata-se, sim, de sujeitos a quem não lhes é conferida a palavra; trata-se de sujeitos que não têm quem lhes ouça e, por isso mesmo, nada digam, exatamente por saberem que não serão ouvidos. Consequentemente quando nos propomos a fazê-lo, deparamo-nos com histórias - reais ou fantasiosas - que podem vir a nos surpreender, nos assustar, ou até mesmo, a nos repelir, mas, sem dúvida, histórias que veem, também, nos afetar e nos sensibilizar pelo sofrimento de suas personagens. 116 Capítulo 6 Considerações finais Não se pode negar que algumas pessoas - vinculadas ou não ao mundo ‘psi’ -, sintam-se bastante desconfortáveis e incomodadas ao tentar ultrapassar os portões de ferro batido do MJ. Isto talvez aconteça, principalmente, pelo fato delas desconhecerem o que lhes reserva para além daqueles portões, só lhes restando, assim, serem conduzidas pelo preconceito e pela crença na equação determinista ‘crime = loucura' e, por fim, sentirem-se escoltadas pelo medo do estranho, do inusitado, do obscuro, medo por aquilo que se supõe não conhecer e de, por conseguinte, não poder controlar. Na verdade, o que não sabemos ou sabemos muito pouco, é sobre o sofrimento das pessoas ali encarceradas e diagnosticadas como loucas: é preciso deixar que elas mesmas nos falem o que sabem sobre o seu sofrimento. De fato, esses pacientes cometeram um crime, contudo crime ocorrido como efeito de um transtorno