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em sua averiguação (SZASZ, 1978, p. 51). Tal figura do anormal, uma espécie de descendente do monstro humano que tanto apavorou o século XVIII, foi recoberta pela categoria da ‘degenerescência17’ que, por sua vez, irá servir de justificativa para o uso de todas as futuras técnicas de classificação e de intervenção sobre esta nova classe psiquiátrica. A partir da noção de degeneração e das análises da hereditariedade, a psiquiatria deu lugar a uma espécie de racismo, qual seja, o racismo contra o anormal, contra aqueles indivíduos que, portadores de um estigma ou de um defeito qualquer, pudessem transmitir por herança, o mal que carregavam em si. A mais, a organização de uma rede institucional complexa cumprirá com o propósito não somente de acolhimento desses anormais, mas principalmente como instrumento de defesa da sociedade, funcionando como ‘caça aos degenerados’, àquele que é portador de perigo, o inacessível à pena, o incurável (Foucault, 2001). Impôs-se, assim, a intervenção da psiquiatria no campo jurídico. 17 O termo ‘degenerescência’ é formulado por Morel em 1857 no seu Traité des Dégénérescences. Segundo o autor, a degeneração, correlativa do pecado original, consistiria na transmissão à descendência dos traços mórbidos adquiridos pelos antecessores e, na medida em que eram transmitidos através das gerações, seus efeitos tenderiam a se acentuar, levando à completa desfiguração daquela linhagem. Em decorrência dessa teoria, muitos projetos de intervenção social de cunho higienista foram desenvolvidos, a fim de impedir a propagação da degeneração da raça. 23 Em riquíssimo texto de 1978 18 , Michel Foucault questiona por que a ciência psiquiátrica se obstinou tanto em reivindicar como loucos aqueles que, até então, eram considerados simples criminosos? Por que psiquiatras tentaram tomar parte dos mecanismos penais e procuraram se adonar do direito de intervenção, sustentando que existiam atos de loucura que apenas se manifestavam nos crimes hediondos e em mais nenhuma outra circunstância? Qual era o interesse da medicina em se aliar às práticas jurídicas? Por que do esforço em tentar patologizar o crime? Segundo o autor, é nesse contexto que a psiquiatria inventa a chamada ‘monomania homicida’19, conceito acatado imediatamente pelas instâncias jurídicas que, por sua vez, precisavam saber por que punir: encontra-se aí encravada a noção de periculosidade e, consequentemente, o ponto de partida para a concepção do conceito de ‘indivíduo perigoso’. O crime se tornou para a psiquiatria “uma modalidade de poder a garantir e a justificar” (Foucault, 1978 a, p. 9). Observa-se, desse modo, que ela passa a conquistar um grande prestígio na virada entre os séculos XVIII e XIX pelo fato de funcionar como reação aos perigos do corpo social. A psiquiatria funcionou não como uma especialização do saber ou da teoria médica, mas antes como um ramo especializado da higiene pública, institucionalizando-se como domínio particular da proteção social (Foucault, 2001). Era preciso defender a sociedade dos ‘indivíduos perigosos’. E, assim, finalmente inscrita na lei de 1838, ela se vê consagrada como uma disciplina médica e de higiene pública. Se o crime se tornou uma aposta importante para os psiquiatras é porque se tratava menos de um campo a conquistar do que uma modalidade de poder a garantir e a justificar. Se a psiquiatria se tornou tão importante no século XVIII não foi simplesmente porque ela aplicava uma nova racionalidade médica às desordens da mente ou da conduta, foi também porque ela funcionava como uma forma de higiene pública (grifo nosso). [...] A psiquiatria, na virada entre os séculos XVIII e XIX, conseguiu sua autonomia e se revestiu de tanto prestígio pelo fato de ter podido se inscrever no âmbito de uma medicina concebida como reação aos perigos inerentes ao corpo social. [...] A psiquiatria do século XIX, pelo menos tanto quanto uma medicina da alma individual foi uma medicina do corpo coletivo (FOUCAULT, 1978 a, p. 9-10). Ora, vê-se, deste modo, a importância que era para a psiquiatria demonstrar a existência de tão visionário quadro de loucura, especialmente sob dois aspectos: para 18 A evolução da noção de “indivíduo perigoso” na psiquiatria legal do século XIX (1978). 19 A descoberta de Esquirol, alcunhada de ‘monomania homicida’ acreditava mostrar que um certo tipo de crime atestava a loucura por si só, exclusivamente por sua presença (Castel, 1977). 24 mostrar, primeiramente, que em sua forma mais extrema, a loucura nada mais é do que crime, ou seja, a loucura é, no limite, sempre perigosa. Em segundo lugar, mas não menos importante, assegurar que ninguém pode prever a loucura, mas tão somente um médico especialista: “aquele que tem um olhar adestrado, uma longa experiência, um saber bem armado” (Foucault, 1978 a, p. 10). Constitui-se, assim, de um lado, a figura do perito psiquiátrico – a quem reservamos a segunda parte do Capítulo 2 desse trabalho -, e do outro, o sujeito perigoso. E é este sujeito de atos incontroláveis que emergirá como o irresponsável, aquele que a justiça se desobrigará de punir, incumbindo-o à prisão psiquiátrica. O Código Penal de 1890 em seu titulo III, art. 29, decreta que: Os individuos isentos de culpabilidade em resultado de affecção mental serão entregues a suas familias, ou recolhidos a hospitaes de alineados, si o seu estado mental assim exigir para segurança do publico (Código Penal Brasileiro, 1890). Portanto, a esta época, o crime é qualificado dependendo da culpabilidade ou não do autor: os loucos são, então, considerados ‘não culpados’. Neste momento, são produzidas novas formas de objetivação daquele já designado monstruoso, perigoso, louco-criminoso e, agora, paciente ‘inimputável’ reservando-lhe o manicômio judiciário como local de segregação. Sem dúvida, ao surgir a figura do alienista para proteger simultaneamente o louco e a sociedade, os manicômios tornam-se o refúgio para uma comunidade que não tolera a loucura (Rauter, 2003). Esta nova categoria nosográfica, relacionando crime e loucura, foi fomentada com o surgimento da criminologia, que tentou explicar o comportamento criminoso, baseando-se nas noções de hereditariedade e de degeneração. Assim como no século XIX, a criminologia, como “a mais pragmática e utilitária entre as ciências humanas [...], segue sendo um poderoso instrumento de controle social” (Rauter, 2003). Vamos a ela. 2.3. Quem gerencia tudo isso? 2.3.1. O casamento do Direito com a Psiquiatria: gera-se o inimputável O complexo e crítico Os Anormais, de Michel Foucault, consiste na transcrição das onze aulas do curso ministrado por ele no Collège de France em 1975. É exatamente na segunda aula que o autor trata da relação tensa e ambígua entre a 25 Psiquiatria e o Direito no que diz respeito ao julgamento da sanidade mental no campo criminal. Cumpre lembrar, acompanhando Foucault, que “foram os psiquiatras que, por volta de 1830, se impuseram de modo absoluto à prática penal” (Foucault, 1974, p. 297). Àquela época, a justiça não dispunha de meios para explicar determinados crimes, cujas características afiguravam-se incompreensíveis e a psiquiatria, por sua vez, tentou tomar para si um papel judicial no interior mesmo do campo jurídico. Destarte, o alienista, a partir do século XIX, passa a ter um papel cada vez mais preponderante no tribunal, constituindo-se, com isso, uma progressiva tendência à indiferenciação entre os papéis do médico e do juiz. Trata-se, agora, como bem argumenta Brito e Souto (2007), não de averiguação de crime praticado pelo sujeito acometido de doença, mas, ao contrário, de investigação da existência de doença mental em virtude do cometimento