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1 PREFEITURA DE SÃO GONÇALO SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO HISTORIANDO AS ARTES IX ARTE ASTECA Em 1519, ano Um-Junco segundo o calendário asteca, o trabalho de muitas gerações de construtores se traduzia em um impressionante conjunto de templos, palácios, residências aristocráticas e fóruns públicos, que cobria uma ilha outrora desabitada, no setor sudoeste do vasto e pantanoso Lago Texcoco. Erguiam-se também milhares de habitações menores que abrigavam artesãos, comerciantes e outros membros de uma sociedade extremamente estratificada. Tenochtitlán, a capital, contando com cerca de 200 mil habitantes, era o centro político e religioso de um vasto território, sobre o qual os astecas exerciam brutalmente sua dominação. Os astecas, guerreiros por excelência, estavam quase sempre em guerra com algum Estado vizinho. E impunham aos vencidos tributos representados por peles de animais, pedras preciosas, cobre, ouro, algodão, gêneros alimentícios e vários outros produtos, brutos ou trabalhados. Além dos prisioneiros que capturavam nos campos de batalha, exigiam também um contingente anual de vítimas que seriam sacrificadas a Huitzilopochtli, deus da guerra, ou a Tláloc, deus da chuva. Antes de impor sua soberania sobre o Vale do México, os astecas haviam atravessado mais de um século de duras provas. De acordo com suas lendas, os astecas ancestrais teriam recebido ordens divinas para abandonar a pátria paradisíaca, na ilha de Aztlán – conhecida anteriormente como ‘a morada das garças’, que, segundo os especialistas, talvez se situasse a noroeste do México. Depois de vaguear durante mais de um século por um deserto áspero, cuja aridez mal lhes fornecia recursos de sobrevivência, o ‘povo de Aztlán’ chegou ao vale povoado no final do século XII. Considerados selvagens e párias, os belicosos astecas passaram inclusive por períodos de servidão, mas terminaram por triunfar sobre várias outras cidades-Estado. Dotados de vontade implacável, uma máquina de guerra admiravelmente equipada, sólida coesão social e agudo senso de apropriação cultural, eles perseveraram até conseguir edificar, em um espaço de tempo bem curto, uma civilização comparável às mais antigas do Egito e da Mesopotâmia. Porém, indubitavelmente, seu ponto fraco era o fatalismo. O destino desse povo foi selado para sempre quando, em fevereiro de 1519, Cortés saiu de Cuba, onde permanecera por oito anos. Recebera do governador da ilha, Diego Velásquez, a incumbência de dirigir uma expedição para capturar escravos e explorar materiais preciosos para a Espanha. Ao ver as tropas e as provisões reunidas por Cortés, Velásquez começou a temer que aquele ambicioso cadete desafiasse sua autoridade. Informado dessas suspeitas, Cortés tratou de confirmá-las, partindo antes da data prevista. Começou por reconhecer as costas de Yucatán, depois velejou para oeste e, finalmente, tocou o litoral em um ponto por ele batizado de Vila Rica de La Vera Cruz, atualmente Veracruz. 2 Em Veracruz Cortés ouviu falar pela primeira vez dos fabulosos tesouros que, daí em diante, não cessariam de atrair sua ambição, levando-o cada vez mais para o interior. O que houve nos meses seguintes resultou de atos dos próprios astecas que, encerrados em uma concepção extremamente limitada do mundo exterior, estimularam e apressaram a própria queda. Nesse primeiro contato, um desastrado recurso diplomático teve resultados catastróficos. Montezuma (‘Senhor Irado’) enviou ao encontro de Cortés, embaixadores carregados de magníficos presentes, entre os quais figuravam vestimentas reais e adornos usados pelos deuses nas cerimônias religiosas, de acordo com as crenças astecas. Os presentes de ouro fascinaram o conquistador. Em vez de apaziguar, os emissários aguçaram a sua cupidez pela riqueza, confirmando a sua resolução de prosseguir. Os relatos feitos pelos próprios astecas nos códices compilados pelos monges deixam claro que Montezuma já receava há tempos a chegada de homens poderosos, vindos do oriente. O mito asteca anunciava a volta de Quetzalcóatl, que há muitas gerações deixara o México em uma grande jangada puxada por serpentes, prometendo voltar um dia para retomar seu trono. Ora, tal retorno estava previsto para o ano Um-Junco, segundo o calendário asteca, o mesmo que, por um capricho do destino, havia visto o desembarque de Hernán Cortés e seu pequeno exército. Era novembro de 1519. Escreveu Díaz del Castillo: “Chegamos pela manhã à grande estrada. Quando deparamos com tantas cidades e vilas construídas sobre a água, além de cidades em terra firme e estradas bem niveladas que se dirigiam para o México, fomos tomados de grande admiração diante dos templos e torres de pedra que se elevavam da água. Segundo alguns de nossos soldados, tudo aquilo parecia um sonho; e não é de espantar que eu escreva deste modo, pois jamais foi visto, nem mesmo em sonhos, aquilo que observávamos então”. Um equilíbrio precário se manteve por seis meses após a chegada dos espanhóis; durante esse tempo, a vida seguia seu curso na capital e assim Cortés e seus homens tiveram toda a liberdade para observar de perto os costumes astecas. Em sua segunda carta a Carlos V, Cortés descreveu a situação da cidade. O vale, escreveu, encerra “dois lagos que quase o preenchem. Um deles é de água doce e o outro, maior, é salobro”. Em seguida, Cortés descreve a cidade propriamente dita: “De qualquer lado que se queira entrar, a cidade fica a duas léguas do porto. Possui quatro acessos, cada qual constituído de uma calçada artificial da largura de duas lanças curtas. Suas ruas principais são largas e retas. Algumas são às vezes interrompidas, nas interseções dos canais. Mas em todas essas interrupções, algumas das quais bem grandes, há pontes feitas com longas e fortes vigas, moldadas e instaladas bem próximas entre si. Em muitas delas, dez homens a cavalo podem caminhar, lado a lado”. “Do alto de seus 50 metros, a pirâmide do Templo Maior domina o entrelaçado de ruas e canais fervilhando de atividade”. Cortés comentou a esplêndida qualidade das residências dos sacerdotes. Impressionou-se vivamente com o aspecto destes, comentando: “Vestem-se de negro, não cortam nem penteiam o cabelo desde o momento em que entram para o sacerdócio, até deixá-lo”. Tentou em vão encontrar palavras apropriadas para descrever o centro religioso da cidade: “É tão grande que, em sua superfície cercada por um muro, se poderia construir uma cidade para abrigar quinhentas almas. Em seu interior, por todos os lados, se elevam belos edifícios, com amplas salas e corredores. Existem pelo menos quarenta pirâmides muito altas e bem construídas. Na mais elevada, cinquenta degraus conduzem ao corpo da edificação principal. A principal pirâmide é mais alta que a torre da Catedral de Sevilha. As obras em pedra e em madeira também são magníficas, e em lugar algum seria possível fazê-las melhor. No interior dos templos, onde são conservados os ídolos, tudo o que há em pedra 3 é esculpido, e toda a madeira é ornada com relevos e pinturas representando monstros e outras figuras e motivos”. Cortés também não podia deixar de notar outro aspecto desse santuário. Os astecas possuíam um verdadeiro fascínio pela cabeça de suas vítimas, e conservavam os crânios em patamares construídos diante dos templos. A atração dos astecas pelos sacrifícios se manifestava também de outro modo. Os degraus da dupla escadaria conduziam a uma plataforma no alto da pirâmide, e ali a pedra sacrificial sobre a qual eram arrancados os corações das vítimas estava enegrecida pelo sangue ressecado. No alto, o santuário de Huitzilopochtli possuía uma fachada pintada e incrustada de fileiras de crânios. Ao lado, o santuário de Tláloc, o deus da chuva, era pintado com faixas azuis representando a água. Apesar das sangrentas práticas religiosas, os astecas de maneira geral impressionaram Cortés por sua civilidade.Suas “atividades e seu comportamento são de nível quase tão elevado quanto na Espanha. Considerando que são bárbaros, não conhecem a Deus e não se comunicam com outras nações civilizadas, é notável o que possuem”, admitiu. Passado o período de observação de Cortés, vários foram os confrontos entre espanhóis e astecas, até que a violência conseguiu destruir em bem pouco tempo uma civilização poderosa, rica, de cultura elevada, que provavelmente avançava em direção a um apogeu ainda não atingido. No ardor do combate final, Cortés deu ordens a seus homens para arrasar a cidade, à medida que avançavam. Os conquistadores quebraram estátuas, derrubaram muros, saquearam e destruíram templos, em meio a turbilhões de fumaça que se elevava das casas incendiadas. A violência e a arbitrariedade dos espanhóis continuaram por muito tempo a devastar e arrasar a população. Fome e epidemias – sobretudo a de varíola, cujos germes foram levados pelos invasores e contra os quais os indígenas não possuíam imunidade – se juntaram às desgraças dos astecas. As pedras derrubadas das cidades gêmeas de Tenochtitlán e Tlatelolco serviram para a construção da nova cidade do México. Os espanhóis cortaram os monólitos que haviam sido trabalhados à mão, ou os usaram inteiros em fundações, contrafortes e outros suportes. Utilizaram os restos de demolição das habitações destruídas para entulhar a vasta rede de canais que faziam da cidade uma verdadeira Veneza do Novo Mundo. Pouco a pouco drenaram o Lago Texcoco e destruíram os férteis ‘jardins flutuantes’, as chinampas, nos quais os camponeses cultivavam milho, abóbora e amaranto, além de feijão, pimentas e por fim as flores, onipresentes tanto na vida cotidiana quanto nos rituais astecas. Por seu lado, as autoridades religiosas lançaram uma campanha de aniquilação de todas as manifestações de paganismo, ordenando a destruição de livros, objetos de culto e estatuária. Mutilaram os que eram grandes demais para que fossem deslocados. Sobre as ruínas da antiga e suntuosa residência de Montezuma foi erigida a Casa da Moeda do governo colonial e o Palácio Nacional. Na área nivelada do Templo Maior, onde os sacerdotes astecas haviam sacrificado milhares de vítimas humanas, crescia a nascente cidade colonial. Um povo em busca de seu passado A ascensão ao poder criou para os astecas a necessidade de se apropriar não apenas de uma ascendência nobre, mas também da marca do destino. Em busca de legitimidade, os astecas se dedicaram obstinadamente a conseguir uma. Com esse propósito, procuraram um reprodutor prolífico e dotado de linhagem inatacável. Conseguiram importar de Colhuacán um príncipe que afirmava descender dos aristocráticos toltecas e promoveram seu casamento com vinte mulheres astecas, para 4 que gerasse muitas crianças de sangue azul – em suma, uma nobreza de encomenda. E funcionou. Itzcoátl, um dos filhos do príncipe, comandou seus homens em uma batalha decisiva, que lhes rendeu despojos consideráveis e muitos prisioneiros. Não contentes em conferir uma nova personalidade à nação, trataram de aniquilar a antiga. Destruíram todos os traços suscetíveis de colocar em dúvida os títulos de nobreza e o caráter de divina predestinação de seu povo para atingir um brilhante futuro. A história foi reescrita de modo glorioso, porém parcial. Itzcoátl e seu sucessor, o primeiro Montezuma, estabeleceram inúmeras alianças e promoveram uma violenta expansão de seu domínio sobre o vale. Os tributos extorquidos dos povos conquistados permitiram que Tenochtitlán enriquecesse espantosamente. De acordo com os códices elaborados pelos astecas para uso próprio, a migração começara por volta do ano 1100, girando em torno do berço de seus ancestrais, a região chamada Aztlán, isto é, ‘país das garças’. Nada se sabe acerca da localização exata de Aztlán, exceto que se situava a noroeste da atual Cidade do México. Ela poderia ser buscada tanto no sudoeste dos Estados Unidos quanto a algumas centenas de quilômetros de sua futura capital Tenochtitlán. É difícil imaginar um grupo de migrantes menos promissor. Sob a direção de Huitzilopochtli, deus feroz que com o tempo se transformaria na divindade terrena da fertilidade e em símbolo do militarismo e do imperialismo associados ao sol, se alimentavam de vermes, roubavam mulheres e sacrificavam os prisioneiros para aplacar seus deuses. Acreditavam que o sol não mais se levantaria se Huitzilopochtli não fosse alimentado com os corações arrancados. Esse deus anunciara, por meio dos sacerdotes, que a migração asteca não chegaria ao fim enquanto não alcançassem o local que ele havia escolhido como capital desde o início dos tempos. Segundo uma crônica, esse lugar seria reconhecido por um sinal: a águia “que grita e abre as asas, se alimentando da serpente despedaçada”. Por onde os astecas passavam, os povos sedentários que enfrentavam rejeitavam essa gente vil e bárbara. Em 1168, chegaram ao Vale do México e perambularam por seus arredores. Desconfiados de todos, mudavam constantemente de lugar. Em vinte anos, ocuparam em duas ocasiões as alturas estratégicas de Chapultepec e o Lago Texcoco e por duas vezes foram expulsos por vizinhos indignados. Em 1319, esgotados e desmoralizados, se sentindo mais distantes que nunca da riqueza e do poder prometidos por Huitzilopochtli, pediram asilo na nobre cidade de Colhuacán. Os colhuacanos que precisavam de mercenários e tinha perfeita consciência do talento de seus indesejáveis hóspedes para o massacre, resolveram manter os astecas à mão. Provavelmente com segundas intenções, ofereceram abrigo a esses cruéis mendigos em um local desolado, coberto de rochas vulcânicas infestadas de serpentes. E, muito surpresos, constataram que os astecas não apenas sobrevivam, mas também prosperavam. Como relata a crônica, “eles se alegravam com a visão de tantas serpentes, que assaram, cozinharam e comeram todas”. Essa faculdade de adaptação impressionou Achitometl, rei de Colhuacán, e os outros chefes da cidade, que decidiram usar os talentos dos guerreiros astecas. Foi assim que estes ganharam a confiança de seus anfitriões. Porém, logo Huitzilopochtli se manifestou dizendo: “Escutem-me. Não ficaremos por aqui. Iremos para o lugar onde encontraremos aqueles que devemos capturar e dominar. Mas não cometamos o erro de mostrar amabilidade para o povo de Colhuacán. Comecemos uma guerra. Eu ordeno: peçam a Achitometl sua filha virgem, sua filha bem- amada e eu sei que ele a entregará”. Obedecendo à ordem, os astecas procuraram o rei e lhe pediram a filha, para fazer dela a esposa de um deus. O soberano consentiu e ela foi levada a Tizapán, onde Huitzilopochtli apareceu novamente e declarou: “Eu ordeno que matem a filha de 5 Achitometl e tirem sua pele; depois disso, vistam um sacerdote com essa pele e mandem vir Achitometl”. Eles obedeceram, e Achitometl aceitou o convite para ver a elevação de sua filha à condição de deusa. Ao penetrar no templo às escuras, depositou suas oferendas de sangue e flores aos pés do ídolo que lá havia. Ofereceu também incenso. De acordo com as crônicas, “quando este começou a queimar, o fogo clareou um pouco o lugar. Subitamente, o rei notou que o sacerdote assentado ao lado do ídolo estava vestido com a pele de sua filha e mergulhou em profundo terror”. Os furiosos habitantes de Colhuacán perseguiram os astecas até os pântanos do Lago Texcoco. Podemos imaginá-los vagando por essas terras encharcadas, confusos e desesperados, conduzidos a essas desoladora condição pelas ordens de seu deus. Mas logo viram, em uma ilha baixa coberta de juncos, uma águia pousada sobre um cacto; enquanto observavam, a águia abriu as asas e lançou seu grito de triunfo – o sinal anunciado pelo deus. A busca se encerrara e agora começaria sua sangrenta expansão por todo o vale do México. Iriam construir seu império fundado essencialmente na paixão pela guerra. Ricos em plena ascensão, osastecas usaram a imaginação para satisfazer, ao menos em parte, sua sede de legitimidade. Associaram sua história à de povos do passado. Impressionados com as supostas realizações dos toltecas, tentaram se equiparar a eles. Não importa que tenham sido totalmente enganados: apenas em anos recentes a arqueologia revelou a que ponto os admiradores dos toltecas estavam mal informados a seu respeito. Perdidos no passado estavam os construtores de Teotihuacán, dos quais se sabia muito pouco; assim, os astecas puderam forjar toda espécie de lenda, sem temer desmentidos. Encheram-se de profunda admiração pelas ruínas de Teotihuacán – cidade que havia sido maior e mais suntuosa que Tenochtitlán – e quiseram fazer dela o lugar de nascimento dos deuses, celebrando lá regularmente alguns de seus ritos religiosos. Apesar de Teotihuacán significar ‘cidade dos deuses’, esse nome nada esclarece: foi dado pelos astecas, muito tempo depois, que sentiram no sítio já desolado e em ruínas os vestígios de uma presença divina, imaginando que apenas deuses poderiam ter morado ali. Ninguém sabe como Teotihuacán se chamava durante a época de seu esplendor, ou como os seus habitantes se autodenominavam. Apenas nos últimos cem anos os arqueólogos conseguiram ter uma ideia superficial de sua história e de sua queda. Sobre essa cidade a arqueologia voltou sua atenção desde o final do século XIX. Várias ações ocorreram como as de Désiré Charnay (1882), Leopoldo Batres (1884 – 1a expedição, 1905 – 2a expedição), Antonio García Cubas (1886), Manoel Gamio (1917) Sigvald Linné (década de 30), Ignacio Bernal e Jorge Acosta (década de 60), René Millon (década de 60). Em 1971 a arqueologia deveu a natureza. Uma chuva diluviana provocou a formação de uma depressão na base da Pirâmide do Sol. As escavações revelaram os restos de uma escada que levava para o interior da pirâmide e terminava em um túnel de 112 metros de comprimento. Para explorá-lo foi preciso atravessar 29 paredes que obstruíam o caminho, e que só poderiam ter sido construídas a partir de fora. Por fim, quase no centro da pirâmide, havia uma grande caverna e, em torno dela, quatro câmeras pequenas. O conjunto todo fora ampliado na forma de um trevo. 6 Alguns especialistas sugeriram que a presença dessa gruta, formada por uma enorme bolha de gás no interior de uma corrente de lava surgida nas profundezas da terra, seria o motivo da construção da pirâmide. Como essa pirâmide fora a primeira edificação de grandes proporções em Teotihuacán, se deduziu que a própria cidade fora fundada a partir da caverna. Essa incrível conclusão se impõe por um único fato: para os antigos habitantes do México, as cavernas possuíam uma importância simbólica primordial. Códices e glifos contêm muitas representações de grutas, nas quais teriam ocorrido a criação e a matriz da própria vida, origem do Sol e da Lua. Naqueles terrenos áridos, as sagradas nascentes de água frequentemente apareciam em grutas, o que originava a crença em seu nascimento nas profundezas do mundo subterrâneo, para o qual iam os mortos. Embora atualmente esteja seca, a vasta caverna de Teotihuacán exibia traços de água abundante em outros tempos. Nos cultos místicos associados às cavernas aparece de novo o grande deus Tláloc, que não era senhor apenas da chuva, mas também de grutas e rios. É possível que a caverna situada sob a Pirâmide do sol fosse o santuário de um culto cujos adeptos seriam os fundadores da cidade. Além disso, numerosos indícios revelam a utilização das cavernas nos primeiros séculos após a construção do edifício. Mas, por que essa cidade, próspera durante tanto tempo, teria caído? E o que revelam sobre as circunstâncias de sua morte os inúmeros vestígios de incêndio encontrado entre as ruínas? Os especialistas em clima buscaram as causas da queda de Teotihuacán em uma crise do meio ambiente – erosão do solo, por exemplo, com a consequente perda da colheita, ou secas prolongadas. A produção de cal, material básico na construção de Teotihuacán, dependia da queima de enormes quantidades de madeira, que servia de combustível; é provável que, com o tempo, um maciço desflorestamento haja desnudado quilômetros de campos ao redor da cidade. O clima deve ter se tornado mais seco. Mas é realmente improvável que a perturbação ecológica tenha sido o único fator da catástrofe e, qualquer que seja o motivo da crise final, talvez se possa concordar com Millon – deve ter faltado ao governo da cidade sutileza de espírito e imaginação para enfrentar o problema. Um dos aspectos perturbadores do incêndio que acompanhou a morte da cidade é que, pelas evidências arqueológicas, ele se circunscreveu aos edifícios religiosos, principalmente ao longo da Avenida dos Mortos, onde se erguiam mais de cem templos e santuários. Ao todo, são cerca de seiscentas as edificações atingidas pelo incêndio. Millon, e outros, acredita que esse incêndio tenha ocorrido “em uma série coordenada de atos de destruição ritual”. Segundo essa interpretação, para destruir o poderio político de Teotihuacán, os causadores do incêndio foram obrigados a arruinar seu esplendor religioso. O mesmo tipo de organização comunitária jamais reviveria, em parte alguma da região, após o naufrágio dessa grande cidade. Nas palavras do historiador inglês Nigel Davies: “A queda de Teotihuacán, como a de Roma três séculos antes dela, mergulhou o mundo em uma era de desordem, em que as cidades sobreviventes pareciam planetas orbitando em torno de um sol extinto”. Iniciou-se uma era em que se enfrentavam minúsculos reinos, pequenos Estados guerreiros dotados de furiosos apetites de conquista. A inextinguível sede das divindades Jamais houve um povo mais dedicado às proezas marciais que o belicoso povo asteca. Nada havia mais honroso, a seus olhos, que a morte viril em combate ou o destino de um prisioneiro oferecido aos deuses sobre a pedra sacrificial. Os guerreiros mortos no campo de batalha ou sobre o altar dos deuses, tal como as mulheres que morriam ao dar à luz, eram considerados dignos da vida eterna. Quase todos os outros, 7 fosse qual fosse sua autoridade ou sua posição, deveriam vagar durante quatro anos pelo mundo subterrâneo, até atingir o nível inferior, que os astecas chamavam Terra dos Mortos, ou “nosso lar comum”, onde ofereciam presentes ao Senhor da Morte, antes de desaparecer entre as sombras. Os oradores astecas louvavam principalmente o glorioso fim dos homens mortos em combate; em um texto que sobreviveu, um orador agradece ao criador por ter lhe permitido “ver a morte de tantos irmãos e sobrinhos meus”. Os poetas celebravam apaixonadamente tais traspasses. “Nada há que se compare à morte em combate, nada como a gloriosa morte, tão preciosa para quem nos dá a vida. Ao longe eu a vejo; meu coração por ela anseia!” Um outro evoca o campo de batalha em termos líricos: “Lá, onde verte o ardente e divino licor, onde as águias sagradas estão enegrecidas de fumaça, onde rugem os jaguares, onde se espalham gemas e ricas jóias, onde as penas ondulam como espuma, onde os guerreiros se despedaçam uns aos outros e os nobres príncipes são dilacerados”. O próprio nascimento era considerado pelos astecas como um combate, cheio de sangue e sofrimento. Os poetas exaltavam profusamente a nobreza da morte pelo combate. Um sortilégio em honra de um guerreiro dizia: “Possa seu coração não desfalecer. Possa ele saborear o aroma, o frescor e a doçura das trevas”. Ofereciam-se escudos e flechas em miniaturas aos meninos destinados à carreira das armas, simbolizando o propósito de sua existência futura; o guerreiro recebia seu cordão umbilical e as pequenas armas quando era pequeno, para enterrar solenemente no campo de batalha. Tal paixão pela vida militar tinha, em parte, origem religiosa. A cada noite, o sol precisava lutar novamente contra a lua e as estrelas e, se Huitzilopochtli (deus sol) perdesse o combate, a vida se extinguiriaem um sudário de trevas. Era necessário renovar constantemente as forças do deus e, aos olhos dos astecas, o elemento nutritivo mais apropriado era o sangue humano, qualificado como “água muito preciosa”. Não se esgotava a necessidade de novas vítimas para o sacrifício. As estimativas dos pesquisadores variam quanto ao número de pessoas condenadas à morte anualmente, mas talvez atingisse 20 mil em todo o império. Havia outras razões para cultivar a guerra. Como sua contemporânea, a Itália renascentista, o México do tempo dos astecas reunia um conjunto de cidades-Estado. Dezenas de pequenos aglomerados urbanos disputavam a hegemonia, cada qual exercendo seu domínio sobre uma superfície suficientemente grande para alimentar sua população. O Estado que conseguisse aterrorizar todos os outros poderia reinar sobre eles e exigir tributos mais pesados. Curiosamente, outro fator favorecia a guerra: a excepcional fertilidade do Vale do México, cuja capacidade agrícola fora ampliada com a criação de chinampas, jardins flutuantes ancorados no fundo dos lagos, de onde retiravam o lodo extremamente fértil e criavam novo solo sobre cadeias de ramos entrelaçados. Em consequência, havia produção suficiente para viver com relativamente pouco trabalho. Uma estimativa atual avalia que o produto de cerca de sete semanas de trabalho bastava para alimentar uma família durante um ano. O excedente das colheitas, depois de retirada uma parte sob a forma de tributo, alimentava a população das cidades. Mas ainda sobrava mão-de-obra, deixando homens disponíveis para aspirar a ambições militares. Um dos efeitos foi a criação de uma estrutura social hierarquizada, na qual emergiram grupos diferenciados, como o dos guerreiros e o dos sacerdotes. Nessa constelação de Estados em perpétuo conflito, os astecas compreenderam bem depressa que era essencial aperfeiçoar a arte da guerra. Os códices astecas, os relatos dos espanhóis e os achados arqueológicos demonstram que a tecnologia militar na América Central não tendia a desenvolver máquinas e engenhos bélicos destinados a lutar e sitiar. A vitória ou a derrota no campo de batalha se subordinavam exclusivamente ao treinamento de cada guerreiro. Nessas condições, a vitória de um povo dependia de seu destaque em dois campos: a organização do exército e o moral dos guerreiros. A 8 cultura asteca era toda voltada para o aperfeiçoamento desses dois fatores de superioridade. O exemplo vinha do alto. O trono asteca não se transmitia automaticamente ao filho mais velho, mas dependia de uma seleção: um conselho de guerreiros, sacerdotes e diversos dignitários escolhia o futuro monarca entre os membros da família real; entre todos os critérios de escolha, os mais importantes eram a liderança militar e a aptidão para o sacerdócio. Logo que o novo soberano subia ao trono, se esperava que encabeçasse suas tropas em uma campanha de conquistas. O sucesso dessa expedição inaugural constituía a prova crucial de seu valor. Quando o rei Tizoc, pouco depois de ser elevado ao trono, trouxe apenas quarenta prisioneiros e perdeu trezentos homens em sua primeira campanha, foi considerado um fracassado e sua reputação jamais se refez. Seu reinado durou apenas cinco anos. De acordo com um cronista, “os membros da corte, enfurecidos com sua fraqueza e com seu débil desejo de contribuir para a glória da nação asteca, ajudaram-no a morrer graças a algo que lhe deram para comer”. Por ironia da história, esse homem de tão deplorável reputação, viria a se tornar um dos soberanos astecas mais célebres, graças à dedicatória da triunfal Pedra de Tizoc, maciço monumento circular de 2,5 metros de diâmetro por 90 centímetros de altura, que hoje é um dos tesouros do Museu Nacional de Antropologia, no México. Embora esteja decorada a toda volta com relevos que celebram os triunfos astecas, apenas um destes pode ser atribuído às campanhas de Tizoc. Os especialistas acreditam que a decoração comemora o império por ele recebido, e não suas raras vitórias. Por trás dessa preferência pelos triunfos marciais havia uma lógica implícita. É interessante observar que os astecas não fizeram esforços para firmar seu poderio sobre os povos vencidos. Não edificaram cadeias de fortificações para manter os derrotados sob seu jugo e, ao que parece, eram raras as guarnições permanentes. Era pela intimidação que obtinham a perenidade da submissão das outras cidades-Estado. Apenas o temor de represálias garantia a manutenção dos tributos. Mas, ao primeiro sinal de fraqueza dos exércitos dominadores, os povos conquistados estariam sempre prontos a levantar a cabeça e se sublevar. Os conquistadores espanhóis aproveitaram essa situação, ao se aliar a povos hostis aos astecas, que esperavam apenas uma oportunidade para derrotar seus opressores. No entanto, até se abater sobre eles esse imprevisível cataclismo final, os astecas dispuseram de uma máquina de guerra tão eficaz quanto seria possível com as técnicas da época. O Estado empregava toda sua energia para estimular as proezas guerreiras. Depois do vigésimo aniversário, qualquer indivíduo do sexo masculino poderia ser convocado para servir o exército, em campanhas que em geral começavam no final do outono, após o término das colheitas e das chuvas de verão. Além desses novos recrutas, existia uma classe militar profissional, extraída tanto da aristocracia quanto entre plebeus que demonstrassem seu valor na guerra. A guerra era a única ocupação desses soldados de tempo integral; o Estado subvencionava todas as suas necessidades, com os recursos dos tributos pagos pelas cidades vencidas. O princípio da recompensa pública continuava a ser aplicado ao guerreiro que fizesse quatro prisioneiros, ou mais. Ao atingir essa marca passava à condição de soldado respeitável, com direito a receber uma parte do tributo imposto aos Estados 9 vassalos e a postular uma cadeira no conselho de guerra, destinado a assessorar o soberano em assuntos militares. Esse guerreiro também podia ser chamado para desempenhar importantes responsabilidades na vida civil, como por exemplo administrar escolas para educar os filhos de plebeus. Por fim, como recompensa por suas proezas, um guerreiro experimentado, sobretudo se fosse nobre, podia ser convidado a integrar uma das sociedades de elite de guerreiros profissionais, que faziam do exército asteca uma máquina de guerra notável. No topo da hierarquia estavam as ordens dos Cavaleiros da Águia e dos Cavaleiros do Jaguar. Os títulos dessas associações sugerem a altivez de seus membros, evocando os grandes predadores que reinavam, soberanos, sobre a fauna centro-americana. Para os astecas, a águia “ignorava o medo, era valente e audaciosa, batia suas asas e gritava, podendo olhar o sol de frente”, qualidades que deviam ser imitadas. E no jaguar viam uma criatura “prudente, inteligente e arrogante”, um animal poderoso capaz de se desviar habilmente das flechas do caçador antes de se erguer, saltar e se lançar sobre seu agressor. Cada ordem tinha sua própria residência no interior do palácio, onde o conselho de guerra se reunia para debater questões militares na presença do soberano. Os guerreiros de elite se vestiam de águia ou de jaguar para ir à guerra. Os arqueólogos encontraram esculturas que dão uma ideia do aspecto aterrorizante que deviam ter esses Cavaleiros, da Águia ou do Jaguar. Uma estátua de pedra de cerca de 75 cm de altura, hoje no Museu Nacional de Antropologia do México, representa um personagem de cócoras, com a cabeça emergindo da boca aberta de um jaguar. Ainda mais notáveis são duas representações em tamanho natural de Cavaleiros da Águia, feitas de argila cozida e descobertas de cada lado da entrada que conduzia às salas reservadas a essa ordem. O rosto do guerreiro surge de um bico aberto e os braços, vestidos com mangas emplumadas que se alargam como asas, dão a impressão que os personagens se preparam paralevantar vôo. A presença dessas figuras dos Cavaleiros da Águia no seio do templo leva a pensar que certas cerimônias religiosas da ordem se desenrolavam nesse local. A proximidade entre o Templo Maior e o palácio real sugere que o soberano também assistisse aos conselhos de seus guerreiros de elite. Outras ordens militares de prestígio incluíam os otontin, que levavam o nome de uma tribo muito admirada por sua ferocidade, e os cuahchicqueh, isto é, os ‘tosquiados’. Depois dessas tropas de elite, os simples soldados eram organizados em esquadras de vinte homens, agrupados por sua vez em companhias, de duzentos a quatrocentos guerreiros. O exército asteca oferecia um espetáculo esplêndido e assustador, quando se preparava para o combate. De acordo com o caráter cerimonial da atividade bélica na América Central, a vestimenta dos combatentes tinha por fim a ostentação, e não só a eficácia militar. Embora tenham restado poucos vestígios de armas, os códices e as fontes espanholas oferecem uma ideia bastante precisa da armadura completa do 10 guerreiro. A principal proteção do corpo consistia em uma couraça de algodão acolchoado e embebido em água salgada, com cerca de dois dedos de espessura. Essa couraça, usada somente por guerreiros experientes e membros das ordens militares, era tão eficaz contra as flechas que os espanhóis passaram a preferi-la, em lugar de sua própria cota de malhas. Por cima dela, o soldado vestia uma túnica emplumada que se alongava em uma espécie de saia, ou um macacão justo feito de tecido grosso, quase sempre recoberto de penas multicores, habilmente dispostas de forma a simular a pelagem de um animal, a aparência de um deus, ou a de um demônio. Os nobres e os guerreiros de elite às vezes usavam capacetes imitando cabeças de animais predadores. Praticamente todos os combatentes levavam um escudo redondo, feito de bambu ou de madeira endurecida no fogo, reforçado com couro e ornamentado externamente com penas. Os oficiais levavam altos estandartes, presos por arreios a suas costas. Os estandartes eram feitos de vime e magnificamente decorados de penas, pedras preciosas, prata ou ouro. Eles indicavam a categoria de quem os levava e, no fragor da batalha, permitiam aos comandantes reconhecer cada companhia, servindo também como sinal para o reagrupamento das tropas de cada unidade. Portanto, desempenhavam um papel essencial na comunicação. As armas ofensivas levadas pelos guerreiros eram principalmente o arco, que podia atingir 1,5 metros de comprimento e atirar flechas com pontas de sílex ou de obsidiana, e a funda feita de fibras de agave, com a qual lançavam, a 300 ou mais metros, pedras especialmente talhadas que podiam derrubar ou matar um homem. Outras armas de tiro eram os dardos de madeira com pontas endurecidas no fogo, arremessados com a ajuda de atlatls, propulsores em forma de gancho que aumentava 50 por cento o poder de penetração. Os soldados também carregavam uma lança, mais alta que eles próprios, munida de lâminas de obsidiana cortantes como navalha. Alguns manejavam clavas com cabeça de madeira ou de pedra. Porém, a mais perigosa de todas as armas era a espada-clava, provida de lascas de obsidiana cortantes como o vidro, incrustadas em ranhuras e fixadas com uma cola extraída de excremento de tartaruga. Algumas eram tão pesadas que precisavam ser manejadas com as duas mãos. Os espanhóis disseram que essas espadas podiam decapitar um cavalo em um só golpe. Mas existia uma hierarquia entre todas as armas. O arco era associado aos caçadores do norte, bárbaros aos olhos dos astecas, e portanto incluído entre as armas inferiores. Os nobres, por sua vez, adestrados desde a mais tenra idade no manejo de armas pesadas, usavam a grande espada-clava e a lança-chuço, extremamente temíveis 11 em um combate corpo a corpo. Em consequência, os nobres sofriam menos perda e conseguiam mais prisioneiros, reforçando sua posição no topo da pirâmide social. Uma das características dessas batalhas, a que mais espantava os europeus, era o reduzido interesse pela aniquilação do adversário; matar o inimigo não tinha sentido, pois um prisioneiro ferido ou mutilado era impróprio para a oferenda sacrificial. Em vez de usar o gume da espada, o combatente asteca preferia atacar com a parte plana de sua arma e derrubar o adversário. E provavelmente tentaria enfraquecer e esgotar o inimigo, até que este reconhecesse sua derrota, como conta o Códice Florentino, se lançando à terra “voluntariamente como morto, como se tivesse perdido a respiração”. Assim, seria capturado pelo vencedor e levado – intacto – para o sacrifício. Ao obter a vitória, os guerreiros raramente matavam os vencidos. Propunham condições. Se os dirigentes da cidade que havia perdido a guerra não quisessem se submeter, o vencedor poderia invadi-la e incendiar seu templo principal. A representação da vitória era um glifo no qual figurava um templo em chamas. O incêndio do templo tinha grande dimensão simbólica, pois significava a derrota do deus local, golpe fatal para o orgulho de seus fiéis. Mas havia também um lado prático importante: o templo, em geral, era a praça mais fortificada da cidade e seu principal arsenal, por isso sua destruição significava o fim de toda resistência. No entanto, os invasores raramente atacavam bairros civis, pois não havia interesse em diminuir a importância do tributo que os vencidos poderiam pagar. Na verdade, os conquistadores preferiam deixar a casa reinante intacta, pelo menos enquanto o soberano respeitasse as condições impostas. O objetivo da ação militar era obrigar as nações a aceitar a hegemonia asteca e pagar o tributo. Em 1519, cerca de 370 cidades obedeciam a essas condições, e o volume de mercadorias que chegava anualmente a Tenochtitlán era impressionante. Dentre os combates centro-americanos mais marcados por rituais destacam-se as Guerras Floridas. Remontando às próprias origens do poder asteca, esses combates obedeciam a regras muito estritas. Em primeiro lugar, era escolhido um campo de batalha nos limites dos dois Estados inimigos e fixado um dia para o início das hostilidades, assinalado por uma grande fogueira de papel e incenso acesa entre dois exércitos. O desenrolar dos combates propriamente ditos diferia. Dispensava-se a chuva inicial de flechas, pedras ou dardos, pois o propósito era demonstrar heroísmo, no combate corpo a corpo. Parece que eram três os objetivos perseguidos pelos astecas durante as Guerras Floridas. De início, hipoteticamente, permitiriam refrescar a memória das potências vizinhas, ao exibir a superioridade de suas forças, a dissuadi-las de manifestações ameaçadoras. Em segundo lugar, oferecia uma excelente oportunidade para os guerreiros se adestrarem nas artes marciais. Por fim, e talvez o motivo mais importante, essas guerras forneciam um contingente regular de prisioneiros para prover a insaciável necessidade de vítimas sacrificiais. O sacrifício humano é encontrado em todas as civilizações centro-americanas, mas em nenhum lugar se reveste da importância que conheceu entre os astecas. Para eles, o sacrifício se relacionava com o significado místico atribuído ao sangue, fluido vital que impedia o mundo de parar. Todos os inúmeros e variados mitos astecas sobre a criação ressaltavam a insaciável sede de sangue das divindades. Os deuses aceitavam igualmente sangue animal. A cada manhã, o nascimento do sol era saudado com o sacrifício de centenas de codornas, às quais arrancavam a cabeça. No solstício de inverno também eram sacrificados cães. Os seres humanos deviam oferecer seu próprio sangue. Eram raros os que estavam isentos dessa dolorosa obrigação, e até as orelhas dos bebês eram picadas, para que sangrassem. Para o próprio soberano, a autoflagelação constituía uma das partes obrigatórias da cerimônia de coroação. O novo rei demonstrava, assim, sua capacidade de resistência à dor, prova exigidade todo homem asteca. O instrumento 12 mais comum para infligir ferimentos que sangrassem era o espinho de agave. O penitente perfurava o alto da orelha, a língua, o pênis, ou qualquer outra parte bem irrigada do corpo, e depois espetava o espinho sangrento em uma bola de ervas trançadas, ou o depositava em um leito de flores. Esse ritual era particularmente acentuado entre os sacerdotes. Além do ritual com o espinho de agave, eles utilizavam lâminas de obsidiana para cortar o lobo da orelha ou o prepúcio, ou ainda perfuravam a carne com o auxílio de uma sovela (instrumento formado por uma espécie de agulha reta ou curva, com cabo) de obsidiana e inseriam canudo para recolher o sangue. Essas práticas eram consideradas benfazejas tanto para o indivíduo como para o Estado, pois os astecas acreditavam que uma relação contratual unia homens e deuses. Se as oferendas fossem suficientes, as divindades em troca mandariam chuva, colheitas abundantes e vitória militar. Porém, a autoflagelação e o sacrifício de animais não bastavam para garantir os favores divinos. O sacrifício humano se revestiu de importância crescente, à medida que o império ampliava suas fronteiras. O sacrifício humano tomava várias formas, cada qual associada a uma divindade em particular, ou a uma das múltiplas celebrações que pontuavam o ano litúrgico asteca. Além disso, as vítimas podiam ser escravos ou prisioneiros de guerra. Sem dúvida, o tipo de sacrifício mais comum consistia em arrancar o coração da pessoa deitada. Mas eram feitas também decapitações, ou as vítimas eram crivadas de flechas e dardos lançados com o auxílio do atlatl, transformadas em alvos vivos. O canibalismo que frequentemente acompanhava os sacrifícios astecas seguia regras estritas. Segundo um cronista, acreditavam que as vítimas dos sacrifícios se tornavam divinas, e por isso seus membros eram consagrados e “comidos com reverência e meticulosidade, como se fosse uma oferenda dos céus”. Na maioria dos casos, as vítimas se dirigiam estoicamente para a morte, convencidas de que uma existência gloriosa em companhia dos deuses as aguardava no além. Há exemplos de guerreiros capturados que insistiam para ser sacrificados, mesmo que lhes fosse oferecida a liberdade. É impossível dizer se esse comportamento era ditado pela fé religiosa, pelo desejo de mostrar uma indiferença viril em face da dor, ou pela impossibilidade moral de sobreviver à derrota. O aspecto amável do mundo asteca Apesar de sua feroz reputação, os guerreiros astecas aspiravam a um curioso paraíso após a morte; talvez essa idealização do éden seja mais reveladora da sensibilidade de sua cultura que as apavorantes cerimônias realizadas no Templo Maior. De acordo com o Códice Florentino, os guerreiros mortos em combate iam diretamente para o Paraíso Oriental, onde estariam a serviço do Sol, o ‘príncipe turquesa’. Todas as manhãs, antes da aurora, se reuniriam em uma vasta planície para aguardar o nascimento do Sol, cuja chegada acolheriam com grande felicidade. Ruidosamente, manifestariam seu júbilo com o bater das espadas de madeira nos escudos. Dançando e cantando, acompanhariam o sol até o zênite. Lá, as mulheres mortas no parto, isto é, em um combate de outra natureza, assumiriam o controle e transportariam o astro flamejante em uma liteira fechada, até o término de seu percurso diário. Mas uma recompensa ainda mais preciosa esperaria as mortes heróicas. Depois de quatro anos como ‘companheiras do sol’, as almas dos combatentes voltariam à terra “transformadas em magníficas aves – colibris, papa-figos e pintassilgos amarelos – e também em coloridas borboletas. Então, sorveriam o mel de todas as espécies de flor”. Nenhuma imagem ressaltaria melhor as contradições inerentes ao mundo asteca que a dos temíveis guerreiros metamorfoseados em colibris e borboletas. Muitos aspectos da vida diária manifestam essas tendências conflitantes. O gosto dos astecas pelo 13 derramamento de sangue era contrabalançado por um profundo respeito pela beleza da natureza e da arte, enquanto seus excessos eram restringidos por uma rigorosa ordem social e um severo código de ética. A forma suprema da arte era sem dúvida a poesia, que o nauatle (‘discurso elegante’) designava com a combinação das palavras ‘flor’ e ‘canto’. Os poetas se incluíam entre as figuras mais respeitadas da sociedade, e não hesitavam em citar a si mesmos em suas obras. A arte dos versos era praticada pelos nobres, e até por alguns soberanos; entre estes um dos mais célebres foi Nezahualcóyotl, príncipe de Texcoco, cujos belos poemas ainda eram declamados dezenas de anos após sua morte, 1472. À medida que a sociedade asteca amadurecia, a palavra foi adquirindo importância crescente. Durante os decênios que precederam a chegada dos espanhóis, o uso virtuosíssimo da língua era um dos atributos da autoridade; a qualidade e o refinamento da expressão contribuíam enormemente para a distinção entre as classes sociais. A tradição atribuía ao soberano dois títulos honoríficos: tlacatecuhtli, ‘senhor dos homens’, e Huey tlatoani, ‘grande orador’. O poder de Montezuma II, como o de seus predecessores, certamente repousava sobre seu valor militar, mas suas habilidades de orador, principalmente quando se dirigia ao conselho supremo – constituído de altos funcionários, sacerdotes e guerreiros, era essencial para assegurar sua posição na chefia do Estado. As pessoas do povo davam livre curso a seu amor pela palavra de várias maneiras, mas nenhum cenário era mais rico para esse exercício que o trepidante centro econômico dessa sociedade. Ao norte do Templo Maior, na cidade gêmea de Tlatelolco, anexada por Tenotchtitlán, havia um mercado que sobrepujava qualquer outro já visto pelos invasores espanhóis. Uma enorme algazarra se elevava dele, produzida por uma multidão onde se reúnem todos os dias mais de 60 mil pessoas, que se dedicava a sua atividade predileta: a troca de todo tipo de artigo produzido nas diversas províncias, segundo a observação de Cortés. A estrutura social asteca estava intacta por ocasião da chegada dos espanhóis. As distinções de classe definiam a própria trama dessa civilização, e ninguém entendia melhor a importância desse fenômeno que Montezuma II. Mais que os soberanos precedentes, ele se colocou não só acima do povo, mas também da própria aristocracia. Os mais altos dignitários de sua corte eram obrigados a se prostrar diante dele e carregavam sua liteira de viagem. Bernal Díaz, cronista de Cortés, enfatiza a extrema deferência testemunhada ao soberano pelos capitães da guarda real, embora eles próprios fossem personagens ilustres: “Precisavam retirar seus ricos mantos e envergar outros de menor valor. Apresentavam-se descalços, de olhos baixos, pois não estavam autorizados a olhá-lo no rosto. Deviam fazer três reverências quando dele se aproximavam, e repetir: ‘Senhor, meu Grande Senhor’. Em seguida, após ser despedidos com algumas palavras, se retiravam sem jamais lhe dar as costas, conservando o rosto voltado para ele e os olhos baixos, virando-se apenas depois de sair do aposento”. Tradicionalmente, as várias cidades-Estado do vale central do México elegiam seus próprios governantes; os astecas perpetuaram essa prática e a transferiram para os níveis supremos do poder. Nos tempos antigos, o soberano era eleito pelos chefes de todas as famílias da coletividade; depois com a formação de uma classe dirigente, o sistema se transformou e o rei passou a ser escolhido por um conselho composto de nobres, sacerdotes e guerreiros, entre os membros da família reinante. Depois do rei, o funcionário mais importante era o cihuacóatl, isto é, a mulher- serpente. É provável que o cargo merecesse esse curioso título que repete o nome de uma deusa por ter sido originalmente ocupado pelo grande sacerdote do culto de Cihuacóatl. O personagem era uma espécie de primeiro-ministro: tratava dos trâmites dos negócios de Estado,organizava campanhas militares, geria as finanças reais e desempenhava as funções de juiz supremo da nação. Depois dele vinham os quatro chefes do exército, cada qual correspondendo a um dos quatro distritos demarcados 14 pelas duas artérias principais de Tenochtitlán. Essas cinco autoridades formavam o círculo íntimo de conselheiros do rei. O círculo seguinte era constituído pelo conselho diretor da cidade, que contava, sob Montezuma II, com uma centena de membros. Outro indício das transformações que estavam sendo instituídas é que esses dignitários, anteriormente eleitos pelos diversos clãs cujo agrupamento dera origem à nação asteca, na época da conquista espanhola eram nomeados quase exclusivamente pelo soberano. Abaixo da elite composta de guerreiros e de sacerdotes, uma multidão de civis que ocupavam toda sorte de cargos – de coletores de impostos a secretários, de mensageiros a agentes de polícia – ainda era considerada da classe dominante. Tenochtitlán se dividia em dezenas de pequenas circunscrições chamadas calpulli, literalmente ‘casas grandes’, cada qual dirigida por um chefe eleito, o calpullec. Um conselho, constituído pelos chefes das famílias agrupadas no calpulli, tomava as decisões acerca da distribuição das terras para as famílias, em função de suas necessidades. O povo comum dos calpulli, com as duas classes inferiores de camponeses e escravos, era a força viva da nação. Eles cultivavam a terra e forneciam mão-de-obra para construir templos, palácios e estradas. Fabricavam tudo, desde tecidos até as mais belas obras de arte. Todas as classes sociais admiravam o trabalho de seus artistas e artesãos, que eram conhecidos como tolteca, o mesmo nome do povo que ocupara o grande vale muito antes de ali chegarem os ancestrais dos astecas, e que estes reverenciavam pelas obras de arte que lhe atribuíam. A maioria dos toltecas tendia a se concentrar em determinados bairros e a se associar quase exclusivamente com os pochteca – negociantes profissionais, de quem compravam penas, ouro e pedras preciosas, e a quem vendiam jóias finas, escudos, máscaras ornamentadas e outros artigos valiosos. Artistas e artesão davam o melhor de si na criação de objetos religiosos. Algumas de suas preciosas realizações chegaram até nós. Durante as escavações do sítio do Templo Maior, no início da década de 80, os arqueólogos descobriram delicadas figuras de jade e diorito, certamente destinadas a servir como oferenda a diversos deuses. Os artesãos também produziram vasos com decoração complexa, que serviam para guardar o octli, ou pulque, bebida alcoólica feita com suco de agave fermentado. Muitas outras formas de trabalho ocupavam a vida do cidadão médio. Em quase todos os lares, as mulheres passavam seus dias a fiar, tecer e moer o milho. Os homens eram oleiros, curtidores de pele, carpinteiros, marceneiros, pedreiros ou talhadores de pedra, mas também dedicavam uma parte de seu tempo ao trabalho no campo. Apesar da rigorosa divisão de classes, os representantes dessa vasta classe média empenhavam todos os esforços para subir de posição: distinguindo-se no campo de batalha – pois o sistema em vigor os obrigava a tomar parte nas atividades militares, abraçando a carreira eclesiástica, ou ainda prestando serviços particulares a um membro da nobreza. No último escalão da hierarquia social estavam os escravos. O sistema de escravidão centro-americano nada tinha em comum com a brutalidade dos espanhóis, que marcaram a ferro o rosto dos cativos e lhes impunham trabalhos exaustivos nas minas. Na nação asteca, apenas uma pequena porcentagem de escravos era cativa. A maioria provinha do próprio povo asteca; constituía um grupo à parte, denominado tlacotin, cujo estilo de vida se parecia muito com o dos outros habitantes. Haviam se tornado escravos por uma de duas razões; por condenação, em consequência de algum delito, ou por terem decidido se vender como escravos. Portanto, de certo modo, a escravidão na civilização asteca tinha fundamentos morais. Exceto a obrigação de trabalhar sem receber pagamento, o escravo preservava todos os seus direitos de homem livre. Quase sempre era possível recobrar a liberdade. Quem fosse suficientemente prudente para guardar a soma equivalente à venda de sua liberdade poderia comprá-la novamente e ainda, um fato curioso, se conseguisse fugir de 15 seu patrão e chegar ao palácio real, situado a menos de 2 quilômetros do mercado de Tlatelolco, estaria imediatamente livre. Inúmeras leis concorriam para manter a ordem, sujeitas a penas extremamente severas em casos de desobediência. Uma simples amostra era de o uso de vestes pertencentes a uma condição superior à própria constituir um delito grave, às vezes passível de morte. De acordo com uma lei decretada por Montezuma I em meados do século XV, ainda em vigor na época da chegada dos espanhóis, apenas a nobreza tinha direito de usar algodão: “As pessoas do povo não estão autorizadas a usar roupas de algodão, sob pena de morte, mas apenas de fibra de agave”. Além disso, “ninguém, à exceção dos grandes nobres e caciques, está autorizado a construir uma casa de dois andares, sob pena de morte”. Era longa a lista dos crimes passíveis de pena de morte. Aparecer bêbado em público custava ao delinquente ter a cabeça raspada e a casa demolida; se reincidisse, mereceria a morte. Ainda segundo uma lei de Montezuma I: “Os culpados de adultério serão apedrejados e lançados ao rio, ou aos abutres”. O juiz que aceitasse suborno seria condenado à morte, e a mesma sorte aguardaria o coletor de impostos desonesto. A mensagem era clara: a boa conduta não tinha preço. Os astecas devotavam verdadeiro culto aos princípios de organização e aos códigos de comportamento que prevaleciam em sua sociedade, sem nenhuma distinção de classe social. Levavam a educação muito a sério. Começava aos 4 anos, quando à criança eram confiadas pequenas tarefas e lições: os meninos, por exemplo, iam buscar água, e as meninas aprendiam os nomes e os usos dos utensílios domésticos. Um pouco mais tarde, nas famílias comuns, os meninos eram ensinados a pescar e a manejar o barco, e as meninas aprendiam a fiar algodão e fibra de agave, a debulhar e moer o milho e a manejar o tear. Um sistema formal de educação incluía diversos tipos de ensino e de exercício. Os cuicacalli, ou ‘casas do canto’, dependiam dos templos e acolhiam tanto crianças nobres como plebéias. Essas escolas eram frequentadas por meninos e meninas de 12 a 15 anos, que não aprendiam apenas cantos e danças cerimoniais, mas também rudimentos da história e das crenças religiosas de seu povo. Os cantos estavam repletos de contos sobre a criação, a vida e a morte, ou serviam para glorificar as divindades. O canto e a dança ocupavam lugar central nas inúmeras cerimônias e rituais e, ao se iniciar nessas artes, os adolescentes aprendiam uma parte importante de seu papel na comunidade. Associada aos templos havia também a calmecac, literalmente ‘fileiras de casas’, escola dirigida por sacerdotes e sacerdotisas e destinada principalmente aos filhos das famílias nobres, embora, segundo alguns cronistas, aceitasse eventualmente filhos de negociantes e até de plebeus. Os adolescentes podiam começar seus estudos em uma calmecac a qualquer momento, entre 10 e 15 anos. Ali aprendiam significados do calendário e a interpretação de sonhos e presságios, além de decorar as preces, os cantos e as narrativas históricas. Também aprendiam a decifrar os glifos, pictogramas astecas, que lhes serviriam para a consulta aos códices acerca de assuntos de Direito, arte militar e outras questões de interesse público. As calmecac valorizavam bastante a qualidade da expressão, ensinando aos alunos a arte de bem falar e o respeito no modo de se comportar. O menino que não frequentasse esse tipo de escola seria matriculado em uma telpochcalli, ou ‘casa dos homens jovens’, dirigida pelos mais velhos. Esses estabelecimentosdestinados aos plebeus formavam uma nova geração de guerreiros sem, no entanto, negligenciar o estudo de História, religião, liturgia, música, canto, dança e comportamento correto. Uma litania dá ideia de como encaravam este último ponto: “Trate com respeito os mais velhos e console os pobres e aflitos com tuas boas obras e palavras. Não imites os loucos que não honram pai nem mãe, pois se parecem com 16 animais que não pedem nem escutam conselhos. Não zombes do velho, do doente, do aleijado, nem de quem tenha pecado. Evite dar mau exemplo, falar com imprudência e interromper quem estiver falando. Se te perguntarem alguma coisa, responde com sobriedade, sem afetação, não adulando nem prejudicando ninguém. Mantém o rosto tranquilo, evitando fazer caretas ou gestos impróprios”. Ao completar 20 anos, o jovem podia se casar. As moças casavam mais cedo, com 14 ou 15 anos. Os pais do noivo escolhiam a esposa para ele, com o auxílio de um adivinho, que analisava o signo do nascimento dos eventuais pretendentes para assegurar uma união bem-sucedida. Havia intermediários – em geral mulheres velhas – encarregados de promover o contato entre as famílias. A cortesia exigia repetidas visitas à família da noiva e, antes que o negócio fosse concluído, todos os membros de sua família eram consultados. No dia das núpcias, ao meio dia, os pais da jovem ofereciam um banquete preparado ao longo de dois ou três dias consecutivos, no qual exibiam todo o luxo compatível com suas posses. O rosto da moça era enfeitado com ‘terra amarela’, e os braços e pernas com penas vermelhas. Ao cair da noite, o cortejo nupcial se dirigia para a casa do futuro marido, com a jovem carregada às costas de um casamenteiro. A cerimônia propriamente dita era celebrada diante da lareira, e um de seus momentos mais importantes consistia em atar o manto do marido às vestes da esposa. A partir desse momento estavam oficialmente casados. Para o rapaz, poderia ser apenas o primeiro de vários matrimônios, pois se praticava a poligamia: o homem poderia ter tantas esposas quanto pudesse sustentar. Apesar da preocupação em satisfazer as exigências rigorosas e frequentemente sinistras de sua religião, os astecas tinham muitas ocasiões para dar livre curso a seus apetites extravagantes. Excetuando as cerimônias particulares representadas por nascimentos e por bodas, os inúmeros dias de festa do ano litúrgico geralmente eram comemorados com grandes exibições de cantos e danças. Durante o hueytecuilhuitl, ou ‘grande festa dos senhores’, se cantava e dançava desde o cair da noite até a aurora. Até em seus jogos os astecas mesclavam a ordem e os excessos. Seu esporte favorito era o ollamaliztli, ou ‘jogo de bola’. Foram encontradas apenas duas quadras consagradas a esse jogo, mas o Códice Florentino descreve detalhadamente suas regras. Os jogadores, quase sempre pertencentes à nobreza, colocavam todo seu ardor nessa atividade. Jogavam sob risco constante de se machucar, ou até mesmo de morrer com o impacto da duríssima bola de borracha. O jogo de bola estava profundamente imbuído de significado religioso e mitológico, principalmente na evocação da morte e do sacrifício. Quanto ao conceito de morte, que perseguia a existência dos astecas, não punha necessariamente fim a sua provação. Para começar, as divisões de classe persistiam no além-túmulo. Os guerreiros podiam esperar atingir a felicidade paradisíaca sob a forma de colibris ou borboletas, e quem se afogasse chegaria discretamente ao Paraíso do Sul, sobre o qual reinava Tláloc. Porém os outros, isto é, a grande maioria, partiriam para 17 Mictlán, ou País dos Mortos, uma região de trevas, o que envolvia uma jornada perigosa. O viajante deveria atravessar oito níveis no outro mundo, sendo Mictlán era o nono e último. Cada um desses níveis escondia inúmeras ameaças, como o “lugar dos ventos de obsidiana”. Os ricos se protegiam, levando objetos fornecidos por seus parentes para ofertar ao senhor do outro mundo. Alguns chegavam a pedir para que seus servidores fossem mortos e cremados, a fim de preparar-lhe a comida durante o trajeto. Os pobres confiavam na sorte; levavam apenas uma tigela de água e alguns objetos, apesar de acreditarem que, para eles, o caminho era muito árido e doloroso. Referência bibliográfica: ASTECAS: Reinado de Sangue e Esplendor. Civilizações Perdidas. Editores de Time- Life Livros. Abril Coleções. R.J., 1998.
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