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03 de janeiro de 2010 | N° 16204 
TEMA PARA DEBATE
Funciona ou é vigarice? 
Moacyr Scliar*
A expressão “snake oil”, óleo de cobra, é geralmente usada nos Estados Unidos para designar substâncias supostamente medicamentosas que na verdade não passam de ilusão, de fraude. “Snake Oil Science”, “A ciência do óleo de cobra”, foi o título que o pesquisador norte-americano R. Barker Bausell escolheu para dar a um livro recentemente publicado pela importante editora da Universidade de Oxford. O autor examina aquilo que é conhecido como medicina alternativa, uma enorme variedade de procedimentos e de medicamentos que inclui, a propósito, o próprio óleo de cobra, há muito tempo usado na China para tratamento de reumatismo. Vigarice? Mas o óleo de cobra é rico em ácido eicosapentaenoico, que seria uma substância anti-inflamatória. Surge daí a pergunta básica: como podemos saber que um determinado tratamento funciona e não é vigarice?
A pergunta é mais que pertinente. Uma pesquisa mostrou que, nos Estados Unidos (país que supostamente tem a medicina científica mais avançada do mundo), perto de dois terços das pessoas recorrem a terapias alternativas, incluindo coisas como terapia megavitamínica e cultos variados. O problema é que estas coisas muitas vezes não funcionam e podem representar risco para a saúde. O exemplo citado é mais que adequado. Pessoas que têm uma dieta adequada, balanceada, certamente recebem, via alimento, as vitaminas de que necessitam. E muitas vitaminas, em doses altas, têm efeitos tóxicos. Outros exemplos de medicamentos duvidosos: os chamados hepatoprotetores, usadíssimos no Brasil, país em que o fígado tem costas largas e é culpado por uma variedade de sintomas. Só que hepatoprotetores não funcionam. Para proteger o fígado, limitar o álcool, por exemplo, é muito mais eficaz.
Às vezes, o uso é feito em circunstâncias penosas, dramáticas. O ator Steve McQueen, que tinha câncer, submeteu-se, como outros, a tratamento com uma substância chamada Laetrile, e também conhecida como vitamina B 17, que segundo seu divulgador Ernst Krebs (ele se apresentava como médico mas não tinha títulos universitários) curaria a doença. Não curava (McQueen morreu em pouco tempo) e seu uso nestas circunstâncias foi proibido nos Estados Unidos. Um episódio semelhante teve mais ou menos à mesma época (década de 70) no Brasil, desencadeado por matéria publicada na revista “O Cruzeiro”. Uma jovem mulher, portadora de câncer, sonhou que o ipê-roxo, árvore muito comum no Brasil, curava a doença. Tomou o chá da casca e, sempre segundo a notícia, teria ficado livre da doença. Outros relatos de suposta cura se sucederam. Resultado: não sobrou ipê-roxo com casca no Brasil. A procura era tal que até a prefeitura de Curitiba permitiu que as árvores fossem cortadas. Pior: vigaristas aproveitavam-se da aflição das pessoas, vendendo casca de qualquer árvore como se fosse de ipê-roxo.
O que há de verdade nessas curas? Realmente o ipê-roxo contém substâncias ativas. Mas daí a pretender que cure neoplasias vai uma longa distância. Diz o oncologista Gilmar Nepomuceno Araújo, da Pontifícia Universidade Católica de Campinas: “Falta comprovação científica efetiva da eficácia”. E faz uma recomendação que é endossada por muitos médicos: “Se o paciente quiser usar alguma terapia alternativa, não proíbo desde que não abandone o tratamento tradicional”.
Voltando à nossa questão básica, a palavra-chave para decidir sobre a validade de um tratamento é evidência. Precisamos ter evidência de que o remédio ou o procedimento funcionam. Não basta a recomendação do vizinho, não basta o “ouvi dizer”. A evidência se traduz em números. Se quisermos saber se um novo tratamento funciona, nós o comparamos com outros tratamentos, formando, por exemplo, dois grupos. Se no grupo A a percentagem de cura é, digamos, 30% e no grupo B 90%, já temos a resposta: como dizia o cientista inglês Lord Kelvin, tudo que é verdadeiro pode ser expresso em números, mesmo porque a estatística hoje, fantasticamente reforçada pela computação, adquiriu graus de precisão nunca sonhados.
Alguém perguntará: mas, e a fé? A fé realmente é importante. A fé move montanhas. Mas é melhor acreditar naquilo que é eficaz. Nosso organismo certamente agradecerá por esta prudente conduta.
* Médico e escritor

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