Buscar

Aula 2 Responsabilidade Civil

Prévia do material em texto

14/08 – Aula 2: Modalidades da Responsabilidade Civil.
	Quadro
Modalidades da Responsabilidade Civil
1. Clássica dicotomia
1.1 Dano
1.2 Distinção responsabilidade civil e negocial
1.3 Concurso de responsabilidades
1.4 Responsabilidade pela confiança
1.4.1 Violação positiva do contratos
1.4.2 A violação de deveres anexos
1.4.3 A responsabilidade pré-negocial – os deveres anexos desvinculados da obrigação
1.4.4 A responsabilidade pós-negocial – os deveres anexos transcendem a obrigação
1.4.5 A responsabilidade civil transubjetiva e os deveres anexos
1.4.6 O terceiro ofendido e a relação obrigacional
1.4.7 O terceiro ofensor e a relação obrigacional
1.5 Conclusão
2 Responsabilidade civil e penal
2.1 Fundamentos da separação
2.2 A confluência entre os ilícitos penal e civil
2.2.1 A culpa no direito civil e no direito penal
2.2.2 O dano
2.2.3 A tipicidade
2.3 A interseção entre a jurisdição civil e a criminal
2.3.1 Relativa independência de jurisdições
2.3.2 Repercussão civil da decisão penal condenatória
2.3.3 Repercussão civil da decisão penal absolutória
2.3.4 Processos (civil e criminal) simultâneos: decisões conflitantes?
2.4 Excludentes de ilicitude
	CAPÍTULO V
MODALIDADES DE RESPONSABILIDADE CIVIL
1. A CLÁSSICA DICOTOMIA: RESPONSABILIDADE NEGOCIAL E EXTRANEGOCIAL (OU SIMPLESMENTE “CIVIL”)
Já de longa data se estabeleceu a dicotomia entre a responsabilidade civil stricto sensu (delitual ou aquiliana) e a responsabilidade contratual (negocial ou obrigacional). Trata-se de uma summa divisio decorrente do critério da origem do dever descumprido, ou seja, o contrato ou o delito. Dois fundamentos para a imputação de um dano. Apesar de atualmente haver uma interpenetração entre as duas responsabilidades, esta bipartição entre as fontes da obrigação de indenizar ainda faz sentido teórico e prático. A responsabilidade civil como uma espécie de regime geral e a responsabilidade negocial, como regime específico. A natural aproximação entre os dois setores é tendência absolutamente compreensível em ordenamentos jurídicos complexos e abertos aos influxos da realidade social.
Nesta summa divisio entre a responsabilidade negocial e a extranegocial – ou simplesmente responsabilidade civil –, o regime das sanções será diverso, conforme se verifique uma violação a um direito de crédito ou a um dever genérico imposto pela norma. Do ponto de vista formal, na primeira se incorre quando da inobservância de qualquer dever emanado de uma relação obrigacional, enquanto na segunda a responsabilidade nasce de um dano sofrido por alguém, prescindindo-se de uma preexistente relação entre lesante e lesado, sendo suficiente o descumprimento de um dever que emerge do tráfico social.
O inadimplemento corresponde ao descumprimento de um dever jurídico qualificado pela preexistência de relação obrigacional. Requer, portanto, um preceito individual unindo credor e devedor, vinculados a uma prestação de dar, fazer ou não fazer. Na lógica da obrigação como processo, o inadimplemento corresponderá a uma indesejada etapa final na qual será alterado o conteúdo do vínculo. Substitui-se a prestação originária por uma obrigação sucessiva de indenizar. A responsabilidade negocial é examinada especialmente nos artigos 389 a 420 do Código Civil (Título IV, do Livro I, da Parte Especial).
Já a responsabilidade civil em sentido restrito e técnico – extranegocial ou extraobrigacional – requer o descumprimento de um dever genérico e universal de não causar danos. Não há agora intervenção direta em uma ordem de condutas preestabelecidas pela autonomia privada, mas tão somente a presença de um dever de indenizar, pelo qual se atribui a alguém a obrigação de suportar um dano sofrido por outrem. A violação do neminem laedere por qualquer membro da comunidade se dá no instante em que o agente ofende situações existenciais e patrimoniais alheias, sem que esses danos tenham como causa a violação de deveres oriundos da autonomia privada. Daí se extrai a diversidade das fontes da obrigação de indenizar e, consequentemente, das diferentes eficácias dessas obrigações.
De qualquer forma, a responsabilidade civil exerce uma função demarcatória, no sentido de estabelecer uma delimitação entre as fronteiras dos âmbitos de liberdade de atuação e aqueles outros, em que se outorga certa dose de proteção a determinados bens e interesses, que pela mesma razão, estipulam limites ou autolimitações à liberdade, na medida em que determinadas atuações livres podem determinar um grau de responsabilidade. Neste sentido, Canaris e Larentz afirmam que o problema fundamental de toda a responsabilidade civil extracontratual consiste na relação de
tensão entre a proteção de bens jurídicos e a liberdade de atuação.
Evita-se, aqui, a adoção do par responsabilidade contratual e extracontratual – usualmente adotada em doutrina e tribunais –, pela sua incompletude. O inadimplemento não é um fenômeno restrito aos contratos, mas se estende a qualquer obrigação, tenha ela origem em um contrato ou em um negócio jurídico unilateral. Ilustrativamente, uma promessa de recompensa inclui-se entre os negócios unilaterais que são fontes de obrigações. Aquele que promete recompensa está vinculado ao cumprimento da prestação oferecida (art. 854, CC). A sua obrigação não depende do consentimento da outra parte, nascendo exclusivamente da manifestação pública de vontade do promitente. O descumprimento da promessa se insere dentre as hipóteses de responsabilidade
negocial.
Ademais, se nem todo inadimplemento de obrigação é um descumprimento contratual, a recíproca não se impõe. Todo descumprimento contratual é um inadimplemento, apenas qualificado pelo fato de que a fonte da obrigação é um contrato. Assim, os efeitos do descumprimento serão específicos, quando referentes ao contrato, como demonstra a exceção do contrato não cumprido, o vencimento antecipado do débito e o direito potestativo à resolução.
1.1. O DANO COMO ELEMENTO COMUM ÀS DUAS RESPONSABILIDADES
Outrossim, na esteira da lição de Jorge Cesa Ferreira da Silva, considerando-se o inadimplemento como o não cumprimento de qualquer dever emanado do vínculo, ele surgirá independente do responsável pelo descumprimento, sendo suficiente que restem os interesses do credor não atendidos – seja por ato do devedor ou fato da natureza. No campo dos efeitos, classifica-se o inadimplemento em objetivo, quando independe do devedor e, subjetivo, quando decorre do ato do devedor. Neste, liga-se a conduta ao resultado; naquele, presta-se atenção apenas ao resultado.
Destarte, o elemento comum e indispensável à eclosão das duas responsabilidades é o dano. Malgrado a distinção de fontes e eficácias da obrigação de indenizar, em comum, tanto a responsabilidade negocial como a extranegocial pressupõem o dano. A responsabilidade civil é historicamente o ramo do direito das obrigações direcionado ao reequilíbrio da condição econômica da vítima – exista ou não negócio jurídico prévio com o ofensor. Essa tendência se reforçou com o progressivo descolamento da responsabilidade da necessária aferição da ilicitude e culpa do comportamento do ofensor, para a tutela integral do ofendido. Nessa passagem de uma sanção punitiva para uma sanção reparatória, um ato ilícito que não repercuta em lesão a interesses patrimoniais e existenciais da vítima será insuscetível de responsabilidade civil (art. 927, CC). A responsabilidade extranegocial é a obrigação de indenizar. Indenizar significa eliminar os danos e onde estes não sejam provados e apurados, o comportamento antijurídico poderá mesmo produzir outras relevantes eficácias (v. g. invalidade, pena, caducidade), mas não a sanção reparatória.
1.2. AS DISTINÇÕES ENTRE A RESPONSABILIDADE CIVIL E A RESPONSABILIDADE NEGOCIAL
Vislumbramos oito distinções entre a responsabilidade negocial e a responsabilidade civil no plano consequencial. Alertamos ao leitor que evitaremos o aprofundamento dos recortes, haja vista que no volume de obrigações há denso estudo sobre a responsabilidade negocial e nestevolume, minucioso exame das diversas eficácias da responsabilidade civil. Assim, vejamos:
A um, no que concerne à gradação da culpa, em sede de responsabilidade civil, o fato ilícito do agente não será sancionado de maneira mais ou menos intensa, conforme a variação da intensidade da culpa – partindo do ato doloso até alcançar a culpa leve –, eis que a reparação será medida pela extensão do dano (art. 944, CC). Excepcionalmente, haverá redução do quantum reparatório nas hipóteses em que surgir evidente despropor- ção entre a grande extensão do dano e a mínima incidência de culpa (parágrafo único, art. 944, CC). Todavia, no setor da responsabilidade negocial a gradação da culpa será em alguns casos fator prévio e abstrato de isenção de obrigação de indenizar. Assim ocorre nos contratos gratuitos, nos quais uma das partes obtém vantagem, enquanto para a outra há apenas sacrifício. Ao teor do artigo 392 do Código Civil, “nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça”. Observa-se que a culpa grave se equipara ao dolo.
A dois, diferenciam-se os regimes no tocante à extensão da reparação. No campo da responsabilidade extranegocial, o montante da reparação será balizado pela extensão do dano (art. 944, CC). Excepcionalmente, em homenagem à regra da proporcionalidade, existem dispositivos que permitem ao magistrado reduzir equitativamente o montante da indenização, tais como a desproporção entre a pequena gravidade da culpa e a extensão do dano (parágrafo único, art. 944 CC) ou a mitigação do quantum reparatório a ser subsidiariamente pago pelo incapaz (parágrafo único, art. 928, CC). Em contraposição, a responsabilidade negocial admite a inserção de cláusulas limitativas de responsabilidade e, mesmo, a cláusula de não indenizar, desde que respeitem os seguintes requisitos: não colisão com preceito de ordem pública; ausência de intenção de afastar obrigação inerente à função; inexistência do escopo de eximir o dolo ou a culpa grave do estipulante; bilateralidade de consentimento; igualdade de posição das partes; e não existência de limitação legal. Contudo, pela natural posição de vulnerabilidade do consumidor, o CDC veda a estipulação contratual de cláusula que impossibilite, exonere ou atenue a obrigação de indenizar (art. 25, Lei nº 8.078/90).
A três, distanciam-se ainda os regimes pela possibilidade de exercício da autonomia privada em negócios jurídicos, com o fito de inserção de cláusula penal ou cláusula de perdas e danos, seja para prefixar uma pena como sanção para o eventual inadimplemento, ou para estabelecer uma prévia liquidação de perdas e danos, evitando a discussão judicial sobre o montante dos prejuízos. Todavia, face à ausência de deveres decorrentes de um negócio jurídico, na responsabilidade civil os danos patrimoniais e extrapatrimoniais serão quantificados em juízo.
A quatro, há oscilação no tocante à exigência de capacidade dos agentes. Naturalmente, na responsabilidade negocial a validade de qualquer relação obrigacional requer a capacidade de fato das partes ou o seu suprimento por institutos como a representação ou assistência, sob pena de decretação judicial das sanções de nulidade ou anulabilidade do negócio jurídico, o que impede a produção de seus efeitos e, portanto, a própria constituição da obrigação. Portanto, a responsabilidade contratual de incapazes só surgirá em raras hipóteses, como a do relativamente incapaz, impossibilitado de arguir a anulabilidade do negócio, quando se valeu de sua malícia para ludibriar o outro contratante, forjando capacidade plena (art. 180 CC). Contudo, na responsabilidade
civil o ordenamento jurídico permite que um incapaz – seja por idade ou como portador de transtorno mental – possa, dentro de certos requisitos, obrigar-se a indenizar, mesmo que a sua inimputabilidade exclua a possibilidade da prática de um ato ilícito (art. 928, CC).
A cinco, há singularidades no regime da mora e de suas consequências. Na responsabilidade negocial a mora incidirá automaticamente com a fluência do termo ajustado (art. 397, CC), em sua falta mediante interpelação (parágrafo único, art. 397, CC), ou ainda, a partir da citação, se ilíquida a obrigação ou quando nenhum fato anterior tenha constituído em mora o devedor. Já na responsabilidade civil, a mora é presumida a contar da data da ocorrência do evento (art. 398, CC). Via de consequência, os juros moratórios incidem a partir da prática do fato danoso (Súmula nº 54 STJ).
A seis, relativamente à matéria de prova, na responsabilidade civil stricto sensu, como regra geral, será a vítima (na qualidade de autor da lide) que provará os pressupostos da obrigação de indenizar, ou seja, o ilícito, a culpa, dano e nexo causal. Evidentemente, nas hipóteses de incidência da teoria objetiva, restam expurgados os dois primeiros pressupostos. Contudo, no campo da responsabilidade negocial, da simples constatação do inadimplemento (seja por mora ou inadimplemento absoluto) automaticamente decorrerá a obrigação de indenizar do devedor, cabendo a ele a demonstração de que o descumprimento da prestação a ele não poderia ser imputável.
A sete, naquilo que concerne à prescrição, na responsabilidade civil o fato jurídico que neutraliza a pretensão de reparação de danos patrimoniais e/ou morais surgirá em três anos a contar do fato danoso (art. 206, parágrafo 3º, inciso V, CC).
A oito, quanto ao foro competente para a propositura de demandas, será o domicílio do réu na responsabilidade negocial (art. 94, CPC), exceto se pactuado foro de eleição ou cláusula compromissória.
1.3. O CONCURSO DE RESPONSABILIDADES
Temos aqui o que se pode chamar de concurso entre duas responsabilidades, a negocial e a civil (ou extranegocial). No exemplo citado, a tendência natural do civilista seria a de optar pelo regime da responsabilidade negocial, partindo-se da tradicional premissa de uma ofensa a uma cláusula tácita de incolumidade. Ou seja: sempre que uma pessoa ingressa em um meio de transporte culmina por estipular um contrato com o transportador, nele constando uma obrigação de resultado pelo qual este se responsabilizará por todos os danos que porventura ocorram no curso do trajeto.
Se quisermos considerar tal responsabilidade como negocial – ao menos para a fixação da fluência dos juros moratórios –, necessariamente terá que se reconhecer que o que se discute em juízo é a própria obrigação contratualmente assumida, ou seja, a prestação de serviço de saúde, pois afinal é em relação a ela que há delimitação de liquidez, certeza e termo de adimplemento. A ofensa a interesses existenciais do paciente não se insere na responsabilidade negocial simplesmente por haver uma relação contratual subjacente entre as partes. A tutela da subjetividade humana, antes de ter como causa uma estipulação contratual, encontra guarida na cláusula geral de respeito à pessoa. Por óbvio, a sua violação não pode ser assumida como um “inadimplemento negocial”. Fatalmente, a condenação aos juros moratórios incide em obrigação outra que não a contratual, ou seja, danos morais por violação à dignidade da vítima.
Se pensarmos desta maneira, cremos que a importância da distinção entre os regimes de responsabilidade será apenas decisiva no que concerne à amplitude de estipulação de cláusulas de limitação e exclusão de responsabilidade, em regra acolhidas em relações interprivadas e interempresariais que não envolvam bens indisponíveis.
1.4. A RESPONSABILIDADE PELA CONFIANÇA – A SUPERAÇÃO DA CLÁSSICA DICOTOMIA RESPONSABILIDADE NEGOCIAL E EXTRANEGOCIAL
Como é sabido, a responsabilidade obrigacional serve à tutela e à realização das expectativas relacionadas à prestação. Ela é pautada pelo interesse de cumprimento que esta visa satisfazer. Seu fundamento é a frustação da promessa de adimplemento assumida na autovinculação negocial, vale dizer, a violação da regra do pacta sunt servanda. Esta forma de responsabilidade protege contra um risco específico de dano, aquele quederiva da precedente relação obrigacional instaurada entre dois sujeitos e que se pode definir como risco do próprio programa obrigacional.
Em sentido diverso, na responsabilidade extranegocial ou extraobrigacional, singelamente conhecida por todos como responsabilidade civil, inexiste vínculo negocial preexistente. O fundamento da responsabilidade será um fato ou um comportamento social que afeta a ordenação geral de bens. O dano será o momento em que ocorrerá um contato meramente ocasional entre lesado e lesante. A reparação dos danos será uma reação capaz de exprimir a necessidade de defesa de uma coexistência pacífica.
O processo de formação de um contrato envolve um mínimo de confiança recíproca. Já há um contato social entre os interessados. Em contrapartida, a responsabilidade civil assegura a tutela dos sujeitos e de seus bens contra agressões praticadas por terceiros “anônimos”, especificidade que a distancia de uma necessária identificação e interação por meio de uma especial relação entre indivíduos mediante negociações preliminares para a formação de um contrato. Ademais, as partes já estão adstritas a um comportamento diligente, correto e leal – ou uma programação de condutas devidas –, ou seja, um proceder bem diferenciado do que um mandamento geral e genérico de abstenção de causar lesões a outrem, como preconiza a responsabilidade aquiliana.
Por outro lado, os contratantes não se encontram (ainda) vinculados por qualquer dever contratual. Os deveres de conduta são infensos a uma origem negocial. A celebração de um contrato requer, estruturalmente, um encontro entre uma proposta e uma aceitação. A culpa in contrahendo não se assemelha a uma responsabilidade por frustração de interesses de cumprimento, sendo inconsistente a afirmação de uma “responsabilidade contratual sem contrato”.
1.4.1. RESPONSABILIDADE CIVIL PELA VIOLAÇÃO POSITIVA DO CONTRATO
Com supedâneo na abstração e generalidade do princípio da boa-fé, alarga-se o conceito de adimplemento. Adimplir significará atender a todos os interesses envolvidos na obrigação, abarcando tanto os deveres ligados à prestação propriamente dita, como aqueles relacionados à proteção dos contratantes em todo o desenvolvimento do processo obrigacional. O descumprimento dos deveres anexos provocará inadimplemento, com o nascimento da pretensão reparatória ou o direito potestativo à resolução do vínculo.
Apesar de variações doutrinárias, os deveres laterais podem ser classificados em três categorias: deveres de proteção, informação e cooperação. Os deveres de proteção relacionam-se ao acautelamento patrimonial e pessoal da contraparte. Surgem com muita frequência na responsabilidade pré-contratual, quando ainda não há um dever de prestação, mas já se exige um cuidado com a integridade do eventual parceiro. Já os deveres de cooperação pressupõem que as partes não pratiquem atos capazes de frustrar as finalidades materializadas no contrato. Isto é, pede-se um comportamento leal entre os contraentes, para que possam ser alcançados os objetivos convencionados (v. g., dever de sigilo e de não concorrência). Enfim, os deveres de informação obrigam cada contratante a conceder ao outro amplo conhecimento acerca dos fatos relacionados ao objeto do contrato, para que todas as decisões possam ser fruto de uma vontade livre e real.
Em resumo, os deveres laterais alcançam todos os interesses conexos à execução do contrato. Excluem-se de seu âmbito todos aqueles deveres que não possam ser relacionados como necessários à realização da prestação.
1.4.2. A VIOLAÇÃO DE DEVERES ANEXOS
A boa-fé objetiva é fonte de deveres de conduta. Quando ocorre a violação a um destes deveres não há nenhuma quebra da palavra dada. Os danos derivados da violação positiva não traduzem uma omissão no cumprimento da obrigação, os interesses frustrados perturbam a prestação, mas escapam ao âmbito voluntarístico do negócio jurídico. Aliás, os deveres de conduta podem até mesmo subsistir após a extinção do contrato. Apurada a autonomia desses deveres em relação ao nível da relação de prestação, vê-se que o adimplemento ruim ou insatisfatório escapa ao conteúdo da regulamentação intersubjetiva.
Por outro lado, diversamente ao que ocorre na responsabilidade civil, não estamos aqui tratando de um dever geral de não causar danos. A responsabilidade extraobrigacional foi concebida como pura ordem de defesa dos bens contra intromissões danosas originadas de outros sujeitos da comunidade. O dever genérico e negativo de abstenção não se amolda às exigências ativas de colaboração intersubjetiva, em contextos de interações sociais particularizadas em que os indivíduos transcendem o isolacionismo da responsabilidade aquiliana.
Inexiste uma boa-fé objetiva puramente estática e generalizada, pois este conceito se amolda em extensão e significado de acordo com as circunstâncias concretas das pessoas que participam de uma relação jurídica. Os parâmetros de comportamento honesto e leal não se aplicam a seres humanos ideais, porém dirigem-se a um determinado vínculo, oscilando conforme as peculiaridades do bem jurídico e as vicissitudes de credor e devedor em seu meio cultural e social.
1.4.3. A RESPONSABILIDADE PRÉ-NEGOCIAL – OS DEVERES ANEXOS DESVINCULADOS DA OBRIGAÇÃO
A teoria da responsabilidade pré-contratual, ou, como ainda hoje é denominada na Alemanha, culpa in contrahendo, foi originariamente formulada por Rudolph von Ihering em 1861. Seu ponto de partida foi a análise da possibilidade de indenização decorrente da celebração de um contrato nulo, mais precisamente se aquele que culposamente dá causa à nulidade de um contrato deve ser responsabilizado pelos danos sofridos pela contraparte que confiou na validade do negócio. O grande jurista alemão, amparado no direito romano, concluiu positivamente à questão, observando a existência de um dever de diligência, surgido em momento anterior à conclusão do contrato. A doutrina e jurisprudência desenvolveram e aplicaram a teoria da responsabilidade pré-contratual, que posteriormente foi ligada à proteção da confiança por Larenz e seu discípulo Canaris
Na sistemática da obrigação como processo o contrato se desenvolve em três etapas sucessivas: (a) pré-contratual; (b) contratual; (c) pós-contratual.
Em regra as negociações preliminares não vinculam, sejam elas orais ou escritas, pois é inerente ao princípio da liberdade contratual que os indivíduos tenham a autonomia de optar pela contratação, sem que a negativa estabeleça a obrigação de indenizar em favor do outro negociante. A recusa de iniciar negociações jamais será abusiva e, se no interregno da pourparler faltar o indispensável elemento volitivo de prosseguir nas tratativas, cessará o consentimento mútuo fundamental ao êxito da contratação. Todavia, as negociações preliminares não são procedimentos completamente discricionários. Os deveres de conduta emanados da boa-fé objetiva já estão presentes ao tempo das tratativas. Eles antecedem ao momento da contratação, surgindo com o início do contato social entre os parceiros. Concilia-se a autonomia privada com a noção da indispensável responsabilidade dos contratantes sobre as legítimas expectativas de confiança depositadas parte a parte. Assim surgem: (a) deveres laterais de informação, a fim de que sejam comunicadas todas as circunstâncias relevantes para a conclusão do contrato. O dever de esclarecimento completa a teoria dos vícios do
consentimento, pois a pertinência da informação é a garantia de um razoável equilíbrio contratual; (b) deveres de proteção, para que os pré-contratantes zelem mutuamente pela tutela da integridade psicofísica e proteção do patrimônio do alter; (c) deveres de cooperação – intercedem no sentido de prestigiar a honestidade, diligência e lealdade de parte a parte, acentuando a colaboração no sentido de preservar a confiança depositada no outro.
Cumpre ressaltar que a responsabilidade civil pré-contratual não se dá apenas na ruptura das negociações preliminares. A doutrina acentua outras três hipóteses:(a) responsabilidade por danos causados à pessoa ou aos bens do outro contraente durante as negociações contratuais; (b) responsabilidade pela constituição do contrato inexistente, nulo ou anulável; (c) responsabilidade por danos causados por fatos ocorridos na fase das negociações, quando tenha sido validamente constituído o contrato.
1.4.4. A RESPONSABILIDADE PÓS-NEGOCIAL – OS DEVERES ANEXOS TRANSCENDEM A OBRIGAÇÃO
Em sua função integrativa (art. 422, CC), a boa-fé objetiva insere na obrigação os deveres anexos, laterais ou de conduta. Para além do conteúdo prestacional dado pelos contratantes, os deveres de proteção, informação e cooperação são involuntários, pois introjetados a qualquer relação obrigacional como exigências éticas do ordenamento jurídico, aptas ao estabelecimento de uma ordem de cooperação intersubjetiva, indutora de um ambiente de confiança que guiará o negócio jurídico para o adimplemento.
A plasticidade dos deveres anexos revela que o seu perímetro é mais amplo que o da própria prestação. A obrigação principal – de prestar uma coisa, um fato ou uma abstenção – desponta com a celebração do contrato e encontra o seu decesso ao tempo do cumprimento. Já os deveres anexos são mais extensos: revelam-se no momento das tratativas e sobrevivem ao adimplemento. Com efeito, a responsabilidade pela confiança demanda um especial relacionamento entre os sujeitos, que se inicia na fase do pourparler (negociações preliminares), espraiando-se para a etapa pós-negocial.
De fato, mesmo após o cumprimento de todas as obrigações negociais, credor e devedor mantêm uma aproximação, pois a boa-fé pressupõe que uma parte assegurará à outra a mais ampla fruição dos resultados obrigacionais bem como a não defraudação das legítimas expectativas de confiança depositadas naquele projeto comum e em seus escopos. Portanto, a responsabilidade pós-contratual, também conhecida como culpa post pactum finitum ou pós-eficácia das obrigações, representa uma obrigação de reparação de danos decorrente da violação de deveres laterais mesmo após a extinção
dos deveres prestacionais.
1.4.5. A RESPONSABILIDADE CIVIL TRANSUBJETIVA E OS DEVERES ANEXOS
Ao reconhecer a autonomia dos deveres de conduta em relação à prestação primária, no âmbito de uma relação obrigacional complexa e dinâmica, vislumbra-se não ser necessária a coincidência temporal entre o nascimento da obrigação principal e dos deveres laterais, eis que afloram mesmo para antes da contratação, mantendo-se inclusive depois do cumprimento do dever de prestar. Ou seja, os deveres anexos (fruto da boa-fé objetiva) antecedem à assunção das obrigações e extravasam o adimplemento delas. É o que vem se denominando responsabilidade civil pré e pós-contratual. No entanto, não é apenas nesse quadrante intersubjetivo que se pode notar a possibilidade do desencontro entre a eclosão de uma responsabilidade pelo descumprimento de obrigações derivadas da autonomia privada, com relação àquelas introduzidas pelos deveres anexos e modeladas por standards objetivamente delineados pela boa-fé objetiva .
Com efeito, a consciência da independência dos deveres de conduta em relação ao nível da prestação viabiliza, outrossim, uma ampliação quantitativa dos sujeitos ativos e passivos atingidos pelos deveres de conduta impostos pela boa-fé objetiva, de modo a atingir igualmente pessoas que originariamente não participaram do momento constitutivo da relação obrigacional. Quer dizer, trata-se de uma eficácia obrigacional transubjetiva, apta a alcançar terceiros estranhos ao negócio jurídico.
Todo dever de cuidado envolve, em maior ou menor grau, uma forma de cooperação para com o álter. Nessa cooperação é afirmada a ideia solidarista veiculada no art. 3º, inciso I, da Constituição Federal. Em interessante projeção, Luis Renato Ferreira da Silva considera que o binômio cooperação versus solidariedade pode ser considerado de duas maneiras: (a) dentro da relação contratual ele atua por meio do princípio da boa-fé (art. 422, CC); (b) já os reflexos externos das relações contratuais, que podem afetar a esfera de terceiros, impõem um comportamento solidário cooperativo, que é atuado pela noção da função social do contrato (art. 421, CC).
1.4.6. O TERCEIRO OFENDIDO E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL
Dentre os titulares de deveres de proteção, incluem-se terceiros – estranhos à relação obrigacional – que estão expostos aos riscos de danos pessoais ou patrimoniais oriundos da execução de um determinado contrato. Seriam os “contratos com eficácia de proteção para terceiros”, em que caberia ao terceiro, vítima, a percepção de uma indenização, não em razão de uma violação de algum dever de prestar advindo da relatividade contratual (pois este seria específico das partes), mas em virtude de ter sido ofendido em sua integridade psicofísica ou econômica, o que desencadeia a pretensão de reparação de danos, com fundamento no descumprimento de deveres laterais pelas partes, consistentes na inobservância do necessário cuidado e proteção perante a sociedade que os circunda.
Ao permitirmos que a responsabilidade civil englobe terceiros lesados pelo descumprimento de uma obrigação assumida no âmbito de um contrato de cuja formação não participaram, devemos assumir que o princípio pelo qual os efeitos do contrato só se produzem inter partes deverá ser interpretado de forma que, no conceito de “oponibilidade obrigacional”, incluam-se pessoas que não consentiram na formação do negócio jurídico, mas que estão sujeitas a ser por ele afetadas, precisamente no que se refere à sua função social.
1.4.7. O TERCEIRO OFENSOR E A RELAÇÃO OBRIGACIONAL
A eficácia transubjetiva das obrigações não permite apenas a tutela de terceiros estranhos ao negócio jurídico, vítimas de danos dele proveniente.
Na atual concepção da obrigação como processo polarizado ao adimplemento das obrigações, há toda uma expectativa do ordenamento jurídico de que as partes colaborarão para o êxito do negócio jurídico, pois o cumprimento do projeto contratual implica na satisfação do interesse do credor, na liberação do devedor e na extinção da obrigação. Para que esse empreendimento seja alcançado, o sistema internaliza o mecanismo ético da boa-fé objetiva ao ato de autonomia privada – tornando a obrigação complexa –, convidando os contratantes à preservação de comportamentos leais e honestos que induzam a obrigação ao seu término fisiológico.
Porém, isso não é suficiente para assegurar a integridade da obrigação. Neste sentido, haverá uma verticalização dos deveres anexos perante o corpo social. Toda a sociedade terá um dever de colaboração perante os contratantes no sentido de se abster de qualquer ato que possa induzir o contrato ao inadimplemento. Com efeito, a violação ao dever de proteção será igualmente visualizada quando um terceiro contribuir para o descumprimento de uma relação obrigacional em curso, através da realização de um segundo contrato – incompatível com o primeiro –, frustrando as
finalidades do negócio jurídico.
Na linha da função social do contrato, propugna-se por uma “tutela externa do crédito”, pela qual o terceiro ofensor seja responsabilizado, não propriamente pela prestação convencionada, mas pela ofensa a dever de conduta nela consubstanciada.
É inadmissível que a sociedade comporte-se como se o contrato não existisse ou, se existisse, fosse algo estranho a ela, a ponto de ser ignorado.
A responsabilidade civil de terceiro por lesão do direito do crédito é a solução equilibrada ao valor da justiça, harmonizando os princípios da reparação do dano e da liberdade contratual, resultando em aumento da confiança nos contratos e em sua estabilidade, por evitarem-se interferências materiais de terceiros sobre o crédito.
1.5. CONCLUSÃO
Talvez, o principal consista na compreensão que subjacente à discussão da confiança como uma “terceira pista” para a responsabilidade civil, exista uma constante tensão entre os princípios da liberdade e da solidariedade. A autonomia privada concede uma margem de atuação aos particularesnos domínios do mercado, das negociações e dos contratos. Essa perspectiva individualista será contida e acomodada pela eficácia horizontal dos direitos fundamentais, mediante o ingresso da solidariedade, adequando-se a autorregulamentação a imposições éticas de lealdade e boa-fé que identifiquem os parceiros contratuais como idênticos titulares de direitos fundamentais e não como antagonistas. Da mesma forma, essa eficácia interprivada da solidariedade abre janelas para a tutela externa do crédito, preservando os interesses existenciais e patrimoniais de terceiros estranhos ao negócio jurídico.
Essa acomodação entre os referidos direitos fundamentais encontra guarida na cláusula geral da responsabilidade civil (art. 927, CC). Esta norma vaga, imprecisa e de contornos fluídos será preenchida pela doutrina e jurisprudência. Aliás, assim se edificou a responsabilidade civil na vigência do Código Civil de 1916, o que proporcionou grande desenvolvimento a matéria em nossos tribunais mesmo diante das insuficiências do revogado diploma civil. Longe de incitar a insegurança jurídica, a técnica da cláusula geral impede o imobilismo com a sua aptidão para promover a constante atualização da norma, adaptando-a ao tráfego negocial e às exigências de uma sociedade plural.
2. RESPONSABILIDADE CIVIL E PENAL
2.1. FUNDAMENTOS DA SEPARAÇÃO DE RESPONSABILIDADES
Na teoria da responsabilidade jurídica distinguem-se dois tipos de responsabilidade, já referidos por Aristóteles: um que ocorre na relação entre indivíduos e que serve como critério resolutório de litígios ou nas questões indenizatórias; outro é a responsabilidade penal, quando o ato do indivíduo confronta-se com as normas de toda a sociedade, modernamente surgindo a obrigação de receber a punição prevista legalmente em virtude de atos delituosos.
No primeiro desenvolvimento histórico, a responsabilidade civil se situava em uma posição de dependência perante a responsabilidade penal, pois a ambas se atribuía uma função punitiva, com a particularidade de que a área dos danos ressarcíveis era circunscrita ao âmbito das lesões de direitos subjetivos absolutos. O destaque se deu posteriormente, com as mutações sofridas pela responsabilidade civil, transferindo a sua atenção do agente para a vítima, da culpa do ofensor para a injustiça do dano.
Com efeito, o direito penal direciona as suas lentes para a pessoa do ofensor; já o direito civil desvia o olhar para a vítima. Isto é, a preocupação do penalista é com o futuro, daí o intuito de punir quem praticou um comportamento antijurídico reprovável, prevenindo-se a reiteração de ilícitos, seja pelo próprio agente (prevenção especial), como por outros membros da sociedade (prevenção geral). Diversamente, o civilista foca o tempo passado. Ele indaga quais foram os danos sofridos pela vítima, haja vista ser a recomposição de seu equilíbrio patrimonial o desiderato primário da responsabilidade civil. As sanções criminais incidem principalmente sobre o bem da liberdade pessoal, enquanto as civis observam a transferência de um quantum do ofensor ao ofendido. A responsabilidade civil representa uma reação contra o dano injusto mediante a sua reparação; a responsabilidade penal mira a punir uma conduta ilícita e a educar o ofensor, garantindo a tutela da coletividade e removendo a ofensa causada pelo crime.
2.2. A CONFLUÊNCIA ENTRE OS ILÍCITOS PENAL E CIVIL
Tradicionalmente, apresenta uma zona de interferência com o direito penal. O ilícito civil se situa nas cláusulas gerais dos artigos 186, 187 e 927 do Código Civil; o ilícito penal submetido ao princípio da tipicidade.
O pensamento jurídico, sobretudo contemporâneo, elaborou uma série de critérios para assinalar no plano ontológico as diferenças entre o ilícito civil e o ilícito penal: (I) o ilícito civil corresponderia a um comportamento humano admitido pelo ordenamento na medida em que o autor do dano suporta os custos, resolvendo-se a responsabilidade civil em um problema de eficiente alocação de custos; o crime, ao invés, corresponderia a uma conduta proibida, cuja relevância não se exaure no ressarcimento do dano e na individualização de critérios de eficiente alocação de custos; (II) o crime daria lugar a um alarme social, por se constituir em ofensa à ordem pública em sentido material, completamente diferente do ilícito civil. A consequência seria que a maior ou menor imoralidade do fato incidiria exclusivamente sobre a medida do remédio penal a se aplicar, enquanto a medida do remédio civilístico dependeria da dimensão do dano e não do grau de imoralidade da conduta; (III) o ilícito penal seria caracterizado, diversamente do ilícito civil, não apenas pela presença de uma ofensa à ordem pública, mas também pelo caráter normalmente doloso da conduta; (IV) o ilícito penal seria individualizado por um fato que nasce e se desenvolve exclusivamente no âmbito de uma relação entre o indivíduo e a estrutura estatal, enquanto o ilícito civil colocaria em evidência a relação entre um indivíduo e outro. Como consequência, as sanções teriam funções diversas: a penal se resolveria completamente dentro do circuito Estado-indivíduo, enquanto a civil estaria voltada a restaurar a vítima
Todavia, a conclusão atual não pode ser outra que a necessária negação de uma diversidade ontológica entre o ilícito civil e o penal. Em ambos os casos, trata-se de um contato social não pacificado que reclama a intervenção do ordenamento. O ilícito civil e o penal compartilham a mesma essência: um ato antijurídico praticado por uma pessoa imputável. Caberá à discricionariedade do legislador estabelecer em qual área (direito civil, penal ou administrativo) será colocada a reação do ordenamento, sendo corriqueira a reserva ao direito penal das infrações consideradas especialmente graves, que interessam a toda a coletividade, fundando um ilícito especial, conhecido por infração criminal.
Se, quanto ao núcleo do ilícito, ilícito civil e penal possuem dados comuns, ambos ancorados em um juízo de antijuridicidade de uma conduta perante o ordenamento, o mesmo não se diga quanto à estrutura da responsabilidade civil e penal, modelos em que se encontram diferenças substanciais, no que se refere aos elementos da culpa, dano e tipicidade. É o que veremos doravante.
2.2.1. A CULPA NO DIREITO CIVIL E NO DIREITO PENAL
A evolução da responsabilidade civil culminou por eliminar a sua função punitiva, o que contribuiu para neutralizar qualquer distinção operativa entre culpa e dolo, na medida em que a transferência dos danos ao ofensor passa a se exprimir objetivamente pela extensão dos danos que causou ao ofendido, sem qualquer relevo para a intencionalidade ou não do seu agir. Isso fez com que a culpa fosse a regra do direito civil, guindado o dolo a hipóteses residuais, enquanto justamente o contrário se verifica no direito penal, reconduzido à prevalência dos crimes dolosos e, por exceção, culposos. De fato, só será possível a formulação de normas que veiculem penas quando o preceito sancionatório objetive em primeiro plano desestimular um comportamento não apenas antijurídico, mas reprovável por parte daquele que poderia pautar o seu agir em conformidade a um modelo de comportamento sério e diligente. Isso significa que o dolo – ou, no mínimo, a grave negligência do autor do ilícito – é pressuposto subjetivo para a eclosão da sanção punitiva criminal.
Essa distinção resulta da diferença de enfoque entre a pena e a reparação: enquanto a primeira incide em função da própria natureza ilícita do ato, a última incide em função de seus efeitos danosos. Um corolário dessa realidade é que, para fins de concessão de verbas exclusivamente compensatórias, a prática de uma conduta com dolo é irrelevante, se esta não causou nenhum prejuízo. Do outro lado da moeda, se está em jogo a imposição de uma pena, o dolo é altamente relevante, enquanto o prejuízo assume uma importância secundária, periférica.
Dolo e culpa assumem significados distintos conforme se revelem no juízo cível ou criminal. O dolo no ilícitocivil é mais amplo do que no ilícito penal, abrangendo não apenas a intenção de praticar um comportamento antijurídico, como a vasta categoria de “truffa civile” (fraude civil), englobando uma multiplicidade de estados subjetivos diversos da culpa como as hipóteses de dolo como vício do consentimento, podendo ainda equivaler simplesmente ao ato de fornecer falsas informações, a “reticência” (silêncio quanto a informações que interessam a outrem) e todo e qualquer estado subjetivo de má-fé, de várias intensidades.
2.2.2. O DANO
O elemento indispensável à eclosão da responsabilidade civil é o dano. Malgrado a distinção de fontes e eficácias da obrigação de indenizar, em comum, tanto a responsabilidade negocial como a extranegocial pressupõem o dano. A responsabilidade civil é historicamente o ramo do direito das obrigações direcionado ao reequilíbrio da condição econômica da vítima – exista ou não negócio jurídico prévio com o ofensor. Esta tendência se reforçou com o progressivo descolamento da responsabilidade da necessária aferição da ilicitude e culpa do comportamento do ofensor, para a tutela integral do ofendido. Nessa passagem de uma sanção punitiva para uma sanção reparatória, um ato ilícito que não repercuta em lesão a interesses patrimoniais e existenciais da vítima será insuscetível de responsabilidade civil (art. 927, CC).
Sendo a função criminal alicerçada na reação a comportamentos antijurídicos, mesmo que do ilícito eventualmente não decorram danos, haverá justificativa para a atuação preventiva do arcabouço penal. Ora, a direção perigosa significa violação às normas de trânsito. Porém, esta infração de perigo só será sancionada no âmbito privado se a conduta do agente for a causa necessária à produção de danos injustos.
2.2.3. A TIPICIDADE
A sanção penal, perante a sua finalidade preventiva e aflitiva primária, submete-se ao princípio da legalidade estrita, ou seja, o fato punitivo será abstratamente previsto pela norma civil, para que seja concretamente capaz de gerar a sanção (nulla poena sine lege).
Aduz o artigo 186 do Código Civil: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito, e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito” (grifo nosso). Trata-se de norma de conteúdo impreciso, vago e fluido, que permite ao magistrado cível considerar como fato ilícito qualquer conduta antijurídica que ofenda o neminem laedere. De fato, uma norma de sentido proteiforme será apta a ser preenchida pelos tribunais mediante uma valoração de comportamentos contrários ao direito.
Jamais se olvide, com base em um critério de fragmentação dos ilícitos, que o artigo 186 do Código Civil é uma cláusula geral de ilicitude stricto sensu, quer dizer, ela não se dirige aos efeitos de qualquer ato ilícito, mas apenas a uma espécie de ilícito, qualificado pela eficácia reintegratória, umbilicalmente atrelado ao artigo 927 do Código Civil. Nessa cláusula geral de responsabilidade civil o nexo causal é posto entre o fato culposo ou doloso e o dano, ou seja, entre a conduta e o evento.
2.3. A INTERSEÇÃO ENTRE A JURISDIÇÃO CIVIL E A CRIMINAL
2.3.1. RELATIVA INDEPENDÊNCIA DE JURISDIÇÕES
O processo – seja civil, seja penal – existe para realizar as situações de direito material. Daí sua natureza instrumental, tendente a concretizar, no plano das relações sociais, os direitos e deveres nascidos das normas jurídicas de direito material. O exercício arbitrário das próprias razões é crime (art. 345 do Código Penal: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite”).
Assim, ninguém pode satisfazer, com o uso da força, as próprias pretensões, ainda que legítimas. Se o locatário, abusivamente, não paga o aluguel nem desocupa o imóvel, o locador pode, ingressando com ação de despejo, pleitear sua saída, cumulando a ação com a cobrança dos aluguéis vencidos. Não poderá, no entanto, forçá-lo fisicamente a sair, pois a ordem jurídica proíbe a violência privada,
ainda que a pretensão seja legítima.
De outra banda, há muito já nos despedimos do chamado “sistema da confusão”, pelo qual a mesma ação era utilizada para a imposição da pena e para fins de ressarcimento cabal do ofendido. Atualmente é comum, para efeitos operacionais, dividir a jurisdição em juízos com competências distintas. Se o empregador pratica violência moral contra o empregado, causando-lhe, além disso, lesões corporais graves, a Justiça do Trabalho julgará o dano moral, cabendo ao juízo criminal processar e julgar o delito de lesões corporais.
2.3.2. REPERCUSSÃO CIVIL DA DECISÃO PENAL CONDENATÓRIA
Um mesmo fato da vida pode apresentar consequências penais e civis. Um atropelamento pode ser homicídio, doloso ou culposo, propiciando uma pretensão punitiva, e ser ao mesmo tempo ilícito civil, fazendo surgir para o motorista o dever de reparar os danos materiais e morais dele decorrentes. Todavia, surgem possibilidades de decisões conflitantes, razão pela qual o sistema jurídico deve buscar sempre que possível a harmonização entre os julgados, embora, em certos casos, aceite a diversidade de resultados. Ou seja, não há uma independência absoluta, havendo em certos casos uma projeção, para além dos seus limites naturais, da decisão definitiva criminal. O nosso Código de Processo Penal adota o sistema da independência das instâncias, preconizando o artigo 64 que, “sem prejuízo do disposto no artigo anterior, a ação para ressarcimento do dano poderá ser proposta no juízo cível, contra o autor do crime e, se for o caso, contra o responsável civil”.
Prosseguindo, de acordo com o artigo 935 do Código Civil: “A responsabilidade civil é independente da criminal, não se podendo questionar mais sobre a existência do fato, ou sobre quem seja o seu autor, quando estas questões se acharem decididas no juízo criminal.”
2.3.3. REPERCUSSÃO CIVIL DA DECISÃO PENAL ABSOLUTÓRIA
Diferentemente do inexorável efeito preclusivo da decisão condenatória transitada em julgado, os efeitos da sentença penal absolutória oscilarão no juízo cível. Confirmando a relativa autonomia entre as jurisdições, será a absolvição veemente no juízo cível se reconhecer, de modo categórico, que o fato não aconteceu, ou que, embora tenha acontecido, o réu não foi o seu autor (art. 935, CC e art. 66, CPP). Todavia, as demais hipóteses de absolvição, quaisquer que sejam, não vinculam o juízo cível, facultando-se à vítima o acesso a ação civil ex delicto.
Essa solução se justifica, pois o direito penal exige integração de condições mais rigorosas e taxativas, uma vez que está adstrito ao princípio da presunção de inocência; já o direito civil é menos rigoroso, parte de pressupostos diversos, pois a culpa, mesmo levíssima, induz à responsabilidade e ao dever de indenizar. Assim, pode haver ato ilícito gerador do dever de indenizar civilmente, sem que penalmente o agente tenha sido responsabilizado pelo fato. Contudo, se o processo criminal concluiu quanto à inocorrência do fato no mundo da natureza ou recuse peremptoriamente a autoria ou a participação do suposto agente na infração, aniquila-se o processo cível.
2.3.4. PROCESSOS (CIVIL E CRIMINAL) SIMULTÂNEOS: DECISÕES CONFLITANTES?
De um mesmo fato podem decorrer consequências civis e penais. Uma morte no trânsito, por exemplo, pode ser objeto de ação penal, para apuração dos efeitos criminais, e pode ser, ao mesmo tempo, objeto da ação de reparação civil, proposta pela família da vítima. Do mesmo modo, o fato de já existir uma decisão judicial condenatória proposta na seara cível não prejudica a instauração de regular inquérito policial para apuração de eventual crime, tendo em vista a independência, via de regra, entre as instâncias civil e penal.
Nessa concomitância processual, situação inversa pode ocorrer. O juízo cível condena, dando como certo o dever de reparar. Sobrevém, no entanto, sentença penal absolutória, com fundamento, justamente, na inocência do autor. Emprestamos adesão à posição de Cláudio Godoyno sentido de prevalecer a coisa julgada cível como título específico para a reparação de danos, evitando-se assim a insegurança jurídica da repetição do indébito caso após a execução venha uma sentença absolutória, assentando a inexistência do fato ou da autoria. Também aqui, a única saída para harmonizar os julgados repousara na ação rescisória.
A verdade é que nem sempre prevalecerá a harmonia nos embates entre as duas jurisdições. Porém, essas soluções podem ser creditadas ao fato de que a decisão civil prévia não acarreta preclusão no juízo criminal. As exceções à regra da independência das instâncias ocorrem sempre em sentido único: a decisão criminal, em certos casos, pode vincular a decisão civil e administrativa. Não nos parece possível ocorrer o oposto, qual seja, a decisão cível vincular o juízo criminal.
É inegável que decisões assim, contraditórias e conflitantes, são indesejáveis, gerando, além do descrédito institucional, insegurança, com o que esvaziam o propósito pacificador da jurisdição. O ideal é buscar harmonia entre as decisões, sendo certo que o processo é mero instrumento de realização do direito material.
2.4. EXCLUDENTES DE ILICITUDE
A absolvição criminal, como visto, poderá vincular a decisão civil, se reconhecer que o fato inexistiu ou que o réu é inocente. Fora essas duas hipóteses, mencionadas pelo art. 935 do Código Civil – e reafirmadas pelo Código de Processo Penal –, não há projeção, na esfera civil, das decisões absolutórias penais. A afirmação acima parece ser desmentida pelo art. 65 do Código de Processo Penal: “Faz coisa julgada no cível a sentença penal que reconhecer ter sido o ato praticado
em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito.”
Portanto, a teor do art. 65 do Código de Processo Penal, haveria outra hipótese na qual a decisão criminal definitiva se revestiria de autoridade da coisa julgada no juízo cível. É quando se reconhece alguma das excludentes de ilicitude. Nada obstante, a decisão penal que reconhece uma exclusão de ilicitude (estado de necessidade, legítima defesa etc.) obriga o juízo cível a aceitar tais premissas, porém os efeitos, a elas conferidos, serão os da lei civil, que impõe, em certos casos, apesar da licitude do ato, o dever de reparar os danos.
LEITURA RECOMENDADA:

Outros materiais

Materiais relacionados

Perguntas relacionadas

Materiais recentes

Perguntas Recentes