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O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE BELO HORIZONTE / MG 2 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 4 1.3 Um Novo Letramento ....................................................................................................... 8 1.4 O Letramento Digital ........................................................................................................ 9 2 LER E ESCREVER NA CULTURA DIGITAL sob a égide de RAMAL ............................... 10 2.1 A cibercultura ................................................................................................................. 13 2.2 O hipertexto como subversão da escola linear ............................................................... 13 3 OS GÊNEROS DIGITAIS E OS DESAFIOS DE ALFABETIZAR LETRANDO4 ................. 16 3.1 Letramento digital: possibilidades para um ensino crítico .............................................. 17 3.2 Os gêneros digitais no processo de letramento das crianças em fase de alfabetização 18 3.2.1 Escrevendo os endereços eletrônicos ......................................................................... 19 3.2.2 Trocando cartões digitais ............................................................................................ 20 3.3 Tudo isso é positivo, mas... ............................................................................................ 22 4.1 Introdução ...................................................................................................................... 23 4.2 Softwares Educacionais ................................................................................................. 23 4.3 Redes Neurais Artificiais Aplicadas no Reconhecimento de Caracteres ........................ 24 4.3.1 Multi Layer Perceptron ................................................................................................ 24 4.3.2 Algoritmo Backpropagation ......................................................................................... 24 4.3.3 Reconhecimento de Caracteres .................................................................................. 25 4.4 Metodologia de Desenvolvimento do Software .............................................................. 25 4.4.1 Pré-processamento ..................................................................................................... 25 4.4.2 Características da RNA proposta ................................................................................ 26 4.5 Resultados Experimentais ............................................................................................. 26 4.6 Conclusão ...................................................................................................................... 27 5 A MESA EDUCACIONAL ALFABETO .............................................................................. 27 5.1 Aprender a ler e escrever participando .......................................................................... 28 5.1.1 Na prática ................................................................................................................... 29 REFERÊNCIAS UTILIZADAS E CONSULTADAS ............................................................... 32 3 ANEXOS .............................................................................................................................. 36 O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 4 INTRODUÇÃO Não faz muito tempo que ainda permanecia entre nós a ideia de que alfabetizar seria ensinar a decodificação das letras. Partindo dos pressupostos da teoria de Letramento essa ideia é completamente sem sentido. A leitura não é um mero mecanismo de decodificação, um meio de estudar, de chegar aos conhecimentos, mas é um processo de inter-relação, de leitura e compreensão do mundo. Um olhar sobre a produção de Xavier (2002) bem como de outros autores que versam sobre o tema sustenta a ideia de que as novas tecnologias, principalmente o mundo do computador tem-se revelado uma grande possibilidade de avanço ao mundo da leitura e de acesso à cultura em geral. Pensando nisso, criamos essa disciplina, objetivando analisar o letramento nos dias atuais e o uso das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) como ferramentas de apoio à alfabetização e, principalmente, ao letramento. Esta disciplina visa, então, levantar as bases teóricas da teoria de Letramento através da análise de conteúdo. Para isto, partimos dos seguintes questionamentos: o que é a teoria do Letramento? Considerando que cada vez mais as pessoas estão adquirindo acesso à informação em meio digital, no que se constitui o Letramento Digital? Seria o Letramento Digital um novo tipo de Letramento? É surpreendentemente notável a brusca entrada da tecnologia em nossa sociedade, porém o setor de maior necessidade, que é o da educação, permanece à margem dessa evolução. Está evidente que a educação terá que se adaptar às tais mudanças, positivas por sinal, pois o computador, principal instrumento que está sendo utilizado nessa nova sociedade da informação, está ocupando as salas de aula como uma ferramenta educativa. Por isso, iremos abordar, também, as maneiras como essas tecnologias podem influenciar no processo de ensino/aprendizagem do modelo tradicional, através de recursos midiáticos. Assim, esperamos que você desenvolva seus conhecimentos e que faça, também, uma excelente leitura, obtendo o sucesso que almejas. Outras informações e aprofundamentos devem ser buscados através da leitura da bibliografia utilizada e relacionada ao final desta. 1 O LETRAMENTO E AS TIC A utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) como ferramentas de apoio à alfabetização e, principalmente, ao letramento, já é uma realidade, principalmente, no que concerne ao uso do computador nas escolas. Porém, as tecnologias modernas demoram, sobremaneira, para chegar até a escola, demorando mais ainda, para serem substituídas. Como exemplo, podemos citar o quadro negro que, apesar de ter sido criado no século XVIII pelo professor escocês James Pillams e, na época, tido como o primeiro salto da educação, o mesmo permanece até hoje, três séculos depois. Partindo, então, deste modelo tradicional de ensino, fechado para o exterior, o fundamento psicopedagógico desse modelo é de que: aprender é adquirir conhecimentos do exterior para o interior, um processo por meio do qual o professor deve dominar a matéria e passá- la com clareza, pois, o papel do aluno é baseado em uma atitude passiva. Com o advento do computador e da Internet, essa postura sofre mudanças, pois, o computador, considerado o segundo grande salto dado pela educação, tira o professor da função de protagonista, haja vista que, torna-se necessário dar espaço também aos alunos e à mídia, utilizando o computador, pois, a cada minuto, novas descobertas são reveladas, não sendo mais o professor dono do saber total. Portanto, para a sobrevivênciada educação, será necessário o enfrentamento das mudanças no âmbito da formação de pessoas conscientes, críticas e ativamente participantes da esfera social, capazes de priorizar suas necessidades utilizando-se do excesso de informação para o desenvolvimento do senso analítico. O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 5 1.1 As TIC e as transformações na Escola As tecnologias da informação e comunicação (TIC), cada vez mais presentes no mundo atual, dão a nós, professores, a garantia de transformação da escola atual por disponibilizar melhores condições de ensino. As TIC detêm um caráter transformador, com três invariáveis efeitos: Alteram as estruturas de interesses, pois modificam o que pensamos, formulando uma nova forma de avaliação e configuração das relações; Mudam o caráter dos símbolos, pois ampliam os signos e os sistemas de armazenamento e acesso à informação, impulsionando as novas formas de conhecimento; e Modificam a natureza da comunidade, pois podemos ter um conhecimento amplo sem sair de casa e sem que nos relacionemos fisicamente com alguém. Nesse sentido, devemos estar sempre atualizados com as mudanças no mundo e na sociedade, pois, os nossos alunos vivenciam estas mudanças, através dos meios de comunicação, principalmente, a Internet. Isto porque, com o advento dessas tecnologias, foi vista, nas tecnologias digitais de informação e comunicação, uma grande oportunidade de melhorias no meio educacional. Mas, para isso, vemos alguns obstáculos, como a cultura tradicional das escolas, e, sobretudo, a falta de orçamento e de interesse por parte do governo e até de alguns de nós mesmos, professores. Contudo, é necessário mudarmos tais valores, senão o âmbito educacional ficará a desejar. Assim, as TIC precisam ser vistas como um sistema de ajuda para nós, professores, para que possam melhor realizar nossos trabalhos e, até mesmo, com um pouco menos de sofrimento. Com a implementação das TIC nas escolas, os mais privilegiados serão os alunos, porquanto não precisarão mais se ligar apenas às nossas explicações ou se limitarem às páginas dos livros, porque terão a ajuda de variadas fontes e meios de informação e comunicação. Isso vai proporcionar uma interatividade entre professores e alunos, tornando o ambiente escolar mais agradável e propício a uma evolução gradativa. Para nós professores, também existem ganhos, pois, com a utilização do computador e da Internet, haverá uma diminuição na carga de trabalho, haja vista, não ser mais necessário elaborar uma infinidade de aulas, e escrevê-las no quadro negro, tampouco diminuirá a necessidade de uma fala quase constante, em sala. Com isso, poderemos dar mais atenção ao aluno e à suas reais necessidades de aprendizagem. Isto porque, com a possibilidade de utilização de blogs e outros tipos de comunicação online, podemos disponibilizar os textos e diversos conteúdos, para os alunos, antes mesmo da aula, dando a eles, a possibilidade de acesso a estes, bem como, de aprofundamento dos temas, através de pesquisas. 1.2 Letramento: epistemologia e conceitos Por ser um termo introduzido, recentemente, na Língua Portuguesa, encontramos diversas discussões epistemológicas e conceituais, acerca do termo Letramento. De acordo com Magda Soares (2004), o Letramento sugere a ideia de que a escrita traz consequências sociais, culturais, políticas, econômicas e cognitivas, pois é o que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita, em um contexto específico, e como essas habilidades se relacionam com as necessidades, valores e práticas sociais. A palavra letramento apareceu primeiramente no livro de Mary Kato (1986) No mundo da escrita: uma perspectiva psicolinguística. Ela é um tanto quanto fora do comum para muitos profissionais da educação porque surgiu entre os linguistas e estudiosos da língua portuguesa, passando, então, a ter trânsito no setor educacional. O termo letramento se originou de uma versão feita da palavra da língua inglesa ―literacy, com a representação etimológica de estado, condição, ou qualidade de ser literate, e literate que é definido como educado para ler e escrever. O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 6 Ainda segundo Soares (2004), em meados dos anos de 1980 ―se dá, simultaneamente, a invenção do letramento no Brasil, do illettrisme, na França, da literacia, em Portugal, para nomear fenômenos distintos daquele denominada alfabetização. O plural, nesse subtítulo – conceitos –, explica-se pela imprecisão que, na literatura educacional brasileira, ainda marca a definição de letramento. Entretanto, não há, propriamente, uma diversidade de conceitos, mas diversidade de ênfases na caracterização do fenômeno. Há autores que consideram que letramento são as práticas de leitura e escrita: segundo Kleiman (1995, p. 19): ―Podemos definir hoje o letramento como um conjunto de práticas sociais que usam a escrita, enquanto sistema simbólico e enquanto tecnologia, em contextos específicos, para objetivos específicos‖. Em texto posterior, a autora declara entender letramento ―como as práticas e eventos relacionados com uso, função e impacto social da escrita‖ (KLEIMAN, 1998, p. 181). Nessa concepção, letramento são as práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que essas práticas são postas em ação, bem como as consequências delas sobre a sociedade. Já Tfouni (1988, p. 16), em obra que foi uma das primeiras a não só utilizar, mas também a definir o termo letramento, conceitua-o em confronto com alfabetização, conceito que reafirma em obra posterior: ―Enquanto a alfabetização ocupa-se da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo de indivíduos, o letramento focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade‖ (TFOUNI, 1995, p. 20). A autora reafirma essa diferença entre alfabetização e letramento insistindo no caráter individual daquela e social deste: A alfabetização refere-se à aquisição da escrita enquanto aprendizagem de habilidades para leitura, escrita e as chamadas práticas de linguagem. Isso é levado a efeito, em geral, por meio do processo de escolarização e, portanto, da instrução formal. A alfabetização pertence, assim, ao âmbito do individual. O letramento, por sua vez, focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição da escrita. Entre outros casos, procura estudar e descrever o que ocorre nas sociedades quando adotam um sistema de escritura de maneira restrita ou generalizada; procura ainda saber quais práticas psicossociais substituem as práticas ―letradas em sociedades ágrafas (TFOUNI, 1988, p. 9, e 1995, p. 9-10). Assim, para Tfouni, letramento são as consequências sociais e históricas da introdução da escrita em uma sociedade, ―as mudanças sociais e discursivas que ocorrem em uma sociedade quando ela se torna letrada‖ (1995, p. 20). Conclui-se que Tfouni toma, para conceituar letramento, o impacto social da escrita, que, para Kleiman, é apenas um dos componentes desse fenômeno; Kleiman acrescenta a esse outros componentes: também as próprias práticas sociais de leitura e escrita e os eventos em que elas ocorrem compõem o conceito de letramento. Em ambas as autoras, porém, o núcleo do conceito de letramento são as práticas sociais de leitura e de escrita, para além da aquisição dosistema de escrita, ou seja, para além da alfabetização. Letramento é, nesta concepção, o contrário de analfabetismo (razão pela qual a palavra alfabetismo tem sido frequentemente usada em lugar de letramento, e seria mesmo mais vernácula que esta última). Se analfabetismo é, como habitualmente definido nos dicionários, o estado de analfabeto (cf. Michaelis, Moderno dicionário da língua portuguesa), o estado ou condição de analfabeto (cf. Novo Aurélio Século XXI e Dicionário Houaiss da língua portuguesa), o contrário de analfabetismo – alfabetismo ou letramento – é o estado ou condição de quem não é analfabeto. Aliás, na própria formação da palavra letramento está presente a ideia de estado: a palavra traz o sufixo -mento, que forma substantivos de verbos, acrescentando a estes o sentido de ―estado resultante de uma ação‖, como ocorre, por exemplo, em acolhimento, ferimento, sofrimento, rompimento, lançamento; assim, de um verbo letrar (ainda não dicionarizado, mas necessário para designar a ação educativa de desenvolver o uso de práticas sociais de leitura e de escrita, para além do apenas ensinar a ler e a escrever, do alfabetizar), forma-se a palavra letramento: estado resultante da ação de letrar. O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 7 No início da década de 80, o estudo acerca da psicogênese da língua escrita trouxe aos educadores a compreensão de que a alfabetização, não envolve somente a apropriação de um código, mas um difícil processo de preparação de hipóteses sobre a representação linguística. Assim, com a emergência dos estudos sobre o Letramento de Soares (2003), os teóricos brasileiros passaram a aproximar os conceitos: alfabetização e letramento. Isto é visível, segundo a autora, em Adultos não alfabetizados: o avesso do avesso, de Tfouni (1988), e no título: Letramento e Alfabetização (1995) que também menciona os dois conceitos. A mesma aproximação aparece na coletânea organizada por Roxane Rojo, Alfabetização e letramento (1998), em que está também presente a proposta de uma diferenciação entre os dois fenômenos, embora não diferente da proposta de Leda Tfouni. Ângela Kleiman, na coletânea que organiza - Os significados do letramento (1995), também discute o conceito de letramento. Em Letramento: um tema em três gêneros, Soares procura conceituar, confrontando os dois processos – alfabetização e letramento. A história do letramento no Brasil se deu por caminhos diferentes dos que explicam a invenção do termo em outros países, como a França e os Estados Unidos. Enquanto nesses outros países a discussão do letramento se fez e se faz de forma independente em relação à discussão da alfabetização, no Brasil, a discussão do letramento surge sempre arraigada ao conceito de alfabetização, o que tem levado, apesar da diferenciação na produção acadêmica, a uma inadequada fusão dos dois processos, com prevalência do conceito de letramento (SOARES, 2003). É interessante o comentário que Soares (2004) faz a esse respeito, dizendo que a alfabetização não precede o letramento, mas os dois processos são simultâneos. Nos dicionários da língua portuguesa vemos que a palavra alfabetizado diz respeito à pessoa que somente aprendeu a ler e escrever, não se diz que é aquele que adquiriu o estado ou condição de quem se apropriou da leitura e da escrita, que detém corriqueiramente de práticas sociais de leitura e escrita. Tfouni (1995), também revela que a alfabetização, às vezes, está sendo mal entendida; ela se ocupa da aquisição da escrita por um indivíduo, ou grupo. Enquanto o letramento ―focaliza os aspectos sócio históricos da aquisição de um sistema escrito por uma sociedade‖ (Tfouni, 1995, p. 12), e, segundo Soares (2003), é o estado ou condição de quem não apenas sabe ler e escrever, mas e exerce habitualmente práticas sociais de leitura e escrita. Mortatti (2004) explica que o fato de uma pessoa ser alfabetizada não garante que ela seja letrada, viver numa sociedade letrada não faz dela uma pessoa letrada ou que todos tenham oportunidades iguais na cultura escrita. No quadro desses conceitos de letramento, o momento atual oferece uma oportunidade extremamente favorável para refiná-lo e torná-lo mais claro e preciso. É que estamos vivendo, hoje, a introdução, na sociedade, de novas e incipientes modalidades de práticas sociais de leitura e de escrita, propiciadas pelas recentes tecnologias de comunicação eletrônica – o computador, a rede (a web), a Internet. É, assim, um momento privilegiado para, na ocasião mesma em que essas novas práticas de leitura e de escrita estão sendo introduzidas, captar o estado ou condição que estão instituindo: um momento privilegiado para identificar se as práticas de leitura e de escrita digitais, conduzem a um estado ou condição diferente daquele a que conduzem as práticas de leitura e de escrita na cultura do papel. Considerando que letramento designa o estado ou condição em que vivem e interagem indivíduos ou grupos sociais letrados, pode-se supor que as tecnologias de escrita, instrumentos das práticas sociais de leitura e de escrita, desempenham um papel de organização e reorganização desse estado ou condição. Lévy (1993) inclui as tecnologias de escrita entre as tecnologias intelectuais, responsáveis por gerar estilos de pensamento diferentes (observe-se o subtítulo de seu livro As tecnologias da inteligência: ―o futuro do pensamento na era da informática‖); esse autor insiste, porém, que as tecnologias intelectuais não determinam, mas condicionam processos cognitivos e discursivos. O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 8 1.3 Um Novo Letramento Antes da invenção da imprensa, a produção e reprodução manuscritas dos textos condicionavam sua difusão, seu uso e, consequentemente, as práticas de escrita e de leitura: por um lado, os livros manuscritos da Idade Média eram objetos de luxo, a que poucos tinham acesso – Umberto Eco representa bem a relação do homem medieval com os livros manuscritos, em O nome da rosa; por outro lado, os monges copistas frequentemente alteravam o texto, ou por erro ou por intervenção consciente, de modo que cópias do mesmo texto raramente eram idênticas; além disso, ao possuidor ou ao leitor do manuscrito era garantida a possibilidade de intervir no texto, acrescentando títulos, notas, observações pessoais, porque espaços em branco eram deixados para essa finalidade. Embora a invenção da imprensa, e para isso alertou Chartier (1998, p. 7-9), não tenha representado uma transformação tão radical como se costuma supor – ―um livro manuscrito (sobretudo nos seus últimos séculos, XIV e XV) e um livro pós- Gutemberg baseiam-se nas mesmas estruturas fundamentais, as do códex, a verdadeira ―revolução‖ tendo sido, na verdade, a descoberta deste, o códex – a ―revolução de Gutemberg alterou profundamente as formas de produção, de reprodução e de difusão da escrita, e, consequentemente, modificou significativamente as práticas sociais e individuais de leitura e de escrita – modificou o letramento, isto é, o estado ou condição de quem participa de eventos em que tem papel fundamental a escrita. A tecnologia da impressão formatou a escrita, muito mais do que o tinham feito o rolo e o códice, em algo estável, monumental e controlado: estável, porque o texto se torna então reproduzívelem cópias sempre idênticas; monumental porque o texto impresso, muito mais que o manuscrito, sobrevive e persiste como um monumento a seu autor e a seu tempo; controlado porque numerosas instâncias intervêm em sua produção e a regulam. Em primeiro lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que instauram a propriedade sobre a obra, propriedade que se expressa concretamente no surgimento da figura do autor, em geral difuso e não identificado anteriormente, nos livros manuscritos, e instituem, consequentemente, os direitos autorais, a criminalização da cópia e do plágio. Em segundo lugar, são as tecnologias de impressão e difusão da escrita que criam muitas e várias instâncias de controle do texto – de sua escrita e de sua leitura: o texto é produto não só do autor, mas também do editor, do diagramador, do programador visual, do ilustrador, de todos aqueles que intervêm na produção, reprodução e difusão de textos impressos em diferentes portadores (jornais, revistas, livros...). Altera-se, assim, fundamentalmente, o estado ou condição dos que escrevem e dos que leem – o letramento na cultura do texto impresso diferencia-se substancialmente do letramento na cultura do texto manuscrito. Atualmente, a cultura do texto eletrônico traz uma nova mudança no conceito de letramento. Em certos aspectos essenciais, esta nova cultura do texto eletrônico traz de volta características da cultura do texto manuscrito: como o texto manuscrito, e ao contrário do texto impresso, também o texto eletrônico não é estável, não é monumental e é pouco controlado. Não é estável porque, tal como os copistas e os leitores frequentemente interferiam no texto, também os leitores de hipertextos podem interferir neles, acrescentar, alterar, definir seus próprios caminhos de leitura; não é monumental porque, como consequência de sua não estabilidade, o texto eletrônico é fugaz, impermanente e mutável; é pouco controlado porque é grande a liberdade de produção de textos na tela e é quase totalmente ausente o controle da qualidade e conveniência do que é produzido e difundido. Enquanto no texto impresso é grande a distância entre autor e leitor – segundo Bolter (1991, p. 3), o autor do texto impresso é a monumental figure (uma figura monumental) e o leitor é apenas a visitor in the author’s cathedral (um visitante na catedral do autor) – no texto eletrônico, a distância entre autor e leitor se reduz, porque o leitor se torna, ele também, autor, tendo liberdade para construir, ativa e independentemente, a estrutura e o sentido do texto. Na verdade, o hipertexto é construído pelo leitor no ato mesmo da leitura: optando entre várias alternativas propostas, é ele quem define O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 9 o texto, sua estrutura e seu sentido. Enquanto no texto impresso, cuja linearidade, por si só, já impõe uma estrutura e uma sequência, o autor procura controlar o leitor, lançando mão de protocolos de leitura que definam os limites da interpretação e impeçam a superinterpretação, como propõe Umberto Eco (1995, 2001), no texto eletrônico, ao contrário, o autor será tanto mais competente quanto mais alternativas de estruturação e sequenciação do texto possibilite, quanto mais opções de interpretação ofereça ao leitor. Na verdade, o hipertexto não tem propriamente um autor; em primeiro lugar, porque a intertextualidade, presente, no texto impresso, quase exclusivamente por alusão, no hipertexto se materializa, na medida em que este se constrói pela articulação de textos diversos, de diferentes autorias – no hipertexto, não há uma autoria, mas uma multi-autoria. Assim, o texto eletrônico exige uma reconceituação radical de autoria, de propriedade sobre a obra, de direitos autorais (questões polêmicas que vêm sendo amplamente discutidas, mas ainda não resolvidas), o que tem, sem dúvida, efeitos nas práticas de leitura e de escrita. Por outro lado, na cultura da tela, altera- se radicalmente o controle da publicação: enquanto, na cultura impressa, editores, conselhos editoriais decidem o que vai ser impresso, determinam os critérios de qualidade, portanto, instituem autorias e definem o que é oferecido a leitores, o computador possibilita a publicação e distribuição na tela de textos que escapam à avaliação e ao controle de qualidade: qualquer um pode colocar na rede, e para o mundo inteiro, o que quiser; por exemplo, um artigo científico pode ser posto na rede sem o controle dos conselhos editoriais, dos referees, e ficar disponível para qualquer um ler e decidir individualmente sobre sua qualidade ou não. Pode-se concluir que não é só este novo espaço de escrita que é a tela que gera um novo letramento, para isso também contribuem os mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita e da leitura. 1.4 O Letramento Digital O computador e a Internet vieram causar uma explosão na maneira de comunicar- se e de adquirir informação. Esse fenômeno é global, em instantes, através destes meios, podemos acessar informações de qualquer lugar do planeta. No mesmo momento que ocorre um incidente pode-se ter conhecimento dele, independentemente de onde o indivíduo esteja. Através do computador, as pessoas praticam a leitura e a escrita, se comunicam e interagem, tornam-se sujeitos da informação. Por Letramento Digital compreende-se a capacidade que tem o indivíduo de responder, adequadamente, às demandas sociais que envolvem a utilização dos recursos tecnológicos e da escrita, no meio digital. O letramento digital é mais que o conhecimento técnico. Ele inclui ainda, segundo Carmo (2003), ―habilidades para construir sentido a partir de textos multimodais, isto é, textos que mesclam palavras, elementos pictóricos e sonoros numa mesma superfície. Inclui também a capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informações disponibilizadas eletronicamente. É a capacidade de manusear naturalmente e com agilidade, as regras da comunicação em ambiente digital. Para Soares (2002), não existe ―o letramento‖, mas, ―letramentos, a tela do computador se constitui, neste sentido, como um novo suporte para a leitura e escrita digital. Segundo ela, a tela é considerada como um novo espaço de escrita e traz mudanças significativas nas formas de interação entre escritor e leitor, entre escritor e texto, entre leitor e texto e até mesmo entre o ser humano e o conhecimento. Para Soares, essas transformações têm desdobramentos sociais, cognitivos e discursivos, ―configurando assim, um letramento digital. Uma pessoa letrada digitalmente necessita de habilidade para construir sentidos a partir de textos que compõem palavras que se conectam a outros textos, por meio de hipertextos e links; elementos pictóricos e sonoros. Ele precisa também ter capacidade para localizar, filtrar e avaliar criticamente informação disponibilizada eletronicamente, e ter familiaridade com as O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 10 normas que regem a comunicação com outras pessoas através dos sistemas computacionais. Segundo Barton (1998 apud Xavier, 2007) como existem vários tipos de letramento, o letramento digital seria um tipo e não um novo letramento imposto à sociedade moderna pelas novas tecnologias. Para ele, os tipos de letramento mudam porque são situados na história e acompanham a mudança decada contexto tecnológico, social, político, econômico ou cultural numa sociedade. O letramento, também, pode ser transformado pelas instituições sociais, que estão em constante relação de luta pelo poder e acabam por influenciar, a comunidade, a aprender o tipo de letramento que lhe é dado como oficial e que, portanto, deve ser assimilado. Assim, o que anda ocorrendo atualmente é uma adoção do tipo de letramento alfabético para o digital. Para Xavier, o ―alfabético está servindo de apoio para a aprendizagem do letramento digital‖. Em plena era da informação, a gama de conhecimento que é gerado a cada momento, a aquisição do letramento alfabético, se torna um meio de alcançar a cidadania. Não se esquecendo que, para que haja de fato conhecimento é necessário a absorção crítica das informações. Xavier (2007) diz que, ―a principal condição para a apropriação do letramento digital é o domínio do letramento alfabético pelo indivíduo‖. Isto quer dizer que, um indivíduo só pode utilizar, plenamente, as vantagens da era digital às suas necessidades, se tiver aprendido a escrever, a compreender o lido, se tiver dominado o sistema alfabético, ao ponto de ter alcançado um grau elevado das convenções ortográficas que ―orientam o funcionamento da modalidade escrita de uma língua‖. Em síntese, apenas o letrado alfabético tem a qualificação para se apropriar totalmente do letramento digital. Quando os estudiosos mencionam Letramento, estão se referindo ao 1 Artigo Científico escrito por Andrea Cecília Ramal. Publicado no ano de 2000. Ler e escrever na cultura digital. Porto Alegre: Revista Pátio, ano 4, no. 14, agosto-outubro 2000, p. 21-24. Letramento Alfabético, que é a apropriação dos usos sociais da leitura e da escrita. A capacidade de usar as ferramentas e de interagir, no ambiente digital, permite ao indivíduo conectar-se ao mundo. Por isso, o Letramento Digital, sendo a capacidade que tem o indivíduo de responder, adequadamente, às demandas sociais que envolvem a utilização dos recursos tecnológicos e da escrita, no meio digital, se torna imprescindível a plena conquista da cidadania. O acesso às ferramentas digitais é importante, porém, com um sentido mais amplo e coletivo de melhoria social. Diante de tantas reflexões concluímos que apenas o letrado alfabético tem a qualificação para se apropriar totalmente do Letramento Digital. Em síntese, uma pessoa só pode usar plenamente as vantagens da era digital se tiver aprendido a escrever, a compreender o lido, se tiver dominado o sistema alfabético ao ponto de ter alcançado um grau elevado das convenções ortográficas. 2 LER E ESCREVER NA CULTURA DIGITAL sob a égide de RAMAL1 “Vivemos um desses raros momentos em que, a partir de uma nova configuração técnica, quer dizer, de uma nova relação com o cosmos, um novo estilo de humanidade é inventado.” (PIERRE LÉVY, 1993, p.17). Nas culturas que não conheciam a escrita, a transmissão da história se dava através das narrativas orais: o narrador relatava as experiências passadas a ouvintes que participavam do mesmo contexto comunicacional. Era uma espécie de história encarnada nas pessoas: quando os mais velhos morriam, apagavam-se dados irrecuperáveis pelo grupo social. O saber e a inteligência praticamente se identificavam com a memória, em especial a auditiva; o mito funcionava como O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 11 estratégia para garantir a preservação de crenças e valores. O tempo era concebido como um movimento cíclico, num horizonte de eterno retorno. A escrita inaugurou uma segunda etapa na história humana. Com ela, mudaram as relações entre o indivíduo e a memória social. O sujeito pôde projetar sua visão de mundo, sua cultura, seus sentimentos e vivências, no papel. Ao fazer isso, pôde analisar o próprio conhecimento das coisas e do mundo, e fazê-lo chegar até os homens de outras culturas e outros tempos. O saber que era condicionado pela subjetividade se tornou objetivo e possível de se distanciar; a experiência pôde ser compartilhada sem que autor e leitor necessariamente participassem do mesmo contexto. A escrita relativiza o papel da memória: é como se fosse um auxiliar cognitivo situado fora do sujeito. Ela torna presente e atemporal a palavra dos líderes, suas realizações, suas leis. Assim ajuda a tecer, linha após linha, as páginas da História. Em vez do horizonte de eterno retorno das narrativas orais, a escrita traz o sentido de linearidade. A memória de uma cultura já não cabe apenas no conto: ela é constituída de documentos, vestígios, registros históricos, datas e arquivos. Tudo passa a estar inscrito numa cronologia. À lógica da justaposição, própria da oralidade, contrapõe-se a lógica do encadeamento. À autoridade do autor sem a obra material (narrador) contrapõe-se a autoridade da obra sem necessidade da presença do autor: o texto fala por si mesmo. O distanciamento possibilitado pela grafia permite o registro das experiências e das hipóteses, o conhecimento especulativo, o documentário de comprovações, a compilação de teorias e paradigmas. A possibilidade de tratamento objetivo dos fatos e das experiências advinda da escrita traz, por outro lado, a desconfiança quanto ao efetivo entendimento das mensagens. Esta dualidade se reflete numa pressão em direção à universalidade e à objetividade. Passamos da revelação à decifração, como se o mundo fosse um livro a ser lido e interpretado. O saber está distanciado, disponível e maleável para a leitura, o estudo e a avaliação de outros sujeitos. É uma espécie de memória impessoal que traz com ela uma preocupação certamente não muito nova, mas que vai ganhar ênfase no imaginário dos especialistas: a de conseguir produzir, registrar ou estabelecer verdades que sejam definitivamente independentes dos sujeitos que as produziram e dos contextos em que foram geradas – portanto, permanentes, absolutas e universais. A ambição teórica será a construção de enunciados que falem por si mesmos, sem a necessidade de mediadores ou intérpretes. A escrita dá impulso às estruturas normativas e desempenha um papel fundamental na constituição do discurso científico. A escola se entende a partir das categorias próprias da cultura escrita: sua organização se faz sobre o conhecimento objetivo dos fatos, seu currículo se estrutura em função de saberes que pretendem funcionar como verdades permanentes, absolutas e universais, independentemente do contexto. Também assim se dá a relação com os textos, que falam por si mesmos: cabe ao aluno-leitor descobrir ―o que o autor quis dizer, evitando a recriação, entendida como desvio do sentido original e ―puro. Nesse ponto, a escola é herdeira da tradição positivista e do estruturalismo de Saussure, que separa a língua (fenômeno social) da fala (expressão individual de cada sujeito, circunstancial e contextualizada). Seguindo a tendência da busca e da valorização da objetividade e da neutralidade, contra a diversidade de interpretações, a escola estuda a língua como fenômeno estático, direcionando o ensino para a sistematização das normas, para a adequação ao sistema, sem abrir espaço para a diversidade, para a multiplicidade de interpretação dos signos, para as intenções dos falantes. Daí o predomínio das linguagens matemáticas ou ―exatas, que não se prestam à polissemia; pois, como aconselhava Francis Bacon, é mais seguro ―...imitar a sabedoria dos matemáticos, estabelecendo desde o início asdefinições de nossas palavras e termos, para que outros possam saber como os aceitamos e entendemos, e decidir se concordam ou não conosco (apud Hacking, 1999). Nessa escola, ler equivale a compreender o que foi expressado, como buscando acesso a uma lei universal. O texto é retirado de sua função social viva, seu contexto, suas raízes e sua história. Ele existe objetivamente, externo ao leitor e, portanto, é a ele estranho. O aluno não tem controle sobre ele O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 12 - ao contrário, é o texto que, de certa forma, exerce o controle, uma vez que o estudante, sem possuí-lo, nada vale. O texto surge, assim, como fator de alienação escolar. O conhecimento escolar da cultura letrada se estruturou como as páginas de um livro: linear, encadeado e segmentado. Num livro é difícil, mesmo incômodo, consultar dois trechos de páginas diferentes ao mesmo tempo: na escola também. É preciso passar primeiro pelo pré-requisito, e só depois ver o seguinte. Apesar de tê-lo objetivado no papel, a escola não prescindiu do conhecimento memorizado, como se não confiasse no novo auxiliar cognitivo. Com uma diferença, porém: para os narradores, a história relatada fazia sentido porque era parte de suas vidas; na escola, isso quase nunca ocorreu: justamente se memoriza o que não faz sentido, o que não tem relação com a realidade, o que só serve para depois. A cultura escrita raramente chega sem violência, inclusive porque, devido ao prestígio que os sistemas alfabetizados adquiriram, acaba se designando a cultura oral como inferior. T. Astle escreveu em 1874 que ―a mais nobre aquisição da humanidade é a fala, e a arte mais sutil é a escrita; a primeira distingue eminentemente o homem da criatura bruta, e a segunda, dos selvagens sem civilização (apud OLSON, 1997). Visões similares ainda existem hoje, embora menos explícitas, por exemplo, em alguns povos da África, nos quais vêm sendo estabelecidos alfabetos para representar línguas orais, trazendo aos aprendizes não apenas uma técnica de escrita, mas também ―todos os diferentes conteúdos e conceitos que uma cultura letrada elabora com a própria força da escrita, e que neste caso é, além do mais, uma cultura estrangeira (Lopes, 1998). Em Moçambique, as populações migrantes do campo, deslocadas e dispersas da sua cultura de origem, são compelidas a se alfabetizar no idioma dominante, sendo inevitável o abandono da língua materna e, por consequência, o abandono da forma peculiar que cada cultura tem de ver o mundo e de conceber a experiência vivida. Segundo Lopes (1998), ―a política linguística moçambicana está ainda no pós-independência a ser utilizada como instrumento de dominação, de fragmentação e de assimilação. Mas não é preciso ir tão longe: no Brasil conhecemos uma realidade análoga, quando na educação das crianças são impostas as normas da língua ―culta, desprezando os saberes que elas trazem do próprio meio cultural – fenômeno que tem repercussões mais graves nos alunos provenientes do interior, ou de classes sociais injustiçadas. Estas crianças ingressam num mundo todo feito contra elas, ao qual, naturalmente, têm dificuldades para se adaptar. A escola costuma limitar a possibilidade de penetrar na experiência do outro; com seus currículos rígidos, fundamentados sobre uma concepção racionalista e linear, a educação escolar muitas vezes se constitui como dominação da razão sobre outras competências e saberes humanos, mais ligados ao espírito, à afetividade, ao emocional. A relação com textos não se dá tanto pela narrativa e pela criação como pela interpretação e análise morfológica, abrindo-se mão da memória e da experiência pessoal, em nome da centralidade do intelecto, imposta pela busca prioritária de uma compreensão teórica do real e da linguagem. A escola como a conhecemos até agora, enfim, tem muito mais de monologismo do que de polifonia – estou me apropriando de conceitos do linguista russo Mikhail Bakhtin. Uma escola monológica é aquela em que um único sentido sobressai, impedindo os demais de virem à tona. Esse tipo de trabalho com a linguagem exclui a dimensão criadora; a língua passa a servir, numa análise mais ampla, até mesmo como um instrumento de reprodução do sistema. Em lugar disso, na perspectiva da polifonia, ―não existe nem a primeira nem a última palavra, e não existem fronteiras para um contexto dialógico. (...) Em qualquer momento do diálogo existem as massas enormes e ilimitadas de sentidos esquecidos que serão recordados e reviverão em um contexto e num aspecto novo (BAKHTIN, 1985). A polifonia, para Bakhtin, é um jogo dramático de vozes ―que torna multidimensional a representação e que, sem buscar uma síntese de conjunto, cria uma tensão dialética que configura a arquitetura própria de todo o discurso (apud Silva e Cid, 1998). O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 13 Anular a possibilidade da polifonia é anular o diálogo e a reconstrução possível de sentidos, fechando o acesso ao que só poderia ser completado pelo leitor. Clarice Lispector (1980) escreveu: ―ao prender o que me aconteceu usando palavras estarei destruindo um pouco o que senti - mas é fatal. Talvez não seja: quem lê reconstrói. 2.1 A cibercultura A conexão simultânea dos atores da comunicação a uma mesma rede traz uma relação totalmente nova com os conceitos de contexto, espaço e temporalidade. Do horizonte do eterno retorno das narrativas, e da linearidade das culturas letradas, passamos a uma percepção do tempo, mais do que como linhas, como pontos ou segmentos da imensa rede pela qual nos movimentamos. Vivemos num ritmo de velocidade pura; como afirma Lévy (1993), não há horizonte, nem ponto-limite, um ―fim no término da linha. Ao contrário, vivemos uma fragmentação do tempo, numa série de presentes ininterruptos, que não se sobrepõem uns aos outros, como páginas de um livro, mas existem simultaneamente, em tempo real, com intensidades múltiplas que variam de acordo com o momento. Enquanto na era da escrita o mote é ―construir o futuro‖, hoje vale o que ocorre neste preciso momento. O megadesign hipertextual reconfigura todo o espaço. Trata-se de um ciberespaço, interativo e receptivo a todas as vozes conectadas que desejem escrever uma parte do megatexto produzido pela inteligência coletiva. O hipertexto, nova forma de escrita e de comunicação da sociedade informático- mediática, é também uma espécie de metáfora que vale para as outras dimensões da realidade. Interessa-me estudá-lo nessa perspectiva, e aí está uma de suas conexões com o campo educacional. A internalização da estrutura do hipertexto como mediação para a produção de conhecimento implica novas formas de ler, escrever, pensar e aprender. Como afirmam Landow e Delany (1991), a hipertextualidade não é um mero produto da tecnologia, e sim um modelo relacionado com as formas de produzir e 2 Uma pesquisa sobre a história do hipertexto pode ser realizada no Virtual Museum of Computing. (http://www.nma.gov.au/vlmp/computing.html). de organizar o conhecimento, substituindo sistemas conceituais fundados nas ideias de margem, hierarquia, linearidade, por outros de multilinearidade, nós, links e redes. O que é um hipertexto 2 ? Como o próprio nome diz, é algo que está numa posição superior àdo texto, que vai além do texto. Dentro do hipertexto existem vários links, que permitem tecer o caminho para outras janelas, conectando algumas expressões com novos textos, fazendo com que estes se distanciem da linearidade da página e se pareçam mais com uma rede. Na Internet, cada site é um hipertexto – clicando em certas palavras vamos para novos trechos, e vamos construindo, nós mesmos, uma espécie de texto. Na definição de Jay Bolter (1991): ―as partes de um hipertexto podem ser agrupadas e reagrupadas pelo leitor. Cada uma das páginas da rede é construída por vários autores: designers, projetistas gráficos, programadores, autores do conteúdo do texto. Cada percurso textual é tecido de maneira original e única pelo leitor cibernético. Não existe, portanto, um único autor: seria mais adequado falar de um sujeito coletivo, uma reunião e interação de consciências que produzem conhecimento e navegam juntas. 2.2 O hipertexto como subversão da escola linear O hipertexto, reunião de vozes e olhares, é subversivo em relação ao monologismo. Construído na soma de muitas mãos, e aberto para todos os links e sentidos possíveis, o hipertexto contemporâneo é, de certo modo, uma versão da polifonia que Bakhtin buscava; e, portanto, uma possibilidade para o diálogo entre as diferentes vozes, para a negociação dos sentidos, para a construção coletiva do pensamento. O hipertexto é subversivo na relação entre autor e leitor. O cursor do mouse está permanentemente presente no texto do monitor, como um sinal concreto de que, no momento em que desejarmos, poderemos invadi-lo, reescrever O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 14 seus caminhos, optar por outras vias. Subverte- se, por inerência, a noção de autoria. O hipertexto é subversivo com relação à linearidade. A linearidade, que teve data de nascimento – o aparecimento da escrita – e papel determinante no pensamento ocidental, tem agora, nesta nova interface, o momento de seu declínio, agora que ler é mergulhar nas malhas da rede, é perder-se, é libertar-se dos caminhos proibidos, que o monologismo havia colocado em segundo plano. Sem margens, sem início, nem fim, sem percurso estabelecido por antecipação, cada texto termina com a abertura para outras mensagens. O fim é o próprio link. Se a marca do início determina a forma de construção da narrativa, poderíamos dizer que, sem um princípio único, várias narrativas seriam possíveis – todas aquelas construídas pelo leitor, como protagonista de uma construção em que o ouvinte trabalha os fios e tece a narração seguinte. Um hipertexto é subversivo com relação à forma. Ele amplia os recursos expressivos do texto escrito na possibilidade de articular imagens, palavras e sons. E, se não podemos dizer que amplie os recursos da oralidade, pelo menos verificamos que modifica as suas condições, na medida em que acrescenta à fala e à narração a possibilidade de vínculo com a palavra escrita e as ilustrações. Ocorre ainda a subversão na hierarquia interna do texto: imagens falam, muitas vezes, mais do que palavras. A ilustração conquista o espaço da mensagem. Imagem e som ganham o status de ―linguagem e, portanto, invadem o espaço do significante escrito para tornar-se, também elas, novos textos, concebidos com diferentes modelos e igualmente relevantes para a comunicação social. A imagem disponibilizada na Internet e acessada pelo aluno passa a ser também mediadora para o conhecimento do mundo3. O hipertexto é subversivo até com relação à postura física do leitor. Do livro de rolo, que não permitia ler, comparar e fazer anotações ao mesmo tempo, já que o leitor devia segurá-lo com ambas as mãos para poder correr o texto, ao livro encadernado, que permite virar as páginas, mas sempre em sequência, uma após outra (e 3 Desenvolvi estas ideias em outro artigo: RAMAL (1997). nunca uma e outra), passamos a um texto totalmente maleável. Poderá não ter, e isso é certo, os encantos do papel ou do pergaminho; mas nos permite a visibilidade das janelas, a abertura das múltiplas caixas de texto, os recursos de cortar e colar fragmentos, a infinidade de dobras caleidoscópicas. Essa maleabilidade traz a reflexão sobre o digital – trata-se de outro tipo de materialidade. Muda a relação com o objeto: o texto não é mais algo palpável, mas feito de bites, e ocupam um espaço difícil de definir ou imaginar. Essas informações digitais são provisórias e plásticas. Obedecem a um ritmo específico de pertinência imediata e de obsolescência acelerada. A informatização instaura, como prevê Pierre Lévy, um novo regime de circulação e de metamorfose das representações e dos conhecimentos. O que muda na alfabetização, no letramento, nos processos educacionais de internalização das formas comunicacionais nesta cultura digital? Parece-me que as rupturas são tão radicais que exigirão um repensar de alguns dos elementos básicos da escola. Citarei apenas alguns deles. Em primeiro lugar, deveremos rever nossos referenciais teóricos. Piaget, Vygotsky, Ferreiro iluminaram a reconstrução dos métodos e processos de alfabetização na escola visando garantir ao aluno um papel mais ativo. Graças a eles e outros tantos, pudemos saber um pouco mais sobre como o aluno pensa e como constrói o conhecimento. Hoje, mudando as formas de construção do saber, teremos que voltar a pensar esses pressupostos. Podemos ainda considerar os mesmos estágios mentais do construtivismo com crianças que têm acesso ao computador antes de se alfabetizarem? Se Vygotsky nos fez perceber o caráter dialético de construção da mente, na interação com o meio através da linguagem, de que forma sua obra deve ser relida hoje, quando os signos se multiplicam e um novo mundo, virtual, reproduz as tensões e os conflitos linguísticos do mundo real? Partindo do princípio de que cada método pedagógico revela uma concepção do ser humano e uma compreensão sobre o modo como se aprende, parece-me que são necessárias novas pesquisas para verificar O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 15 quem é o sujeito da educação hoje. Para começar, já sabemos que é alguém que interage com uma máquina, um dispositivo mediador a partir do qual (re) conhece o mundo. Além disso, deveremos rever nossos currículos. A linearidade dará lugar ao hipertextual, ao móvel e flexível. A escola estruturalista dos saberes prontos, definidos, acabados e descontextualizados será desestabilizada pelo descentramento, pela contínua produção e negociação de sentidos e de novos discursos, pelas construções abertas e as paisagens inusitadas. Os conteúdos deixarão de se percorrer como páginas de um livro, para se tornarem janelas de um hipertexto, em múltiplas dimensões que se interconectam e interpenetram. As janelas abertas deixarão entrar luzes imprevistas. Um terceiro ponto: as relações de poder que surgem na escola a partir dos instrumentos tecnológicos são totalmente novas. Pela primeira vez na história, a tecnologia da dominação é mais conhecida pelo ―dominado‖. Em outros termos: até hoje o professor trazia o saber, a norma culta, a escrita ―correta, para os não letrados, reproduzindo no contexto escolar (por mais que houvesse cuidado e respeito pelo aluno) as situações de imposição linguística vividas pelas culturas orais. Hoje, ocorre um paradoxo: aquelea ser educado é o que melhor domina os instrumentos simbólicos do poder, o aparato de maior prestígio: as tecnologias. O que ocorrerá na sala de aula? Parece-me que as parcerias e a aprendizagem em conjunto serão inevitáveis. O quarto ponto é a necessidade de reinventarmos a nossa profissão. Usando a linguagem dos PCN, vejo o papel do professor decisivo nos três eixos de conteúdos curriculares: nos conteúdos conceituais, como arquiteto cognitivo, responsável por traçar as estratégias e definir os métodos mais adequados para que o aluno chegue a uma construção ativa do conhecimento; nos conteúdos procedimentais, como dinamizador de grupos, ao ajudar os estudantes a descobrirem as formas pelas quais se chega ao saber, os processos mais eficazes e o diálogo possível entre as disciplinas, gerenciando uma sala de aula na qual os estudantes, com suas diversas competências, dialogam com respeito entre si e estabelecem parcerias produtivas; e nos conteúdos atitudinais, como educador, comprometendo-se com o desafio de estimular a consciência crítica para que todos os recursos desse novo mundo sejam utilizados a serviço da construção uma humanidade também nova, com base nos critérios de justiça social e respeito à dignidade humana (RAMAL, 2000). Finalmente, creio que devemos pensar o que significa construir uma pedagogia intercultural. O prefixo inter indica ênfase nas trocas, nas conexões, no diálogo. Lopes (1998) distingue o intercultural do multicultural que, para ele, é um termo estático, ―que pode, na realidade cotidiana, traduzir-se pela simples justaposição de culturas múltiplas no interior duma sociedade, sem comunicação entre elas, cada uma permanecendo fechada o mais que lhe for possível‖. O intercultural, ao contrário, é movimento e reciprocidade. Construir uma pedagogia intercultural será tornar possível, no currículo, a abertura ao outro, reconhecendo que a experiência do outro é fundamental para a constituição da subjetividade e para a produção de saber coletivo. A pedagogia intercultural é, em termos bakhtinianos, a resposta polifônica ao monologismo. Acredito na possibilidade de que o hipertexto contemporâneo – construído na soma de muitas mãos, e aberto para todos os links e sentidos possíveis - seja uma versão dessa polifonia que Bakhtin procurava; e na escola, uma possibilidade para construir uma sala de aula aberta à pluralidade de vozes, à construção coletiva, à partilha das interpretações, à democracia da palavra. Para isso, será necessário reentender a palavra, a escrita e o texto como unidades discursivas que só encontram sua completude no processo dialógico, e reconstruir o processo educativo como um acontecimento de interação de consciências. A escola da cibercultura pode tornar-se o espaço de todas as vozes, todas as falas e todos os textos. O desafio mais instigante é o do professor, que pode finalmente reinventar- se como alguém que vem dialogar e criar as condições necessárias para que todas as vozes sejam ouvidas e cresçam juntas. Após a análise de Ramal, demonstraremos, a seguir, através de dois trabalhos publicados, o que vem sendo produzido, de concreto, na alfabetização e no letramento, através da utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC). O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 16 Em seguida, faremos uma exposição do que vem a ser a mesa alfabeto, tecnologia desenvolvida e utilizada para a alfabetização, através das TIC. 3 OS GÊNEROS DIGITAIS E OS DESAFIOS DE ALFABETIZAR LETRANDO4 Não faz muito tempo em que imperava em nossas escolas o entendimento de que alfabetizar era o mesmo que investir no ensino da codificação e decodificação de letras, palavras, frases-textos do tipo vovó viu a uva. Essa noção de alfabetização começou a se dissolver a partir da década de 1980, quando alguns estudos sinalizaram para a construção do processo de alfabetização como algo bem mais complexo do que a mera (de)codificação da escrita, pois a aprendizagem dessa modalidade da língua obedece a fases distintas (cf. FERREIRA; TEBEROSKY, 1985). A concepção acerca da alfabetização como atividade de (de)codificar a escrita fazia ―felizes (as aspas não estão aí como ornamento) os cidadãos alfabetizados ao mesmo tempo em que relegava ao isolamento aqueles a quem lhes coube o rótulo de analfabetos. Como bem denuncia Ribeiro (2003), ―analfabeto passou a ser um estigma para as pessoas, especialmente as adultas, que sofriam por não saber sequer assinar o próprio nome e, por isso, foram consideradas ―burras, ―incapazes, ―desqualificadas. Deste modo, para além de não saber ler e escrever letras, palavras e pequenas frases, a palavra ―analfabeto, na verdade, escondia/esconde outras acepções que legitima(va)m a exclusão social dessas pessoas. Foram os anos de 1990 que trouxeram o reconhecimento de que mesmo um cidadão que não sabe ler e escrever o código tem uma representação clara acerca da função social da escrita, pois é capaz de realizar atividades complexas orientado por tal representação. A implicação desse reconhecimento gerou a necessidade de forjar outra noção que extrapolasse aquele entendimento de alfabetização. Assim, letramento passou a ser o termo pelo qual poderíamos explicar a revolução sócio histórica que a escrita provocou nas sociedades letradas. Mas isso não significa que alfabetização e letramento inauguraram mais uma das famigeradas 4 Os gêneros digitais e os desafios de alfabetizar letrando. Trabalhos em Linguística Aplicada. Campinas: IEL-Unicamp. Vl. 46(1). jan/jun 2007, pp. 79-92. Artigo Científico, escrito por ARAÚJO, J. C. Professor no Programa de Pós-Graduação em Linguística e no Departamento de Letras Vernáculas da UFC. Contato <julcra@gmail.com> / <http://www.julioaraujo.com> dicotomias emergidas da ciência, já que tais termos passaram a ser fios que, entrelaçados, tecem a trama de uma participação social mais crítica, mais igualitária e mais justa entre as pessoas. É neste sentido que Magda Soares (1998, p.47) explica que ―alfabetizar e letrar são duas ações distintas, mas inseparáveis, (pois) o ideal seria alfabetizar letrando, ou seja: ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, de modo que o indivíduo se tornasse, ao mesmo tempo, alfabetizado e letrado. Isso inclui, por exemplo, os usos de escrita que caracterizam a entrada do computador conectado à Internet na vida das pessoas. Diante desse fato, conhecer o código alfabético e ser protagonista nas decisões dos grupos sociais de que participa não basta ao sujeito do século XXI, pois a sua cidadania passa também pela necessidade de saber manipular um computador, de preferência conectado à Internet, a fim de ocupar um lugar que a sua contemporaneidade lhe reserva/impõe. Ou seja, é preciso que o homem e a mulher desse século sejam sujeitos letrados também digitalmente. Neste artigo, defendo que um dos caminhos para isso é que a escola, desde cedo, crie situações didáticas através das quais seja possível trazer para o espaço educativo situações concretas de escrita digital com as quais o educando sinta desejo e necessidade de interagir, pois percebe que são ferramentas sociais portadoras de sentidos, de propósitos comunicativos, e que se traduzem em fontes de informações variadas e de saberes a serem explorados. Se a escola precisa estar aberta paras as novas configurações do uso da linguagem que agora adentra o universo digital, então o trabalho pedagógico deve estar organizadode modo que as crianças sejam alfabetizadas ao mesmo O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 17 tempo em que se tornem letradas, inclusive, digitalmente. Com base nessas considerações, a questão que me orienta no presente artigo é a seguinte: de que maneira os gêneros digitais podem ser relevantes para o desafio de alfabetizar crianças, letrando-as digitalmente? O fio de Ariadne dessa discussão se deixa desenhar pelo seguinte percurso: a partir da crítica que Gramsci (1977; 1981; 2000) faz à hegemonia intelectual de grupos sociais dominantes, discuto sobre o letramento digital, destacando a escola como um lugar propício em que se pode forjar um ―novo intelectual‖ letrado digitalmente que poderá se inserir criticamente em uma sociedade que exige práticas múltiplas de letramento inclusive digitais. Na sequência, relato uma experiência com crianças que participaram de uma atividade de pesquisa que envolveu gêneros digitais em seu processo de alfabetização/letramento. A partir dessa experiência, faço considerações sobre a importância de a escola desenvolver situações que oportunize a todos um letramento digital cada vez mais crítico. 3.1 Letramento digital: possibilidades para um ensino crítico Gramsci (2000, p.15), sobrepujando os limites das teorias reprodutivistas, percebe que a sociedade proprietária tende à hegemonia e, guiado por tal convicção, denuncia que nela surgem grupos sociais hegemônicos os quais criam para si ―uma ou mais camadas de intelectuais que lhes dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no econômico, mas também no social e no político. Para não ver abalados os seus interesses, a hegemonia que caracteriza os grupos mais favorecidos é habilidosa no sentido de provocar a adesão das classes subalternas, criando estratégias de naturalização/interiorização daquilo que importa aos primeiros. Por isso, Gramsci (1977, p. 22) defende que, pela revolução cultural, ―o proletariado pode se tornar classe dirigente e dominante na medida em que consegue obter o consenso das amplas massas. Quando as classes subalternas passam pela ―elevação cultural, percebem que podem e devem investir na urdidura de seus próprios intelectuais, pois compreendem que o trabalho intelectual não é meramente abstrações cunhadas na solidão, mas se configura em ―luta cultural para transformar a mentalidade popular e divulgar as inovações filosóficas que se revelam historicamente verdadeiras (GRAMSCI, 1981, p. 36). Muitos estudiosos da educação se mostraram atraídos pela visão gramsciana de sociedade. Entre eles figuram Paulo Freire (2000, p.68) que foi taxativo ao assumir: ―para mim, o caminho gramsciano é fascinante. É nessa perspectiva que me coloco. No fundo (...) tudo tem a ver com o papel do chamado intelectual, que Gramsci estuda tão bem e tão amplamente. Na verdade, para Freire (1995) o verdadeiro intelectual, aquele nascido da revolução cultural de que fala Gramsci, seria alguém que interfere, logo, não se omite. E o que essa discussão tem a ver com um artigo que deseja discutir sobre o letramento digital? Tal como Freire, considero-a, no mínimo, relevante na medida em que o acesso ao letramento digital, salvaguardando alguns casos, tem sido, notadamente, oportunizado muito mais aos grupos sociais privilegiados do que aos grupos menores, provocando o que pode ser entendido como exclusão digital. Ou seja, no dizer de Gramsci, os grupos sociais mais favorecidos estão forjando os ―seus intelectuais para, por meio deles, naturalizarem a exclusão digital. Em contrapartida, não seria desproporcional a afirmação de que o investimento na criação e propagação dos softwares livres é uma reação dos grupos menores que trabalham em prol de um ―novo senso comum o qual se levanta contra aquele pregado por empresas como a Microsoft que engenhosamente naturalizam nas pessoas a crença em uma acessibilidade livre e ilimitada quando na verdade seus produtos são licenciados somente para aqueles que podem comprar. Para Gramsci (1981, p.160), ―o núcleo sadio do senso comum poderia ser chamado de bom senso, merecendo ser desenvolvido e transformado em algo unitário e coerente. No meu entender, a escola, mesmo sendo um aparelho ideológico do estado (ALTHUSSER, 1985), pode ser relevante nessa transformação, se a ela forem dadas as condições para tanto. Na busca pelo ―novo intelectual, que quebrará a hegemonia dos grupos fechados a escola surge como uma esperança de ser ela mesma ―o espaço-tempo de tecer a construção do bom senso (ARAÚJO; DIEB, 2007, p.16). Para isso, a O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 18 escola deve se revestir de uma pedagogia renovada, entendendo que não basta apenas ao indivíduo saber ler pequenos textos para garantir o exercício da cidadania, é preciso que ele vá além, pois a sociedade letrada a que pertence elabora e exige usos sofisticados de conhecimentos relativos à escrita e à leitura. Deste modo, conhecer o código relativo às modalidades escrita e oral da língua caracteriza a alfabetização, mas aplicar com desenvoltura tal conhecimento às mais variadas situações sociais caracteriza o letramento e é por esta segunda parte que os grupos letrados se organizam, inclusive em práticas letradas digitais. Neste sentido, como alerta Xavier (2005, p. 142), tais práticas só passarão a ser realidade em nossas nas escolas, se a política de educação do governo atual estimular e financiar a construção de telecentros públicos, equiparar as escolas (...) com laboratórios de computação, capacitar em massa seus professores, transformando-os em ‗letrados digitais‘, é bem provável que os gêneros digitais como e-mail, chat, fórum eletrônico, lista de discussão (...) weblog, hiperficções colaborativas serão cada vez mais trabalhados, aprendidos e utilizados na escola e, principalmente, fora dela. No entanto, ao falar de acesso ao computador conectado à Internet, é comum que os meios de comunicação em massa disseminem a ideia de que a acessibilidade já é algo garantido. No entanto, há dados que nos assustam. Recentemente, uma pesquisa divulgou que 55% dos brasileiros ainda estão por saber o que significa usar um computador e que 68% da nação jamais acessaram a Internet. Com base nesses dados, é possível dizer que, se, no caso do Brasil, já há um fosso entre os que sabem e os que não sabem usar a escrita convencional ou o conhecimento sobre ela para resolver situações sociais cotidianas, com a inserção do computador conectado ou não à Internet em nossa sociedade, abre-se uma cratera entre os que sabem e os que não sabem utilizar as práticas de escrita digital com proficiência para resolver situações corriqueiras, como escrever e-mails, fazer transferências bancárias, recadastrar o CPF ou mesmo namorar no chat aberto e manter um profile no Orkut. Entretanto, a mesma sociedade que elabora essas exigências, trata logo de criar entraves para que os sujeitos não participem plena e igualitariamente das atividades que lhes permitam ascender no exercício global de sua cidadania. É com base na esteira dessas considerações que relatarei resultados de uma pesquisa ação ambientada em uma escola particular de Fortaleza sobre a descoberta do letramento digital por crianças em fase de alfabetização. Nela, Márcia Ribeiro (2005) mostra que não só é possível alfabetizar crianças, como também,ajudá-las a serem ―letradas digitais. Indo um pouco mais além, a pesquisa mostra que, com intervenção pedagógica adequada, é possível colaborar com as crianças, ajudando-as a construírem posições críticas diante do chamado letramento digital. Como será retomado em minhas conclusões, infelizmente, as escolas públicas brasileiras ainda carecem de práticas didáticas como a que relatarei mais adiante. 3.2 Os gêneros digitais no processo de letramento das crianças em fase de alfabetização O desafio estava posto. Como alfabetizar crianças letrando-as digitalmente? Não seria estapafúrdia demais essa ideia? Mas como elevar a autoestima de crianças cujos pais não acreditavam mais nelas? Diante desse quadro problemático, passamos a trabalhar com a suposição de que inserir o computador e a Internet nas práticas didáticas voltadas as atividades de alfabetização daquelas crianças talvez pudesse significar a busca pela ―elevação cultural de que fala Gramsci (1981, p.21), sobretudo se, através disso, as crianças, auxiliadas pela professora, chegassem ―a compreensão crítica de si. É importante ressaltar que a compreensão crítica de si, segundo Gramsci, não pode estar relacionada com as imagens de seres incapazes e fracassados que as experiências de reprovação e o constrangimento diante dos pais causaram àquelas crianças. A Compreensão crítica de si é obtida (...) através de uma luta de hegemonias políticas, de direções contrastantes, primeiro no campo da ética, depois no campo da política, atingindo uma elaboração superior da própria concepção do real‖. A ideia foi exatamente apostar que aquelas crianças podiam voltar a acreditar em si e reelaborar a concepção de suas realidades quando descobrissem que os usos do computador poderiam pô-las em contato com outras pessoas. Assim, tendo por base Vygotsky (2000, p.155- O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 19 156), entendemos que o ensino tem de ser organizado de forma que a leitura e a escrita se tornem necessárias às crianças. (...) uma necessidade intrínseca deve ser despertada nelas e a escrita deve ser incorporada a uma tarefa necessária e relevante para a vida. Só então poderemos estar certos de que ela se desenvolverá não como hábito de mão e dedos, mas como uma forma nova e complexa de linguagem. Por isso, uma das primeiras atividades realizadas foi investir no conhecimento e na exploração dos periféricos que são acoplados ao computador. Um dos periféricos mais importantes nesse processo foi o teclado porque as crianças, ao manipulá-lo, perceberam que nele estão as letras do alfabeto, além de outros signos. A materialização no teclado (ajudou-as) a representar o conjunto finito de letras com as quais se trabalha e, além disso, (ajudou-as) a estabelecer relações tipográficas. De fato, enquanto no teclado as letras estão representadas em caixa alta, na tela aparecem em minúscula (...) e isto (colaborou) na construção de um sistema de correspondências entre maiúsculas e minúsculas (TEBEROSKY; COLOMER, 2003, p. 31). O domínio do mouse pelas crianças foi outro desafio vencido, pois tal como Teberosky & Colomer (2003, p.31), ―o que temos conseguido comprovar é que quando os adultos estimulam o uso do computador, as crianças menores aprendem rapidamente. O uso do mouse passou a ser importante para aperfeiçoar a coordenação motora das crianças, exercício bem mais rico do que aqueles em que elas são obrigadas cobrir linhas pontilhadas que simulam um caminho em curvas que levaria o desenho de um ratinho ao pedaço de queijo, por exemplo. Como sugere Coscarelli (2005, p.34), alguns sites infantis e a troca de cartões digitais foram importantes para que as crianças se exercitassem no domínio motor de outro ratinho bem mais interessante. Assim, elas aprendiam também ―a noção de link e os recursos que sinalizam esse mecanismo, como a transformação do cursor em uma mãozinha, dando-lhes a experiência da sensação táctil que os links provocam nos hiperleitores. Na medida 4 As atividades, acontecidas no laboratório da escola, eram sempre gravadas em K7 e, posteriormente, transcritas a em que avançava a experiência, vários gêneros digitais iam sendo apresentados às crianças para despertar nelas a necessidade da escrita. Assim o e-mail pessoal, o cartão digital, os chats e o endereço eletrônico foram alguns dos gêneros que mais provocaram a percepção nas crianças de que a escrita é uma prática necessária em nossa sociedade letrada. 3.2.1 Escrevendo os endereços eletrônicos Ao serem apresentadas à Internet, as crianças tiveram de aprender a escrever os endereços eletrônicos dos sites que lhes interessavam. Nessa prática de escrita, um dos problemas enfrentado por elas foi a exatidão que o gênero em tela exige de seus usuários. No entanto, a partir das dificuldades com a exatidão do endereço eletrônico, as crianças apresentaram avanços em sua aprendizagem, pois tiveram de observar as restrições de uso inerentes ao endereço eletrônico ―como escrever sem deixar espaço entre as palavras e as siglas, observando a pontuação, além de rejeitar o uso da acentuação e de maiúsculas (RIBEIRO; ARAÚJO, 2007, p.170). Outro ganho foi o hábito da releitura e da reescrita que as crianças desenvolveram quando tentavam descobrir a razão de o site pretendido não entrar depois da digitação e da pressão na tecla enter. Abaixo, reproduzo algumas falas4 das crianças durante os exercícios de digitação de endereços: Tia, eu já li tudo o que escrevi, mas não encontro o erro? Por que não entra o site da Mônica? <CR5>> (grifos meus). Tia, por que não está entrando? Está tudo certo, já li! <CR4>> (grifos meus). Pronto, tia, eu já escrevi o site do rotimeio. Agora é só apertar o enter? <CR7>> (grifos meus) Ah, escrevi tudo de novo! Agora entrou! <CR5>> (grifos meus). Fonte: Ribeiro; Araújo, 2007, p.174. fim de flagrarmos nos comentários das crianças indícios de como elas estavam encarando aquelas experiências. O LETRAMENTO NA CONTEMPORANEIDADE 20 Os grifos feitos acima nas ―falas das crianças apontam para a atividade de leitura daquilo que elas mesmas haviam produzido. Enquanto expressões como li, erro, escrevi mostram a apropriação do código escrito pelas crianças, outras como não entra, site, rotimeio, enter realçam que elas começavam a compreender a função social da escrita no gênero endereço eletrônico, que é a de permitir o acesso aos sites. Pelo uso das últimas expressões, é possível destacar o fato de que as crianças percebem que naquele espaço de escrita existem ―informações léxiconeológicas, abertas no campo da Internet (GALLI, 2004, p. 121) as quais precisam ser conhecidas por elas. As atividades com os endereços eletrônicos despertaram os sujeitos para outros gêneros, como e-mails e cartões digitais. É sobre os últimos que comento na sequência. 3.2.2 Trocando cartões digitais Coscarelli (2005, p. 34) afirma que ―enviar e receber cartões eletrônicos também é uma boa pedida, os alunos adoram, se divertem e aprendem muito com essa brincadeira séria. Os dados aqui em análise comprovam tal afirmação, pois a prática da troca de cartões digitais na sala de aula transformou os encontros na escola em um ambiente que tinha o poder de alcançar os amigos e os familiares dos alunos5. Estes, ao receberem os cartões,
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