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ACL_1978_04_A_face_romantica_da_poesia_de_Guerra_Junqueiro_Sanzio_de_Azevedo

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A Face Romântica da Poesia 
de Guerra Junqueiro 
Sânzio de Azevedo 
I - INTRODUÇAO 
Tendo nascido em 1850, ano das Poesias de Alexandre 
Hercula no, e vindo a falecer em 1923, data em que deixa de 
circular a revista Contemporânea, Abílio Manuel Guerra Jun­
queiro - literariamente Guerra Junqueiro- começaria a ver­
sejar sob o influxo do Romantismo agonizante e seria um dos 
grandes vultos da chamada poesia realista, chegando ainda a 
compor uma das obras máximas do Simbolismo português. 
Embora haja exercido influência em alguns escritores 
da Renascença Portuguesa, notadamente Teixeira de Pas­
coais, vindo a impressionar mais tarde o próprio Fernando 
Pe8soa, Guerra Junqueiro nã.o tomaria conhecimento do Mo­
dernismo lusitano. 
É inegável que o poeta percorreu, ao longo de sua car­
reira literária, o Romantismo, o Realismo e o Simbolismo; 
mas cremos que seria errôneo imaginar que, depois da fase 
romântica, sobreveio uma outra fase, de puro Realismo, co­
mo sucedeu na ficção de Eça de Queirós. 
Lendo-se toda a obra poética de Junqueiro, das Duas Pá­
ginas dos Catorze Anos (1864) até à Oração à Luz (1904) ou 
mesmo até às páginas póstumas ou inacabadas (O Caminho 
23 
do Céu e Prometeu Libertado), pode-se ver que houve efeti­
vamente três fases ou etapas, correspondentes aos três mo­
vimentos referidos; mas, depois de passada a fase romântica, 
e de íniciado o período realista, com A Morte de D. João (1874), 
e mais tarde no Simbolismo d'Os Simples (1892), vamos encon­
trar, às vezes subjacentes, outras (e não poucas) claramen· 
t.e aflorado, aquele mesmo clima romântico que havia presi­
clido à sua iniciação poética. 
Esse fato, que afinal não é extraordinário, longe de ser 
prejudicial ao julgamento valorativo da obra junqueiriana, 
vai, muito ao contrário, constituir, a nosso ver, um dos pon­
tos positivos dessa poesia, que um dia o próprio autor pr�·­
tendeu fosse radicalmente realista. 
E mais fácil será a aceitação desse Romantismo algo ex­
temporâneo (já que se alonga por toda a sua carreira de poE: · 
ta) se tomarmos o conceitc de estilo de época no sentido que 
lhe deram estudiosos como René Wellek e Austin Warren, 
para quem a unidade dos movimentos literários não deve ser 
aceita senão dentro de um critério relativista. A propósito, 
é interessante observar, com Afrânio Coutinho, que, na novn 
perlodologia, " . . . em vez da sucessão dos períodos, como blo­
cos estanques, o que ressalta é a imbricação, porquanto os 
sjstemas de normas que se substituem em dois períodos ja .. 
mais começam e acabam em momentos precisos, porém se 
continuam em certos aspectos, repelindo-se em outros; as 
novas normas .substituem as antigas progressivamente, im­
bricando-se, interpenetrando-se, e se superpondo, criando 
":mnas fronteiriças", de transição, nas fímbrias dos perío­
dos. Assim, em vez de unidades temporais, eles são antes uni .. 
dades tipológicas, a articulação fazendo-se em profundidade 
ou por camadas". (1) 
Claro que o Romantismo que se verá ao longo da poesia 
de Junqueiro vai ultrapassar os limites dessas "zonas fron­
teiriças" a que se refere o crítico brasileiro. Mas, se essas zo­
nas vão explicar as notas românticas das suas primeiras pro­
duções realistas, a sua persistência em obras bem posterio­
res terá sua causa provavelmente em dois fatores nada des-
24 
piciendos: o próprio temperamento do autor e sua forma­
ção literária. 
Vasta é a obra de Junqueiro, e teremos de lutar contra 
a tentação das transcrições, que não devem ser demasiadas, 
mas que são indispensáveis num trabalho como este. 
2 - A FASE ROMANTICA 
A mais antiga produção de Guerra Junqueiro que se co­
nhece são as Duas Páginas dos Catorze Anos (1864). 
Não para mostrar a má qualidade dos versos, mas para 
que se observe a atmosfera de puro Romantismo que os en­
forma, reproduzamos uma estrofe apenas de "A Um Amtgo": 
Nasci p'ra ser desditoso, 
P'ra ser feliz não nasci; 
Uma esp'rança, um sonho, um gozo 
Nunca n'alma conheci! 
Em Mysticae Nupciae (1866) já se percebe certa evolu­
ção do poeta, ao trabalhar o decassílabo: 
Do Sol o último raio vai perder-se 
Entre as sombras da noite pavorosas! 
Ao longe, no horizonte, nuvens vagas 
Desdobram-se, encastelam-se! a nortada 
Rija sibila como selva extensa! 
Atro arranco reboa pelo espaço! 
O hendecassílabo que us a é o iâmbico-anapéstico, o mais 
u::;ado pelos poetas românticos, notadamente entre nós: 
"Varreu-se a procela: que noite saudosa! I O seio mais casto 
palpita de amor!" 
Interessante observar que, mesmo nesse tempo, o dode­
cassílabo de Junqueiro obedecia às regras de formação do 
alexandrino clássico: é que, em Portugal, talvez por influên­
cia de Castilho, o chamado alexandrino espanhol não teve a 
25 
aceitação que teve no Brasil. Isso, não obstante haver figu­
rado nos cancioneiros galaico-portugueses. Era assim que 
trabalhava o alexandrino o moço poeta: 
A pétala baloiça, e o orvalho cristalino 
Embala-se e desliza em pranto diamantino! 
As aves a trinar saúdam novo dia, 
Nas balças tudo são torrentes d'harmonia! . . . 
Pelo menos o alexandrino já nos faz antever a lira do 
poeta d'A Lágrima, com sua predileção pelas rimas empare­
lhadas. 
As Vozes Sem Eco (1867) não acrescentarão muito ao 
que já vimos; mas já então surge a poesia de ideal reformis­
ta: o poema "À Espanha" abre com uma Dedicatória a Vítor 
Hugo, em que há versos assim: 
Eu canto a liberdade, odeio a hipocrisia, 
Odeio o serv!lismo, a escravidão fatal; 
Que chegue a ti meu brado, o brado que te envia 
Uma alma franca e livre: é livre Portugal! 
Ataca a monarquia espanhola como, mais tarde, ataca­
rá, furiosamente, a monarquia portuguesa, com D. Luís n'O 
Crime (1875) ou com D. Carlos na Pátria (1896). 
Batismo de Amor, publicado em 1868 e postumamente 
incluído nas Vibrações Líricas (1925), coletânea não mencio­
nada nas Obras de Guerra Junqueiro (poesia) organizadas 
e prefaciadas por Amorim de Carvalho, é bem o embrião do 
primeiro livro importante de Junqueiro, A Morte de D. Jcão, 
e narra a história de um menino que, lançado aos azares da 
vida, termina por mergulhar no vício. O verso é decidida·· 
mente mais seguro, havendo estrofes que já são do mais pu­
ro Junqueiro: 
26 
Chegara a essa idade das quimeras, 
Dos sonhos, dos enlevos os mais ternos; 
Contava dezanove primaveras, 
Melhor dizia dezanove invernos. 
Mas, não l'e contentando com o Romantismo, atinge às 
vezes a um Ultra-Romantismo digno das melopé ias de Soa­
res de Passos: 
Era a hora sinistra dos horrores, 
Em que os mortos, quebrando a negra lousa, 
Da campa surgem ao fragor dos ventos. 
O mundo dorme e outro mundo acorda: 
Vão pela treva lívidos fantasmas . . . 
As sombras falam, solitárias larvas, 
Aves noturnas pousam nos sepulcros! 
Ainda na linha libertária de Hugo, publica Vitória da 
França (1870) e À Espanha Livre (1873). No poema "Itália'', 
que figura no primeiro, lança os primeiros ataques ao Clero. 
A dicção desses dois livros é evidentemente condoreira, ter­
minando o último com "a falange dos sé culos" avançando, 
como olímpicos soldados, cavaleiros-fantasmas "a galopar na 
estrada do infinito". 
Depois d'A Morte de D. João, que é sua primeira produ­
ção realista, publicará ainda, alé m de outras, o poema Aos 
Veteranos da Liberdade (1878), de notas satíricas e rasgos 
condoreiros, onde a mocidade arranca do passado o Sol da 
liberdade para depois apresentar as fardas "Primeiro esbu­
racadas pelas balas I E rotas ao depois pela indigência! " 
3 - A FASE REALISTA 
Imbuído de ideais cientificistas, Junqueiro havia plane­
jacto compor uma trilogia: A Morte de D. João, atacando o ti­
po romântico do conquistador devasso; A Velhice do Padre 
Eterno, verberando o Clero, que considerava corrupto, e por 
fim o Prometeu Libertado, que seria a vitória do Homem, sal­
vo por Jesus Cristo; a última parte ficou incompleta, sendo 
publicados apenas dessa trilogia os dois citados poemas. A 
Morte de D. João foi editada em 1874. 
27 
Falando precisamente dessepoema, escreveu Fidelino de 
Figueiredo: "Guerra Junqueiro, fundindo o lirismo épico de 
Vítor Hugo e o satanismo de Baudelaire, pelo arrojo das suas 
imagens, praticava esta novidade tão mal recebida duma par­
te do público literário e tão entusiasticamente apoiada por 
outra, de meter a prosa na poesia. Cães vadios, a prostitui­
ção, a nudez gangrenosa, a vala comum, os hospitais, a va­
leta, tudo que até então, na poesia portuguesa, fora siste­
maticamente afastado do âmbito dos temas literários, era 
acolhido no poema de Guerra Junqueiro, que nos seus ale­
xandrinos vibrantes extraía a essas podridões belezas impre­
vistas. (2) 
Justa observação: com efeito, antes do poema de Jun­
queiro havia certo preconceito com relação a alguns vocá­
bulos, apesar da presença de túmulos e sudários na poesia 
ultra-romântica; as podridões teriam de esperar pelo Realis­
mo-Naturalismo de Cesário Verde ("E o peixe podre gera os 
focos de infecção") ou o Decadentismo de Antônio Nobre 
("Em uma chaga a supurar gangrena") . . . 
O Baildelaire de "La Charogne" está presente, ao lado 
da eloqüência hugoana, ao longo do poema: 
Lancei o meu olhar pelo horizonte escuro, 
E vi tremeluzir clarões fosforescentes; 
Talvez um animal já podre, no monturo: 
Era a cidade imensa, a meretriz das gentes . 
Sentado sobre um esquife, diz o personagem, na parte 
IV do poema: 
28 
Eu abandono, entrego o coração escuro 
A ferrugem que morde as lúcidas espadas; 
Crescei dentro de mim, como num velho muro, 
Desejos sensuais, lepras esverdeadas! 
Para, adiante, dizer de seu ideal: 
Quero as coisas mais vis, mais baixas, corruptas, 
O cinismo, a traição, a infâmia, as prostitutas, 
E não te quero a ti, ó glória, ó virgem pura, 
A ti que vais beijar os tristes namorados, 
Quando, insensíveis
. 
já, seus corpos verminados 
Jazem na podridão da velho noite escura. 
Há instantes de grandeza poética, como quando fala ao 
ca dáver de um velho operário: 
Na mudez formidável da matéria 
.rá nada te atormenta e te consome: 
Nunca mais saberás o que é miséria, 
Nunca majs saberás o que é ter fome. 
Mas logo o duro realismo cientificista emerge, diante do 
corpo de uma mulher sifilítica, já em decomposição: 
Dás um banquete aos lírios sensuais; 
A mimosa raiz das castas flores 
Bebe o sangue dos podres animais. 
A seiva juvenil das ébrias plantas 
Adora a imunda chaga do leproso 
E odeia o corpo anêmico das santas; 
A podridão dum ventre monstruoso 
Intumesce d'amor as ébrias plantas. 
A mesma idéia se repetirá quando D. João, ao falar de 
suas amantes decaídas, termina por dizer que seus corpos. 
após serem perfurados pelos bisturis nos hospitais, irão "Per­
fumar, engordar as lúbricas raízes 1 dos crassos vegetais fe­
lizes" do cemitério. 
29 
No final do poema, Impéria, outrora bela cortesã, está 
reduzida a uma megera nojenta, hidrópica, leprosa: "Tem 
chagas na cabeça e pústulas vermelhas: I A sif'lis bestial 
roeu-lhe as sobrancelhas. " 
Ao passo que D. João, 
Ele - anda magro, hediondo, exótico, descalço. 
Tem risos de intrujão; lembra um pataco falso 
Amarelado e sujo. O seu nariz purpúreo 
É uma esponja de carne a destilar mercúrio. 
E vai vivendo 
. . . à beira das estradas, 
Expondo às multidões as lepras inflamadas 
E as pe�·nas bestiais, tumidamente obscenas, 
Da cor do lírio roxo e da cor das gangrenas. 
A Velhice do Padre Etemo (1835) se compõe de sátiras 
ainda mais violentas, muitas vezes descambando para o cô­
mico ou o grotesco, haja vista a "Ladainha Moderna" ou a 
"Circular". Mas, a.o tratar dessa obra contundente, já que 
nos interessa unicament2 seu aspecto literário, cumpre-nos 
fazer o que Coleridge char:-wu de suspension of disbelief; é 
que, numa obra de arte, pouco importa nossa descrença no 
que o autor quer pregar ou impingir. Assim, a transcrição 
de alguns versof) de ataque ao Clero não vai implicar abso· 
lut.amente em concordância (ou mesmo em repúdio} a esse 
ataque, o que nos parece extraliterário. Embora possamos 
lembrar o fato de Guerra Junqueiro sempre haver demons·· 
trado crença em Deus e no Cristianismo, chegando, com re­
lação à Igreja católica, a abrandar sua posição, a ponto à.e 
confessar: "Eu tenho sido, devo declará-lo, muito injusto com 
a Igreja. 'A Velhice do Padre Eterno' é um livro da mocida· 
de. Não o escreveria já aos quarenta anos." (3) 
Ele achava que o clero era composto ao seu tempo por 
indivíduos corruptos . "Daí que o seu anticlericalismo deva 
30 
ser compreendido como indignação contra o religioso devas­
so, não contra o realmente vocacionado. " ( 4) 
No soneto "Parasitas", temos a presença do Realismo­
Naturalismo, no que tange à pintura dos seres aberrantes: 
No meio duma feira, uns poucos de palhaços 
Andavam a mostrar, em cima dum jumento 
Um aborto infeliz, sem mãos, sem pé s, sem braços, 
Aborto que lhes dava um grande rendimento. 
Os magros histriões, hipócritas, devassos, 
Exploravam assim a flor do sentimento, 
E o monstro arregalava os grandes olhos baços, 
Uns olhos sem calor e sem entendimento. 
"A Vala Comum", longo poema de 80 estrofes, repete as 
abjeções já mencionadas anteriormente: são lençóis de hos­
pital, já rotos e cheios de vermes, crânios de heróis, carcas­
sa s decompostas . . . 
Mas o ponto alto do Realismo n'A Velhice do Padre Eter­
no, está nos versos descritivos de "A Sesta do Sr. Abade", on� 
de se pode ver a mestria do artista numa pintura que lem­
bra os romances da escola: 
O meio-dia bateu já na torre da Igreja. 
A aldeia é silenciosa e triste. O Sol flameja. 
Entre o surdo murmúrio abrasador da luz, 
Como num grande forno, os grandes montes nus 
Recozem-se, espirrando as urzes dentre as fragas. 
Um mendigo, demente e coberto de chagas, 
Dorme estirado ao sol numa modorra espessa; 
E o mosqueiro febril nas lepras da cabeça 
Enterra-lhe zumbindo o cáustico das lanças. 
Andam só pela rua os porcos e as crianças. 
Fome, desolação, luto, viuvez, misé ria 
Na aldeia morta. 
31 
É tipicamente realista a descrição, com o vezo de retra·· 
tar somente o lado negativo da vida; além do que foi apre­
sentado acima, fala-nos o poeta da terra calcinada cuspindo 
"o cardo torcido, epilético, ardente", enquanto siivam as co­
bras, o ar carboniza as árvores; os reb::mhos "são cor:.-:.o mD 
pulular de vermes"; grassa a epidemia, e os velhos decaden­
t.es agonizam, ouvindo os lamentos fúnebres dos bois magrm, 
a mugir abandonados "Junto ao velho esqueleto inútil dos 
arados". 
Chega a ser grotesca a descrição do abade dormindo (c 
não era outro o objetivo do poeta): 
O cura, espapaçado, esbanclalhado, ronca. 
Inunda-lhe o suor oleoso a testa bronca, 
O cachaço taur:no e as papeiras, que vão 
Desde o queixo ao umbigo, em crassa ondulação. 
A boca comilona, erótica, sensual, 
Traz à lemb;:al'.Ça o fauna obsceno e o canibal. 
E a dentadura podre, esse armazém de guano, 
É qual desmantelado aqueduto romano. 
F. raia deliberadamente ao mau-gosto: 
As vezes, um fragor rouco de temporal 
Quer bramir através do Himalaia nasal 
Do abade, mas achando os dois túneis do monte 
Entupidos de esterco infecto e de simonte , 
Retrocede e lá vai por outro sorvcdoiro 
Expluir- com profundo e tremebundo estoiro! . . . 
N' A Musa em Férias (1879) havia o poeta incluído um. 
soneto em versos decassílabos, intitulado "A. L.", em que, 
numa dicção que lembra a dos sonetos de Antero de Quen­
tal, dizia: 
32 
Não és a flor olímpica e serena 
Que eu vejo em sonhos na amplidão distante; 
Não tens as formas ideais de Helena, 
As formas da beleza triunfante; 
e, depois de falar mais ou menos romanticamente em "mís­
tiça açucena", e em "artista gentil", finaliza com uma sere­
nidade de arte plástica, lembrando o Parnasianismo, ou ao 
menos o que se convencionou chamar assim e�11 Portugal: 
Faz-me lembrar as vívidas napeias, 
E as formas vaporosas das sereias 
Rendilhadas num bronze florentino. 
Nas Poesias Dispersas (1920) novamente vamos encon­
trar notas de Realismo-Naturalismo com descrições nausean­
tes no poema "Romaria", datado de1888; a pretexto de mos­
trar às filhas o mundo, vai o narrador fazendo desfilarem 
diante de seus olhos quantas misérias povoam a humanida­
de: �ão pústulas, cancros, podridões, cegos mendigando, ros­
tos carcomidos pelo câncer; um vê os astros "por dois fontí­
culos de pus", e outro é nada menos que "um montão de pús­
tulas obscenas". Deste, que anda à luz do sol que "banha o 
laranjal e a vinha", diz o poeta: "Move-se esta ambulante 
ostreira de gangrenas, I Cuja alma é talvez mais pura do quf:' 
a minha! " 
E são aleijados, loucos, enfim, todo um cortejo de desgra­
ças pintado com uma crueza jamais igualada (felizmente, 
podemos dizer) em nosso idioma, nem mesmo com Augusto 
dos Anjos . . . 
4 - A FASE SIMBOLISTA 
Na nota que pôs no final d'Os Simples (1892), Guerra 
Junqueiro, referindo-se à técnica do poema, afirmava: "A 
forma poética encaminha-se à evolução finaL Horizonte imen. 
so . O pouco que fiz de novo, em tal sentido, não deve nada 
a ninguém. É meu, pertence-me." (5) 
Ninguém poderá negar, porém, o poderoso influxo da 
arte simbolista nesse livro de 1892, contemporâneo do Só de 
Antônio Nobre e dois anos mais novo do que os Oaristos de 
33 
Eugênio de Castro, que iniciaram em 1890 o Simbolismo por­
tuguês. 
O metro predominante é o hendecassílabo trocaico, ver­
so largamente usado pelos simbolistas; não obstante haver 
aparecido no Romantismo brasileiro, com Franklin Dória, e 
reaparecer também aqui, mais tarde, com Vicente de Carva­
lho, ao tempo do Parnasianismo, é verso tipicamente simbo­
lista, com seu andamento encantatório, bem de acordo com 
a fluidez buscada pela corrente. 
É verdade que nem todos os poemas vazados nesse metro, 
em Os Simples, respiram o puro clima do Símbolo, como vere­
mos oportunamente; mas, além da musicalidade evanescente 
que esse verso derrama por todo o livro, há instantes de au­
têntico Simbolismo, como "Eiras ao Luar", composto de hep­
tassílabos e hendecassílabos: 
Alvor da Lua nas eiras, 
Nem linhos de fiandeiras, 
Nem véus de noivas ou freiras, 
Nem rendas d'ondas do mar! . . . 
Sobre espigas d'oiro bailam as ceifeiras, 
Na aleluia argêntea do clarão do luar! .. . 
Bailai sobre as lagrimosas 
Estrelinhas misteriosas, 
Cintilações, nebulosas, 
Frémitos vagos d'empíreos! . .. 
Deus golpeia a aurora p'ra dar sangue às rosas, 
Deus ordenha a Lua p'ra da-r lei.t.e aos lírios! . . . 
Lendo só as duas estrofes iniciais podemos ver a Lua, 
revestida de prestígio simbolista, derramando mistério sobre 
a paisagem, num clima difuso em que nada se afirma, mas 
apenas se sugere: nem faltam as conotações litúrgicas (véus 
de noivas, de freiras, aleluia) , sendo que as estrelas são mis­
teriosas, com frémitos que são vagos. A partir da terceira es­
trofe, surge uma espécie de refrão, com a repetição de "Oh, 
bailai" no início de oito versos. E, após falar nas medas, nos 
34 
arados, nos bois, nos passarinhos, nos celeiros cheios, e es­
molas para os mendigos, temos novamente o espiritualismo 
religioso na penúltima estrofe: 
Quanta hóstia consagrada, 
- Pão da última jornada! 
Dorme na meda encantada 
Ao luar tão leve e tão lindo! . . . 
Oh, bailai em volta dessa mó doirada, 
Que bailais à volta de Jesus dormindo! . . . 
"O Cavador" é outra composição acentuadamente sim 
balista, em octossílabos, com refrão de 4 sílabas: 
Vem roxa a estrela d'alvorada . . . 
Vem morta a estrela d'alvorada . . . 
- Oh, dor! oh, dor! -
Montanhas nuas sob a geada! .. . 
Hirtas, de bronze, sob a geada! . . . 
- Oh, dor! oh, dor! -
Torvo, inclinado sobre a enxada, 
Rasga as montanhas com a enxada, 
Fantasma negro, o cavador! 
Essa repetição do mesmo vocábulo no final de versos di­
ferentes, essa estrela roxa, essa dor reiterada, o andamento, 
tudo remete para a escola de Verlaine. 
Mais cultivado pelos nefelibatas foi o enassílabo com 
icto na 4 a. sílaba; nele escreveu Junqueiro "Os Pobrezinhos", 
com rimas emparelhadas em dísticos: 
Pobres de pobres são pobrezinhos, 
Almas sem lares, aves sem ninhos . .. 
Há momentos que lembram aqueles trechos de realismo 
rebarbativo: 
Há-os com f'ridas esburacadas, 
Roxas de lírios, já gangrenadas. 
35 
Mas aqui podemos dizer que se trata mais de notas de 
Decadentismo, tendência precursora do Simbolismo. 
Todavia, o momento de maior pureza, em matéria de Sim­
bolismo, n'Os Simples, é o "Campo Santo", composto em me­
tros vários : 
Ai do relento, ai do relento, sonham cavadores! . . 
Sono d'arminho... colchão de terra... lençol de 
[flores! ... 
Caí dormente, 
Caí exânimes, trementes 
Pálidos silêncios do luar dorido! 
Litanias fJ.uidas do luar dorido! 
Misereres brancos do luar dorido! 
Do luar dorido! . . . 
Começa a prenunciar-se a liberdade formal do Simbolis­
mo: o dístico inicial tem 14 sílabas (às vezes atinge 15); na 
estrofe que se lhe segue, temos versos de 4, de 8, de 11 e de 
5 síla.bas . A atmosfera é de sonho, de encantamento, de fluí­
dez, de vaguidade. Há sinestesia nos "pálidos silêncios" e nos 
"misereres brancos", podendo-se ainda vê-la nas orações do 
luar. Além do prestígio da Lua, note-se o vocabulário litúr­
gico, com "litanias", "misereres" e "orações"; adiante, o poe­
ta falará de "extrema-unções", de "ângelus", de "sagrações" 
e de "exéquias". Apesar de o livro (que é todo um poema) 
celebrar a gente rústica, e sua simplicidade, é de notar, em 
alguns passos, a procura do vocábulo peregrino, "litania" 
em vez de ladainha; "oblívio", em vez de esquecimento. Lem­
bremos a propósito que Eugênio de Castro, ao lançar as ba­
ses da corrente em Portugal, preconizava o uso de palavras 
raras, como gomil em vez de jarro: 
36 
Ai ao relento, ai ao relento sonham pegureiros! ... 
Cama tão fresca! ... cobertor branco, de j asmineiros. 
Caí maviosas, 
Caí sonâmbulas, piedosas, 
Côncavas tristezas do luar magoado! 
Ressonâncias d'órgão do luar magoado! 
Extrema-unções profundas do luar magoado! 
Síncopes, oblívios, quietações chorosas 
Do luar magoado! .. . 
5- A FACE ROMANTICA 
Ainda quando vivia o poeta, escreveu Antônio Sérgio um 
ensaio a que intitulou "O Caprichismo Romântico na Obra 
do Sr. Junqueiro", no quai censurava. o que considerava os 
defeitos de sua obra, ou seja, as incongruências que atribui 
ao que chama de "histeria romantesca"; diz a certa altura: 
"A improbidade, o automatismo, a indisciplina da linguagem, 
os erros na notação das mais triviais realidades (produtos de 
um subjetivismo incontinente e tumultuoso) agridem a ca­
da passo o senso crítico do leitor honesto." (6 ) 
Baseia-se o crítico, não sem razão, no fato de Junqueiro 
pretender, e proclamá-lo, fazer poesia científica. É por isso 
que Antônio Sérgio, à maneira da velha crítica, esmiúça a 
obra do poeta, mostrando-lhe os deslizes (leões misturados 
com condores, mastodontes em pleno século XIX, búfalos com 
atitudes de carnívoro, cedros com frutos de oiro, etc. ), o que 
seria realmente irrelevante, se Junqueiro não falasse tão or·· 
gulhosamente de seus conhecimentos científicos. 
Assiste razão ao crítico quando constata a presença do 
Romantismo em muito verso junqueiriano considerado rea­
lista; entretanto, essa face romântica, que percorre toda a 
obra do poeta, nos parece muito mais benéfica do que preju­
dicial. 
N'A Morte de D. João, considerada sua primeira produ­
ção realista, chegaria a ser enfadonha a enumeração dos tre­
chos em que, embora intentando verberar o Romantismo, a 
37 
dicção é notoriamente hugoana . Ninguém verá outra coisa 
em versos como estes: 
Há muito que fazer, muito que destruir. 
Trabalhai, trabalhai, nas forjas do porvir, 
Mineiros do futuro, artistas da verdade! 
As llipérboles da "Introdução" (de onde extraímos es­
S22 verso:::) são claramente condoreiras, fazendo-nos evocar 
a musa altiloqüente do nosso Castro Alves, como o ''zodíac·J 
imortal d� consciência humana" formaào por constelações 
que são Prometeu, Dante, Cristo, Galileu, Washington, Pas­
cal, Newton e Voltaire . 
Dir-se-ia que o poeta quis pintar um quadro romântico, 
para dep:::>ischocar o leitor com as cenas realistas que já vi­
mos; efetivamente, raia ao pieguismo a cena em que a pobre 
meretriz tira do manto uma criança, põe-lhe uma cruz nu 
seio e deixa-o na rua. 
Diz o poeta claramente de sua ojeriza à escola de MussE:L, 
ao perguntar, no Prefácio à 2a. edição do poe'I!a: "QL�antos 
adultérios, prostituições, nevroses, tísicas, enfim, quantos es­
cândalos e quantas doenças não têm sido produzidas desde 
1830 pela sentimentalidade doentia do romantismo desgr-::­
nl"lado e piegas?'' (7) 
No entanto, não fugiu aos tiques da corrente, e quando, 
indignado cmn os vícios da cidade-grande (Babilônia), ek 
se dirige à sua lira, é em versos deste teor: 
ó minha pobre lira! hei-de arrancar-te as cordas 
E, unindo-as nesta mão, vibrá-las e torcê-las 
Para fazer, ó musa! um látego de estrelas! 
Tinha Junqueiro tanta consciência do romantismo d;: 
seu poema, que nele inseriu um trecho em que adverte: "Os 
versos que aí vão, modelo de poesia I Ultrapeninsular, / En­
contrei-os, leitor, na velha mercearia I Dum nobre titular." 
Para justificar trovas como esta onde, não obstante a 
enálage do 3.o verso, o sabor é popular: 
38 
Que martírio inda não visto, 
Ai! que martírio sem fim, 
Se eu pudera ser o Cristo 
E tu a cruz de marfim! 
É certo que os momentos de maior derramamento lírico 
estão precisamente nas falas do Poeta, enquanto personagem 
do poema; mas quando fala Impéria seu discurso não é me­
nos piegas. 
Importante é observarmos a presença de Romantismo 
no discurso do próprio narrador. Como na estrofe derradei­
ra d'A Morte de D. João, onde se entremeiam decassílabos e 
quebrados de heróico, num clima de rara beleza: 
Parou a ventania. 
As estrelas dormentes, fatigadas, 
Cerram à luz do dia 
As misteriosas pálpebras doiradas . 
Vai despontar o rosicler da aurora; 
O azul sereno e vasto 
Empalidece e cora, 
Como se Deus lhe desse 
Um grande beijo luminoso e casto. 
A estrela da manhã 
Na altura resplandece; 
E a cotovia, a sua linda irmã, 
Vai pelo azul um cântico vibrando, 
Tão límpido, tão alto, que parece 
Que é a estrela do Céu que está cantando. 
Aqui o poeta esqueceu por instantes seu propósito de 
fazer poesia científica. No citado Prefácio, havia ele escrito: 
"Cantem, pois, a madressilva e as rosas, os prados florescen­
tes, as águas, os montes, a Primavera, cantem enfim a natu­
reza, mas interpretando-a pelos resultados da ciência, que a 
tornam mais bela e mais poética, e não copiando uma série 
de tropas infantis e de madrigais adocicados, que já nada 
querem dizer e nada representam." (8) 
39 
Nac!.a há de científico nessas estrelas fatigadas, cerran­
elo a:; pálpebras dormentes, nem nesse azul que cora, cor>.1..:_, 
se recebesse um beijo de Deus. E nada há de objetivamente 
realista na bela sinestesia que fecha o poema. 
N'A Musa em Férias (1879), além dos "idílios e sátiras" 
do subtítulo, incluem-se dois poemas já publicados anterior­
mente: O Crime (1875), onde se pede perdão para um crimi­
noso, e A Fon2e no Ceará (1877), exortando os portugueses 
a dar al'XÍlio aos flagelados da grande seca. São obras româ:�­
ticas, já pela generosidade dos temas, já pelo estilo, marca­
damente condoreiro. 
É ainda desse livro o famoso "Fiel", a história do cão 
que, após Yiver com um pintor em dias difíceis, foi por este 
de�,i)rezado e lançado ao mar quando a fortuna lhe sorriu: 
lamenta o artista a perda de seu gorro, caído nágua, quando 
sente baterem à porta: 
Recuou cheio dé espanto; era o Fiel, o cão 
Q..1e voltava arquejante, exânime, encharcado, 
A tremer e a uivar, no último estertor, 
Caindo-lhe da boca, ao tombar fulminado, 
o gorro do pintor! 
Foi imensa a popularidade desse poema, inúmeras ve­
zes declamado ao lado de outras páginas românticas, ao som 
da Dalila, nas tertúlias familiares do início do século . 
Ron�ântico ainda, mas doutro tipo de ro::-nantismo, é o 
poema intitulado "Morena", em que há versos assim: 
40 
Não negues, confessa 
Que tens certa pena 
Que as mais raparigas 
Te chamam morena. 
Mas olha as violetas 
Que, sendo umas pretas, 
O cheiro que têm! 
Vê lá que seria, 
Se Deus as fizesse 
Morenas também! 
Após advertir que morenas eram as mais lindas moças 
de Jerusalém, e que talvez Maria fosse também morena, ter­
mina o poeta: 
Moreno era Cristo. 
Vê lá depois disto 
Se ainda tens pena 
Que as mais raparigas 
Te chamem morena! 
Escrito em redondilha menor, com esquema rimático po­
pular, esse poema bem merece o epíteto de gracioso. E é ro­
mântico, mas de um Romantismo jovial, como aquele de al­
guns poemas de João de Deus. Deste, disse Fidelino de Fi­
gueiredo: " . . . João de Deus, em plena decadência do lirismo 
amoroso e subjetivo, deu-lhe novos alentos e depurou-o de 
alguns agentes de dissolução." (9) 
Ao que acrescenta Cleonice Berardinelli; "Na verdade, 
n?,o se compraz João de Deus na contemplação do fúnebre ou 
do macabro; a tristeza que revela é profunda mas nunca 
mórbida; daí o clima de equilíbrio saudável em que decorre 
sua poesia, o qual mais se acentua pela alegria moça e es­
pontânea de muitos de seus poemas." (lO) 
É exatamente essa "alegria moça", esse "clima de equi­
líbrio saudável" que vemos no poema de Junqueiro, com um 
à-vontade muito coloquial e simpático, algo que nos traz à 
memória "O Laço de Fita", de Castro Alves . 
Já vimos que, n'A Velhice do Padre Eterno (1885), pre­
domina a sátira realista. Contudo, a face romântica lá está 
a colorir de sentimentalismo a abertura do livro, "Aos Sim­
ples", do mais puro lirismo romântico: 
41 
Minha mãe, minha mãe! ai que saudade imensa 
Do tempo em que ajoelhava, orando, ao pé de ti. 
Caía mansa a noite; e andorinhas aos pares 
Cruzavam-se voando em torno dos seus lares, 
Suspensos do beiral da casa onde eu nasci. 
Tomemos um dos mais consagrados poemas desse livro, 
"A Caridade e a Justiça", de notoriedade igual à do "Fiel", 
e largamente declamado em muitos lares tradicionalmente re­
ligiosos do Brasil. Vemos Jesus crucificado, na noite do Cal­
vário; aproxima-se Judas . Mas, ante a nobreza do olhar do 
Nazareno, foge, e encontra um vulto, que lhe diz ser chega­
da a hora do castigo; "Quem és tu?", pergunta-lhe o traiàor; 
"O I=i.emorso, um caçador de feras." Iscariote tenta subornar 
o gigante, que se mostra incorruptível. E, ao romper da alva, 
Judas prepara o laço para enforcar-se. Ecoa entfi.o a voz d2 
Jesus, concedendo-lhe o perdão. Judas, porém, não aceita �• 
perdão de Cristo; prefere seguir o que lhe dita a consciência, 
e enforca-se . 
Apenas narramos o episódio sucintamente, mas já ve­
mos o romantismo que povoa o poema: o que nos autoriza­
ria a chamar de realista uma página alegórica de lances tã·J 
dramáticos? 
É chocante para muitos a blasfêmia e (não esqueçamos 
o suspension of disbelief) contida nestes versos: 
Vais ver como esse monstro, ó pobre Cristo nu, 
E maior do que Deus, mais justo do que tu: 
A tua caridade humanitária e doce, 
Eu prefiro o dever terrível! E enforcou-se. 
O certo é que esse poema, em cujo início há versos de 
grande beleza ("Noite sinistra e má. Nuvens esverdeadas / 
Corriam pelo ar como grandes manadas I de búfalos."), se 
nos afigura, pela emoção de que se reveste, tão romântico, 
quanto "A Doida de Albano", de Antônio Xavier Rodrigues 
Cordeiro. E romântica aquela Lua, "ensangüentada e fria / 
Triste como um soluço imenso de Maria", lançando a luz me-
42 
rencória, feita "de brancos ais", como é romântico o Remor­
so, aquele mesmo que, n'O Crime, com o nome de Consciên­
cia, persegue o alferes, e que vem a ser- consoante a obser­
vação de Antônio Sérgio no citado ensaio- a mesma Cons­
ciência do "Cain", de Vítor Hugo. N"'A Caridaàe e a Justiça", 
cli7, o Remorso a Judas: 
ÉS traidor, assassino, hipócrita, perjuro; 
A tua alma lançada em cima dum monturo 
Faria nódoa. É tudo o que há de mais vil, 
Desde o ventre do sapo à baba do reptil. 
Sai da existência! dize à sombra que te açoite. 
Monstro, procura a paz, verme, procura a noite! 
Antônio Sérgio (11) q;Jis verincoerência em Junqueiro, 
achando que o poeta considerava injusto o perdão de Jesus 
rara Judas, mas justo o dele, poeta, para o soldado, em O 
Crime. Na verdade, Guerra Junqueiro preconiza, tanto para 
um como para outro, a mesma expiação, ou seja, a de ser en­
tregue à própria consciência. 
Quanto a Os Simples (1892), já vimos que se trata de 
obra :oimbolista. Mas, embora seja verdade que "o individua­
lismo simbolista não vai repetir pura e simplesmente a idên­
tica propensão romântica", (12) como adverte Massaud 1\IIoi­
�és, ninguém poderá negar a retomada de vários postulados 
românticos pelos sacerdotes do Símbolo; nem poderia ser de 
outra forma, já que a nova corrente se pretende antiobjetiva. 
Se pudemos mostrar Romantismo nas obras ditas realis­
tas de Guerra .Junqueiro, menos estranho será que o assina­
lemos nessa obra cheia de subjetivismo. 
Os Simples, que são indubitavelmente o ponto mais al­
to da poesia junqueiriana e, a nosso ver, uma das mais be­
las realizações da poesia portuguesa, celebram a pureza da 
gente simples e primitiva de Portugal; assim, na exaltação 
da vida rústica, não é de admirar apareçam inúmeros versos 
de sentimento romântico: São os astros abrindo, como "que­
rubins divinos", os olhitos meigos para ver passar a moleiri­
nha, uma santa velhinha, cujo jumentinho é tão ingênuo e 
43 
puro que o poeta sente vontade de levá-lo à igreja para ba­
tizá-lo, observando ainda que "Quando a virgem pura foi pa­
ra o Egito, / Com certeza ia num burrico assim"; é a boiei­
rinha, "Fresca como os cravos pelo amanhecer", descalça, po­
rém "sem ar mendigo", banhada pela glória do Sol: 
O chapéu é palha que inda há um mês deu trigo, 
A saíta é linho ainda há bem pouco em flor! . . . 
É o velho castanheiro, que a muitos dera o berço, o te­
to, as portas, o arado e o leito, e agora se desfaz em chamas, 
aquecendo a todos no inverno; é o pastor nonagenário, que 
morre e vai para o Céu, tanger milhões de astros, "As ove­
lhas novas de Ti-Zé-Senhor·•: tanto se identificara, desde 
criança, com a terra, que 
Quase me admirava que nas primaveras 
Desse peito rude não brotassem heras, 
Margaridas, lírios com abelhas d'ouro! 
Encerra-se o livro com o "Regresso ao Lar", composição 
antológica que, pelo subjetivismo simples, traduzindo forte 
sentimento, mas sem aprofundar os meandros do subcons­
ciente, muito mais remete para o Romantismo do que para 
o Simbolismo que povoa outras páginas do livro. É bem ro·· 
mántico o topos que o enf01ma, o da "Visita à Casa Paterna" 
(tão bem explorado pelo brasileiro Luís Guimarães, autor 
também de uma "História de um Cão", inspirada, como o 
"Fiel" de Junqueiro, num conto de Adolphe Destroyes) . 
44 
Fala o poeta, ao voltar à sua casa: 
Ai, há quantos anos que eu parti chorando 
Deste meu saudoso, carinhoso lar! . . . 
Foi há vinte? ... há trinta? ... Nem eu sei já quando!. .. 
Minha velha ama, que me estás fitando, 
Canta-me cantigas para me eu lembrar! ... 
E, depois de falar de seu coração, desfeito pelas amargu­
ras e pelas mágoas, sempre pedindo à velha ama que cante 
as velhas cantigas, num saudosismo casimiriano, termina o 
poeta seu canto com a lembrança da morte, tão cara aos se­
guidores de Lamartine: 
Canta-me cantigas para ver se alcanço 
Que a minh'alma durma, tenha paz, descanço, 
Quando a Morte, em breve, ma vier buscar! ... 
Leia-se Pátria (1896) e lá se verá a mesma dicção, o mes­
mo arrebatamento, a mesma generosa indignação românti­
ca com que lançava rimas candentes contra as monarquias 
nos primeiros versos; leiam-se as Orações (Oração ao Pão --
1902, Oração à Luz - 1904) e se sentirá a mesma atmosfera 
lírica de Os Simples. 
Longa seria a enumeração de quantas composições se 
tingem de Romantismo; teríamos que nos demorar na leitu­
ra d'O Melro (1879), cujo enredo, seja ou não baseado na 
realidade, é de uma dramaticidade romântica, ou d'A Lágri­
ma (1888), belíssima alegoria sobre a justiça divina. CremGs 
porém seja bastante o que já foi dito. 
6- CONCLUSAO 
Guerra Junqueiro produziu muito, e era natural que nem 
tudo atingisse ao mesmo nível artístico. Por outro lado, a um 
período de endeusamento de um autor geralmente sucede 
outro de demolição: no Brasil, Coelho Neto foi durante o Rea­
li�mo considerado por muitos como o maior dos prosadores 
nacionais, para mais tarde ser, com igual injustiça, relegado 
ao esquecimento, como se nada de aproveitável houvesse dei­
xado em sua enorme bagagem literária. Foi mais ou menos o 
que ocorreu - em Portugal e no Brasil - com a poesia de 
Guerra Junqueiro; quase venerado em fins do século XIX e 
começo do século XX, passaria a ser atacado a partir da déca­
da de vinte. 
Tanto o endeusamento quanto a detração vêm a ser fru­
to de um mesmo vício: a generalização. Porque escreveu al-
45 
gumas páginas de superior categoria artística, elevaram-no :•. 
Pontífice Máximo da poesia luso-brasileira; porque, posterior­
mente, se verificou que alguns de seus processos literários 
eram algo gratuitos, entenderam muitos de lançá-lo ao os­
tracismo, como se se tratasse de um impostor. Antes, era mo­
dR imitá-lo; depois, de bom-tom era desprezá-lo, a ele e a 
sEa prosa metrificada (como não poucos qualificam toda n 
poesia j unq ueiriana) . 
Não é preciso acrescentar que os ataques que despediu 
a t.orto e a direito contribuíram para o silêncio que se fez em 
torno de seu nome. É que, realmente, a bem poucos é dada 
a capacidade de fazer 2.'W8le suspension of d?slleliej colerid ­
giano . . . 
A nosso ver, a poesia de Guerra Junqueiro não é aquilo 
que parecia ser, através do deslumbramento de seus admira­
dores de há setenta e tantos anos; mas também não é abso­
lutamente a antipoesia que muitos hoje acreditar:1 que ela 
sej a . 
Sua fase realista, d e caráter cientificista, quase produ­
ziu essa antipoesia. Salvou-o porém a face romântica que 
abrange toda a sua produção artística, fazendo-o escrever 
al p.;uns dos mais belos versos de seu tempo . 
N O T A S 
1 ) Afrânio Coutinho , "Intro ducão à Literatura n o Brasil". 3a. ed­
R;o de Janeiro. São José. 1!ÍG6. n. 2 1 -2 . 
2 ) Fidelino de Figueiredo . " História da Literatura Realist-a". 2a . 
ed .. revista. Lisboa. Clássica. 1 924, p . 1 1 6 . 
3 ) Guerra Junqueiro. · 'Presas Dispersas". Porto. Charclron. 192 1 , 
p . 1 3 . 
4) Massaud Moisés . "A Literatura Portuguesa Através dos Tex­
tos" . 2a . ed . S . Paulo. Cultríx. 1 969. p . 298 . 
5) "Obras de Guerra ,Junqueiro". (!)oesia ) Org . e Intr . Amorim 
de Carvalho . Porto, Le1lo. 1 972, n . 9 1 7 . 
6 ) Antônio Sérgi o . " O Canri c hismo Românti eo n a Obra d o Sr- Jun-
aueiro". In "Ensaios", t . I . 2 ed. Coimbra. Atl ântida, 1!)49, p. 354 . 
7 ) "Obras de Guerra Junqueiro", cit., p . 135 . 
8) Ibidem, p . 132 . 
9l Fi delino de Figueiredo. op . cit . , p . 32 . 
10) Cleonice Berardine1le. "João de Deus" . Rio de Janeiro, Agir, 
1967, p . 8 . 
1 1 ) Antônio Sérgio, op . cit . . p . 432 . 
1 2 ) Massaud Moisés . "A Literatura Portuguesa". 6a . ed- , S. Pa.ulo. 
Cultrix, 1968. p. 250 . 
46 
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