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Análise do discurso: uma visão crítica do método Em “Introdução à pesquisa qualitativa", Flick (2009) localiza o advento da metodologia qualitativa tangencialmente às ciências sociais e à psicologia, tomando como exemplo os métodos descritivos utilizados por Wundt. O autor demonstra que, frente à necessidade de investigar os significados subjetivos da experiência, certos pesquisadores passaram a flexibilizar os modelos pragmáticos mais tradicionais de pesquisa e buscar recursos indutivos que permitissem a análise dos dados coletados empiricamente. Neste ponto reside o mérito das abordagens qualitativas no estudo das relações sociais, isto é, na compensação de lacunas que não são preenchidas pelas pesquisas quantitativas. A pesquisa é uma busca, uma tentativa de compreender melhor o mundo complexo em que vivemos através da investigação sistemática e do estudo de materiais e fontes para estabelecer fatos e chegar a novas conclusões. Ao se olhar para as últimas três ou quatro décadas do século XX, não se pode deixar de notar alguns sinais generalizados de uma crise profunda que está afetando o modelo de racionalidade científica que nos rege (Chalmers, 2013). Padrões estritos e incoerências tornaram o positivismo lógico uma doutrina fracassada, que, no final da década de 1960, já estava em decadência (Burtt, 2003; Chalmers, 2013). Sua queda reabriu o debate sobre a possibilidade de um novo paradigma de pesquisa, não mais restringindo as ciências sociais aos moldes das ciências tradicionais, em particular, a física (Burtt, 2003; Chalmers, 2013). Nesse contexto, a pesquisa qualitativa evoluiu nas últimas três décadas para um amplo corpo de conhecimento. Dentro de seu domínio está uma grande gama de abordagens e métodos que refletem não apenas a multiplicidade de suas disciplinas básicas, mas também a diversidade de contextos e propósitos aos quais é aplicada (Flick, 2009). A nomenclatura "pesquisa qualitativa" é um termo abrangente usado para se referir a uma metodologia de pesquisa complexa e em evolução, que tem raízes em várias disciplinas diferentes, principalmente antropologia, sociologia e filosofia, e agora é usada em quase todos os campos de investigação das ciências sociais, incluindo a psicologia. Como visto em Flick (2009), diversas abordagens de pesquisa foram desenvolvidas dentro da pesquisa qualitativa, incluindo investigação narrativa, estudo de caso, etnografia, pesquisa-ação, fenomenologia, etc. Essas abordagens usam uma rica variedade de métodos de coleta e análise de dados, como observação, entrevistas, itens de questionário de resposta aberta, relatórios verbais, diários e análise de discurso, tema deste trabalho. Dentro de cada uma dessas abordagens e métodos de pesquisa, uma série de técnicas e estratégias de pesquisa foram elaboradas para ajudar os pesquisadores qualitativos a fazer seu trabalho diário ‒ especialmente em relação à análise e interpretação dos dados coletados. Na segunda metade do século XX, Michel Pêcheux, então pesquisador da École Normale Supérieure , propôs a teoria da análise de discurso, isto é, uma metodologia que analisa a estrutura de um texto e compreende as construções ideológicas que nele se encontram (Patti et al., 2017). Atualmente, a análise do discurso é um termo generalista para uma série de abordagens metodológicas que analisam o uso e as funções da fala e do texto na interação social. Essas abordagens são usadas em disciplinas de ciências sociais, como psicologia, sociologia, linguística, antropologia e estudos de comunicação. Ou seja, a análise do discurso é de natureza interdisciplinar, desenvolvida a partir de trabalhos dentro da teoria dos atos de fala, etnometodologia e semiologia, bem como teóricos pós-estruturalistas como Michel Foucault e Jacques Derrida, e as obras posteriores do filósofo Ludwig Wittgenstein (Patti et al., 2017). As abordagens da análise do discurso são cruciais para a compreensão das relações humanas porque se concentram principalmente na interação: como falamos uns com os outros e as práticas discursivas (falar, escrever) por meio das quais as relações se desenvolvem, se desfazem e assim por diante. A pesquisa de análise de discurso envolve a gravação de áudio ou vídeo de interação social ou a coleta de documentos textuais (Flick, 2009). Um grande corpus de dados é acumulado sobre um tópico específico. A coleta de dados é orientada por uma(s) pergunta(s) de pesquisa em uma área temática. Se dados de áudio ou vídeo forem usados, uma transcrição escrita (ou seja, uma cópia da palestra com processamento de texto) é produzida para ser analisada junto com os arquivos de áudio/vídeo, e que é usada para relatar descobertas em publicações (Flick, 2009). O corpus de dados é então codificado procurando padrões recorrentes, temas ou instâncias de um determinado fenômeno. Este processo é guiado por pesquisas anteriores e pela pergunta de pesquisa. A transcrição será lida muitas vezes para obter uma "sensação" dos dados e para garantir que os estágios iniciais de codificação sejam o mais inclusivos possível (Gomes, 2007). A análise dos dados, então, requer um exame aprofundado de "dispositivos discursivos", como o uso de pronomes, categorias ou características retóricas (onde versões alternativas da "realidade" são direta ou indiretamente contestadas). Segundo Gomes (2007), os estilos de análise variam muito, dependendo de qual versão da análise do discurso está sendo usada, desde observar atentamente a maneira como as pessoas se revezam na conversa e como a organização sequencial da interação ajuda a construir o significado da conversa (psicologia discursiva) até considerar o uso de conceitos como sincronismo (a coordenação harmoniosa da fala das pessoas) e formas compartilhadas de falar (abordagens sociolinguísticas e etnográficas). A análise do discurso resultante é frequentemente exposta na forma de um conjunto de temas e pontos ilustrativos que se relacionam com a questão de pesquisa (Gomes, 2007). Extratos dos dados transcritos são usados para evidenciar os pontos analíticos,permitindo ao leitor visualizar os dados diretamente e decidir por si mesmo sobre a veracidade das afirmações feitas. Como tal, as abordagens da análise do discurso são puramente qualitativas no método, mas também são extremamente aplicadas, pois os resultados podem ser usados para se relacionar diretamente com o ambiente em que os dados foram coletados (ou ambientes semelhantes). A partir da análise do discurso se faz necessário problematizar todo tipo de informação exposta, independentemente de como a materialização da linguagem é apresentada, visto que não há neutralidade nos discursos, mesmo que este esteja inserido em nosso dia a dia. Como exposto por Patti et al. (2017), a base construcionista social da maioria das formas de análise do discurso significa que ela não pode simplesmente ser usada como um método intercambiável dentro da pesquisa, como se fosse qualquer ferramenta na “caixa de ferramentas de métodos”. Isso porque, como observado acima, é necessário que o pesquisador adote certos pressupostos teóricos: que o discurso constrói a realidade e que o contexto é fundamental para a compreensão do discurso em qualquer relação humana. As raízes divergentes da análise do discurso levaram a muitas variedades diferentes. Aqui, três vertentes serão delineadas, junto com variações mais sutis dentro de cada uma, já que são as mais relevantes para o estudo das relações humanas. A psicologia discursiva se refere a uma vertente da análise do discurso que emergiu do trabalho de Derek Edwards e Jonathan Potter na década de 1990 e desenvolve o trabalho seminal de Jonathan Potter e Margaret Wetherell sobre a análise do discurso em psicologia social em 1987 (Rasera, 2013). Esta versão examina como os conceitos psicológicos (tais como emoções, atitudes e crenças) são construídos e compreendidos na interação cotidiana. Este trabalho é particularmente adequado para relacionamentos humanos e tem sido usado para examinar, por exemplo, sessões de aconselhamento matrimonial e familiar e interação familiar durante as refeições. Uma ligeira variação dessa abordagem é a psicologia discursiva desenvolvida por Rom Harré, que dá mais ênfase aos processos cognitivos (ou seja, o que as pessoas estão pensando ou processando mentalmente) e seu papel na fala (Pinheiro e Meira, 2010). A versão de psicologia discursiva de Edwards e Potters é mais reservada quanto à cognição. Uma terceira área dentro deste "ramo" da análise do discurso é a conhecida como psicologia discursiva crítica, que se concentra em noções psicológicas semelhantes, mas usa uma noção mais ampla de contexto, levando em consideração as estruturas culturais e históricas, bem como o próprio discurso (Nogueira, 2008). Por exemplo, a pesquisa de John Dixon e Margaret Wetherell examina questões de justiça social e gênero em conversas sobre o trabalho doméstico. Um segundo ramo importante da análise do discurso é conhecido como análise crítica do discurso, que se baseia em princípios amplamente marxistas: que alguns grupos na sociedade têm mais poder do que outros e que a opressão é mediada pelo discurso. Os principais teóricos nesta área são Norman Fairclough e Teun Van Dijk, e pesquisas foram realizadas sobre tópicos em que há algum nível de desigualdade ou abusos de poder (Magalhães, 2005). É essa noção de poder, e ser "crítico" (dentro da análise do discurso, isso é amplamente usado para se referir a abordagens que têm uma perspectiva mais realista e, portanto, podem reivindicar qual versão da "verdade" é mais apropriada ou aceitável do que outro) que é central para esta versão da análise do discurso. Por exemplo, essas abordagens costumam focar em discursos sobre racismo, sexismo ou outras desigualdades percebidas na sociedade. Existem fortes semelhanças com a análise do discurso foucaultiana, que é baseada na obra do filósofo Michel Foucault, e que trata o poder como um conceito mais fluido. Segundo Magalhães (2005), aqui, o poder pode ser tanto positivo quanto negativo, e está intimamente ligado ao conhecimento e ao discurso. O poder não é algo "pertencente" a grupos em virtude de suas formas de falar; é flexível e pode ser usado por indivíduos por meio de diferentes discursos e formas de representar os outros. A terceira vertente principal da análise do discurso é caracterizada por abordagens como a sociolinguística e a etnografia da fala. Segundo Magnani (2009), essas abordagens têm uma perspectiva mais ampla sobre o contexto e estão interessadas em áreas como comunicação interétnica, estilos comunicativos (formas fixas de falar que muitas vezes estão associadas a grupos ou comunidades de pessoas) e a noção de gêneros de fala, em que a fala é caracterizada por características particulares e funciona como consequência de estar associado a uma área específica de comunicação (por exemplo, conversas entre pais e filhos durante as refeições). É fato que a análise de discurso apresenta indiscutíveis vantagens, como examinar diretamente a comunicação usando texto, permitir análises qualitativas e quantitativas, fornecer valiosos insights históricos e culturais ao longo do tempo, permitir uma maior proximidade com os dados e fornece uma visão sobre modelos complexos de pensamento humano e uso da linguagem. Além disso, é uma ferramenta mais poderosa quando combinada com outros métodos de pesquisa, como entrevistas, observação e uso de registros arquivísticos, sendo muito útil para analisar material histórico, especialmente para documentar tendências ao longo do tempo. Entretanto, como todo método de pesquisa, também apresenta desvantagens, estando sujeita a erros, particularmente quando a análise relacional é usada para atingir um nível mais alto de interpretação. Quando conduzida de forma equivocada, pode desconsiderar o contexto que produziu o texto, ser desprovida de base teórica ou tentar muito liberalmente fazer inferências significativas sobre as relações e impactos implícitos em um estudo. Em certas modalidades, como na análise de conteúdo, pode ser inerentemente redutora, especialmenteao lidar com textos complexos, e tende muitas vezes a simplesmente consistir em contagens de palavras. Ademais, o material analisado pode ser difícil de automatizar ou informatizar, e o curso da pesquisa pode se tornar extremamente demorado. Assim, embora a análise de conteúdo qualitativa seja comumente usada na pesquisa em ciências sociais, a confiabilidade de seu uso ainda não foi avaliada sistematicamente (Flick, 2009). Existe uma demanda contínua por estratégias eficazes e diretas para avaliar os estudos de análise de discurso. Uma discussão mais focada sobre a qualidade dos resultados da análise também é necessária, afinal, qual nível de generalização é permitido? As conclusões seguem corretamente os dados? Os resultados são explicáveis por outros fenômenos? Isso se torna especialmente problemático ao usar um software de computador para análise e distinção entre sinônimos, pois o software pode obter uma contagem precisa da ocorrência e frequência dessa palavra, mas não pode produzir uma contabilidade precisa do significado inerente a cada uso específico. Este problema pode confundir os resultados e tornar qualquer conclusão inválida. Vale ressaltar que certas pautas circunscritas à avaliação das pesquisas qualitativas carecem de consenso e algumas perguntas permanecem em aberto, como por quais meios se verifica a qualidade de um estudo ou se termos como validade e confiabilidade podem ser utilizados nessa questão. Em suma, é importante examinar cautelosamente todas as fases do processo de análise, incluindo a preparação, organização e relato dos resultados. Juntas, essas fases devem dar ao leitor uma indicação clara da confiabilidade geral do estudo. Apesar da relevância da análise do discurso na produção científica de pesquisas qualitativas, todas as metodologias apresentam pontos positivos e negativos, sendo recomendável ao pesquisador que priorize seu objeto de estudo ao explorar os campos de aplicação e planos de pesquisa para selecionar qual a melhor abordagem (ou combinação de abordagens) a ser utilizada. Referências Bibliográficas Burtt, E. A. (2003). Metaphysical foundations of modern science. Mineola, NY: Dover Publications, 2.ed. (Original publicado em 1924) Chalmers, A. (2013). What is this thing called science? Brisbane, AU: University of Queensland Press, 4.ed. (Original publicado em 1976) Flick, U. (2009). Introdução à pesquisa qualitativa. Porto Alegre: Artmed. Gomes, R. (2007). Análise e interpretação de dados de pesquisa qualitativa. Pesquisa social: teoria, método e criatividade, 26, 79-108. Magalhães, Izabel. Introdução: a análise de discurso crítica. DELTA: Documentação de Estudos em Lingüística Teórica e Aplicada [online]. 2005, v. 21, n. spe, pp. 1-9. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/S0102-44502005000300002>. Epub 19 Maio 2006. ISSN 1678-460X. https://doi.org/10.1590/S0102-44502005000300002. Nogueira, Conceição. Análise(s) do discurso: diferentes concepções na prática de pesquisa em psicologia social. 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