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Adaptações do organismo materno à gestação Já no início da gestação, a presença de células trofoblásticas no ambiente intrauterino altera a homeostase local e, em seguida, por meio da produção celular de hormônios e outras substâncias, o funcionamento de quase todos os sistemas maternos se adapta à nova condição. A função da placenta é especialmente endócrina, produzindo moléculas muito similares, se não idênticas, aos hormônios gerados por todas as glândulas do organismo. A produção de estrógenos e de progestógenos em altos níveis leva, respectivamente, a fenômenos angiogênicos e vasodilatadores. Além do componente endócrino, a placenta também atua na resposta vascular, por meio da elaboração de maior quantidade de prostaciclina, comparativamente à produção de tromboxano, de renina, de angiotensina e de hormônios adrenais que agem na quantidade e na composição dos derivados do sangue e na reatividade vascular. Consequentemente, é possível observar alterações essenciais para a adaptação do organismo materno à gravidez, em especial relacionadas aos sistemas circulatório (hematológico e cardiovascular) e endócrino (abrangendo também o metabolismo). As manifestações dessas adaptações em outros órgãos e sistemas são consideradas modificações do organismo materno à gestação e podem ser classificadas como locais (presentes nos órgãos genitais e/ ou sexuais) ou gerais (que surgem nos sistemas digestório, urinário, respiratório, nervoso, esquelético e em pele e anexos). Sistema circulatório Adaptações hematológicas A primeira adaptação circulatória observada na gestante se constitui de alterações do volume e da constituição do sangue. O volume sanguíneo materno aumenta consideravelmente durante a gravidez, atingindo valores 30 a 50% maiores do que os níveis pré-gestacionais. O papel da hipervolemia no organismo materno está associado ao aumento das necessidades de suprimento sanguíneo nos órgãos genitais, especialmente em território uterino, cuja vascularização apresenta-se maior na gestação. Além disso, tem função protetora para gestante e feto em relação à redução do retorno venoso, comprometido com as posições supina e ereta, e para as perdas sanguíneas esperadas no processo de parturição. O aumento da volemia materna decorre do acréscimo de volume plasmático e, em menor proporção, da hiperplasia celular. Em geral, o aumento de volume plasmático é da ordem de 45 a 50%, enquanto o volume de células vermelhas se eleva em cerca de 30%, estabelecendo, portanto, estado de hemodiluição. Consequentemente, a viscosidade plasmática está menor, o que reduz o trabalho cardíaco. Esses processos adaptativos se iniciam já no primeiro trimestre de gestação, por volta da sexta semana, com expansão mais acelerada no segundo trimestre, para, finalmente, reduzir sua velocidade e estabilizar-se nas últimas semanas do período gravídico. A fisiologia da hipervolemia materna ainda não foi completamente elucidada, mas parece se tratar do surgimento de novo equilíbrio entre fatores envolvidos na retenção e na excreção de sódio e água, resultantes da vasodilatação sistêmica e do aumento da capacitância dos vasos. O sistema renina-angiotensina-aldosterona tem maior atividade na gestação de forma a suplantar a ação de mecanismos excretores, como o aumento da filtração glomerular e do peptídeo atrial natriurético. Durante a gravidez, apesar do aumento progressivo dos níveis séricos de peptídeo atrial natriurético, o aumento lento da volemia torna os receptores menos sensíveis ao seu estímulo, permitindo o acúmulo de sódio e água pelo organismo materno. Assim, a atividade do sistema renina-angiotensina-aldosterona suplanta os mecanismos de manutenção da volemia. Eritrócitos: Apesar da hemodiluição fisiológica observada na gestante, o volume eritrocitário absoluto apresenta aumento considerável. Em média, mulheres grávidas possuem 450 mL a mais de eritrócitos, com maior incremento no terceiro trimestre. A produção de hemácias está acelerada, provavelmente, em função do aumento dos níveis plasmáticos de eritropoetina, o que é confirmado pela discreta elevação do número de reticulócitos apresentado pelas gestantes. A vida média dessas células é menor durante a gestação. A Saúde da mulher Por: ANA CLARA MELO concentração de hemoglobina se encontra reduzida durante a gravidez, resultado da hemodiluição previamente discutida. Considerando-se que a produção eritrocitária seja maior no terceiro trimestre, essa redução relativa dos valores de hemoglobina é menor no fim da gravidez. Desse modo, gestantes com hemoglobina menor que 11 g/dL no primeiro e no terceiro trimestres ou 10,5 g/dL no segundo trimestre seriam consideradas anêmicas. Apesar dessa variação ocorrer, é consenso utilizar valores de hemoglobina inferiores a 11 g/dL para a definição de anemia na gestação. Da mesma forma, o hematócrito, cujos valores normais em não gestantes estão entre 38 e 42%, chega a nível fisiológico de 32% durante a gravidez. Leucócitos: Existe aumento da produção da maioria dos elementos figurados do sangue na gravidez. O aumento dos níveis sanguíneos de leucócitos ocorre principalmente à custa de células polimorfonucleares. Apesar do maior número de neutrófilos, sua função se encontra deprimida, com diminuição de fenômenos quimiotáxicos e da expressão de molécuas de aderência. As proteínas inflamatórias da fase aguda apresentam aumento em todo o período gestacional. A velocidade de hemossedimentação, por sua vez, eleva-se por conta do aumento de fibrinogênio e de globulinas no sangue, perdendo seu valor em investigações diagnósticas na gravidez. Plaquetas: Os níveis plaquetários estão discretamente reduzidos na gravidez normal. Parte desse evento ocorre pelo fenômeno da hemodiluição, mas o consumo de plaquetas também está envolvido nesse processo, e certo grau de coagulação intravascular no leito uteroplacentário pode ser uma justificativa para esse achado. O aumento da produção de tromboxano A2 está associado à maior agregação plaquetária e, assim, à redução da contagem plaquetária. Um discreto aumento do baço também pode ser responsável pela queda observada no número de plaquetas na gravidez. Por essa razão, considera-se plaquetopenia na gestação uma contagem inferior ou igual a 100.000/mm3. Praticamente todos os fatores de coagulação apresentam-se elevados na gestação, com exceção dos fatores XI e XIII. A atividade fibrinolítica parece estar reduzida na gestação à custa da elevação de inibidores dos ativadores de plasminogênio (precursor da plasmina, que remove fibrina, metabólito final da cascata de coagulação), PAl-1 e PAI-2, e do inibidor da fibrinólise ativado pela trombina. Metabolismo do ferro: Uma série de eventos contribui para esse estado de deficiência a de ferro: consumo pela unidade fetoplacentária, utilização para produção de hemoglobina e de mioglobina para aumento da massa eritrocitária e da musculatura uterina, e depleção por perdas sanguíneas e pelo aleitamento. Por esse motivo, a não ser que haja suplementação adequada, a maioria das gestantes apresentará anemia ferropriva. Adaptações cardiovasculares Adaptações hemodinâmicas: Após a expansão volêmica, outras adaptações circulatórias devem ocorrer no organismo materno para comportar esse incremento de conteúdo sanguíneo. Na gravidez, o aumento da frequência cardíaca basal, geralmente em 15 a 20 bpm, e a elevação do volume sistólico determinam aumento do débito cardíaco. Esse processo se inicia por volta da quinta semana de gravidez, estabiliza-se por volta de 24 semanas e atinge seu ápice no pós-parto imediato, com incremento de 80% no débito cardíaco. A postura da gestante pode exercer grande influência no débito cardíaco, especialmente nas últimas semanas da gravidez em função do grande volume uterino. A posição supina pode reduzir o débito cardíaco em 25 a 30%, em comparação com o decúbito lateral esquerdo, por contada compressão da veia cava e da redução do retorno venoso. A terceira adaptação circulatória acontece em nível bioquímico. O aumento relativo da produção de prostaciclina, em comparação à produção de tromboxano A2, ocasiona vasodilatação sistêmica. Em associação aos altos níveis de progesterona presentes no período gestacional, a prostaciclina não só gera, como também mantém a vasodilatação generalizada que se observa na gestante. A refratariedade vascular aos estímulos vasoconstritores de angiotensina II e de catecolaminas ocorre pela ação dessas substâncias. Além desses fatores, a produção endotelial de óxido nítrico apresenta aumento no período gestacional e colabora localmente para a vasodilatação periférica. Em adição a essa vasodilatação, o surgimento da circulação uteroplacentária, de baixa resistência, contribui para diminuir a resistência vascular periférica. A redução da resistência vascular periférica é tão acentuada que é capaz de reduzir a pressão arterial sistêmica, apesar do aumento do débito cardíaco. A queda da pressão arterial sistêmica média é mais acentuada no segundo trimestre e retorna para níveis pré- gravídicos próximo ao parto. Essa redução acontece mais à custa da pressão arterial diastólica - que em geral diminui em 5 a 15 mmHg - do que da pressão arterial sistólica - que sofre queda de 3 a 5 mmHg. O aumento da pressão venosa nos membros inferiores é justificado pela compressão das veias pélvicas pelo útero volumoso. Por essa razão, há maior chance de a gestante apresentar hipotensão, edema, varizes e doença hemorroidária. A compressão uterina também pode ocorrer sobre vasos maiores, como a veia cava inferior, quando a gestante se encontra na posição supina a partir da segunda metade da gravidez. A redução da pré- carga nessas ocasiões provoca hipotensão seguida de bradicardia por reflexo vagal, podendo se manifestar com quadro de lipotimia (síndrome da hipotensão supina). As adaptações circulatórias se iniciam com 6 semanas de gestação e estão completamente instaladas entre o fim do primeiro trimestre e o início do segundo. A distribuição do fluxo sanguíneo se modifica durante a gravidez e vai sendo desviada com prioridade para útero, rins, mamas e pele. Coração Com o decorrer da gravidez, o diafragma se eleva por conta do aumento do volume abdominal. Esse deslocamento altera a posição cardíaca, que está desviado para cima e para a esquerda, ligeiramente rodado para a face anterior do tórax. Além desse deslocamento, o volume do órgão está maior como um todo, em função do aumento do volume sistólico e da hipertrofia dos miócitos. Pequenas alterações do ritmo cardíaco são frequentes, em especial as extrassístoles ventriculares e taquicardias paroxísticas supraventriculares. O sopro cardíaco sistólico é comum em decorrência da redução da viscosidade sanguínea e do aumento do débito cardíaco. Por razão das modificações anatômicas e funcionais do coração, pode haver alterações eletrocardiográficas fisiológicas nas ondas Te Q, no segmento ST e desvio do eixo cardíaco para a esquerda de 15 º a 20 º. Sistema endócrino A produção placentária de substâncias similares aos hormônios maternos gera um novo equilíbrio dos eixos hipotálamo-hipófise-adrenal, hipotálamo-hipófise-ovário e hipotálamo-hipófise-tireoide. Da mesma forma, sua produção hormonal própria, como a do hormônio lactogênico placentário, altera o metabolismo da gestante no decorrer da gravidez, adequando-o ao momento de desenvolvimento ou crescimento fetal. Assim, depara-se com duas fases distintas: uma primeira etapa de anabolismo materno, que dura pouco mais da metade da gestação; e uma segunda etapa de catabolismo materno e anabolismo fetal, que se inicia ao fim da primeira metade e segue até o término da gravidez. Hipotálamo Durante a gravidez, as concentrações de diversos hormônios produzidos pelo hipotálamo têm aumento na circulação periférica, apesar de não serem tipicamente detectadas fora do período gestacional. Isso decorre da produção placentária de variantes idênticas aos hormônios hipotalâmicos, como hormônio liberador da gonadotrofina (GnRH), hormônio liberador da corticotrofina (CRH), hormônio hipotalâmico estimulador da tireotrofina (TRH), somatostatina e hormônio liberador do hormônio do crescimento (GHRH). Hipófise Durante a gestação normal, a hipófise aumenta de tamanho à custa de hipertrofia e hiperplasia da sua porção anterior, a adeno- hipófise, especialmente dos lactótrofos, promovidas pela ação estimulante do estrógeno. Seu volume e peso chegam a dobrar ao fim da gravidez, sem maiores complicações quando a gestação e o parto cursam de forma tranquila. A expansão volumétrica pode, no entanto, acarretar falência a da glândula quando ocorre sangramento profuso no período periparto e isquemia hipofisária (síndrome de Sheehan). Com relação à adeno-hipófise, observa-se aumento considerável da produção de prolactina, que chega a níveis dez vezes maiores que em mulheres não gestantes (cerca de 200 ng/mL). A elevação desse hormônio tem por finalidade preparar as glândulas mamárias para a produção de leite no pós-parto. A produção e a secreção de hormônio do crescimento (GH), por sua vez, permanecem normais no primeiro trimestre, mas, com o aumento da secreção desse hormônio pelo sinciciotrofoblasto, os níveis séricos de GH aumentam ao longo da gestação. A fração alfa da gonadotrofina coriônica humana (hCG), por sua semelhança molecular com a fração alfa do hormônio estimulante da tireoide (TSH), estimula a função tireoidiana, o que, por meio de retroalimentação negativa, reduz a produção e a secreção hipofisária de TSH. Essas alterações são evidentes no primeiro trimestre da gravidez, com retomo a níveis normais de TSH no segundo e no terceiro trimestres. Os altos níveis de progesterona parecem aumentar a produção e a secreção do hormônio melanotrófico da hipófise (MSH). Os níveis de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) aumentam progressivamente em função da produção hipofisária e placentária. Por outro lado, a produção placentária de esteroides sexuais leva ao decréscimo da secreção de gonadotrofinas hipofisárias. Os hormônios produzidos pela neuro-hipófise são o hormônio antidiurético (ADH, que, na espécie humana, corresponde à arginina-vasopressina) e a ocitocina. Os níveis de ocitocina mantêm-se constantes durante a gestação, elevando-se na fase ativa e no período expulsivo do trabalho de parto. Tireoide A regulação da tireoide está evidentemente alterada na gravidez em razão de três modificações do organismo materno: Redução dos níveis séricos de iodo pelo aumento da taxa de filtração glomerular e pelo consumo periférico. Aumento da produção e da glicosilação da globulina transportadora de hormônios tireoidianos (TBG) estimulada pela crescente produção de estrógenos pela placenta, o que diminui sua metabolização hepática e, consequentemente, aumenta seus níveis circulantes. Isso faz com que as formas ligadas de tri- iodotironina (T3) e tiroxina (T4) tenham aumento fisiologicamente. Estimulação direta dos receptores de TSH pelo hCG. Paratireoide O paratormônio (PTH) apresenta redução dos níveis séricos no primeiro trimestre, que depois voltam a aumentar progressivamente ao longo da gestação. Os efeitos adaptativos que mantêm o equilíbrio do metabolismo do cálcio, a despeito da diminuição na produção de PTH pela paratireoide, estão relacionados, principalmente, à elevação observada do calcitriol (di-hidroxicolecalàferol ou vitamina D3 ativada), resultante da estimulação da atividade da 1-alfa-hidroxilase renal por estrógeno, hormônio lactogênico placentário e proteína relacionada ao paratormônio (PTH-rP), produzidos pela placenta. Consequentemente, com o aumento do calcitriol, ocorre maior absorção de cálcio pelo sistema digestório. Adrenais O aumento generalizado das atividades do eixo hipotálamo-hipófise-adrenale do sistema renina-angiotensina- aldosterona faz da gravidez um período de hipercortisolismo e hiperaldosteronismo. O aumento do cortisol sérico decorre da redução de sua excreção e do aumento de sua meia-vida. Tem relação direta com a unidade fetoplacentária, que produz CRH e ACTH, e, no terceiro trimestre, os níveis de cortisol chegam a ser três vezes maiores que os níveis basais. O hiperaldosteronismo relativo, por sua vez, mantém o balanço eletrolítico de sódio, de acordo com as alterações do volume plasmático. Os níveis circulantes e excretados de andrógenos adrenais, como o sulfato de deidroepiandrosterona (DHEA-S), encontram-se reduzidos, possivelmente pelo consumo e pela metabolização em estrógeno placentário. Os níveis maternos de androstenediona e de testosterona, por sua vez, encontram-se maiores na gestação. Ovários Durante a gravidez normal, a função endócrina ovariana está relacionada à produção de progesterona pelo corpo lúteo. Sua importância se limita até a sétima semana de gravidez, pois está associada à manutenção da gestação até o período em que o trofoblasto cresce suficientemente para sua autonomia hormonal. A produção de outras substâncias como a relaxina se associa a mecanismos de relaxamento sistêmico das fibras de colágeno e musculares, responsáveis pela acomodação da gestação e pelo processo de parturição. A produção de andrógenos (androstenediona e testosterona) está elevada, mas não acarreta maiores repercussões, já que a placenta possui mecanismos de proteção fetal, convertendo esses hormônios em estradiol. Metabolismo O ganho de peso materno decorre, em grande parte, do acúmulo de componente hídrico intra e extravascular, e em menor proporção, do acúmulo de componentes energéticos e estruturais (carboidratos, lipídeos e proteínas). A necessidade calórica total durante a gravidez é estimada em aproximadamente 80.000 kcal. As demandas gestacionais não são constantes e diferem de acordo com os diversos trimestres e compartimentos, sendo maiores quanto mais avançada for a gravidez, de forma que o aporte calórico adicional é estimado em 85 kcal/ dia, 285 kcal/ dia e 475 kcal/dia, respectivamente, no primeiro, segundo e terceiro trimestres da gestação. Na primeira fase de anabolismo materno, que se estende da concepção até 24 a 26 semanas de gestação, o aporte energético é direcionado para reservas maternas. Na segunda fase, de catabolismo materno, tanto o aporte energético ingerido como as reservas maternas são direcionados ao crescimento do feto. Carboidratos e lipídeos Observa-se redução da glicemia em jejum e da glicemia basal materna em favor do armazenamento de gordura, glicogênese hepática e transferência de glicose para o feto. Essas alterações são observadas na fase anabólica da gestação e são desencadeadas pelos hormônios sexuais placentários (estrógeno e progesterona). A partir da segunda metade da gravidez, inicia-se o período catabólico, com lipólise, neoglicogênese e resistência periférica à insulina, a qual é secundária à produção placentária de hormônios diabetogênicos, como GH, CRH, progesterona e, especialmente, hormônio lactogênico placentário (hLP), também chamado de somatomamotropina coriônica. E a partir de 30 semanas gestacionais que a mulher começa a mobilizar suas reservas energéticas para se adequar ao crescimento fetal. Para garantir o aporte de glicose necessário visando o crescimento e o desenvolvimento do produto conceptual, ocorre aumento da resistência periférica à insulina, criando um ambiente de hiperglicemia pós-prandial e consequente hiperinsulinemia, resultante da hipertrofia e da hiperplasia das células beta pancreáticas mediadas pela prolactina e pelo hLP. A hiperglicemia visa satisfazer a maior necessidade energética do feto no terceiro trimestre, favorecendo o transporte de glicose pela placenta, que ocorre por difusão facilitada. Para manter o desvio de glicose para o produto conceptual, o metabolismo da gestante passa a utilizar mais lipídeos como fonte energética. Em jejum, especialmente quando muito prolongado, as concentrações plasmáticas de ácidos graxos, triglicérides e colesterol aumentam, podendo causar cetonemia mais facilmente. Diz-se, portanto, que a gestante apresenta um estado de jejum acelerado. A redução da sensibilidade à insulina é um fenômeno materno observado de forma mais evidente a partir de 26 semanas de gestação, período em que há aumento progressivo do nível de hLP. E nesse momento, portanto, que qualquer desequilíbrio no metabolismo de carboidratos pode gerar quadro de diabetes mellitus gestacional, em especial se a oferta de glicose no sangue materno ultrapassar a capacidade pancreática de produção de insulina. Entre outras substâncias, além do hLP, participam desse processo fisiológico a prolactina, o fator de necrose tumoral, a leptina e a adiponectina. Na gravidez, ocorre aumento dos níveis de colesterol total e suas frações, além dos triglicérides. Na gravidez normal, existe um aumento da leptina, com pico no segundo trimestre. Apesar disso, o apetite e a ingestão alimentar são maiores na gravidez porque as gestantes desenvolvem resistência relativa à leptina no centro de saciedade do sistema nervoso central. Já os níveis de adiponectina se encontram menores durante a gestação, o que contribui para a diminuição da sensibilidade à insulina. Glicosúria leve (até+/ 4+ ou 250 mg/dL) pode estar presente em um número considerável de gestantes, mas sem maiores significados, pois está relacionada ao aumento fisiológico da filtração glomerular e à diminuição da reabsorção tubular renal. Proteínas Existe aumento do balanço nitrogenado materno total com acúmulo de aproximadamente 1.000 g de proteína no termo da gestação. Metade desse acúmulo é direcionada ao feto e a seus anexos, sendo a outra metade destinada a suprir as necessidades da musculatura uterina hipertrofiada, do desenvolvimento mamário, da hipervolemia plasmática e da hiperplasia dos eritrócitos. Com relação às proteínas plasmáticas, observam-se aumento da albumina total e redução de sua concentração plasmática. Os níveis circulantes de gamaglobulina também estão maiores, mas em pequena proporção, o que aumenta a relação albumina-globulina. Outras proteínas como fibrinogênio e alfa e betaglobulinas também apresentam níveis aumentados. Modificações sistêmicas As modificações gravídicas sistêmicas são manifestações da presença da unidade fetoplacentária e das adaptações circulatórias, endócrinas e metabólicas do organismo materno sobre os diversos órgãos e sistemas. Pele e anexos A produção placentária de estrógenos leva à proliferação da microvasculatura de todo o tegumento, fenômeno conhecido como angiogênese. Associado ao estado hiperprogestogênico, ocorre vasodilatação de toda a periferia do organismo. Observam-se, assim, eventos vasculares da pele e dos anexos, como eritema palmar, telangiectasias, hipertricose e aumento de secreção sebácea e da sudorese. A alopecia é rara, mas pode ocorrer por causa das alterações hormonais. A hiperpigmentação da pele da gestante também está relacionada aos altos níveis de progesterona, que parecem aumentar a produção e a secreção do hormônio melanotrófico da hipófise. Agindo sobre moléculas de tirosina da pele, induz a produção excessiva de melanina, o que provoca máculas hipercrômicas denominadas cloasmas ou melasmas. Entre os locais de maior incidência estão face, fronte, projeção cutânea da linha alba (que passa a ser denominada linha nigra), aréola mamária e regiões de dobras. Podem piorar com a exposição solar e costumam desaparecer após a gravidez. O sinal de Hunter nada mais é que a pigmentação periareolar que determina o surgimento da aréola secundária nas gestantes. Mais raramente, podem surgir as linhas de demarcação pigmentares, transições bem delimitadas entre pele mais clara e pele mais escura, que ocorrem principalmente no tronco enos membros inferiores e tendem a sumir ao término da gestação. As estrias são mais frequentes no período gestacional. Como não há alteração da qualidade das fibras colágenas nem da constituição da epiderme, atribui-se sua ocorrência a à hiperfunção das glândulas adrenais, portanto, ao hipercortisolismo típico da gravidez. Soma-se a distensão da pele do abdome, das mamas e do quadril pode provocar o aparecimento de estrias nessas regiões. Sistema esquelético As articulações, de modo geral, sofrem processo de relaxamento durante a gravidez, com acúmulo de líquido também denominado embebição gravídica. Ao contrário do que se acreditava, os níveis de estrógeno, progesterona e relaxina parecem não estar envolvidos nesse fenômeno. Durante a gravidez, observa-se que as articulações da bacia óssea (sínfise púbica, sacrococcígea e sinostoses sacroilíacas) se apresentam com maior elasticidade, aumentando a capacidade pélvica e modificando a postura e a deambulação da gestante, o que prepara o organismo para a parturição. Essas modificações, por sua vez, parecem estar associadas à ação da relaxina e são mais evidentes na sínfise púbica, em que os ramos ósseos podem estar afastados até 2 cm. Em geral, os ligamentos estão mais frouxos e são mais complacentes à movimentação. Tais modificações são imprescindíveis para o fenômeno de expulsão fetal, pois elas permitem o aumento dos diâmetros e estreitos da pelve materna. O aumento do volume abdominal e das mamas desvia anteriormente o centro de gravidade materno. Por instinto, a gestante direciona o corpo todo posteriormente, de forma a compensar e encontrar novo eixo de equilíbrio que permita que ela se mantenha ereta. Por essa razão, surgem hiperlordose e hipercifose da coluna vertebral, aumento da base de sustentação, com afastamento dos pés e diminuição da amplitude dos passos durante a deambulação (marcha anserina). Existe, dessa forma, participação de novos grupos musculares que não são rotineiramente utilizados. Além disso, o aumento da flexão cervical causa compressão de raízes cervicais que originam os nervos ulnar e mediano, acarretando fadiga muscular, dores lombares e cervicais, e parestesias de extremidades. Sistema digestório Muitas gestantes se queixam do aumento de apetite e sede. A resistência à ação da leptina e as alterações da secreção de ADH, em nível de osmolaridade distinto da não grávida, parecem ser as explicações para tais alterações de sensibilidade na gestante. Náuseas e vômitos são ocorrências muito prevalentes no primeiro trimestre e desaparecem ao longo da gravidez. Por vezes, podem ser de difícil manejo, acompanhados de perda significativa de peso, o que configura hiperêmese gravídica. Dados recentes associam tal entidade a altos níveis de hCG circulante e alterações laboratoriais da função tireoidiana. Os aspectos emocionais e psíquicos da paciente também exercem efeito no quadro clínico. A sialorreia, ou secreção salivar exacerbada, é desencadeada por estímulo neurológico do quinto par craniano (nervo trigêmeo) e do nervo vago, e relaciona- se mais à dificuldade de deglutição decorrente das náuseas do que propriamente ao aumento de secreção salivar. As adaptações vasculares orais decorrentes dos altos níveis de esteroides sexuais circulantes causam hipertrofia e hipervascularização gengival. Tal fato resulta em gengiva edemaciada e facilmente sangrante, o que dificulta a limpeza local. O pH salivar é mais baixo, podendo propiciar proliferação bacteriana. A hipertrofia gengival acentuada com proliferação das papilas intermediárias e dos vasos locais pode eventualmente formar pseudotumores ou granulomas, os quais são denominados epúlides gravídicos. Sabe-se que a progesterona é um potente relaxante de fibras musculares lisas. O estrógeno, por sua vez, age como indutor dos efeitos progestogênicos no organismo materno. Esses efeitos levam a relaxamento do esfíncter esofágico inferior e redução de seu peristaltismo com aumento da incidência de refluxo gastroesofágico. A pirose é, portanto, queixa comum da gestante. A hipotonia da vesícula biliar, por sua vez, predispõe ao surgimento de litíase biliar, em especial pela associação com o aumento do colesterol total desde o início da gestação. A contratilidade da musculatura lisa dos intestinos também se encontra reduzida, causando obstipação. A permanência prolongada do bolo fecal no lúmen intestinal expõe os alimentos ao contato com enzimas digestivas por tempo mais prolongado e aumenta a absorção de água, o que contribui para piora da obstipação. A função hepática permanece igual à da não grávida, com exceção do transporte intraductal de sais biliares, que se apresenta parcialmente inibido, efeito secundário às ações do estrógeno e da progesterona. As concentrações séricas de fosfatase alcalina são significativamente mais elevadas no terceiro trimestre, principalmente devido à síntese placentária de fosfatase alcalina. Os níveis séricos de gama glutamiltransferase são significativamente reduzidos. Com o aumento do volume uterino, ocorrem alterações anatômicas que desviam o estômago e o apêndice para cima e para a direita de sua localização habitual, e os intestinos para a esquerda. Por vezes, o apêndice cecal ocupa o flanco direto, dificultando o diagnóstico de apendicite. Sistema respiratório As vias aéreas superiores apresentam modificações significativas durante a gestação. Ocorre ingurgitamento e edema da mucosa nasal, que se traduz em maior frequência de obstrução, sangramento e rinite durante a gravidez. O edema da mucosa também acomete a laringe e a faringe, diminuindo o lúmen dessas vias. Observam-se elevação diafragmática de aproximadamente 4 cm e maior capacidade de excursão desse músculo, que aumenta em cerca de 2 cm. A caixa torácica apresenta aumento de 5 a 7 cm em sua circunferência e 2 cm em seu diâmetro anteroposterior, com consequente ampliação dos ângulos costofrênicos (de até 35º). Presencia-se aumento do volume corrente com redução da reserva expiratória e preservação da reserva inspiratória. A elevação do volume corrente pretende suprir as demandas de oxigênio, que sofrem aumento por conta da maior massa eritrócitária e da quantidade total de hemoglobina circulante. Na capacidade inspiratória, reconhece-se o conjunto volume corrente e reserva inspiratória, enquanto a capacidade residual funcional é definida como a soma da reserva expiratória e do volume residual. Durante a gestação, ocorre deslocamento de volume entre essas duas capacidades, com acréscimo na capacidade inspiratória (pelo aumento do volume corrente, como visto anteriormente) e redução da capacidade residual funcional à custa da diminuição de seus dois componentes. A capacidade pulmonar total (somatório das duas capacidades já relatadas) está reduzida na gravidez em aproximadamente 200 mL em razão da elevação do diafragma à custa da redução do volume residual. A frequência respiratória sofre pouca ou nenhuma mudança na gravidez normal, mas o aumento de volume corrente estabelece situação de hiperventilação. Consequentemente, ocorre queda da pressão parcial de dióxido de carbono (pCO2), o que gera um gradiente entre gestante e feto, facilitando a excreção fetal. Ao mesmo tempo, o aumento do pH desvia a curva de dissociação de oxigênio para a esquerda, o que dificulta a liberação de oxigênio para os tecidos matemos. A discreta alcalose respiratória crônica é compensada pelo aumento da excreção renal de bicarbonato, com redução de seus níveis circulantes (de 26 para 22 m mol/ L) e pela produção de 2,3-difosfoglicerato, que retorna a curva de dissociação de oxigênio para a direita, garantindo liberação suficiente de oxigênio para o feto. A facilidade da movimentação do ar nas estruturas brônquicas e alveolares é resultado de ação da progesterona, que tem efeito direto na musculatura lisa dos brônquios, alémdo centro respiratório, diminuindo o limiar de estímulo desse centro pelo dióxido de carbono e aumentando a ventilação. Essas alterações do sistema respiratório causam à gestante sensação de dispneia, queixa comum que pode estar associada somente à conscientização da respiração. Sistema Urinário Modificações vasculares das arteríolas renais são fruto das adaptações circulatórias maternas. Assim, o aumento da volemia em associação com a redução da resistência vascular periférica provoca elevação do fluxo plasmático glomerular, com consequente aceleração do ritmo de filtração glomerular. Essas alterações podem ser observadas logo na décima semana de gestação, com aumento gradativo ao longo da gravidez e redução discreta próxima ao termo. A osmolaridade plasmática também se modifica na gravidez por conta da ativação do sistema renina- angiotensina-aldosterona e da redução do limiar para secreção de ADH. A liberação de ADH e o mecanismo de sede são, portanto, desencadeados por menores níveis osmóticos. Esses fatos denotam menor capacidade renal de concentrar urina. As grávidas, em geral, filtram maiores quantidades de sódio e água no glomérulo, o que é compensado por maior reabsorção tubular desses elementos, resultado da ação da aldosterona e do ADH. Ao contrário do que ocorre em mulheres não grávidas, o padrão de excreção urinária é maior à noite em função do repouso em decúbito, com maior mobilização dos fluidos extravasculares e menor capacidade de reabsorção de água livre. Dessa forma, é muito comum a queixa de noctúria durante a gravidez. Os fatores etiológicos dessas modificações relacionam-se não somente às adaptações circulatórias, mas também a substâncias que alterarão o funcionamento renal, como o óxido nítrico, a endotelina e a relaxina. Embora conhecida como potente vasoconstritor, acredita-se que o papel da endotelina nos vasos renais seja de estabilização do tônus vascular. A relaxina, por sua vez, é produzida pelo corpo lúteo e age na osmolaridade plasmática, aumentando o ritmo de filtração glomerular. Alterações do sistema urinário coletor são evidentes na gravidez. Fatores hormonais como a progesterona provocam hipotonia da musculatura dos ureteres e da bexiga, causando discreta hidronefrose e aumento do volume residual vesical. Fatores mecânicos, como aumento do plexo vascular ovariano direito, dextrorrotação e compressão extrínseca uterina, predispõem à acentuação da hidronefrose do lado direito e à redução da capacidade vesical, demonstrada por meio de polaciúria fisiológica da gravidez. A bexiga se encontra mais elevada ao longo da gestação, com retificação do trígono vesical, provocando refluxo vesicoureteral. Incontinência urinária é queixa comum, embora mecanismos protetores estejam mais desenvolvidos como aumento do comprimento absoluto e funcional da uretra e aumento da pressão intrauretral máxima. As modificações gravídicas do sistema urinário aumentam o risco de formação de cálculos e de infecções do trato urinário, estas últimas muito frequentes na gestação. Sistema nervoso central As principais queixas das gestantes quanto ao sistema nervoso central (SNC) relacionam-se a discretas alterações de memória e de concentração, geralmente no último trimestre, e sonolência. Acredita-se que a sonolência a esteja associada aos altos níveis de progesterona, hormônio conhecidamente depressor do SNC e à alcalose respiratória causada pela hiperventilação. Estudos apontam que a memória verbal e a velocidade de processamento estão menores quando em comparação a mulheres não gestantes. A lentificação geral do SNC é comum e progressiva, podendo corresponder a alterações vasculares das artérias cerebrais média e posterior. As modificações do padrão e da qualidade do sono não só aumentam a fadiga da grávida ao fim da gestação, como também podem colaborar para quadros psíquicos de blues puerperal ou até de depressão. Apesar de os episódios de apneia do sono serem menos frequentes, a posição supina piora a oxigenação da gestante, o que gera episódios de dispneia paroxística noturna. O psiquismo da mulher se modifica no ciclo gravídico-puerperal. Assim, manifestações como hiperêmese gravídica, enxaquecas e alguns distúrbios psiquiátricos (episódios conversivos ou isolados de hipomania e depressão) possivelmente se relacionam com alterações, vasculares e hormonais exclusivas da gravidez. É importante ressaltar que, por se tratar de um momento único de vivência psicológica, a maternidade pode ser acompanhada de inseguranças e dificuldades emocionais. Visão, olfato e audição Modificações da acuidade visual podem estar presentes e decorrer de alterações da córnea, como edema localizado e opacificações pigmentares. A pressão intraocular costuma estar reduzida pelo aumento da velocidade de reabsorção do humor aquoso. Como já discutido, a mucosa nasal apresenta-se edemaciada e hipervascularizada e a hiposmia pode ser uma queixa da gestante. A acuidade auditiva também pode estar discretamente comprometida, com regressão após o parto. Zumbidos e vertigem são queixas raras, mas que estão presentes em gestantes cujas modificações vasculares locais foram mais acentuadas. Modificações locais Útero Assim como ocorre com outros órgãos genitais, a coloração uterina passa a ser violácea, por causa do aumento da vascularização e da vasodilatação venosa. A retenção hídrica do espaço extravascular, por sua vez, torna a consistência do útero amolecida, em especial na região de implantação ovular, onde as influências mecânicas e humorais são mais diretas e, portanto, mais intensas. A consistência uterina se modifica na vigência de contração uterina ou aumento do tônus muscular, o que pode ser notado pela palpação abdominal a partir da segunda metade da gravidez. Embora retorne a posição, forma e consistência pré-gestacionais após o puerpério, com redução significativa de suas dimensões, o útero mantém tamanho pouco maior progressivamente a cada gestação. O útero origina- se da fusão dos duetos de Müller e divide-se em porções e camadas. As dimensões, a forma e a posição do útero alteram- -se ao longo da gravidez de forma sincrônica e progressiva. Assim, nota-se que até 12 semanas o útero é um órgão intrapélvico, com forma assimétrica decorrente da implantação localizada do embrião (sinal de Piscacek). A partir disso e até 20 semanas de gestação, assume a forma esférica e deixa de se localizar exclusivamente na região pélvica para se tomar um órgão abdominal. E nesse momento que o peso uterino e o amolecimento dos tecidos adjacentes levam-no a ocupar os fórnices laterais da vagina (sinal de Noble-Budin). Com o contínuo crescimento uterino, a anteversoflexão reduz-se, aliviando os sintomas de polaciúria, o que acompanha de dextrorrotação do útero, fenômeno no qual o útero se desvia para a direita e gira, levando a borda esquerda para a região anterior e a direita para a posterior. No início da segunda metade da gestação, por conta da hipertrofia das fibras musculares uterinas, pode haver comprometimento vascular com isquemia relativa. Por essa razão, o útero sofre fenômeno de conversão, ou seja, de mudança de forma para melhor suprimento sanguíneo local, com alongamento dessas fibras. A forma esférica do útero se transforma, assim, em cilíndrica, por conta do crescimento do concepto, com incorporação do istmo à cavidade uterina. Novo momento de isquemia relativa ocorre próximo ao parto, quando as fibras musculares atingem sua capacidade máxima de distensão. Miométrio As alterações de sua fração solúvel e da matriz extracelular causam afastamento das fibras musculares que, simultaneamente à retenção hídrica da embebição gravídica sistêmica, justificam as modificações de sua consistência. As fibras musculares do miométrio uterino se modificam substancialmente na gravidez, caracterizando-se três tipos de alterações: hiperplasia,hipertrofia e alongamento. A disposição das fibras musculares do miométrio se dá de forma a convergir dois sistemas de fibras, que se originam de forma circular em torno das tubas uterinas e se encontram na região mediana. Em sua distribuição, as fibras musculares partem de determinado local na espessura do órgão e se dirigem para o interior, próximo à cavidade uterina, apresentando, portanto, diferentes comprimentos. Esse complexo arranjo das fibras musculares (de fora para dentro e de cima para baixo) permite que o útero se distenda e cresça em todas as suas dimensões, como uma espiral estirada. Vascularização e inervação O útero é o órgão em que ocorre o fenômeno de hipervascularização mais intenso. O fluxo sanguíneo local, que fora do período gestacional é de 50 mL/min, chega a valores entre 500 e 700 mL/min. 84 A perfusão uterina é extremamente abundante, com surgimento de novos vasos e aumento da capacidade dos já existentes. As principais artérias que participam do suprimento sanguíneo do útero são as uterinas (ramos das artérias ilíacas internas, antigamente denominadas artérias hipogástricas) e as ovarianas (ramos diretos da aorta, responsáveis por até um terço da perfusão do órgão). Por esse motivo, a histerotomia segmentar transversa é preferencialmente utilizada, com o intuito de reduzir as perdas sanguíneas e, com lesão de menor número de fibras musculares, proporcionar cicatrização de melhor qualidade. O aumento do calibre e da capacidade de distensão das veias se deve à redução da quantidade de elastina e da concentração de terminações nervosas adrenérgicas em suas paredes. O local de inserção placentária modifica a drenagem venosa: se a placenta estiver inserida no corpo ou segmento uterinos, seu retorno venoso será realizado em maior parte pela veia uterina ipsilateral, enquanto as placentas fúndicas serão drenadas pelas veias ovarianas. A elevação dos níveis séricos de estrógeno e de progesterona ao longo da gravidez aumenta o fluxo sanguíneo do compartimento uteroplacentário por meio da vasodilatação. O compartimento fetoplacentário, por sua vez, contribui para esse mesmo mecanismo por meio das ondas de invasão trofoblástica, que aumentam o número de vasos fetoplacentários e destroem a camada média das arteríolas espiraladas, transformando-as em uteroplacentárias. Observam-se, dessa forma, o aumento do fluxo e a redução da resistência das artérias uterinas. Istmo A alteração da consistência do istmo, com consequente edema e amolecimento do local, coincide com o alongamento da região e, ao toque vaginal combinado, é possível notar aumento da anteversoflexão uterina (sinal de Hegar), responsável pela polaciúria comum no início da gestação. O istmo se alonga entre 8 e 12 semanas de gestação, para posteriormente incorporar-se ao corpo uterino com até 16 semanas, por meio de dilatação do orifício interno anatômico. Colo uterino Na gestação normal, ocorrem modificações no colo uterino secundárias às alterações hormonais e vasculares, embora menos pronunciadas que as alterações uterinas. A presença de ectopia do epitélio endocervical e sua exposição ao conteúdo vaginal mais ácido provocam metaplasia escamosa do epitélio cilíndrico. É ocorrência comum em situações em que há elevados níveis de progesterona circulante. O aumento da vascularização modifica a coloração habitualmente rósea do colo uterino para violácea. Ocorre reação decidual em células estromais que, em conjunto com o edema local, confere ao colo uterino consistência amolecida. É a partir de 16 semanas de gestação que o amolecimento do colo uterino modifica sua consistência, passando de uma consistência semelhante à da cartilagem nasal para uma consistência similar à do lábio (regra de Goodell). A hipertrofia glandular da endocérvix desencadeia maior produção de muco, espesso e viscoso, denominado rolha de Schrõeder. Sua cristalização não costuma ocorrer na grávida, apresentando aspecto amorfo à microscopia por causa dos altos níveis de progesterona. No entanto, pode eventualmente se cristalizar na presença de líquido amniótico. O muco cervical da gestante é rico em imunoglobulinas e citocinas, funcionando mecânica e imunologicamente como proteção contra a ascensão de microrganismos. Sua eliminação acontece na presença de dilatação de qualquer ordem (prematura ou oportuna, por contrações ou incompetência cervical). Ao fim da gravidez e durante o parto, a cérvix passa por processo de colagenólise e desestruturação do tecido conjuntivo, que sustenta o arcabouço do colo uterino, na intenção de prepará-lo para esvaecimento e dilatação. Uma série de substâncias participam desse processo, como prostaglandinas, ácido hialurônico, enzimas proteolíticas (colagenases e elastases), mediadores inflamatórios e água. Ovários Os ovários têm importância crucial no início da gravidez, mais especificamente até a sétima semana. E nessa etapa que o corpo lúteo, que geralmente se mantém por 2 semanas após a ovulação ou durante a segunda metade do ciclo menstrual, transforma-se em corpo lúteo gravídico. Seu crescimento e manutenção são assegurados pelos altos níveis de hCG produzidos pelas células trofoblásticas. O principal papel do corpo lúteo gravídico é fornecer progesterona em níveis suficientes para a deciduação do endométrio, com consequente nidação do blastocisto, até o momento em que o trofoblasto seja capaz de produzir progesterona de forma autônoma e em quantidades adequadas para a manutenção da gestação. O corpo lúteo gravídico começa a regredir no primeiro trimestre (por volta de 12 semanas), por conta da redução e da estabilização dos níveis circulantes de hCG. Tubas uterinas e ligamentos As tubas uterinas, que no início da gravidez são praticamente perpendiculares ao maior eixo uterino, estiram- se por conta do crescimento do útero e por ele são levadas a ocupar posição vertical, paralela ao corpo uterino. Ocorre, dessa forma, hipertrofia muscular, embora discreta. A vascularização local é intensa, como nos ovários, alterando a cor das tubas, especialmente das fímbrias. A reação de deciduação irregular e descontínua é vista na camada interna, com perda do aparelho ciliar dessas células. Dependendo da localização placentária, os ligamentos redondos, assim como os anexos, podem se apresentar estirados na face oposta à da inserção da placenta (sinal de Palm). Vagina A hipervascularização local provoca hiperemia e edema da mucosa vaginal. Já no início da gestação, a coloração avermelhada se torna arroxeada pela retenção sanguínea nos vasos venosos, o que se denomina sinal de Kluge. O aumento do diâmetro das artérias vaginais permite sentir sua pulsação nos fórnices laterais (sinal de Osiander). Ocorre hipertrofia das células musculares, bem como do tecido conjuntivo, o que, em conjunto com o acúmulo hídrico, aumenta a espessura e elasticidade da mucosa vaginal. Essas alterações levam à redução da rugosidade mucosa e garantem a distensão necessária do órgão para formação do canal de parto em momento oportuno. Os elevados níveis de progesterona circulante promovem alterações celulares locais similares às do período secretor do ciclo menstrual, contudo, mais intensas e duradouras. Por esse motivo, o acúmulo de glicogênio e a maior descamação celular servem de substrato para proliferação de Lactobacillus acidophilus. O consumo do excesso de glicogênio por esses microrganismos gera maior produção de ácido láctico, com consequente diminuição do pH da vagina. O pH vaginal, que na gravidez encontra-se em torno de 3,5 a 6, tem papel protetor contra infecções bacterianas locais, mas pode predispor a infecções fúngicas. Vulva A vulva da mulher grávida experimenta as mesmas modificações relacionadas a alterações vasculares e pigmentares que a vagina. É comum que a pele da raiz das coxas e dos grandes lábios se apresente com manchas hipercrômias. A coloração arroxeada decorrenteda hipervascularização local é denominada sinal de Jacquemier-Chadwick. A retenção de líquidos no espaço extravascular causa edema do vestíbulo vaginal, que funciona como coxim protetor no momento do parto. Mamas As modificações das glândulas mamárias são evidentes desde o início da gestação. A gestante se queixa com frequência de dor e hipersensibilidade mamária já no primeiro trimestre e costuma apresentar melhora com o decorrer da gravidez. A produção hormonal de estrógeno e de progesterona pela unidade placentária e a produção de prolactina pela hipófise materna promovem o crescimento e o desenvolvimento mamário necessários para o processo de lactação no pós-parto. É por meio de mecanismos de hiperplasia e diferenciação celular que essas moléculas modificarão por completo a mama. O aumento volumétrico das mamas é observado a partir da sexta semana de gravidez. O mamilo se torna mais pigmentado e sensível. A papila se apresenta mais saliente, pois está com maior capacidade erétil. A hiperpigmentação areolar faz com que o mamilo tenha cor acastanhada, com surgimento de coloração externa aos limites originais da aréola mais clara que ela, contudo, mais escura que a pele das mamas. A esse contorno de limites imprecisos que circunda a aréola dá-se o nome de aréola secundária ou sinal de Hunter. Há hipertrofia das glândulas sebáceas do mamilo, que formam elevações visíveis, os tubérculos de Montgomery. A pele das mamas pode apresentar estrias secundárias aos elevados níveis de cortisol associados à distensão local. A hipervascularização do tecido glandular torna visível a rede venosa sob a pele, chamada de rede de Haller. A partir da segunda metade da gravidez, é possível visualizar a saída de colostro pelas papilas à expressão mamária.
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