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ASPECTOS DO ARQUÉTIPO FEMININO: EVA E LILITH, O LADO LUMINOSO E O LADO SOMBRIO DA PSIQUE FEMININA Andrea Camila Queiroz da Rocha Pitta - andreacpitta@gmail.com Nina Gomes Silva Dutra Neto - ninanetto22@hotmail.com Ana Lúcia Ramos Pandini - analucia.pandini@mackenzie.com.br Introdução: A contemporaneidade é marcada por lutas e movimentos sociais que possuem o objetivo de reivindicar direitos de classe, raça e gênero. O movimento feminista possui forte impacto na ressignificação do papel e da visão social sobre a mulher, buscando quebrar a visão judaico-cristã patriarcalista na qual “sempre houve uma clara divisão do que era atribuído ao homem e à mulher. Essa visão vem sendo reforçada há mais de dois mil anos e relaciona o princípio feminino com a natureza, a passividade, a receptividade, a geração de vida, a materialidade, a escuridão e a emotividade” (PIRES, 2008, p. 9). Tal concepção do feminino é atribuída à figura mitológica de Eva, mulher de Adão no mito da criação. Contudo ela questiona o porquê da sua submissividade Na atualidade, com o movimento feminista efervescente, nos deparamos com a ascensão da figura mitológica de Lilith, primeira mulher de Adão (anterior a Eva). “Lilith insiste: porque ser dominada por você? Contudo fui feita de pó e por isso sou tua igual. Ela pede para inverter as posições sexuais para estabelecer uma paridade, uma harmonia que deve significar a igualdade entre os dois corpos e as duas almas” (PAIVA, 1989, p. 61) incitando a ira de Adão e Jeová, sendo expulsa do Éden e transformada na mãe dos demônios. Após essa declaração provava a fúria de Adão e Jeová, a expulsando do Éden. Com o movimento feminista trazendo Lilith de volta das sombras, "o século XX abriu a possibilidade de reintegração de Lilith e Eva numa mesma unidade, numa síntese nova, nos modelos diferenciados vividos menos heroicamente por um número cada vez maior de homens e mulheres" (SICUTERI, 1987). Porém, por mais que exista a possibilidade de integração desses aspectos do feminino, as mulheres encontram-se angustiadas pelo fato de que “para serem respeitadas, elas devem seguir o padrão adulto universal, produzindo, pensando, agindo e trabalhando autonomamente como os homens. Para ser amadas, devem assumir atitudes tidas como femininas, ou seja, frágeis, dependentes, emotivas, amorosas e inconstantes - uma exigência social dúbia e contraditória.” (PIRES, 2008, p. 10). Essa situação gera a polarização nos modelos de adaptação, sendo a emancipação da mulher relacionada à Lilith e a submissão, à Eva. Há uma forte ambiguidade geradora de conflitos internos, uma vez que as mulheres são pressionadas socialmente para manter padrões antigos e ao mesmo tempo ocupar novos espaços em ordem de sobreviver à modernidade. A mitologia é fundamental em estudos Junguianos, uma vez que segundo Boechat (2008), a psicologia analítica debruça-se sobre os mitos, vendo neles uma maneira de entender o processo de individuação e o pensamento inconsciente. Sendo assim, os mitos são uma maneira de compreender os conteúdos simbólicos da psique. Joseph Campbell (1990) descreve quatro funções do mito, sendo essas formas pelas quais o mito é capaz de moldar a realidade. A primeira função é a Mística/Metafísica, que reconhece o aspecto misterioso do universo e o aceita, promovendo desenvolvimento por meio de consciência de algo além de nossa compreensão. A segunda função é a Cosmológica, na qual o mito e a realidade se constelam na tentativa de compreender os mistérios do mundo, promovendo sentido a quem somos e onde estamos. A terceira função é a Sociológica, responsável por oferecer “suporte e validação de determinada ordem social” (CAMPBELL, 1990, p. 45). Isso significa que varia de lugar para lugar, sendo parte essencial das diferentes culturas por obter um olhar particular às questões universais. De acordo com Campbell (1990), a Função Sociológica assumiu direção do mundo e atualmente encontra-se desatualizada por fundamentar visões ultrapassadas. A quarta função do mito é a Pedagógica ou Psicológica, reconhecida pelo autor como a mais importante por moldar a forma de sobrevivência sob quaisquer circunstâncias, e portanto, os mitos possibilitam a compreensão da psique humana, contendo conteúdos expressos de formas simbólicas. Eva foi criada com o objetivo de ser totalmente oposta a Lilith e, como diz Pires (2008), a figura mítica de Eva é aceita como modelo social a ser seguido enquanto a de Lilith deve ser reprimida ou rejeitada. Sendo assim, essa pesquisa justifica-se por analisar os aspectos de Eva e Lilith como complementares e não opostos, buscando formas de integração dos aspectos sombrio e luminoso do arquétipo feminino como ferramenta de autoconhecimento e empoderamento. Objetivos: O objetivo geral proposto é compreender Eva e Lilith como aspectos complementares do arquétipo feminino através da caracterização da simbologia de seus aspectos, da investigação de como esses aspectos influenciam a consciência individual e a cultura e da análise das formas de sua integração na consciência das mulheres. Método: O tema será desenvolvido a partir de abordagem de caráter qualitativo, enfatizando as pesquisadores como sujeitos e a relevância de suas ideias, intuições e opções, para geração de conhecimento. O material utilizado para a elaboração dessa pesquisa é composto de fontes primárias de textos contemporâneos do estudo do feminino e dos arquétipos envolvidos. A análise dos dados desta pesquisa foi realizada à luz da Psicologia Analítica. A partir de uma sistematização, o método junguiano de metodologia é estruturado, segundo Penna (2005), em três aspectos, formando um paradigma: ontológico, epistemológico e metodológico. Os três devem se entrelaçar de tal maneira que o resultado seja coerente e compatível e único de cada indivíduo. A coleta de dados foi realizada através de pesquisa documental com base na pesquisa de livros e artigos científicos da psicologia análitica. Discussão: Foi possível perceber as representações das figuras de Eva e Lilith ao longo de toda história e construção cultural do ocidente. Ao analisar esses aspectos do arquétipo feminino, fica clara a influência do Livro do Gênesis que, até hoje, permeia a cultura ocidental. Conforme Boechat (2008), as sociedades não seriam capazes de se organizar sem a mitologia. Tal afirmação advém das funções descritas por Campbell quanto aos mitos, mais especificamente da função sociológica que nos permite afirmar que “o mito da criação bíblica, assim como a história da criação em outras culturas, transmite valores sociais e religiosos, apresentando-os como universalmente válidos” (PIRES, 2008, p. 55). Vale ressaltar que, de acordo com Barthes (1997), o mito é sempre uma metalinguagem cuja interpretação é realizada de acordo com os interesses do sistema vigente, a fim de favorecê-lo. Dessa forma, “a história de Eva é interpretada pela maioria das igrejas cristãs como prova natural da fraqueza e credulidade da mulher, definindo seu papel de se submeter calada ao marido e adaptar-se à função doméstica tradicional” (PIRES, 2008, p. 56) uma vez que “a versão primitiva do mito, no qual Lilith foi feita do mesmo pó que Adão, não seria aceitável para a cultura tradicional hebraica, pois romperia com o domínio patriarcal.” (PIRES, 2008, p. 44). A dominação feminina por parte dos homens tem respaldo sagrado, e tem suas características enraizadas desde o momento em que o ser humano criou a noção de propriedade e de hereditariedade, tomando posse da figura feminina, que se aproxima da representação de Eva, então reduziu-a ao papel da maternidade e submissividade. Eva, desta maneira, representa a mulher ideal, principalmente quando em comparação com Lilith, tornando-se o complementar oposto do homem, representando sentimentos relacionados até hoje com a figura feminina como a dependência e o sentimentalismo exacerbado. Nesse sentido, segundo a cultura judaico-cristã, a mulher nasce Eva. Já o mito de Lilith segundo Koltuv (2017), é repleto de imagens de humilhação, diminuição,fuga e desolação, sucedidas por raiva na pele de uma mulher maligna e sedutora. Essa é a imagem arquetípica que permeia a imagem de Lilith, o lado sombrio da psique feminina, o lado que possui desejos e sexualidades ilícitas não aceitos pela cultura patriarcal. Contudo, a figura de Lilith ameaça o sistema patriarcal. “Lilith representa o aspecto sombrio do feminino reprimido na consciência; por esse motivo, todos os seus aspectos femininos tornaram-se temíveis.” (PIRES, 2008, p. 45). Essa representação toma força a partir da luta feminista, e a emancipação que representa desde a primeira onda. Com a forte dominação dos homens, embasados em ideias bíblicas seguidas cegamente “o mito da criação emerge, transformando-se numa alegoria cuja moral permite o castigo de Lilith - a mulher rebelde e, por isso, prostituta e diaba, pois pecou ao exigir independência e autodeterminação.” (PIRES, 2008, p. 48). A mulher, enquanto dominada pela figura masculina, deveria seguir a cultura patriarcal e aceitar seus princípios corruptos, como visto tanto em Eva quanto em Lilith, que permeiam o regime noturno de Durand (1979), representado por trevas, profundidade, maternidade, intimidade, regeneração e transformação; representações intimamente ligadas as histórias de Eva e Lilith. Com o passar do tempo e com a universalização do conhecimento, questionamentos foram surgindo para o fim de transformar o papel imposto para a mulher, tomando forma desde a primeira onda até o feminismo contemporâneo que ainda luta contra a imposição e violência masculina e dominação contra mulheres. O direito ao voto e a cidadania, a inclusão no mercado de trabalho e a liberdade sexual e de reprodução ressurgiu com tais elementos da figura feminina, relacionando-a a inconformidade de Lilith. O aspecto arquetípico de Lilith na psique feminina, reprimido na sociedade patriarcal por sua natureza independente e livre, está emergente devido a revolução feminista. É o responsável pelo protesto feminino diante da imposição divina de sua inferioridade e da sua dominação pelo homem (PAIVA, 1989). A sombra que antes era temida está se tornando criativa e transformadora. Com essa análise, fica claro que a luta pela participação política das mulheres na sociedade abre portas para discussões sobre o papel do feminino nela, apoderando-se de espaços criados intencionalmente como mecanismos de exploração e manipulação e os transformando em espaços de luta e de possibilidade. Conclusão: A ideia de uma “boa mulher” e uma “má mulher” nesse trabalho encarnadas por Eva e Lilith prevalece até os dias atuais. Segundo Silveira (1981, p. 43) o combate entre opostos é vivenciado pelas pessoas em todos os tempos, porém em algum momento desse jogo entre tensões opostas resulta a liberação de reativos excedentes de energia e o natural estabelecimento de declives por onde se escoe esta energia livre. “A jornada da individuação - a busca psicológica da integridade - termina na união dos opostos” (PIRES, 2008, p. 129). A função transcendente reúne os pólos opostos da psique e, nesse caso, o luminoso (Eva) e o sombrio (Lilith) da psique feminina, ajudando o self a se manifestar através da articulação dos conteúdos conscientes e inconscientes. “É impossível conhecer a mulher ou ser uma mulher sem o encontro tanto com Lilith quanto com Eva.” (PIRES, 2008, p. 44). É a partir da função transcendente que ocorre a mudança psíquica e o surgimento de uma outra posição -Não Eva, não Lilith- mas uma que surge por meio de conflito das duas imagens, que com o passar do tempo sofrem transformações e abrangem mais e mais mulheres, possibilitado pela inquietude questionadora que ambas possuem. De acordo com Pires (2008), Lilith e Eva são partes de um todo capaz de integrar sombra e luz, permitindo as mulheres conhecerem sua profundidade e limitações. O equilíbrio encontra-se, então, na não polarização e sim em permitir-se transitar entre o luminoso e o sombrio, favorecendo o processo de individuação. Referências bibliográficas: BARTHES, ROLAND. Mitologias. Lisboa: Edições 70, 1997. BOECHAT, W. A mitopoese da psique: mito e individuação. Rio de Janeiro: Vozes, 2008. CAMPBELL, Joseph. O Poder do Mito. tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Athena, 1990. DURAND, Gilbert. A Imaginação Simbólica. Trad. de Maria de Fátima Morna. Lisboa: Arcádia, 1979. NOGUERA, R. Mulheres e deusas. Como as divindades e os mitos formaram a mulher atual. Rio de Janeiro: Harper Collins, 2017. PAIVA,Vera. Evas, Marias, Liliths: As voltas do feminino. São Paulo: Brasiliense, 1989. PIRES, V. F. Lilith e Eva: Imagens arquetípicas da mulher na atualidade. São Paulo: Summus, 2008. PENNA, E. M. D.O paradigma Junguiano no contexto da metodologia qualitativa em psicologia. In Psicologia USP, São Paulo, v.16, n.3, 2005. SICUTERI, R. Lilith: A Lua Negra. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Palavras-Chave: arquétipo feminino, integração, empoderamento feminino, Lilith, Eva.
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