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A política da abolição o rei contra os barões - J.M. de Carvalho

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A política da abolição: o rei contra os barões
J.M. de Carvalho
1. Introdução.
	O processo de abolição da escravidão, compreendido como a série de políticas públicas que culminaram no fim da instituição servil de trabalho no Brasil, pode ser encarado como aquele que mais coloca em evidência os conflitos de interesse e motivações do pólo burocrático do poder e do pólo econômico deste mesmo poder. E tratar da questão escravista era algo extremamente delicado, uma vez que tal instituição encontrava-se profundamente enraizada à realidade brasileira e aos interesses dos grupos dominantes; para perceber-se esta profunda relação, basta observamos, por exemplo, que, à exceção da Revolta dos Malês, nenhuma outra revolta do conturbado período regencial levantou o tema do fim da escravidão; e para observamos a relação entre a escravidão e a classe economicamente dominante, basta ver que José Bonifácio rejeitou a exigência inglesa pela abolição imediata e definitiva do tráfico no Brasil ao considerar que isto seria um autêntico suicídio político. 
2. Extinção do Tráfico Negreiro.
	Do crescendo da pressão inglesa, iniciada já em 1810 sobre o governo português e estendendo-se até 1831, com a aprovação da lei que abolia o tráfico no Brasil apenas “para inglês ver”, percebe-se tanto o aumento da pressão inglesa pelo término efetivo do tráfico negreiro quanto o desinteresse nacional em fazê-lo efetivamente. Prevaleciam, então, os interesses econômicos, uma vez que a convicção dominante era a de que a falta de mão-de-obra que a extinção traria significaria a ruína da economia brasileira. E esta falta de ação efetiva contra o tráfico prolongou-se tanto nos governos liberais quanto nos conservadores. 
	Em 1844, a pressão inglesa recrudesce. A promulgação do Bill Aberdeen, em 1845, geraria uma verdadeira onda de sentimento nacionalista, sobretudo em função das intrusões inglesas e de suas ações arrogantes nos próprios portos brasileiros em caça aos navios negreiros. Nesse contexto, é interessante observar que partidários do fim e da continuação do tráfico negreiro uniram-se sob uma mesma bandeira na defesa da soberania nacional. 
	Como a opinião política era a de que o Brasil não possuía condições morais e materiais de resistir à pressão quase bélica dos ingleses, o governo, então formado pela ala conservadora, começou a buscar uma lei propriamente brasileira para tratar o tráfico. Além disso, o enorme afluxo de escravos nos anos que se seguiram ao Bill Aberdeen (reflexo do aumento da demanda, já que se acreditava próximo o fim do tráfico, fazendo com que os traficantes aceitassem o maior risco que era colocado pela pressão inglesa) teve duas conseqüências principais: primeiro, criava-se no Brasil o temor de que a desproporção entre o número de negros e de brancos, que era agravada pela entrada crescente de escravos, viesse a provocar aqui uma situação semelhante à do Haiti; em segundo lugar, tendo-se abastecido de um número significativo de escravos, os senhores de engenho viam suas dívidas frente aos traficantes crescer, de modo que lhes começava a surgir como economicamente interessante o próprio fim do tráfico. 
	Neste contexto, é aprovada a lei brasileira que extingue o tráfico em 1845. Por ela, os compradores de escravos seriam julgados por júri, o que na prática era o mesmo que anistiá-los completamente. As medidas contra os traficantes, em sua maioria portugueses, porém, foram severas: julgados pela auditoria das Marinha, muitos foram presos e até mesmo deportados do Brasil. 
	É certo, porém, que nos anos subseqüentes à lei, o tráfico teria novos estímulos econômicos: calcula-se que o preço dos escravos duplicou entre 1852 e 1854, reflexo da absorção na lavoura cafeeira do grande número de escravos importados após a Bill Aberdeen. No entanto, o governo estava suficientemente aparelhado para evitar que isto se passasse: o regresso conservador, centralizando o poder na década de 1840, criara os instrumentos necessários para que a política notadamente liberal da abolição do tráfico pudesse ser levada a cabo.
	As discussões que se seguiram à aprovação da lei Eusébio de Queiroz são particularmente interessantes por evidenciarem as disputas políticas e econômicas da época. Os liberais afirmavam que os conservadores haviam aprovado a lei exclusivamente em função da pressão inglesa e se eram favoráveis à sua aprovação, afirmavam ser muito críticos ao fato de terem os então governistas cedido exclusivamente à pressão externa. Por sua vez, os conservadores afirmavam que a pressão inglesa apenas fizera aumentar o tráfico e que fora apenas em função das medidas efetivas do governo que se colocara um ponto final à questão. 
	
3. A Lei do Ventre Livre.
	Após 1850, ficou evidente que a abolição do tráfico era o máximo que se dispunham fazer os políticos nacionais, tanto é que duas tentativas de apresentar leis referentes à liberdade do ventre das mulheres escravas, uma ainda em 1850 e outra em 1852, foram completamente rechaçadas e não chegaram nem mesmo a serem discutidas. 
	O tema voltaria à pauta apenas em 1866 e de uma maneira extremamente peculiar: proposta pelo próprio imperador. Segundo Nabuco, tal proposta “teve o efeito de um raio caindo de céu sem nuvens”; até hoje, as motivações de D. Pedro II não estão claras e apesar muitos consideraram-na simples desatino monárquico e inconseqüência política, o imperador manteve uma influência constante e determinante sobre o tema, até sua aprovação em 1871. 
	Colocada a pauta, surgiram duas posições distintas. Por um lado, havia críticos abertos à atitude do imperador, alegando que nada justificava aquela discussão, afinal o país não estava diante de qualquer pressão externa ou interna e a situação bélica do período tornava extremamente arriscado discutir um tema como aquele, sobretudo porque as tropas brasileiras estavam mobilizadas e o contingente não poderia ser rapidamente mobilizado para conter revoltas excitadas pelas medidas que se propunha votar. Por outro, havia os que afirmavam que o Brasil teria de enfrentar a questão da escravidão cedo ou tarde, e que era melhor fazê-lo de maneira lenta, gradual e controlada, de modo que a evitar que os próprios escravos viessem a requerer a liberdade por vias revolucionárias; além ,estes apoiadores do projeto afirmavam que não tardariam as pressões dos EUA e da Europa para que o Brasil abolisse de uma vez por todas a sua instituição escravista, uma vez que ela permitia aos produtos nacionais competir a preços muito mais baixos no mercado internacional. 
	O resultado foi a percepção de que “o mal menor à sociedade seria a abolição gradual, acompanhada de medidas acauteladoras para enfrentar o provável aumento das inquietações escravas e mesmo possíveis rebeliões” e que “a abolição imediata parecia a todos impraticável pois perturbaria toda a produção e, a ser feita com indenização, arruinaria as finanças do país”. Apesar desta percepção, a classe dominante mais interessada na questão não deixou de expressar suas opiniões: não faltaram representações dos cafeicultores do sudeste afirmando que a lei tirar-lhes-ia a autoridade frente ao escravo, já que o Estado “pela primeira vez propunha a intrometer-se nas relações senhor/escravo, dando ao segundo um ponto de apoio legal para aspirar à liberdade ou mesmo a rebelar-se”. 
	A votação desta lei causaria profundos abalos na estrutura política em que se assentara o império até então. Logo de início, fica evidente a divisão da opinião dos deputados de acordo com a região de origem: concentrando a maior massa escrava da época, sendo demandante crescente de mão-de-obra em função da expansão da economia cafeeira e sendo responsável por mais da metade das exportações brasileiras, o centro-sul votou maciçamente contra a medida; já o nordeste, que vira seu plantel escravista diminuído pelo comércio inter-regional de escravos que levara a cabo, mostrava-se relativamente indiferente à lei e foi pela manipulação dos interesses deles que se pôde aprovar a lei. 
	Além disso, é possível separaros deputados em função da ocupação: ao passo que os funcionários públicos, advindos sobretudo das províncias do nordeste, votaram em peso a favor da lei, os profissionais liberais, sobretudo advindos do sudeste, não chegaram aos 49% na aprovação da lei. 
	Por fim, cabe ressaltar que foi um gabinete conservador que levou a cabo o projeto levantado pelo imperador; como a Lei do Ventre Livre possuía caracteres extremamente liberais, tanto é que o projeto abolicionista havia sido incorporado no programa do Partido Liberal em 1869, não tardou para surgisse a cisão no interior do Partido Conservador. Por outro lado, os liberais ficaram em uma posição dúbia: se votassem a favor do governo, perderiam o caráter de oposição aos conservadores, mas se votassem contra, não permitiriam que passasse uma lei que estava em seu próprio programa político. Assim, houve cisão também no Partido Liberal, com conseqüências profundas para o andamento da política nacional: “perante o desânimo do Partido Liberal, não faltavam os que começassem a sentir atração pelo recém-formado Partido Republicano: ‘aqui não havia Republicanos, e agora não somente os há, como não há liberal que não se mostre disposto a sê-lo: na grande propriedade então parece firmado o divórcio com a monarquia’, diria [...] Leão Veloso”. 
	Após este revolver político que representou a aprovação da Lei do Ventre Livre, sua aplicação não apresentou grandes resistências. O único problema era instituir o corpo burocrático necessário para levar adiante os processos de emancipação dos cativos que atingissem a idade e as condições previstas por lei. No entanto, os senhores de escravos geralmente não apresentavam maiores resistências a libertar aqueles que o deviam ser por lei, sendo que, não raro, faziam manumissões por conta própria, de modo que sua autoridade frente ao plantel fosse continuamente reforçada naquele momento em que o fim efetivo da escravidão parecia questão de tempo. 
	Outro ponto crucial que emerge da discussão da aprovação da Lei do Ventre Livre é a de que o governo estava longe de ser um reduto de interesses escravistas. “Distinguiam-se assim os atores e os parâmetros decisórios de 1871 dos de 1850. No último caso, o governo reagira à forte pressão externa e implementara pela força a decisão tomada, enfrentando a forte oposição dos traficantes [...]. Estava em questão, antes de tudo, a soberania nacional. Em 1871, o jogo todo foi interno [...]. A iniciativa foi sem dúvida da Coroa [...]”. Desse modo, “a lei tivera o sentido inequívoco de tornar indiscutível o fim próximo da escravidão e de mostrar aos escravistas que não teriam a Coroa a seu lado”. 
3. Conclusão do Processo Emancipacionista. 
	A última fase antes da abolição da escravidão marca-se por um elemento até então inédito na sociedade brasileira: a efetivamente maior mobilização popular em prol de uma causa política, que no caso se fez representar pelos movimentos abolicionistas. 
	Embora tais movimentos tenham sofrido um arrefecimento em 1885, com a aprovação da Lei do Sexagenário, em 1887 estava evidente que seu poder era irresistível; em São Paulo, compunham as fileiras abolicionistas uma pequena burguesia urbana (cocheiros, ferroviários, tipógrafos etc.), oficiais do Exército, estudantes e intelectuais. Além disso, a Coroa mostrava-se extremamente favorável às propostas abolicionistas: os netos do imperador editavam um jornal abolicionista de dentro da Corte, títulos de nobreza eram oferecidos a fazendeiros que libertassem seus plantéis e D. Pedro II e a Princesa Isabel manifestavam-se pessoalmente favoráveis à causa abolicionista. 
	Diante da pressão interna crescente, em 1887 tanto os republicanos quanto os conservadores assumem a abolição em seus programas políticos e o Exército publica um manifesto recusando-se a perseguir escravos fugidos. A escravidão não mais se podia suster. 
	Apercebendo-se do agravamento conjuntural, mesmo os proprietários de terras do sudeste resolveram praticar a libertação voluntária de muitos escravos; além disso, não raro nestes últimos anos de escravidão, muitos fazendeiros paulistas contratavam a salários negros fugidos pela ação dos abolicionistas. A questão da mão-de-obra, porquanto não representasse problemas maiores no norte/nordeste (onde prevaleciam, respectivamente, economias de subsistência ou de pequena propriedade, e onde a mão-de-obra livre era relativamente abundante), era ainda um problema chave no sudeste cafeicultor, que se resolveria principalmente pelo estímulo à imigração, embora os proprietários desta região continuassem, até o fim, a utilizar a força de trabalho cativa em união com a mão-de-obra européia imigrada. 
	Frente a todas estas alterações circunstanciais, viria a Lei Áurea arrematar legalmente uma situação que de fato já se tinha alterado irreversivelmente. 
	
4. Conclusões.
	O texto de Carvalho evidencia que a política nacional não era conduzida apenas em prol dos interesses dos grandes proprietários ou dos escravistas e que a Coroa tinha incentivos e motivações que não raro se opuseram abertamente àqueles interesses. Dada a existência do Poder Moderador, tal monarquia era capaz de organizar-se politicamente para pressionar os ministérios conservador e liberal (também longe de serem compostos apenas pelos interesses das classes dos proprietários rurais) a passar seus projetos de interesse.
	“Pode-se dizer que o sistema imperial começou a cair em 1871 após a Lei do Ventre Livre. Foi a primeira clara indicação de divórcio entre o rei e os barões, que viram a Lei como loucura dinástica. O divórcio acentuou-se com a Lei do Sexagenário e com a abolição final”. Assim, opondo-se aos interesses das classes economicamente dominantes (que não tardariam a aderir ao republicanismo) “ao invés de ver-se legitimado pela atuação reformista, pela eficácia em solucionar problemas, o sistema imperial perdeu a legitimidade que conquistara. É que as principais reformas que promovera atendiam aos interesses majoritários da população que não podia representar-se politicamente”.

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