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Edison Trombeta de Oliveira, Soellyn Bataliotti e Lais Benedetto Libras 03 Sumário CAPÍTULO 3 – História da Educação de Surdos e a Língua de Sinais ...................................05 Introdução ....................................................................................................................05 3.1 História da educação de surdos .................................................................................05 3.1.1 A surdez e a educação dos surdos no mundo .....................................................05 3.1.2 A história da surdez e da educação dos surdos no Brasil ......................................12 3.2 Escolas bilíngues para surdos ....................................................................................14 3.2.1 Escolas bilíngues no Decreto Federal nº 5.626/2005 ..........................................15 3.2.2 Escolas bilíngues na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educa- ção Inclusiva ...........................................................................................................17 Síntese ..........................................................................................................................20 Referências Bibliográficas ................................................................................................21 03 05 Capítulo 3 Introdução Até agora, você deve ter estudado sobre a cultura surda e alguns aspectos da gramática e da linguística da Libras. Mas você já parou para refletir sobre como se chegou a esse contexto? Você sabe do histórico da surdez e da educação dos surdos? E dos reflexos dessa história nos dias de hoje? É isso que vamos conhecer neste primeiro momento de estudo. Então, especificamente, você verá neste capítulo a história da educação de surdos e, para isso, a história da surdez como um todo e o contexto atual das escolas bilíngues para surdos. Assim, nosso objetivo é que você compreenda o processo histórico que conduziu a sociedade ao bilin- guismo atualmente, que permite aos surdos serem educados tendo a Libras como primeira língua e a Língua Portuguesa como segunda. Além disso, é importante que você reconheça os modelos educacionais existentes na história das conquistas dos surdos e que perceba os modelos educa- cionais bilíngues presentes no Brasil, podendo relacioná-los com suas possíveis práticas bilíngues em sala de aula. 3.1 História da educação de surdos Atualmente, a comunidade surda possui uma série de direitos adquiridos com muita luta e es- forço, embora saibamos que as pessoas com deficiência auditiva e/ou surdez deveriam ter os mesmos direitos e deveres dos ouvintes desde os primórdios da humanidade. No entanto, não podemos nos esquecer de que é assim que nós vemos o passado com os olhos de hoje, não é? Então, é necessário trazer à tona discussões essenciais para a compreensão da situação dos surdos nos dias de hoje: como essas pessoas têm sido tratadas ao longo do tempo? Como foi a educação delas no passado? E como tudo isso influencia a visão de surdo e educação bilíngue que temos? Não será fácil entender sem julgar aquilo que era feito com os surdos. Mas façamos esse esforço, porque cada época e cada cultura tem seus valores próprios, que mudam constantemente. E é graças a essas mudanças que hoje os surdos podem frequentar as mesmas escolas dos ouvintes. Veja a seguir. 3.1.1 A surdez e a educação dos surdos no mundo Há poucos registros da história das pessoas surdas até o fim da Idade Média, por volta do sé- culo XV. O pouco de conhecimento que se tem sobre o tema na literatura atual indica que os surdos eram considerados como “não pensantes” ou “não humanos”, porque, segundo Quadros (2006), a capacidade de raciocínio era intrinsecamente ligada à fala. Assim, as pessoas que não ouviam e, em geral, por isso também não falavam, não eram tratadas como dotadas de pensa- mento. Talvez, por esse tipo de visão, as pessoas com deficiência em geral, aí incluídos os surdos, “[...] eram também de quando em quando ligados a casas comerciais, a tavernas, a bordéis, bem como a atividades dos circos romanos, para serviços simples e às vezes humilhantes, costume esse que foi adotado por muitos séculos na História da Humanidade” (SILVA, 1986, p. 130). História da Educação de Surdos e a Língua de Sinais 06 Laureate- International Universities Libras Dois grupos marcantes da Idade Média foram essenciais para o início do interesse em tratar os surdos de uma maneira mais próxima das demais pessoas: o clero e a nobreza. Enquanto o primeiro grupo tentava “salvar” as pessoas com deficiência auditiva por meio do ensino dos sa- cramentos a eles e, de quebra, promovendo a caridade, o segundo desejava manter as riquezas na família e, para isso, precisava integrar à sociedade os herdeiros surdos. Evidentemente, isso ainda era para bem poucas pessoas. A intersecção dessas duas classes na educação dos surdos data do século XVI, por meio do monge Pedro Ponde León, que desenvolveu um trabalho de ensinar dois irmãos surdos, filhos de um casamento consanguíneo de nobres espanhóis da família Velasco. “Entre eles provavelmente se havia desenvolvido uma sinalização caseira, que encontrou eco nos sinais beneditinos. O monge Ponce de León foi designado ‘anjo da guarda’ dos meninos e foi aí que se deu o cruzamento histórico dos sinais monásticos com os sinais dos surdos” (REILY, 2007, p. 321). Após essa iniciativa religiosa, a mais conhecida talvez, o próximo salto na possibilidade de educação dos surdos veio do leigo Juan Pablo Bonet, que, por volta de 1615, tentou ensinar um jovem surdo, também da família Velasco, um primo daqueles irmãos já citados. Utilizamos o termo “tentou” porque, até 1619, ele teve auxílio de um tutor que já havia ensinado surdos, mas depois da ida deste, Bonet não teve sucesso. Entretanto, ele é conhecido como o criador do alfabeto manual, publicado em 1620 como “Reducción de las letras y arte para enseñar a hablar a los mudos”. Juan Pablo Bonet (1573-1633) foi um dos pioneiros na educação dos surdos e é dado como criador do alfabeto manual publicado em 1620 em sua obra. A intenção seria, então, substituir cada letra do alfabeto por um sinal feito com as mãos, como ocorre até hoje. Entretanto, ele não acreditava na comunicação puramente gestual: sua inten- ção era utilizar esse alfabeto até o surdo conhecê-lo e reproduzi-lo facilmente, quando estaria apto a aprender pelo oralismo (SOARES, 1999). VOCÊ O CONHECE? Você já tem alguma noção de gramática da Libras e, assim, poderá perceber que o alfabeto de Bonet era bem semelhante ao que existe atualmente. Observe a Figura 1: 07 Figura 1 – Alfabeto manual de Bonet, cuja configuração mantém semelhança com a da Libras atualmente. Fonte: Wikipedia, 2013. Pouco a pouco, a educação de surdos foi tomando importância e ganhando atenção de mais pessoas, especialmente porque as famílias nobres pagavam verdadeiras fortunas para que pro- fissionais ensinassem os herdeiros com essa deficiência. E, como se sabe hoje, casamentos con- sanguíneos têm maior possibilidade de resultar em filhos com deficiência; naquela época, isso era relativamente comum, para manter riqueza e poder. Dois homens chamados Thomas destacaram-se posteriormente na questão da educação de sur- dos. O primeiro, de sobrenome Braidwood (1715-1806), criou um método de ensino no qual os estudantes aprendiam por meio de escrita e, depois, leitura orofacial. Ele também focou no uso do alfabeto manual com as duas mãos e fundou a primeira escola para pessoas surdas da Grã- -Bretanha. O segundo, Thomas Gallaudet (1787-1851), figura importante da história da educa- ção dos surdos por ter fundado a primeira faculdade para surdos nos Estados Unidos e também por ter defendido o oralismo, foi um dos maiores defensores do método de ensinochamado de oralismo, que foi muito utilizado por certo tempo no mundo. 08 Laureate- International Universities Libras Figura 2 – Selo de Thomas Gallaudet, personagem importante da história da educação dos surdos por ter fundado a primeira faculdade para surdos nos Estados Unidos e também por ter defendido o oralismo. Fonte: Shutterstock, 2015. O que é oralismo? É a forma de comunicação comum aos ouvintes, por meio da fala oral. Por muito tempo, houve um grande esforço da comunidade voltada à educação de surdos para que esta fosse a forma padrão a ser utilizada no ensino de pessoas com deficiência auditiva, com o argumento de que esse atributo, a língua falada, é o que caracteriza um ser humano. Uma observação importante a se fazer é que os maiores defensores do oralismo foram ouvintes, e não surdos (CAMPOS, 2009). NÓS QUEREMOS SABER! Foi o abade (superior de ordem religiosa) francês Charles-Michel de L’Epée (1712-1789), entre- tanto, quem começou a defender a utilização da língua de sinais em vez de se usar o oralismo na educação de surdos. Tudo começou quando L’Epée assumiu a educação de duas irmãs gêmeas após a morte do professor delas, em 1760. Ele tinha medo de que elas morressem na ignorância de sua religião. A educação das meninas, que antes se baseava em gravuras, passou a ser feita também com a ajuda de um alfabeto bimanual, “apontando os objetos com uma mão e escre- vendo o nome correspondente na pedra (lousa) com a outra” (REILY, 2007, p. 322). 09 Figura 3 – Abade Charles-Michel de l’Epée, personagem histórico na educação dos surdos Fonte: Shutterstock, 2015. Charles-Michel de l’Epée (1712-1789) foi um educador francês com essencial atuação no processo de ensino-aprendizagem das pessoas surdas. Por ter sido defensor da lín- gua de sinais e sua influência ter sido fundamental para o sucesso dessa língua, ele é conhecido como o “Pai dos surdos” (BOTELHO, 2002). VOCÊ O CONHECE? Esse método permitiu que ele se aproximasse da gramática que as irmãs teriam desenvolvido e, depois, pudesse torná-la mais parecida com a da língua francesa. De acordo com Rée (2000), isso tornou L’Epée conhecido e sua escola filantrópica passou a receber mais e mais pessoas sur- das, que contribuíam com suas formas peculiares de falar em sinais e aprendiam com as demais dentro da escola, o que já começava a dar força a uma maneira de falar muito mais funcional. A obra mais importante de L’Epée é A verdadeira maneira de instruir os surdos-mudos, do original L’art d’enseigner a parler aux sourds-muets de naissance. Foi publicada em 1776 e continha as regras sintáticas desenvolvidas no contexto da escola de L’Epée e também o alfabeto manual inventado por Bonnet, cujo conteúdo L’Epée teria conhecido provavelmente em 1764. Não se pode esquecer, além disso, que L’Epée foi o responsável pela criação da denominada “linguagem de sinais metódicos”. Segundo Reily (2007, p. 323), L’Epée “apropriou-se de muitos sinais que os surdos já utilizavam, criou outros tantos e acrescentou movimentos aos elementos lexicais para demarcar funções gramaticais francesas no conjunto de sinais que considerava fun- damentais para a comunicação e a aprendizagem das lições”. As línguas de sinais atuais derivam dessa iniciativa pioneira de L’Epée. 10 Laureate- International Universities Libras Além das pessoas conhecidas pela atuação junto às pessoas surdas, vale destacar dois eventos emblemáticos para essa história. O primeiro é o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, ocorrido em Paris em 1878. Na ocasião, houve a percepção de que a comunicação com os surdos seria adequada por meio de leitura labial e gestos. “[...] Os surdos tiveram algumas con- quistas importantes, como o direito a assinar documentos, tirando-os da ‘marginalidade’ social, mas ainda estava distante a possibilidade de uma verdadeira integração social” (LACERDA, 1998). Figura 4 – Localização da França na Europa, país cuja capital é Paris, onde ocor- reu o I Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos. Fonte: Shutterstock, 2015. O segundo evento importante é o II Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos, que aconteceu em Milão no ano de 1880, apenas dois anos após os avanços do evento de Paris. No entanto, nesse evento, também chamado de Congresso de Milão, após acaloradas discussões, uma votação definiu que a melhor maneira para ensino e reabilitação dos surdos era a oralista. Figura 5 – Localização da Itália na Europa, país onde se situa Milão, lo- cal do II Congresso Internacional sobre a Instrução de Surdos. Fonte: Shutterstock, 2015. 11 Como já citado, esse evento quase não teve participação de surdos, mas, sim, a presença maciça de ouvintes, que definiram o futuro e a forma que seria melhor para influenciar a vida das pes- soas com deficiência auditiva. O argumento mais difundido para tal atitude, embora houvesse a ciência dos possíveis prejuízos à educação dos surdos, era o de que a língua falada proporciona- ria a inserção social das pessoas com deficiência auditiva. “Assim, este evento marca o declínio do reconhecimento das línguas de sinais como línguas, estado que perdura em muitos lugares até nossos dias” (CAMPOS, 2009, p. 23). O que significa o termo “ouvinte”? Tal qual ocorre quando o assunto é o rádio, é o ter- mo utilizado para definir a pessoa que escuta, em contraposição ao surdo ou à pessoa com deficiência auditiva. Cabe ressaltar, entretanto, que o surdo não difere do ouvinte apenas porque um ouve e outro não: o surdo, além de possuir a própria cultura, tam- bém desenvolve potencialidades psicossocioculturais particulares. NÓS QUEREMOS SABER! A partir daí, os surdos se reaproximaram de uma condição que eles já haviam superado há tem- pos: a concepção de que eles eram incapazes, o que os levou à evasão dos processos de ensino- -aprendizagem até então existentes e até mesmo ao trabalho braçal como única possibilidade. [...] O oralismo foi o referencial assumido e as práticas educacionais vinculadas a ele foram amplamente desenvolvidas e divulgadas. Essa abordagem não foi, praticamente, questionada por quase um século. Os resultados de muitas décadas de trabalho nessa linha, no entanto, não mostraram grandes sucessos. A maior parte dos surdos profundos não desenvolveu uma fala socialmente satisfatória e, em geral, esse desenvolvimento era parcial e tardio em relação à aquisição de fala apresentada pelos ouvintes, implicando um atraso de desenvolvimento global significativo. Somadas a isso estavam as dificuldades ligadas à aprendizagem da leitura e da escrita: sempre tardia, cheia de problemas, mostrava sujeitos, muitas vezes, apenas parcialmente alfabetizados após anos de escolarização (LACERDA, 1998, p. 68-80). Após um longo tempo sem marcantes evoluções na educação e na história dos surdos, foi so- mente no século XX que os sinais voltaram a tomar força na comunicação dessas pessoas. Surgiu, então, a chamada Comunicação Total, “[...] a prática de usar sinais, leitura orofacial, amplifi- cação e alfabeto digital para fornecer inputs linguísticos para estudantes surdos, ao passo que eles podem expressar-se nas modalidades preferidas” (MOURA; LODI; PEREIRA, 1993, p. 118). Entretanto, tempos após a Comunicação Total ganhar força, pesquisadores da área, com es- pecial destaque para as professoras brasileiras Lucinda Ferreira Brito e Tanya Amaral Felipe, começaram a problematizar que talvez esse método não fosse tão eficaz assim, porque a língua falada sempre sobressaía em relação à de sinais. Além disso, por se tentar usar as duas formas concomitantemente, ocorria que os sinais eram apenas a língua falada transformada em um estímulo visual, sem caráter de língua própria, como se vê atualmente. Foi a partir daí que as línguas de sinais voltaram com mais força ainda pelo mundo, e o bilinguismo começou a surgircomo uma demanda natural e legítima. Por isso, o passo seguinte, que é o mais próximo da concepção de comunicação surda que temos atualmente, trata-se exatamente do bilinguismo, proposta que reconhece a situação da pessoa surda como inserida entre duas línguas. “Quando me refiro a ‘bilinguismo’ não estou estabele- cendo uma dicotomia, mas sim reconhecendo as línguas envolvidas no cotidiano dos Surdos, ou seja, a língua de sinais brasileira e o português no contexto mais comum do Brasil” (QUADROS, 2000, p. 54). As influências dessa concepção que atualmente vigora no nosso país serão trabalhadas mais à frente, quando falaremos sobre a concepção de escolas bilíngues e os modelos existentes. 12 Laureate- International Universities Libras 3.1.2 A história da surdez e da educação dos surdos no Brasil No Brasil, vale destacar que essa história tem início antes mesmo do Congresso de Milão. Em 1857, foi criada a primeira instituição para surdos no nosso país, o Instituto Imperial de Surdos- -Mudos, atualmente denominado de Instituto Nacional de Educação dos Surdos (Ines). A cidade sede foi o Rio de Janeiro e, inicialmente, tratava-se de um lugar apenas para meninos, porque as garotas eram tidas como “comportadas” e, por isso, não precisavam desse tipo de educação. A origem dessa instituição está em alguns anos antes ainda, por volta de 1856, quando veio para o Brasil o francês Ernest Huet, conde surdo e ex-diretor do Instituto de Surdos de Paris. Suas ideias, aqui no país, foram apoiadas por Dom Pedro II, de forma a culminar com a criação do Instituto Imperial de Surdos-Mudos. Segundo Moura (2000), Huet trouxe consigo, evidentemente, a língua de sinais francesa, que aqui passou a ser mesclada com os sinais utilizados pelos surdos brasileiros. Esta é a origem histórica da língua brasileira de sinais como conhecemos atualmente. Evidentemente, o Congresso de Milão passou a surtir efeitos também no Brasil a partir de 1880 e o oralismo passou igualmente a ser regra por aqui. E com a proibição do uso de sinais, ocorre- ram episódios, inclusive, de crianças com as mãos amarradas para impedir que elas sinalizassem (PASSOS, 2010). Embora eles tenham sido “forçados” à oralidade, a língua de sinais sempre foi a preferida da comunidade surda. Apesar disso, o instituto que se dedicava à educação dos surdos no Brasil ainda teve foco na língua de sinais, porque o experiente professor Moura e Silva, após viagem ao Instituto Francês de Surdos a pedido do governo brasileiro, percebeu que o oralismo não era adequado a todos os surdos (BRASIL, 1997), conforme já estava em discussão naquele país. Cabe destacar, inclusive, que sempre foi grande a influência francesa na língua de sinais brasileira, tanto que a origem da Libras, a sua base, é a língua francesa de sinais. De lá para cá, diversas outras escolas surgiram no Brasil, como o Instituto Santa Terezinha, em São Paulo, a Escola Concórdia, no Rio Grande do Sul, a Escola dos Surdos de Vitória, o Centro de Audição e Linguagem Ludovico Pavoni, em Brasília (BRASIL, 1997). Entretanto, seguindo a tendência mundial, o Instituto Imperial de Surdos-Mudos precisou es- tabelecer o oralismo puro como seu método de ensino. A partir daí, a língua de sinais ainda “sobreviveu na sala de aula até 1957 e, nos pátios e corredores da escola, a partir desta data, quando foi severamente proibida” (ALBRES, 2005, p. 26). Nesse mesmo ano, a instituição passou a ser denominada de Instituto Nacional de Educação dos Surdos por meio da Lei nº 3.198, de 6 de julho. O Ines era a única instituição voltada à educação de surdos no Brasil nessa época. Por isso, as crianças com deficiência auditiva eram encaminhadas todas para serem educadas lá, o que acabou causando problemas por causa de uma crise financeira que se instalou por volta da dé- cada de 1960. Por isso, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais e o Instituto Pestalozzi passaram também a receber os surdos, em um primeiro momento. Posteriormente, cada estado começou a desenvolver suas próprias escolas voltadas à comunidade surda (ALBRES, 2005). Por causa disso, o país precisou estabelecer parâmetros mínimos para a educação dos surdos. Foi daí que surgiu, em 1979, a Proposta Curricular para Deficientes Auditivos, que definiu o oralismo como método a ser utilizado no Brasil. “Como a comunicação oral utiliza-se primor- dialmente da via auditiva, nossos esforços serão dirigidos para utilização máxima possível dos restos auditivos do educando, através de treinamento auditivo, com a utilização adequada do aparelhamento proposto” (BRASIL, 1979, p. 32). 13 Nessa época, a língua de sinais no Brasil era chamada de linguagem mímica e sofria várias crí- ticas, principalmente porque era considerada como danosa, problemática à inserção do aluno surdo na sociedade, que só se daria, ainda segundo os críticos, por meio do estímulo à fala e à escrita. Segundo Albres (2005, p. 29), a língua de sinais era “considerada, também, simplificada e com erros gramaticais, podendo somente transmitir expressões concretas”. A tendência mundial começou a se alterar em 1981, por meio da Conferência Internacional “Surdez e o ano Internacional das Pessoas Deficientes”, ocorrida em Milão. Foi nessa ocasião que se passou a indicar a adoção da Comunicação Total em vez do oralismo. Por algum tempo, entretanto, o Brasil continuou com o oralismo como proposta oficial. Foi bem lentamente que a Comunicação Total passou a tomar corpo no país, tomando força a partir de 1985. Em paralelo a isso, ocorreram pesquisas mais estruturadas sobre a língua de sinais, bem como discussões voltadas para a educação bilíngue. De acordo com Lacerda (1998), “essa proposta defende a ideia de que a língua de sinais é a língua natural dos surdos, que, mesmo sem ouvir, podem desenvolver plenamente uma língua visogestual”. No Brasil, organizados na Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis), as pessoas com deficiência auditiva passaram a defender explicitamente, a partir de 1987, o uso e a divulgação, dentro das escolas, da língua de sinais. A intenção seria, segundo Souza (1998), a formalização da educação por essa língua, para que ela não ficasse restrita a associações e ambientes informais. “Concomitante a isso, estudos sobre Língua de Sinais são desenvolvidos no país e, em 1989, a ANPOLL aceita a inclusão do GT – linguagem e surdez. Assim, os estudos da Língua de Sinais Brasileira ganham espaço entre os linguistas e não mais apenas no reduto da educação especial” (ALBRES, 2005, p. 33). A evolução, a partir daí, já fica mais evidente por meio de documentos oficiais, como a Decla- ração de Salamanca: A importância da linguagem de sinais como meio de comunicação entre surdos, por exemplo, deveria ser reconhecida e provisão deveria ser feita no sentido de garantir que todas as pessoas surdas tenham acesso à educação em sua língua nacional de sinais. Devido às necessidades particulares de comunicação dos surdos e das pessoas surdas/cegas, a educação deles pode ser mais adequadamente provida em escolas especiais ou classes especiais em escolas regulares (DECLARAÇÃO DE SALAMANCA, 1994). Embora seja um documento um pouco antigo e trate da educação de pessoas com deficiência como um todo, é importantíssimo que você leia a Declaração de Salaman- ca. Ela foi um marco na educação dessas pessoas e, por consequência, no trabalho pedagógico com o surdo. Você pode acessá-la neste link: <http://portal.mec.gov.br/ seesp/arquivos/pdf/salamanca.pdf>. NÃO DEIXE DE LER... Esse e outros documentos, bem como movimentos da comunidade surda, acabaram por influen- ciar a construção das políticas públicas no Brasil. Mas, por ora, nos deteremos no próximo tema, que será escolas bilíngues para surdos. 14 Laureate- International Universities Libras 3.2 Escolas bilíngues para surdos Educação bilínguepara surdos se refere ao trabalho pedagógico que utiliza as duas línguas (Li- bras e a forma escrita da Língua Portuguesa) no processo de ensino-aprendizagem, de maneira inclusiva. Isso porque “os surdos têm direito a uma educação bilíngue, que priorize a língua de sinais como sua língua natural e primeira língua, bem como o aprendizado da língua portuguesa, como segunda língua” (BRASIL, 2006, p. 71). O bilinguismo, enquanto política pública brasileira, é recente. Mas já há casos de sucesso. Um caso real que pode ser contado é o da prefeitura do município de São Bernardo do Campo, na grande São Paulo, localizado no estado homônimo. Figura 6 – Localização do município de São Bernardo do Campo no estado de São Paulo. Fonte: Shutterstock, 2015. A rede municipal de ensino dessa cidade criou em 2012 as chamadas Escolas Polo para a edu- cação de alunos surdos. São instituições escolares regulares, de educação básica, que possuem todo o aparato físico e pedagógico para receber e atender adequadamente os alunos surdos. Há professores com noções de Libras e bilíngues que são responsáveis pelas turmas e fazem os encaminhamentos gerais das disciplinas, bem como professores intérpretes de Libras. No contra- turno das aulas comuns, há ainda outras, de nivelamento em Libras, geralmente ministrada por um professor surdo. Um exemplo dessa iniciativa é a escola municipal de educação bilíngue para surdos Professora Nadia Aparecida Issa Pina. NÃO DEIXE DE VER... O Cmais, portal oficial da TV Cultura do Estado de São Paulo, possui um vídeo que demonstra esse bilinguismo, produzido exatamente na EMEBS Professora Nadia Apare- cida Issa Pina. Veja o vídeo, leia o restante do texto e reflita a respeito do modelo de educação bilíngue apresentado. Assista em: <http://univesptv.cmais.com.br/pedago- gia-unesp/d-24-conteudo-e-didatica-de-libras/estudantes-surdos-e-bilinguismo-no- -ensino-regular>. Há dois documentos básicos que tratam do assunto: o Decreto Federal nº 5.626, de 2005, e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008. Você os conhece? Sabe do que se tratam e quais as implicações deles para o bilinguismo na educação brasileira? É esse assunto que você estudará a seguir. 15 3.2.1 Escolas bilíngues no Decreto Federal nº 5.626/2005 Apenas relembrando que os documentos oficiais, como leis e decretos, serão detalhados mais adiante. Para esse contexto, você reconhecerá a importância desse decreto para a concepção e definição do bilinguismo e da escola bilíngue no nosso atual contexto educativo brasileiro. Partindo desse princípio, o Decreto Federal nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005 (BRASIL, 2005), que regulamentou a Lei nº10.436/2002 (BRASIL, 2002), reconhecendo a Libras como forma de expressão e comunicação da cultura surda, assim como regulamentou o artigo 18 da Lei nº 10.098/2000 (BRASIL, 2000), que trata da implementação da formação de profissionais intérpretes para a língua brasileira de sinais, para facilitar a comunicação direta com os surdos. Cabe destacar, inicialmente, o contexto de criação e aprovação do documento. A sua publicação se deu após o reconhecimento da Libras, em 2002, e sob a influência de outros documentos que tratavam da inclusão social e escolar. Ele foi “motivado pelos movimentos das comunidades sur- das e por pesquisadores da área da educação de surdos [...] nove anos após o início da tramita- ção da matéria no Senado Federal” (LODI, 2013, p. 51). Já era, nesse momento, uma demanda social forte, que precisava ser atendida pela legislação brasileira com urgência. Em linhas gerais, a lei possui vários dizeres para garantir a educação e a manutenção da Libras, “como políticas públicas que proporcionem uma educação de qualidade para as pessoas sur- das, como por exemplo: a língua de sinais como cadeira obrigatória nos cursos de magistério e licenciatura, formação de professores de língua de sinais e a formação e contratação de intér- pretes de língua de sinais” (PASSOS, 2010, p. 28). São ações importantes, mas que, na maioria, demoram longos tempos para se concretizarem. Isso porque, por um lado, existe morosidade por parte do poder público e, por outro, faltam profissionais habilitados para colocar em prática as diretrizes da lei. Percebe-se, então, que o foco do decreto é a educação dos surdos, e não das pessoas com deficiência de uma forma geral. Além disso, as discussões dele surgiram no momento em que a educação inclusiva ganhava força no Brasil. Segundo Lodi (2013, p. 53), “as primeiras dis- cussões relativas ao reconhecimento e à legalização da língua de sinais e seu uso nos espaços educacionais tiveram início no ano de 1996, a partir da realização da Câmara Técnica O Surdo e a Língua de Sinais”. Assim, ainda cabe destacar que o decreto foi construído em diálogo com a academia e com a comunidade surda. Nesse sentido, o documento define: São denominadas escolas ou classes de educação bilíngue aquelas em que a Libras e a modalidade escrita da Língua Portuguesa sejam línguas de instrução utilizadas no desenvolvimento de todo o processo educativo. Os alunos têm o direito à escolarização em um turno diferenciado ao do atendimento educacional especializado para o desenvolvimento de complementação curricular, com utilização de equipamentos e tecnologias de informação (BRASIL, 2005). A educação bilíngue, segundo o Decreto Federal (BRASIL, 2005), está dividida em duas formas diferentes: • no ensino infantil e nos anos iniciais do fundamental, os professores devem ser bilíngues, em escolas e classes de educação bilíngue; • já nos anos finais do ensino fundamental, no médio e no profissional, não é obrigatório que os professores sejam bilíngues. Eles devem conhecer as particularidades linguísticas e, consequentemente, do processo de ensino-aprendizagem, dos alunos surdos. Além disso, é necessária a presença, em toda a escola bilíngue, de tradutores e intérpretes da 16 Laureate- International Universities Libras Libras-Língua Portuguesa. Ressalte-se, ainda, que nessas fases não é mais obrigatório que as escolas e/ou classes sejam bilíngues: esses níveis de ensino podem também ocorrer em escolas comuns, desde que satisfeitas essas condições. Essa diferenciação ocorre, segundo Lodi (2013, p. 54), para que a língua inicial de instrução escolar seja a Libras, uma vez que até mesmo a escrita das duas línguas é diferente. A presença da escrita do português nos processos educacionais é decorrente da organização pedagógica [...], o que lhe garante também status de língua de instrução. Dessa forma, o desenvolvimento de linguagem/apropriação da Libras pelos alunos surdos nos primeiros anos escolares é assegurado e, por conseguinte, garante-se uma sólida base educacional. Por isso, seria possível, então, executar outra proposta de educação depois de finalizar o ciclo inicial do ensino fundamental. Ou seja, após a obtenção da língua materna, a Libras, os alunos podem aprender com professores falantes da Língua Portuguesa, com a ajuda de um tradutor intérprete. Assim, fica delimitado que o ensino infantil e dos primeiros anos do fundamental deve ser feito obrigatoriamente em escolas bilíngues. Os demais níveis, por sua vez, podem ser realizados em escolas comuns, desde que com professores com o perfil descrito e intérpretes contratados, sem- pre com o intuito de “viabilizar o acesso dos alunos aos conhecimentos e conteúdos curriculares, em todas as atividades didático-pedagógicas” e “no apoio à acessibilidade aos serviços e às atividades-fim da instituição de ensino” (BRASIL, 2005). Então, embora a escolarização do aluno surdo possa ocorrer por meio de professores que compreendam as singularidades do ensino de surdos e de intérpretes, fica claro que essa estrutura não caracteriza mais uma escola bilíngue. Além disso, o documento, ao informar que as instituiçõesfederais de ensino devem prover de- terminadas formações, também define os papéis dos agentes docentes inseridos nas escolas bilíngues: professor ou instrutor de Libras; tradutor e intérprete dessa língua para a Portuguesa e vice-versa; professor para o ensino, como segunda língua para pessoas surdas, do português; e professor regente de classe comum, nas diversas áreas de conhecimento, com ciência da singu- laridade linguística dos alunos surdos. Esse ponto também é importante, porque com certa frequ- ência há, nas escolas, debates sobre os limites entre a ação do professor da sala e o intérprete, por exemplo. É fato, também, que a educação bilíngue definida no decreto coloca um ponto central do pro- cesso pedagógico a Libras. Isso fica claro com a afirmação de que se deve “ofertar, obrigato- riamente, desde a educação infantil, o ensino da Libras e também da Língua Portuguesa, como segunda língua para alunos surdos” (BRASIL, 2005). Sendo assim, é necessário que se pense em formas peculiares de avaliação, tanto para o ensino de Libras como primeira língua quanto para o de Língua Portuguesa como segunda. Por esse prisma, o decreto também define que se deve: [...] adotar mecanismos de avaliação coerentes com aprendizado de segunda língua, na correção das provas escritas, valorizando o aspecto semântico e reconhecendo a singularidade linguística manifestada no aspecto formal da Língua Portuguesa; desenvolver e adotar mecanismos alternativos para a avaliação de conhecimentos expressos em Libras, desde que devidamente registrados em vídeo ou em outros meios eletrônicos e tecnológicos (BRASIL, 2005). Outro ponto que merece destaque, no decreto, é a formação de professores para o ensino de Libras. E um ponto importante dessa visão é que ela deve ser: [...] posta em diálogo com a formação necessária para o ensino do português como segunda língua. No que diz respeito ao ensino de Libras, o documento, uma vez mais, relaciona essa formação à atuação nos diferentes níveis educacionais e recomenda que pessoas surdas tenham prioridade em todos os processos formativos, visando garantir, assim, que a apropriação dessa língua pelos alunos surdos ou sua aprendizagem por ouvintes, seja realizada por meio de seus usuários (LODI, 2013, p. 57). 17 Isso fica mais delimitado ainda por meio dos artigos 4 e 5 do Decreto Federal, que definem a formação dos professores para o ensino de Libras no ciclo final do ensino fundamental, do médio e do superior – “nível superior, em curso de graduação de licenciatura plena em Letras: Libras ou em Letras: Libras/Língua Portuguesa como segunda língua” (BRASIL, 2005) –, bem como a for- mação dos professores para o ensino de Libras na educação infantil e no primeiro ciclo do ensino fundamental – “Pedagogia ou curso normal superior, em que Libras e Língua Portuguesa escrita tenham constituído línguas de instrução, viabilizando a formação bilíngue” (BRASIL, 2005). É evidente que não cabe discutir, aqui, o Decreto Federal como um todo. Por isso, é importante que você, de forma autônoma, leia o decreto, entenda-o e seja capaz de discuti-lo quando necessário, para embasar sua prática e seus anseios na escola. Acesse-o em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2005/decreto/ d5626.htm>. NÃO DEIXE DE LER... Vistas as particularidades do decreto, analise agora as diferenças e as semelhanças na concep- ção de educação bilíngue em relação à Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. 3.2.2 Escolas bilíngues na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva Três anos depois da publicação do decreto, entretanto, outro documento oficial foi divulgado: é a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, um documento elaborado por um grupo de trabalho da Secretaria de Educação Especial, do Ministério da Edu- cação, nomeado pela portaria nº 555, de junho de 2007, e prorrogada pela portaria nº 948, de outubro de 2007. Segundo Lodi (2013, p. 51), a existência desse documento só foi possível por causa de movimentos sociais e outras normativas do Brasil e do mundo, ocorridos na década de 1990. “A Política – tendo como base os princípios da democratização da educação, que a ga- rantem como um direito de todos e um dever do Estado – teve influência de diversos documentos internacionais e nacionais”. Evidentemente, por ser do ano de 2008, também levou em consideração documentos mais re- centes, como as leis nº 10.436, de 24 de abril de 2002, e a nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000, já tratadas, além do Decreto Federal nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, debatido há pouco. A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, que a partir de agora passaremos a chamar apenas de Política Nacional, na sua introdução, esclarece sua fundamentação: O movimento mundial pela educação inclusiva é uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação. A educação inclusiva constitui um paradigma educacional fundamentado na concepção de direitos humanos, que conjuga igualdade e diferença como valores indissociáveis (BRASIL, 2008, p. 1). Pode-se depreender daí, e do restante da introdução do documento, que a Política Nacional tem como um dos principais intuitos marcar sua posição em relação ao paradigma Educação Especial versus Educação Inclusiva. Isso é feito ao contrapor a visão de que a Educação Especial deve ser realizada em uma escola própria, apartada do ensino comum, por meio de práticas que, em um 18 Laureate- International Universities Libras olhar mais detalhado, fazem a deficiência se sobrepor às potencialidades pedagógicas do alu- no. Até hoje há profissionais da pedagogia que não têm clareza nas diferenças entre Educação Especial e Educação Inclusiva, que continuam a existir concomitantemente. Enquanto a primeira volta-se ao trabalho com as pessoas com deficiência para a potencialização de suas qualidades, para trabalhar essa deficiência, a segunda se preocupa em incluir as pessoas com deficiência no ensino comum. Em geral, essas ações ocorrem em dois turnos (manhã e tarde) diferentes: em um, ensino comum inclusivo; no outro, aulas especiais em salas apropriadas para tal. Para a proposição do novo paradigma educacional, o documento entende que a educação especial deve integrar a proposta pedagógica da escola, complementando ou suplementando as práticas e os conteúdos desenvolvidos no ensino regular, de forma a possibilitar um currículo comum a todos, que contemple a diversidade e as necessidades específicas dos alunos (LODI, 2013, p. 52). Não se pode esquecer, entretanto, que a Política Nacional, diferentemente do Decreto Federal nº 5.626/2005, tenta tratar de toda a diversidade do alunado brasileiro, incluindo-se aí, entre outros, todos os tipos de deficiência (física, intelectual, auditiva, visual), os transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação. Por um lado, isso limita a área de de- finição dos dizeres do documento, uma vez que ele não é dedicado apenas aos surdos. Segundo Lodi (2013, p. 53), entretanto, isso “carrega uma marca histórica de luta e conquista dos direitos linguísticos dos surdos com vistas à inclusão social, deslocando essa educação das discussões gerais sobre a especial e constituindo-a como uma área específica de saber”. No que tange à proposta de educação bilíngue presente no documento, é indispensável apontar que, embora hoje se observe que há diferenças em relação ao Decreto Federal nº 5.626/2005, não são diretrizes excludentes e nem mesmo é necessário, ideologicamente, escolher uma para seguir no desenvolvimento do seu trabalho com alunos surdos. Há requisitos mínimos, apontados pelos documentos,que servem de baliza para as escolas e a educação bilíngues, e o ideal é que isso seja atingido. Veja, por exemplo, o que aponta a Política Nacional em relação ao bilinguismo na escola: Para o ingresso dos alunos surdos nas escolas comuns, a educação bilíngue – Língua Portuguesa/ Libras desenvolve o ensino escolar na Língua Portuguesa e na língua de sinais, o ensino da Língua Portuguesa como segunda língua na modalidade escrita para alunos surdos, os serviços de tradutor/intérprete de Libras e Língua Portuguesa e o ensino da Libras para os demais alunos da escola. O atendimento educacional especializado para esses alunos é ofertado tanto na modalidade oral e escrita quanto na língua de sinais. Devido à diferença linguística, orienta- se que o aluno surdo esteja com outros surdos em turmas comuns na escola regular (BRASIL, 2008, p. 11). Observe que esse documento não faz qualquer menção ao termo “escola bilíngue”. Traz, sim, apontamentos a respeito da “educação bilíngue” e, a partir daí, é possível perceber que não há distinção, como ocorre no Decreto Federal, entre os níveis de ensino. Ou seja: mesmo na educa- ção infantil, poder-se-ia chamar de “bilíngue” uma classe na qual haja um intérprete de Libras. Essa diferenciação, na visão de Lodi (2013, p. 54), é importante, porque “[...] há no Decreto a preocupação em diferenciar os anos iniciais de escolarização dos finais, respeitando, assim, o de- senvolvimento das crianças, as especificidades nos processos de ensino-aprendizagem e a forma- ção necessária para os professores”. Isso nós já identificamos no tópico anterior, você se lembra? 19 Da mesma forma que indicamos a leitura do Decreto nº 5.626/2005 na íntegra, acre- ditamos que valha a pena você conhecer na totalidade a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Acesse-a pelo link a seguir: <http:// peei.mec.gov.br/arquivos/politica_nacional_educacao_especial.pdf>. NÃO DEIXE DE LER... Isso faz bastante diferença, uma vez que se percebe ser exatamente no ensino infantil e nos anos iniciais do fundamental que as crianças surdas passam pelo processo de aquisição da primeira língua, que, nesse caso, deve ser a Libras. Esse processo é mais importante ainda para os sur- dos filhos de ouvintes, uma vez que a língua dos pais é a Língua Portuguesa e a apropriação da Libras, assim, precisa da escolarização para se concretizar. E você deve se lembrar de que o responsável pela aquisição da língua no processo de escolarização é o professor, papel que o intérprete, geralmente, não consegue atingir, por não ser essa a sua função. Assim, pelo que se pode verificar, há certa discrepância entre a visão de educação bilíngue entre o Decreto Federal nº 5.626/2005 e a Política Nacional. Enquanto no Decreto “[...] a Libras ad- quire papel central em toda a educação das pessoas surdas e o português, em sua modalidade escrita, é tratado como segunda língua, a Política desloca a Libras de seu status de primeira língua para as pessoas surdas” (LODI, 2013, p. 58). Cabe ressaltar, novamente, que um documento não exclui o outro. Porém, o Decreto Federal nº 5.626/2005 nasceu da necessidade de se regulamentar pontos dispostos em leis anteriores (a de número 10.436/2002 e o artigo 18 da de número 10.098/2000). Assim, é um documento com força legal. A Política Nacional, por sua vez, é um documento orientador, que tem por objetivo sistematizar todas as produções normativas anteriores, ou seja, é apenas um resultado de toda uma trajetória histórica referente ao assunto. 20 Laureate- International Universities Síntese Ao concluir esse capítulo, você: • aprendeu que história da surdez no mundo foi marcada por interesses e mudanças na concepção da melhor forma de educar os surdos. Interesses, porque a vontade de se trabalhar a área teria começado para que os ricos não perdessem suas fortunas que seriam deixadas para os filhos surdos, que à época não podiam herdar por não serem considerados seres “pensantes”. Além disso, a igreja utilizou-se da caridade para tratar das pessoas surdas, e algumas das mais importantes contribuições à educação dos surdos vieram daí (o monge Pedro Ponce León e o abade Charles-Michel de L’Epée são exemplos). Também marcaram essa história os congressos ocorridos, como os de Paris e de Milão. O segundo foi o responsável por proibir o ensino dos surdos por meio de sinais e instituir o oralismo. A língua de sinais, entretanto, continuou a existir e, tempos depois, passou-se a se considerar a Comunicação Total. Por fim, os movimentos surdos ganharam força e as línguas de sinais voltaram à tona; • entendeu que, no Brasil, a inauguração do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos, atual Instituto Nacional de Educação dos Surdos (Ines), é marco fundamental da educação dessas pessoas. Mas o Congresso de Milão refletiu por aqui e a língua de sinais foi proibida. Continuou a existir nos corredores no Ines, até também ganhar força após o movimento pela Comunicação Total e a luta da cultura surda. Isso culminou com o fortalecimento do bilinguismo na educação dos surdos. Para tanto, há, no Brasil, dois documentos oficiais principais: o Decreto Federal nº 5.626/2005 e a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva; • estudou que o Decreto Federal nº 5.626/2005 aponta para uma visão da escola bilíngue mais completa e complexa, pois diferencia a educação dos surdos no ensino infantil e nos primeiros anos do fundamental com relação aos demais níveis. No primeiro momento, privilegiam-se escolas ou classes bilíngues nas quais o professor também seja bilíngue e, assim, garanta a aquisição da primeira língua do aluno surdo (a Libras) como um processo natural. Depois que os alunos surdos já possuam a primeira língua internalizada, eles podem estudar em escolas comuns, desde que os professores tenham ciência das suas particularidades de aprendizagem e haja tradutor/intérprete de Libras nas salas; • conheceu a Política Nacional, documento orientador que sistematiza as conquistas legais historicamente estabelecidas e tende a colocar em uma posição periférica a Libras como primeira língua do aluno surdo. Isso se deve por diferir do decreto em relação à educação bilíngue no ensino infantil e nos primeiros anos do fundamental. Assim, espera-se que você consiga utilizar os conhecimentos obtidos aqui com o intuito de trans- formar sua prática pedagógica em um processo cada vez mais inclusivo! Até a próxima! Síntese 21 Referências ALBRES, N. A. A educação de alunos surdos no Brasil no final da década de 1970 a 2005: análise dos documentos referenciadores. 2005. 129 p. Dissertação (Mestrado em Edu- cação) – Centro de Ciências Humanas e Sociais, Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, Campo Grande, 2005. BOTELHO, P. D. Linguagem e letramento na educação de surdos: ideologias e práticas pedagógicas. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Centro Nacional de Educação Especial. Proposta curricular para deficientes auditivos. Brasília: MEC, 1979. ______. Ministério da Educação. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília: MEC/SEESP, 2008. Disponível em: <http://peei.mec.gov.br/ arquivos/politica_nacional_educacao_especial.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2015. ______. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. 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