sempre, eles farão com que vivas feliz; tens a honra de ser escravo dos nossos senhores brancos, e com isso fazes a fortuna de teu pai e de tua mãe". Ai! se fiz a fortuna deles é coisa que eu não sei, mas eles não fizeram a minha. Os cachorros, macacos. e papagaios são mil vezes menos infelizes que nós. Todos os domingos, os fetiches holandeses que me converteram me dizem que nós, brancos e negros, somos todos filhos de Adão Não sou genealogista mas se esses pregadores dizem a verdade, somos todos primos-irmãos. Ora, hão de confessar-me que é impossível tratar os parentes de modo mais horrível. - Ó Pangloss! - exclamou Cândido. - Não tinhas imaginado esta abominação; não há remédio, acabo renegando o teu otimismo. - Que é otimismo? - Indagou Cacambo. - É a mania de sustentar que tudo está bem quando tudo está mal - suspirou, Cândido. E derramava Cândido. file:///C|/site/livros_gratis/candido.htm (37 of 68) [23/06/2001 20:11:29] lágrimas ao contemplar o negro, e, assim chorando, entrou em Surinam. A primeira coisa de que se informam é se não haveria no porto algum navio que se pudesse enviar a Buenos Aires. Aquele a quem se dirigiram era justamente um capitão espanhol, que se ofereceu para fechar com eles um honesto contrato. Marcou-lhes encontro numa taverna. Cândido e o fiel Cacambo foram esperá-lo com seus dois carneiros. - Cândido, que tinha o coração na boca, contou ao espanhol todas as suas aventuras, e confessou-lhe que queria raptar a senhorita Cunegundes. - Deus me livre de o levar a Buenos Aires - disse o capitão. - Eu seria enforcado, e o senhor também. A bela Cunegundes é a amante favorita do senhor governador. Tais palavras causaram em Cândido o efeito de um raio. Depois de muito chorar, chamou Cacambo à parte: - Eis o que deves fazer, meu caro amigo. Temos cada um no bolso uns cinco ou seis milhões em diamantes; tu és mais hábil do que eu; vai buscar a senhorita Cunegundes em Buenos Aires. Se o governador opuser algumas dificuldades, dá-lhe um milhão; se não render-se, dá-lhe dois; não mataste nenhum inquisidor, ninguém desconfiará de ti. Equiparei outro navio; irei esperar-te em Veneza; é um país livre, onde nada se tem a temer nem de búlgaros, nem de abaros, nem de judeus, nem de inquisidores. Cacambo aplaudiu esta sábia resolução. Achava-se desesperado por ter de separar-se de um bom patrão, que se tornara seu amigo íntimo; mas o prazer de lhe ser útil venceu a dor de o deixar. Abraçaram-se em pranto. Cândido recomendou-lhe que não se esquecesse da boa velha. Cacambo partiu no mesmo dia: era um excelente homem, esse Cacambo. Cândido permaneceu ainda algum tempo em Surinam, esperando que outro comandante quisesse levá-lo à Itália, com os dois carneiros que lhe restavam. Contratou criados e adquiriu o necessário para tão longa viagem. Afinal o senhor Vanderdendur, capitão de um grande navio, veio apresentar-se a ele. - Quanto quer - perguntou-lhe Cândido - para me levar diretamente a Veneza, com o meu pessoal, a minha bagagem e estes dois carneiros? O capitão propôs dez mil piastras. Cândido não hesitou. Oh! Oh! - disse consigo o prudente Vanderdendur, esse estrangeiro desembolsa dez mil piastras sem pestanejar! Deve ter muito dinheiro! Voltando logo depois, fez-lhe ver que não poderia partir por menos de vinte mil. - Por isso não haja dúvida - disse Cândido. - Sim senhor! - disse baixinho o comandante. - Com que então esse homem dá vinte mil piastras com a mesma facilidade com que desembolsa dez mil!! Voltou de novo e disse que não podia conduzi-lo a Veneza por menos de trinta mil piastras. Cândido. file:///C|/site/livros_gratis/candido.htm (38 of 68) [23/06/2001 20:11:29] - Bem, o senhor terá as suas trinta mil piastras - respondeu Cândido. - Oh! Oh! - pensou ainda, o holandês. - Trinta mil piastras não custam nada a esse homem. Decerto os dois carneiros carregam tesouros imensos. Não insistamos: agora é receber as trinta mil. Depois veremos. Cândido vendeu dois pequenos diamantes, o menor dos quais valia mais que todo o dinheiro que exigia o capitão. Pagou adiantado. Foram embarcados os dois carneiros. Cândido seguia num pequeno barco para alcançar o navio na enseada; o patrão não perde tempo, põe o navio em marcha; o vento o favorece. Cândido, estupefato e desvairado, perde-o logo de vista. "Ela um golpe digno do velho mundo!" - exclama ele. Volta para a margem, cheio de dor; pois afinal de contas perdera o bastante para fazer a fortuna de vinte monarcas. Vai ter com o juiz holandês; e, como estava um pouco perturbado, bate violentamente à porta; entra e expõe a sua aventura, gritando um pouco mais alto do que convinha. O juiz começou por obrigá-lo a pagar dez mil piastras pelo barulho que fizera. Depois escutou-o pacientemente e prometeu examinar o seu caso logo que o capitão regressasse, e cobrou mais dez mil piastras pelos gastos da audiência. Isso acabou de exasperar a Cândido; passara na verdade - por coisas dez mil vezes mais dolorosas, mas o sangue frio do juiz e do comandante que o roubara lhe assanharam a bílis, mergulhando-o em negra melancolia. A maldade dos homens apresentava-se-lhe ao espirito em toda a sua hediondez: Cândido só alimentava idéias tristes. Afinal, estando um navio francês de partida para Bordéus, e como ele não mais tinha carneiros carregados de diamantes para embarcar, alugou a preço razoável um camarote, mandando espalhar pela cidade que pagaria a passagem, a comida, e daria duas mil piastras, ao homem que fizesse a viagem em sua companhia, sob a condição de que esse fosse o homem mais desgostoso da sua condição e o mais infeliz da província. Apresentou-se uma multidão de pretendentes que uma frota não poderia conter. Cândido escolheu umas vinte pessoas que lhe pareceram bastante sociáveis e que pretendiam merecer a preferência. Convidou-as a cear numa estalagem, com a condição de que cada uma jurasse contar fielmente a sua história, prometendo escolher aquele que lhe parecesse mais digno de lástima e mais razões tivesse de descontentamento, e distribuir aos outros algumas gratificações. A sessão durou até as quatro da madrugada. Cândido, escutando todas aquelas aventuras, lembrava-se do que lhe dissera a velha na viagem para Buenos Aires, e da aposta que fizera, de que não havia ninguém a bordo a quem não houvessem acontecido as maiores desgraças. "Esse Pangloss - pensava ele - deveria ficar muito embaraçado para demonstrar o seu sistema. Queria que ele estivesse aqui. Certamente, se tudo vai bem, é no Eldorado, e não no resto da terra". Decidiu-se afinal per um pobre sábio que trabalhara dez anos para os livreiros de Amsterdã. Julgou que não havia ofício no mundo de que se pudesse ficar mais desgostado. O referido sábio, que era aliás um excelente homem, for a roubado pela mulher, batido pelo filho e abandonado pela filha, que se fizera raptar por um português. Acabava de ser privado de um modesto emprego de que vivia, e os pregadores de Surinam o perseguiam porque o tomavam por sociniano. Cumpre confessar que os outros eram pelo menos tão infelizes quanto ele; mas Cândido esperava que o sábio o distraísse durante a viagem. Os rivais acharam que Cândido lhes fazia uma grande injustiça, mas Cândido. file:///C|/site/livros_gratis/candido.htm (39 of 68) [23/06/2001 20:11:29] este os sossegou, dando cem piastras a cada um. CAPÍTULO XX Do que aconteceu a Cândido e Martinho durante a viagem. O velho sábio, que se chamava Martinho, embarcou pois para Bordéus em companhia de Cândido. Um e outro já tinham muito visto e sofrido; e, mesmo que o navio zarpasse de Surinam para o Japão, pelo cabo da Boa Esperança, teriam eles com que discorrer sobre o mal moral e o mal físico durante toda a viagem. Cândido, no entanto, levava grande vantagem sobre Martinho: