ser humano não se resume apenas a do que ele consegue fazer ou conquistar, mas no poder contar com a graça gratuita e imerecida por parte de Deus. Uma quarta característica da Antropologia cristã é a da defesa da unidade do ser humano, isto é, não sustenta a dualidade, divisão ou separação de corpo e alma. Como criaturas humanas, somos, ao mesmo tempo, mundanos e transcendentes a este mundo. Podemos relacionar-nos com Deus. Apesar da herança grega, que repassou à cultura ocidental a noção da dualidade em que ocorre a superioridade ou o primado da alma sobre o corpo, a tradição bíblica e cristã se norteou por uma concepção bem distinta: o corpo nunca foi considerado ruim ou inferior. A grandeza da vida que envolve o corpo humano está, não em liberar a alma para sair do corpo, mas na condição de que o ser humano, na totalidade do seu corpo, está aberto à transcendência. O ser humano não é apenas um sujeito a mais no mundo, mas é pessoa, única e que não encontra outra igual. Como pessoas, somos seres humanos distintos de todos os outros seres que nos cercam. Uma pessoa tem valor e dignidade. Ela tem valor absoluto, porque o tem para Deus. A pessoa não tem liberdade, mas é liberdade, porque tem as condições e as 10 10 capacidades de auto-determinação. Na liberdade, a pessoa humana pode optar em relação ao que vai fazer consigo mesma. Por isso, liberdade não tem nada a ver com capricho ou com a vontade repentina de fazer qualquer coisa que bate na cabeça, mas resulta de uma condição da nossa responsabilidade humana, pois, nos tornamos mais plenos e mais livres, quando optamos pelo bem. Isto também significa que podemos libertar-nos pelo Espírito, romper amarras de egoísmo e de pecado. A liberdade existe até mesmo em relação a Deus e à sua Palavra, pois Ele não nos obriga e nem nos força a aceitá-la, mas a oferece para a nossa decisão. Como criatura pessoal e livre, o ser humano está necessariamente aberto ao mundo e aos outros, e, neste exercício, exprime sua transcendência. Ele precisa do mundo que o rodeia para subsistir; tem capacidade de transformar este mundo que o rodeia e ainda é constituído pela potencialidade de abrir-lhe novas possibilidades. Portanto, o trabalho tem um âmbito cósmico, o que leva à conclusão de que uma pessoa humana é co-criadora, com Deus. Por experimentar perpétua insatisfação em relação ao que alcança e ao que deseja, o ser humano tem um sentido para além do mundo. Na capacidade de comunhão com as pessoas, o ser humano encontra condições para lidar consigo mesmo e, e de forma mais satisfatória com as outras pessoas. Enquanto pessoa, no encontro com o outro, o ser humano lida com um valor absoluto. Por isso, o relacionamento humano oferece condições de tanscendência ao que envolve as pessoas. 11 11 III TRAÇOS ANTROPOLÓGICOS DO SAGRADO CRISTÃO ANTIGO A concepção do sagrado cristão é extraordinariamente original. Parte do princípio de que Jesus Cristo é o Santo de Deus. A especial relação que Jesus Cristo viveu com Deus, fez com que se tornasse mediador de uma nova aliança. Nesta nova aliança, Deus comunica em plenitude a santidade e a justiça. Por isto, a novidade do sagrado cristão significa que Jesus conduz os seres humanos à santidade. De acordo com René Girard, mesmo que os cristãos nem sempre o apliquem na prática, o específico do cristianismo está em subverter constantemente o primitivo e o mítico em nosso mundo. O cristianismo seria, pois, um princípio desorganizador da sociedade, que costuma revelar-se mítica em muitos aspectos. Mas, como os cristãos geralmente não são muito cristãos, tendem a não ser profundamente coerentes com o específico cristão, e, não raras vezes, tornam- se rigorosos sustentadores de certos mitos da sociedade. E o que seriam estes mitos? Para Girard, são os argumentos usados para fechar a boca das vítimas, ou então, a história narrada apenas de acordo com a leitura dos perseguidores 4 . O conjunto de ritos para expressar o enquadramento neste projeto de Jesus Cristo é que veio a constituir, historicamente, um povo e uma comunidade humana. É por isto que a vida cristã começa com os ritos de iniciação cristã. Na verdade, estes ritos agregam questões cósmicas e culturais e levam a uma consagração do mundo (atualmente vem se procedendo a dessacralização). Um texto ilustrativo é Ap 4,3-8: santo, santo, santo é Deus onipotente... No Ap 6,10: destaca-se que os primeiros mártires pedem vingança pelo sangue derramado ao Deus 4 Em René Girard com teólogos da libertação, p. 53-54. 12 12 santo e verídico... Jo 17, afirma que Jesus se dirige para Deus: “Pai Santo” e pede que guarde os discípulos. Lucas (15) considera Jesus como divino e, diversos outros textos ressaltam que Jesus Cristo é o santo de Deus. Uma diferença bem saliente se estabelece em relação ao Primeiro Testamento: lá o sacerdote fazia uma mediação entre o sagrado transcendente e o sagrado cultual. O Segundo Testamento destaca que o sagrado do culto deriva diretamente de Jesus Cristo. A carta aos Hebreus (4,27-30) ressalta que a comunidade de Jerusalém estava cheia do Espírito Santo. Interpretava-se como Igreja, santificada por Cristo. Significava igualmente, que o envolvimento de Deus, de Jesus Cristo e do Espírito Santo se manifestavam no meio do povo. Também o texto de Ap 14,12 expressa este entendimento ao dizer que a Igreja é santa. Uma peculiaridade da concepção do sagrado no Segundo Testamento não é o sagrado meramente sociológico, nem de tabu ou de proibições, mas, o sagrado fundamentado no Deus que é Pai, Filho e Espírito. Disto resulta uma grande novidade: a Igreja é o povo santo unido a Deus. O sagrado é percebido como uma realidade que se encontra além da percepção do círculo da existência humana, mas, este mesmo sagrado nasce da experiência que o homem faz do divino. Trata-se, pois, de uma experiência humana, e tampouco a entenderíamos se não fosse humana. Mesmo assim, a experiência humana não consegue apreender toda a dimensão do sagrado, pois apenas a capta em fragmentos que se manifestam em tempos, pessoas, coisas e lugares. Deus não é nem sagrado e nem profano, mas SANTO, enquanto que o sagrado se manifesta entre o divino e o profano. Num longo período do primeiro testamento da Bíblia, Israel, por exemplo, entendia Deus como absolutamente transcendente, mas procurava acessá- lo pelo sagrado pagão purificado, ou seja, adaptando ritos de outros povos chamados de pagãos, como queimar vísceras de animais em altares do Templo. Já o sagrado cristão se fundamenta na pessoa de Jesus Cristo No final da década de 1950, Mircea Eliade, iniciou um estudo ainda mais distinto, um estudo do sagrado, não apenas pelo que tem de irracional, mas pelo que revela na sua 13 13 totalidade. Constatou que o sagrado é o oposto do profano. Uma pessoa entra em contato com o sagrado quando este se manifesta à pessoa. Esta experiência passou a ser denominada de hierofania (ou seja, envolve um fato em que o sagrado nos revela algo). 14 14 IV O CONCEITO DE PESSOA DA ANTROPOLOGIA CRISTÃ Da noção de sagrado e de criatura, feita à imagem de Deus, segundo o primeiro testamento da Bíblia, resultou também uma original concepção do ser humano no pensamento cristão. O ser humano, em vez de significar algo, como em outras culturas antigas, recebeu no ambiente cristão o entendimento de ser “alguém”. Não é “algo”, mas é “alguém”. Tal conceito foi decorrência da noção de criatura, por parte de Deus. Constituída em “alguém”, a pessoa humana passaria a ser assimilada como convidada especial a participar dos planos de Deus. A concepção do ser humano como “pessoa” é originalmente cristã. Quando usamos o termo “pessoa” no