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ANTROPOLOGIA_DA_RELIGIAO(1)

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ANTROPOLOGIA E RELIGIÃO 
 João Inácio Kolling 
 
 
 
I – NOÇÕES GERAIS 
 
Antropologia, como ciência, existe há poucos séculos, mas, como inquietação que 
desperta estudos e observações do agir humano, já é milenar. Ao lado de muitas outras ciências 
que se ocupam com o estudo do complexo sistema da vida humana, a Antropologia apresenta 
uma peculiaridade: quer estudar o ser humano no seu “todo”, isto é, estudar o que os seres 
humanos produzem na sua globalidade, ou seja, tudo o que envolve a cultura humana. 
 Sabemos que, ao lado de tantos outros seres humanos, captamos e produzimos cultura, 
arte, pensamento, poesia, folclore, ciência, tradições, leis e tantas outras coisas, mas somos, 
simultaneamente, afetados por estas variadas produções humanas. Podemos, pois, definir a 
multiplicidade de inventos, criações e descobertas, ao lado de todos os avanços da humanidade, 
como equivalentes ou como expressão do que chamamos de cultura. 
 Portanto, estudar Antropologia significa ocupar-se com a procura do entendimento de 
povos, de grupos humanos específicos, mas, também da humanidade como um “todo”. Tal 
estudo pode ser feito sobre aspectos biológicos, físicos, sociais, culturais e até filosóficos, 
quando estes procuram entender racionalmente os seres humanos, tanto pelo que são, quanto 
pelo que fazem. 
 
 
 
 
 
 
 
 
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II 
 
 RELAÇÃO ENTRE ANTROPOLOGIA E RELIGIÃO 
 
A relação da Antropologia Cultural com a Religião está em que cultura afeta a religião 
e, simultaneamente, concepções teológico-religiosas afetam dimensões da cultura. Entretanto, 
quando nos referimos à cultura encontramos certa dificuldade, porque esta pode ser estudada 
sob muitas sub-áreas do conhecimento antropológico, tais como Paleontologia, que se ocupa 
como o estudo das origens e da evolução humana; a Somatologia ou Antropologia Física, que 
estuda as diferenças físicas, sexuais e outros traços como sanguíneos, além de outras variedades 
dos seres humanos; Arqueologia, que estuda objetos de culturas passadas; Etnografia, que 
busca entender as diferenças entre culturas humanas; Etnologia, que estuda características de 
povos e raças; Lingüística, que estuda as formas de comunicação e expressão do pensamento 
entre distintos grupos humanos; Antropologia Social, que estuda instituições, processos e 
estruturas sociais. 
Apesar desta reciprocidade entre Antropologia e Religião, elas não se ocupam 
exatamente da mesma coisa, porque as duas áreas nos remetem ao entendimento dos seres 
humanos. Se a Antropologia estuda a religião como um dos importantes componentes da 
cultura, a Religião Cristã, por exemplo, parte de um dado de fé, isto é, parte da revelação de 
Deus, através de Jesus Cristo. Por isto, a Religião não pode ser entendida como simples 
especulação ou interpretação do que se manifesta no pensamento teológico cristão, mas tende, 
particularmente, a contextualizar e adequar o entendimento da revelação a ambientes culturais 
que se modificam com os tempos. Portanto, a adjetivação “Religiosa”, que se acrescenta ao 
conceito “Antropologia”, indica algo mais do que simplesmente interpretar o cristianismo, seja 
pelo que resultou da sua ação ou do que move suas motivações em torno do que espera 
 
 
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alcançar. Daí a perspectiva de alargar o entendimento antropológico do ser humano, com a 
riqueza dos elementos da revelação cristã
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. Ainda que a Religião também se ocupe com muitas 
interpretações, ela os realiza a partir de dados decorrentes da revelação ou da referencia a Jesus 
Cristo.
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 Em outras palavras, uma Antropologia Religiosa pode ajudar-nos a alargar e enriquecer 
não somente os conhecimentos acumulados em torno do agir humano, mas pode, também, 
envolver-nos numa graça maior de um Deus que aponta um caminho para ser percorrido, a fim 
de que os seres, que já se consideram humanos, possam realmente experimentar-se mais 
humanizados ou mais capazes de entender-se entre si. 
Nesta breve abordagem dos itens que seguem, procuramos relacionar a Antropologia 
pelo lado cultural, no sentido amplo e genérico, para realçar alguns aspectos da inter-atuação e 
da interdependência que se estabelece entre Antropologia Cultural e Religião. Trata-se, pois, de 
um texto escrito na perspectiva de abrir algumas „janelas‟ para entender a relação da 
Antropologia com a Religião, mas também com o intento de despertar alguma sensibilidade 
para possíveis avanços no diálogo entre a ciência religiosa e as ciências humanas. 
 Mesmo diante do propósito de destacar alguns aspectos, procuramos nos textos que 
seguem, situar-nos em ponderações ainda mais limitadas e restritas, porque se constituem 
apenas de pequenas noções introdutórias a respeito de alguns aspectos importantes que 
envolvem a Antropologia Religiosa e, de forma ainda mais delimitada, somente traços da 
Antropologia Cristã. Entre o que destacamos, encontram-se os temas: hierofanias, a concepção 
do sagrado e do profano, a violência no sagrado, a eroticidade, o mimetismo, o sacrificialismo, 
sobretudo relacionados ao percurso da ação cristã. 
Ao lado da herança bíblica do Primeiro Testamento da Bíblia, o cristianismo primitivo 
soube dar um original e profundo conceito do valor do ser humano ao deduzir que ele é 
“pessoa”. Mesmo diante das outras heranças antigas de sagrado e de experiências de Deus, a 
 
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 Evidentemente, outras religiões não cristãs também apresentam riquíssimos referenciais religiosos e teológicos. 
Nesta abordagem, porém, limitamo-nos ao quadro religioso cristão. 
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 O fundamento da Teologia na Revelação não significa unidade na interpretação teológica. Basta comparar 
alguns teólogos como Rahner, Congar, Metz, Chenu, Barth, Tillich e outros. A leitura da Revelação a partir de 
distintos lugares, sejam culturais ou geográficos, implica em diversificadas conclusões. 
 
 
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teologia cristã conseguiu assimilar razões profundas de esperança para conversão e 
transformação do mundo marcado por imperialismos e prepotências cruéis. No entanto, ao 
longo dos tempos, certos quadros culturais e religiosos cristãos deslocaram e mimetizaram, 
através de muitas formas de violência, a mesma prepotência imperialista e colonizadora. 
Mesmo assim, não se pode esquecer que, homens e mulheres de muitos lugares e de muitas 
condições diferentes, foram protagonistas alegres e exemplares do engrandecimento humano a 
partir do projeto de vida apresentado por Jesus Cristo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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III 
 
ALGUMAS HERANÇAS DA ANTROPOLOGIA BÍBLICA 
DO PRIMEIRO TESTAMENTO 
 
 
O teólogo Urs von Baltazar declarou que a Antropologia Religiosa trata de ponderar 
sobre a “fala” de Deus, transposta para a linguagem humana. Como seres humanos, que 
dependem essencialmente de um mundo envolvente, criado pela cultura, não entendemos 
automaticamente outras linguagens, sem primeiro aprendê-las. Como apenas entendemos 
signos de linguagem humana, tampouco conseguiríamos assimilar uma linguagem estritamente 
divina, porque somente e ainda com muita dificuldade,
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 entendemos parte da linguagem dos 
signos do entendimento humano. Deste modo, uma linguagem divina ou de outra natureza, 
simplesmente não nos diria nada. Por isto, ao pretendermos tratar da fala de Deus, precisamos 
transpor em linguagem humana como experimentamos e sentimos esta presença e as 
interpelações de Deus que delas decorrem para a nossa vida. 
A Bíblia oferece noções antropológicas muito diversificadas e muito distintas daquelas 
noções que as ciências modernas vêm apresentando nos últimos anos a respeito de religião, fé e 
experiência de Deus. Apesar das diferenças, não se pode ignorar que ocorreram grandes 
avanços para o entendimento destas distintas expressões humanas. 
Ainda que pensemos a Bíblia como linguagem humana a respeito de como grupos 
humanos, ou, pessoas,sentiram e captaram a manifestação de Deus, fica no ar uma questão: é 
toda a Bíblia que é mensagem de Deus ou são apenas partes dela? 
 
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 Basta lembrar a dificuldade para entender uma língua diferente dentre as inúmeras que existem em nossos dias! 
 
 
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Podemos constatar que poucos textos tratam diretamente sobre aspectos da vida 
humana (leis, mitos, patriarcas), mas, mesmo os outros, decorrem das formas como pessoas, em 
diferentes momentos históricos, sentiram interpelações de Deus. Ainda que alguns personagens 
bíblicos tenham comparado Deus como um chefe de exército capaz de matar, tratava-se de um 
modo como enquadravam Deus na sua linguagem humana, e, num determinado momento 
histórico. 
Entretanto, se pensamos que a Bíblia é uma mensagem de Deus à condição humana e, 
se Jesus Cristo é a culminância desta mensagem, então a Bíblia deve ser vista em sua 
totalidade, mesmo que alguns textos isolados pareçam não apresentar nada significativo da 
parte de Deus. Para as pessoas envolvidas naquela experiência, todavia, isto representava algo 
de Deus. Por isto, alguns aspectos apresentam uma relevância especial: 
a) - O uso de referências humanas - Um aspecto antropológico muito importante da Bíblia é o 
seu uso de imagens da condição humana. A Bíblia, por exemplo, fala muito de coração, 
sem se referir ao órgão propulsor do sangue no organismo, mas como entendimento do 
interior das pessoas, dos sentimentos, dos desejos, da razão e da decisão. O coração está no 
interior do corpo como sentimento, como desejo, como razão e como decisão. Ele também 
é colocado como centro de energia do corpo. Por vezes, o coração ainda equivale a 
sentimentos da alma. 
Para a Antropologia, mais do que a imagem usada, torna-se significativo 
observar o modo como a Bíblia oferece a imagem com vistas a expressar aspectos 
invisíveis da vida. Ela exprime no corpo humano o que não é visível. 
b) - Os antropomorfismos - A Bíblia também revela uso freqüente de antropomorfismos, isto 
é, usa imagens antropológicas humanas para falar de Deus. Por exemplo, que Deus 
“falou”, que Ele é fiel, que é bom, etc. Também usa antropomorfismos morais, no sentido 
de que Deus é fonte de obrigações morais. O antropomorfismo, em tal caso, transmite um 
conhecimento moral. Se a conclusão de que Deus cria, fala e age, foi incorporada ao 
conteúdo bíblico, é porque estas pessoas de fé queriam passar, para a vida de outras 
 
 
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pessoas, a noção de que o ser humano também pode apresentar outra qualidade de vida, 
que pode falar diferente e que pode agir de maneira mais respeitosa e humanitária. 
A Antropologia bíblica ajuda a perceber que, ao longo de muitos séculos, 
diferentes grupos humanos se moveram pela fé num Deus que se relacionava com eles e 
lhes deixava, contudo, uma constante cobrança para a transformação, além de seguidas 
interpelações para que estes seres humanos pudessem melhorar a qualidade de sua vida. 
Por trás destas motivações estava uma noção muito significativa: o centro é Deus e não o 
ser humano. Os seres humanos são apenas criaturas ou obras de Deus. 
c) - O Pecado - A Antropologia Bíblica também deixa muito evidente um traço humano que, 
constantemente, nos envolve: o doloroso problema do pecado. O livro de Jó, do Primeiro 
Testamento, reflete muito bem este paradoxo. No capítulo 42, destaca que quanto mais 
encontra Deus, mais se dá conta do pecado. Ali, a noção de pecado não é a de uma infração 
de regra, mas pecado é não ter entendido a Deus. Jó fez uma “desantropomorfização” de 
Deus (distinguiu e separou Deus das características das pessoas humanas), pois constatou 
que há uma grande diferença entre Deus e o ser humano. Por isso deduziu que os seres 
humanos não são donos do seu sopro vital... 
 No século IV da nossa era cristã desenvolveu-se outra noção sobre o pecado e 
esta teve muitas e profundas repercussões nos quadros da Igreja Católica. Na época 
começou a desenvolver-se a chamada de doutrina pelagiana (de Pelágio) que desvirtuava a 
proposta salvadora de Jesus Cristo. Sustentava que uma pessoa poderia salvar-se e 
redimir-se com suas próprias forças. Nenhuma intervenção de outro mundo seria 
necessária à salvação. Para justificar tal convicção, estabelecia uma polarização entre Adão 
e Jesus Cristo. O primeiro, Adão, seria um exemplo negativo de superação, enquanto que 
Jesus Cristo, teria sido um exemplo positivo de como cada pessoa poderia auto-
transcender-se. Os males que se manifestam na vida das pessoas, todavia, seriam apenas 
contrariedades da natureza e não teriam nada a ver com a situação dos pecados das 
pessoas, tanto pessoais quanto coletivos. 
 
 
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 Agostinho de Hipona (ou Santo Agostinho) estabeleceu grande polêmica contra 
o pelagianismo ao sustentar que a salvação somente aconteceria com a graça, dom gratuito 
de Deus. Por isto, sustentou também que o pecado de Adão foi transmitido a todos os 
seres, porém, a salvação aconteceu através de Jesus Cristo, pois Ele não foi apenas um bom 
exemplo, mas foi o salvador de Deus. 
 Independente desta polêmica e dos seus efeitos na história da Igreja é possível 
constatar que existe um mal nas pessoas, nas sociedades e em toda a humanidade. O modo 
como estes seres humanos vivem, com certeza, não preenche adequadamente a noção de 
que foram feitas à imagem de Deus. Tal constatação requer um caminho ou um processo 
de remissão ou de saída deste estado de pecado, que aconteceria a partir do batismo... 
Mesmo que hoje muitas pessoas não pensam e agem como Agostinho de Hipona, não nos 
escapamos de uma melancólica constatação: mesmo cientes da proposta de remissão 
apontada por Cristo, e ainda que estejamos encantados pela sua proposta de salvação, 
agimos de modos que não concorrem para este caminho salvador. Esta misteriosa 
inclinação que nos leva a fazer as coisas pelo lado avesso tende a alienar da proposta de 
amor que vem de Deus. 
 
d) - A contingência - Junto com o problema do pecado, está o da contingência, ou seja, o do 
limite da nossa condição humana. Jó constatou que Deus pode fazer tudo e nada lhe é 
impossível. Por isso, Jó pode ser interpretado como sinônimo dos sofrimentos nacionais do 
período do exílio e do pós-exílio, no século V antes de Cristo. Trezentos anos mais tarde, 
diante de uma invasão imperialista muito cruel, o livro dos Macabeus (2Mc,7,22-23) 
salienta que uma mãe encoraja os filhos com sua experiência de fé professada: sente-os 
como indefesos, mas os convida para que se entreguem confiantes à providência divina. 
Este quadro de algumas referências do Primeiro Testamento da Bíblia já nos permite 
contrastar diferenças notáveis da experiência de Deus, feitas a partir do Novo Testamento, 
segundo a Antropologia Cristã. 
 
 
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A Antropologia Cristã parte da noção de que Deus se deu a conhecer por meio de 
Cristo, no Espírito Santo. Tal concepção recupera elementos do Primeiro Testamento e destaca 
conseqüências desta nova leitura da ação de Deus, sintetizada no Segundo Testamento. 
Do Primeiro Testamento, recuperou-se a significativa noção de que os seres humanos se 
constituíam em “imagem de Deus”, porque vinham exercendo o primado ou o controle sobre as 
outras formas de vida no planeta. Esta perspectiva nos ajuda a entender porque o livro do 
Gênesis colocou o ser humano no centro do Éden, ou do paraíso. 
 O Segundo Testamento faz uma releitura desta antiga interpretação e enfatiza que 
Cristo é o novo Adão. Trata-se de uma orientação escatológica para o sentido da vida e não 
apenas da capacidade de estar acima dos outros seres que vivem no planeta Terra. 
0utra importante noção da Antropologia Cristã é a de que o ser humano é chamado a ser 
filho de Deus, através de Jesus Cristo. Significa que, Nele, nos tornamos de filiação divina. 
Uma terceira e importante noção da Antropologia Cristã é a de que a plenitude doser 
humano não se resume apenas a do que ele consegue fazer ou conquistar, mas no poder contar 
com a graça gratuita e imerecida por parte de Deus. 
Uma quarta característica da Antropologia cristã é a da defesa da unidade do ser humano, 
isto é, não sustenta a dualidade, divisão ou separação de corpo e alma. Como criaturas humanas, 
somos, ao mesmo tempo, mundanos e transcendentes a este mundo. Podemos relacionar-nos com 
Deus. Apesar da herança grega, que repassou à cultura ocidental a noção da dualidade em que 
ocorre a superioridade ou o primado da alma sobre o corpo, a tradição bíblica e cristã se norteou 
por uma concepção bem distinta: o corpo nunca foi considerado ruim ou inferior. 
A grandeza da vida que envolve o corpo humano está, não em liberar a alma para sair 
do corpo, mas na condição de que o ser humano, na totalidade do seu corpo, está aberto à 
transcendência. O ser humano não é apenas um sujeito a mais no mundo, mas é pessoa, única e 
que não encontra outra igual. Como pessoas, somos seres humanos distintos de todos os outros 
seres que nos cercam. Uma pessoa tem valor e dignidade. Ela tem valor absoluto, porque o tem 
para Deus. A pessoa não tem liberdade, mas é liberdade, porque tem as condições e as 
 
 
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capacidades de auto-determinação. Na liberdade, a pessoa humana pode optar em relação ao 
que vai fazer consigo mesma. Por isso, liberdade não tem nada a ver com capricho ou com a 
vontade repentina de fazer qualquer coisa que bate na cabeça, mas resulta de uma condição da 
nossa responsabilidade humana, pois, nos tornamos mais plenos e mais livres, quando optamos 
pelo bem. Isto também significa que podemos libertar-nos pelo Espírito, romper amarras de 
egoísmo e de pecado. A liberdade existe até mesmo em relação a Deus e à sua Palavra, pois Ele 
não nos obriga e nem nos força a aceitá-la, mas a oferece para a nossa decisão. 
Como criatura pessoal e livre, o ser humano está necessariamente aberto ao mundo e 
aos outros, e, neste exercício, exprime sua transcendência. Ele precisa do mundo que o rodeia 
para subsistir; tem capacidade de transformar este mundo que o rodeia e ainda é constituído 
pela potencialidade de abrir-lhe novas possibilidades. Portanto, o trabalho tem um âmbito 
cósmico, o que leva à conclusão de que uma pessoa humana é co-criadora, com Deus. Por 
experimentar perpétua insatisfação em relação ao que alcança e ao que deseja, o ser humano 
tem um sentido para além do mundo. Na capacidade de comunhão com as pessoas, o ser 
humano encontra condições para lidar consigo mesmo e, e de forma mais satisfatória com as 
outras pessoas. Enquanto pessoa, no encontro com o outro, o ser humano lida com um valor 
absoluto. Por isso, o relacionamento humano oferece condições de tanscendência ao que 
envolve as pessoas. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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III 
 
TRAÇOS ANTROPOLÓGICOS DO SAGRADO CRISTÃO 
ANTIGO 
 
A concepção do sagrado cristão é extraordinariamente original. Parte do princípio de 
que Jesus Cristo é o Santo de Deus. A especial relação que Jesus Cristo viveu com Deus, fez 
com que se tornasse mediador de uma nova aliança. Nesta nova aliança, Deus comunica em 
plenitude a santidade e a justiça. Por isto, a novidade do sagrado cristão significa que Jesus 
conduz os seres humanos à santidade. 
De acordo com René Girard, mesmo que os cristãos nem sempre o apliquem na prática, 
o específico do cristianismo está em subverter constantemente o primitivo e o mítico em nosso 
mundo. O cristianismo seria, pois, um princípio desorganizador da sociedade, que costuma 
revelar-se mítica em muitos aspectos. Mas, como os cristãos geralmente não são muito cristãos, 
tendem a não ser profundamente coerentes com o específico cristão, e, não raras vezes, tornam-
se rigorosos sustentadores de certos mitos da sociedade. E o que seriam estes mitos? Para 
Girard, são os argumentos usados para fechar a boca das vítimas, ou então, a história narrada 
apenas de acordo com a leitura dos perseguidores
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. 
O conjunto de ritos para expressar o enquadramento neste projeto de Jesus Cristo é que 
veio a constituir, historicamente, um povo e uma comunidade humana. É por isto que a vida 
cristã começa com os ritos de iniciação cristã. Na verdade, estes ritos agregam questões 
cósmicas e culturais e levam a uma consagração do mundo (atualmente vem se procedendo a 
dessacralização). Um texto ilustrativo é Ap 4,3-8: santo, santo, santo é Deus onipotente... No 
Ap 6,10: destaca-se que os primeiros mártires pedem vingança pelo sangue derramado ao Deus 
 
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 Em René Girard com teólogos da libertação, p. 53-54. 
 
 
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santo e verídico... Jo 17, afirma que Jesus se dirige para Deus: “Pai Santo” e pede que guarde 
os discípulos. Lucas (15) considera Jesus como divino e, diversos outros textos ressaltam que 
Jesus Cristo é o santo de Deus. 
Uma diferença bem saliente se estabelece em relação ao Primeiro Testamento: lá o 
sacerdote fazia uma mediação entre o sagrado transcendente e o sagrado cultual. O Segundo 
Testamento destaca que o sagrado do culto deriva diretamente de Jesus Cristo. 
A carta aos Hebreus (4,27-30) ressalta que a comunidade de Jerusalém estava cheia do 
Espírito Santo. Interpretava-se como Igreja, santificada por Cristo. Significava igualmente, que 
o envolvimento de Deus, de Jesus Cristo e do Espírito Santo se manifestavam no meio do povo. 
Também o texto de Ap 14,12 expressa este entendimento ao dizer que a Igreja é santa. 
Uma peculiaridade da concepção do sagrado no Segundo Testamento não é o sagrado 
meramente sociológico, nem de tabu ou de proibições, mas, o sagrado fundamentado no Deus 
que é Pai, Filho e Espírito. Disto resulta uma grande novidade: a Igreja é o povo santo unido a 
Deus. O sagrado é percebido como uma realidade que se encontra além da percepção do círculo 
da existência humana, mas, este mesmo sagrado nasce da experiência que o homem faz do 
divino. Trata-se, pois, de uma experiência humana, e tampouco a entenderíamos se não fosse 
humana. Mesmo assim, a experiência humana não consegue apreender toda a dimensão do 
sagrado, pois apenas a capta em fragmentos que se manifestam em tempos, pessoas, coisas e 
lugares. 
Deus não é nem sagrado e nem profano, mas SANTO, enquanto que o sagrado se 
manifesta entre o divino e o profano. Num longo período do primeiro testamento da Bíblia, 
Israel, por exemplo, entendia Deus como absolutamente transcendente, mas procurava acessá-
lo pelo sagrado pagão purificado, ou seja, adaptando ritos de outros povos chamados de pagãos, 
como queimar vísceras de animais em altares do Templo. Já o sagrado cristão se fundamenta na 
pessoa de Jesus Cristo 
No final da década de 1950, Mircea Eliade, iniciou um estudo ainda mais distinto, um 
estudo do sagrado, não apenas pelo que tem de irracional, mas pelo que revela na sua 
 
 
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totalidade. Constatou que o sagrado é o oposto do profano. Uma pessoa entra em contato com 
o sagrado quando este se manifesta à pessoa. Esta experiência passou a ser denominada de 
hierofania (ou seja, envolve um fato em que o sagrado nos revela algo). 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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IV 
 
O CONCEITO DE PESSOA DA ANTROPOLOGIA 
CRISTÃ 
 
Da noção de sagrado e de criatura, feita à imagem de Deus, segundo o primeiro 
testamento da Bíblia, resultou também uma original concepção do ser humano no pensamento 
cristão. O ser humano, em vez de significar algo, como em outras culturas antigas, recebeu no 
ambiente cristão o entendimento de ser “alguém”. Não é “algo”, mas é “alguém”. Tal conceito 
foi decorrência da noção de criatura, por parte de Deus. Constituída em “alguém”, a pessoa 
humana passaria a ser assimilada como convidada especial a participar dos planos de Deus. 
A concepção do ser humano como “pessoa” é originalmente cristã. Quando usamos o 
termo “pessoa” noâmbito da linguagem familiar, geralmente a identificamos com maturidade e 
responsabilidade. É quase como dizer “está ficando gente”. Representa, pois, uma aproximação 
com bom comportamento. Todavia, pensar o conceito de pessoa apenas pelo aspecto ético-
moral, seria empobrecer muito seu significado. Por isto, torna-se importante a recuperação da 
origem etimológica e semântica da palavra “pessoa”. O conceito mais antigo relaciona 
“pessoa” a “máscara”. 
Os etruscos, um dos povos que formaram a cultura latina, usavam há mil e quinhentos 
anos antes de Cristo, o termo PERSHU para designar as máscaras de modelos usados em 
representações teatrais. No ambiente grego, cerca de quinhentos anos antes de Cristo, a 
conotação dada ao termo máscara equivalia a rosto ou cara, nas representações que os atores 
faziam de outros personagens. Na cultura grega, no entanto, o ser humano não era valorizado 
pela sua dimensão corpórea, mas pelo seu espírito, ou seja, pelas idéias poderiam levar a 
estabelecer contatos com o divino, com o perfeito e com o eterno. Por isso a preocupação grega 
 
 
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não girava em torno dos seres humanos, mas em torno do que fosse universal. O ser 
individualizado não representava foco de maiores interesses de entendimento. 
O verbo latino PERSONARE, muito próximo do termo “persona” e, também do verbo 
“ressonare” (= ser sonoro ou ressoar), faz lembrar o mesmo papel do ator que procura fazer 
ressoar no auditório o som imitado de quem representa. Mesmo neste quadro, o termo pessoa 
ficou associado à máscara. Como uma mesma máscara não se prestava para representar 
distintos personagens, a máscara passou a representar o papel ou um procedimento da pessoa 
que o ator procurava destacar através da imitação, quer fosse real ou fictícia. 
Destes antecedentes todos, resultou uma conseqüência prática: uma pessoa é um alguém, 
real ou fictício, escondido atrás de uma máscara. Em outras palavras, trata-se da personalidade 
que se esconde atrás de cada rosto. 
O Segundo Testamento aprofundou esta noção de boa relação com Deus, pois assimilou 
que esta honra era também uma graça concedida por Deus para fazer acontecer a “nova 
criação”. 
Na concepção do Primeiro Testamento já havia sido salientado que o ser humano é um 
ser que dialoga com Deus e capaz de assumir responsabilidades através do dom que Deus 
oferecia. O ser humano era visto como um agente relacional de conversa. Nesta perspectiva o 
Segundo Testamento apresentou Jesus Cristo como um primoroso modelo desta relação de 
conversa com Deus. Tal noção evidenciou dois aspectos importantes: um ser humano é 
convidado por Deus a estabelecer relações de diálogo com outros seres humanos para se sentir 
ele mesmo. 
Este duplo aspecto oferecia ao ser humano a condição de ser único. Portanto, um ser 
humano não é a mesma coisa do que as outras pessoas. Ainda q1ue o agir com os outros tenha 
em vista uma auto-realização, Deus apresenta um projeto para melhor viabilizar esta dupla 
fonte de realização. Aceitar o projeto de Deus não significaria, pois, negar-se a si mesmo, mas 
acolher uma mediação para melhores relações com os outros e, evidentemente, consigo mesmo. 
Dali também resultou a tríplice dimensão de abertura ao mundo, aos outros e a Deus. A 
 
 
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salvação de uma pessoa não poderia acontecer sem simultâneo processo de salvação sócio-
política e do ambiente macro-social. Bem sabemos que num momento histórico relativamente 
recente, esta noção passou a ser assimilada como salvação individual da própria alma. 
 Para nossas ponderações, muda alguma coisa se damos uma ou outra conotação ao 
termo “pessoa”? 
 O pensamento moderno tende a usar mais o termo “indivíduo” do que o de “pessoa”, 
uma conotação mais ligada ao aspecto físico de um ser humano. Diversos pensadores cristãos 
como Mounier, Marcel e Maritain enfatizaram que o termo pessoa deve realçar sua capacidade 
de transcendência sobre o mundo: é capaz de estabelecer comunhão e ao mesmo tempo é livre e 
capaz de abrir-se a múltiplas formas de vida. 
 O pensamento moderno, por sua vez, ao dar ênfase ao termo indivíduo, justifica que ele, 
na verdade, não é algo original e genuíno e tampouco vive o que é especificamente seu, pois é 
mero fruto da socialização e das estruturas sociais, políticas, econômicas, educacionais, etc. Do 
empirismo inglês herdamos a noção de que, ao nascer, somos como uma folha em branco sobre 
a qual se escreve a história, boa ou má, segundo a educação. Na verdade, atualmente, tudo 
indica que uma pessoa se caracteriza por traços bem mais amplos e variados do que os da 
influência do meio social. 
 A conciliação destes enfoques não desvia certas polêmicas: mesmo que a declaração 
universal dos direitos humanos insista que todos os seres humanos são constituídos de 
dignidade, fica no ar a dúvida sobre que dignidade e que grau de dignidade. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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V 
 
PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA DAS EXPERIÊNCIAS DO 
SAGRADO 
 
 
 Um traço marcante dos seres humanos, mais profundo do que aparentemente parece ser, 
é o de que eles tendem a fazer experiências muito variadas do sagrado ou do divino. Estas 
experiências são chamadas de hierofanias. 
Hierofanias são as formas como as pessoas experimentam a manifestação do sagrado ou 
do divino. 
A história das religiões revela grande quantidade de hierofanias, desde as do encanto 
ante uma pedra, até a revelação de Jesus Cristo ou a aparição de santos e de santas. 
 Atualmente, poucas pessoas tendem a aceitar as experiências do sagrado a partir 
de pedras, árvores ou flores e bichos. Na verdade, não significa uma adoração de pedras, 
imagens ou lugares, mas, de constatar como estas pedras ou os outros objetos revelam algo 
sagrado. Ainda que uma pedra continue sendo pedra, acaba, ao mesmo tempo, sendo outra 
coisa. Por isso, as pessoas mais arcaicas e primitivas procuravam viver no sagrado ou perto de 
objetos sagrados. Para elas, o sagrado era sinônimo de poder perene e eficaz. Disso, resultou o 
estabelecimento de uma oposição entre sagrado e profano. A pessoa religiosa, através deste 
 
 
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poder, quer encher-se do sagrado e estar profundamente dentro da realidade. Ela quer 
permanecer o máximo de tempo no espaço sagrado. Quer saturar-se deste poder. 
Somente a partir dos últimos séculos é que começou a ser pensado o mundo, na sua 
totalidade, sem vínculo com a sacralidade. Por este motivo, percebemos, hoje, um grande 
precipício entre sagrado e profano. A natureza, os objetos, as casas, certas relações e até o sexo, 
bem como, muitos lugares, foram considerados sagrados ou como meios para entrar em contato 
com o sagrado. 
 O homem moderno dessacraliza estes espaços e estas mediações. Bastaria comparar o 
entendimento da terra para um agricultor, um caçador e um cidadão urbano... 
Conforme Eliade, “para o homem religioso, o espaço não é homogêneo: o espaço 
apresenta rupturas, quebras, há porções de espaço qualitativamente diferentes das outras”.5 
Como ilustração, serve o texto de Ex, 3,5. 
 Enquanto o espaço sagrado é forte, os outros espaços são amorfos. O sagrado é visto 
como o único elemento real e que dá forma e sentido ao que o rodeia. Neste sentido, o sagrado 
acaba dando um sentido ontológico ao mundo. Em outras palavras, o sagrado faz o espaço 
tornar-se homogêneo a partir de um centro que o organiza. 
 Já a concepção dessacralizada do profano, entende o espaço como neutro e homogêneo. 
No entanto, mesmo que existam posturas profanas, estas geralmente não são puras, pois, até 
mesmo na concepção do profano, ocorre mescla de elementos da concepção do sagrado. 
Como é destacado o sagrado na Bíblia? Que Deus se manifesta como um Ser pessoal e 
que se dirige aos seres humanos (aos fiéis) e lhes propõe uma aliança: dispõe-se a guiá-los ou 
conduzi-los no caminho da vida. Este Deus pode aparecer a qualquer pessoa. Isaías, por 
exemplo, destacaque Ele é santo e que Ele formula um convite para que o povo também se 
torne santo. 
 
 
 
5
 No livro O sagrado e o Profano, p. 21. 
 
 
19 
19 
VI 
 
O SAGRADO E O PROFANO 
 
As experiências hierofânicas, ou do sagrado, levam ao estabelecimento de uma 
polarização entre sagrado e profano. É uma forma de dividir o mundo e as coisas, situando-os 
em áreas ou campos distintos. 
Em 1917, um livro de Rudolph Otto provocou grandes repercussões ao oferecer um 
novo enfoque sobre o significado da religião. Em vez de preocupar-se com as idéias sobre Deus 
e sobre a religião, Rudolph Otto se preocupou pelo entendimento do modo como as pessoas 
experimentam Deus e a Religião, ou seja, estudou as modalidades de experiência religiosa. Até 
então, muitos escritores, especialmente teólogos, haviam escrito idéias sobre experiências e 
deduções relativas a Deus. As conseqüências práticas que resultaram destas idéias poderiam, no 
entanto, estar absolutamente distantes de Deus. Otto procurou entender como alguém 
experimenta o “Deus vivo”, o que é algo muito diferente, mas também muito significativo para 
nosso estudo de Antropologia Teológica. 
Uma importante constatação de Otto foi perceber que a experiência do sagrado não é 
algo racional. Uma experiência do sagrado normalmente envolve dois sentimentos muito 
estranhos: pavor e encantamento ante a experiência numinosa, ou seja, experimentamos, ao 
mesmo tempo, uma grande força de atração para Deus e, simultaneamente, medo e repulsa. 
Este temor e pavor revelam-se como “mysterium fascinans” (experiência de algo que atrai e 
apavora ao mesmo tempo). Experimenta-se o sagrado como o “totalmente outro” e a linguagem 
humana é incapaz de expressar adequadamente como se experimenta este “totalmente outro”. 
O sagrado, segundo Rudolph Otto, é o fundamento das religiões. É o princípio vivo que 
envolve três modalidades de manifestação: 
 
 
20 
20 
a) O numinoso, algo marcante que nos leva ao “mysterium fascinans”; 
b) O santo, valor numinoso que se opõe ao que é profano. 
c) O sacro, categoria do espírito que leva a descobrir o numinoso. 
 
O sagrado é sempre reconhecido como potência de uma ordem muito diversa da ordem 
das forças que existem na natureza. Por isto a manifestação do sagrado é uma hierofania. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
21 
21 
 
VII 
 
O SAGRADO E O DIVINO 
 
 Se, de um lado, o “sagrado” é visto como algo distinto das forças da natureza, ele fica 
situado em que âmbito? Podemos situá-lo nas instâncias superiores, divinas ou de outro mundo, 
e ligar-nos a esta exterioridade para salvar o nosso mundo decaído e frágil, ou, podemos 
satisfazer-nos com os valores racionais que orientam nosso mundo técnico, científico e 
moderno. 
A resposta é complicada porque estamos imersos num mundo racional, mas que 
também agrega os valores da religião e do âmbito divino. Todavia, quando nos referimos à 
religião, seriam todas ou somente algumas delas? A globalização da racionalidade fez com que 
também a religião viesse a se tornar um objeto de exportação. Esta trans-nacionalização faz 
com que certas agremiações religiosas entram em muitos segmentos de diferentes sociedades 
nacionais. Tal fenômeno, evidentemente nos leva a constatar que o termo “religião” se presta 
para muitas interpretações muito distintas umas das outras. 
Enquanto algumas formas religiosas apelam em favor de uma abertura para o “outro 
mundo”, o divino, muitas outras se sentem plenamente confortáveis na adequação às regras do 
mercado internacional. Por isso Luiz Roberto Benedetti salienta que vem ocorrendo uma 
reconfiguração da religião na sociedade. 
6
 O consumo da religião parece tornar-se mais 
importante do que transformação de situações humanas inadequadas. Mesmo que o iluminismo 
e todo o prolongado processo de secularização tenham preconizado o fim da religião, esta, ao 
contrário, se manifesta muito mais intensa e aguda, mas, agregada ao mundo secular e se 
 
6
 No Artigo Religião, Crises e Transformações. In: VIDA PASTORAL, maio-junho de 2009, Ano 50, no. 266, p. 
21. 
 
 
22 
22 
apresenta como religião indiferente aos tradicionais grupos religiosos. Portanto, mais do que 
pertencer a uma determinada religião, a religião leva as pessoas a fazer escolhas subjetivas. 
Assim, em vez de dogmas, normas e orientações divinas, o fato religioso leva as pessoas a 
escolher livremente os variados produtos nas prateleiras dos grandes mercados. 
Este deslocamento do papel da religião vai provocar uma alteração na relação entre 
divino e sagrado. O Sociólogo Allain Touraine sustenta que o divino foi deslocado para o 
interior dos indivíduos.
7
 Estes interiorizam certos valores e estes é que lhe indicam as luzes 
para o caminho da vida. Observa-se, portanto, que o divino, que por longo tempo histórico foi 
estabelecido como algo que está além do nosso mundo, precisa incidir sobre este mundo para 
transformá-lo. Esta ótica teria permitido a certas pessoas manipular o divino para justificar seu 
próprio poder sobre as pessoas. É praticamente o que Immanuel Kant já havia formulado ao 
levantar a suspeita de que, quando alguém fala para outras pessoas a respeito do que Deus delas 
espera, poderia, na verdade, estar sendo veiculado apenas o desejo desta pessoa pretender 
controlar as outras que a escutam. Ao invés de proclamar a vontade de Deus, estaria afirmando 
apenas o seu poder de controle dos ouvintes. 
Para Touraine, Jesus de Nazaré, no que fez e falou, teria colocado um encerramento no 
processo de utilizar-se o divino para manipular politicamente as pessoas e justificar seu 
exercício de poder. De certa forma, ele teria ajudado a deslocar o divino do “mundo do além” 
para o mundo da interioridade humana. 
Mesmo situando o divino nesta interioridade humana, esta ainda pode oferecer a 
tentação de julgar o mundo de forma negativa, a partir da luz exterior e condenar a vida pelo 
seu materialismo, pelo seu hedonismo e pelos seus interesses mercantilistas. O sistema 
capitalista, de certa forma, ajudou a tirar da religião a capacidade de manipular politicamente as 
pessoas a partir de um suposto poder divino. Desta forma o que seria o lado benéfico deste 
deslocamento do divino, da exterioridade do outro mundo para a interioridade humana, 
 
7
 Idem, ibidem, p. 23. 
 
 
23 
23 
representa, todavia, um novo problema: se o divino emerge do interior de cada sujeito já não 
se carece de nenhuma instituição religiosa, como a Igreja Católica e tantas outras. 
O espargir de muitas emoções religiosas, pode não constituir um avanço real para a 
superação da fragilidade humana: ainda que a entrada do divino para a intimidade humana 
possa parecer louvável, e, aparentemente reafirmar os fundamentos cristológicos, pode o 
próprio sentimento divino da interioridade, voltar a ser exercido como um poder tirano e que 
instrumentaliza as outras pessoas segundo as leis do mercado. Já veiculado como um produto a 
mais nas prateleiras do consumo, o divino, fica na mesma e velha função manipuladora das 
pessoas. Se apenas o mundo interior é a fonte para ditar o que é divino, sagrado e bom, pode 
ainda alguém, que está além do nosso mundo, nos dizer algo para não ficarmos na mera 
condição de lagartas que consomem as folhas que manipuladores nos tratam? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
24 
24 
 
 
VIII 
 
O SIMBÓLICO E O DIABÓLICO 
 
Na vida pessoal, coletiva e também na vida da Terra, no universo, move-se o jogo de 
duas forças contrárias, chamadas de dialéticas, ou, no qual uma interage sobre a outra. 
Enquanto a vida se mobiliza para fatores de agregação, ocorre, simultaneamente, a ação de 
forças dispersivas. É o que Leonardo Boff expressou atravésdos termos “sim-bólico” e “dia-
bólico”. 
Simbólico significa ajuntar, agregar e fazer convergir. O termo também equivale ao 
sinal que distingue alguém, ou algo, de outras coisas. Por exemplo, uma camiseta de um time 
de futebol, ou a logomarca de uma empresa, constitui sinal simbólico para identificar os 
membros que os representam, sejam religiosos, esportivos ou comerciais. Através do sinal 
simbólico conhecido, facilmente identificamos traços específicos de agregação de grupos 
sociais, por razões das mais variadas. 
Diabólico é tudo o que desagrega, desune, separa e desconecta. Numa relação 
matrimonial, ou qualquer outro processo de aproximação entre pessoas para toda espécie de 
alianças ou negociações – que representam forças simbólicas – atua, paralelamente, um 
processo próximo e parecido de fatores que levam a rupturas, desencontros, inimizades e 
discordâncias. Basta observar nosso mundo social: junto aos enormes empenhos para a 
harmonia e unidade, ocorrem incontáveis processos inversos e adversos que tendem para 
rupturas, exclusões e tentativas de morte, por guerras e outras ameaças. 
 
 
25 
25 
O bom deste embate de forças contrárias é que até hoje, nunca uma chegou a anular a 
outra de forma absoluta. O equilíbrio nem sempre agradável e nem sempre fácil é um jogo que 
dá dinamismo à vida. 
Leonardo Boff salienta que o diabólico e o simbólico são princípios que estruturam não 
apenas as relações humanas e sociais, mas também a natureza e o cosmos. A natureza, por 
exemplo, apresenta, de um lado, fenômenos de agregação, associação, interdependência e 
complementariedade, enquanto que, simultaneamente e, por outro lado, faz eclodir imensas 
forças de caça, destruição e morte em grandes proporções, como os causados por vulcões, 
terremotos, maremotos, choques do planeta com meteoros, etc. 
Esta luta dialética ultrapassa as dimensões do nosso quadro humano e se revela na 
disputa de espaço de sobrevida das plantas e dos animais. Trata-se de uma disputa frenética, 
envolvendo mecanismos de salvação e de morte ao mesmo tempo. Com relação às plantas, não 
é diferente. Ocorrem disputas ferrenhas entre terra e água, entre seres machos e fêmeas, enfim, 
ao lado da busca de beleza e da harmonia, atua uma grande voracidade que leva à destruição e 
morte. 
Voltando à nossa condição humana, podemos ainda constatar que a busca de equilíbrio 
diante dos incontáveis riscos e mecanismos de morte, aponta para um extraordinário desvelo 
em favor de nascimentos, sonhos e esperanças que deles podem emergir. A nossa querida mãe 
Terra também apresenta esta contradição: de um lado fornece vitaminas, sais, aminoácidos, 
fibras, carbo-hidratos e muitos outros elementos vitais, mas, de outro lado, produz toxinas, 
bactérias e formas de vida que atentam radicalmente contra a nossa existência. 
Mesmo que a inteligência humana tenha dado passos gigantescos e fantásticos para 
melhorar a qualidade de vida, de saúde e de sobrevivência no Planeta, esta mesma inteligência 
produziu armas incontáveis e sofisticadas para matar sistematicamente seres humanos que, 
violenta ou pacificamente, querem viver e ser felizes. 
A nossa condição humana, riquíssima pela produção artística, científica, técnica, 
religiosa e cultural, não consegue esconder esta escancarada contraposição de polarizações, 
 
 
26 
26 
mobilizadas entre o melhor e o pior. Enquanto, de um lado, se produzem gestos de 
extraordinária grandeza humana, outros são de degradação destes mesmos alcances. São forças 
de transformação e de superação, convivendo com forças entrópicas e de exterminação. Este 
jogo diabólico e simbólico também pode ser constatado em nossos processos psíquicos e 
emocionais, ao lado da sua manifestação na Terra e no universo. Estaríamos, pois, fadados a 
este determinismo? 
Boff salientou algo muito importante: “O sim-bólico haure forças do dia-bólico. É a 
nossa esperança”.8 
Em outras palavras, o anseio pelo humano emerge do mundo tenebroso, pois, 
necessitamos transformar forças diabólicas em forças simbólicas para continuar a viver e, 
ainda, na tarefa de redimir a humanidade e a natureza que nos envolve. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
8
 BOFF, Leonardo. O despertar da Águia – o dia-bólico e o sim-bólico na construção da realidade, p. 167. 
 
 
27 
27 
IX 
 
A CONSAGRAÇÃO DE LUGARES SAGRADOS 
 
Da separação de lugares sagrados e profanos, da contraposição de obras e gestos 
simbólicos e diabólicos, decorre ainda outra conseqüência polêmica, que é a de consagrar 
lugares sagrados. Assim, ao se consagrar uma caverna, uma montanha, um lugar pitoresco de 
uma planície, ou uma Igreja, Basílica ou Catedral, bem como altares e outros espaços similares, 
quer-se criar um espaço especial para se estabelecer um contato com outro espaço, que é o 
divino, e estabelecer uma interação. No pressuposto deste ato, está a noção de que sem um 
vínculo divino este mesmo espaço pode voltar a tornar-se um caos, ou seja, um lugar profano. 
Por isto, o lugar sagrado passa a ser interpretado como o lugar de relação com o outro mundo. 
Este sentimento profundamente religioso deixa entender que o nosso mundo é um lugar que 
tem lugares mais próximos de Deus e que, a partir destes lugares especiais, pode-se atingir o 
mundo de Deus. O mundo sagrado ou consagrado passa, então, a ser entendido como um lugar 
mais alto e próximo para um contato com o outro mundo. 
Esta relação de lugares sagrados e profanos tem um reflexo diário em nossa vida através 
da porta. É impressionante como a porta separa mundos, a começar pelo mundo sagrado e 
profano. Por exemplo, a porta de uma Igreja na cidade separa dois mundos nitidamente 
distintos. Para uma pessoa religiosa, da porta para dentro é lugar de Deus, que merece respeito 
e certas posturas que são bem diversas das que são permitidas no lado de fora, no mundo 
profano. Dali, para a rua ou para a praça, já acontece todo outro jeito de relações humanas. 
Basta reparar que, muitas vezes, do lado de fora da porta da Igreja estão mendigos, andarilhos e 
que ali fazem qualquer coisa, desde defecar a relações sexuais, brigas, furtos, assaltos, e, sem 
maiores constrangimentos. 
 
 
28 
28 
O que se pode perceber é que um determinado espaço, não implica necessariamente 
em experiências homogêneas, pois até mesmo para pessoas não religiosas, o lado de fora da 
Igreja pode ter significados distintos; uns querem cultivar ou contemplar a beleza da praça, 
outros querem namorar nesta praça e outros se servem deste espaço como lugar de moradia. 
Um determinado lugar pode ser mais sagrado para um do que para outro, especialmente, 
quando faz lembrar algo importante que ali aconteceu, como uma bonita festa, uma 
socialização significativa, uma simpatia, um primeiro namoro, etc. Este exemplo da praça 
também se manifesta em relação a residências, onde certos rituais, como beijos, continências, 
prostrações e toques de mão sobre o ombro, etc., servem como indicador de separação para a 
ida a outros espaços. A separação de sagrado e profano ainda pode ser vista por outro prisma: a 
relação entre caos e cosmos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
29 
29 
 
X 
 
O CAOS E O COSMOS 
 
A imagem de sagrado e profano também perpassa outra contraposição: a de caos e 
cosmos. Era idéia comum dos povos antigos separar o espaço habitado como sendo o mundo, 
ou o cosmos, e, o resto, como mundo desconhecido, como caos (fonte de medos, de espectros e 
de demônios). Podemos perceber que esta não é apenas uma questão de povos antigos. Em 
nossos dias, ainda prossegue muito distinta esta separação entre caos e cosmos. Até mesmo as 
nossas cidades apresentam espaços de cosmos (áreas nobres, estéticas, belas e ornamentadas, 
como certas praças...) e outros lugares tidos como caos (brejos, lixões, espaços ermos), onde 
não só aparecemratos, maus elementos, mas também maus espíritos para a experiência de 
muitos habitantes. 
 Segundo Mircea Eliade, “o sagrado funda o mundo, lugar onde o sagrado se 
manifestou, e por isto está na ordem cósmica”.9 Na contrapartida, lidamos de forma bem 
distinta com os espaços territoriais não conhecidos. Queremos, ali, desfazer o caos e desbravar 
estas áreas para que se transformem em cosmos, ou seja, em lugares do nosso mundo sagrado. 
Normalmente os pioneiros de uma cidade ou de uma região costumam sentir-se numa tarefa 
divina que é a de desbravar para criar um cosmos (seu mundo) neste lugar ou região que era 
tida como caos (outro mundo). Até mesmo as pessoas de uma região, quando vão para outra, 
costumam cultivar este sentimento. Dali decorre a facilidade de discriminar e fazer sair daquele 
espaço, em nome da ordem e do cosmos, os que ali residiam... 
 
 
9
 ELIADE, Mircea. O sagrado e o Profano – a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 28. 
 
 
30 
30 
 
 
XII 
 
ÍCONES E ÍDOLOS 
 
Ícones, imagens e ídolos podem ser interpretados com uma mesma significação. 
Positivamente, o significado é de retrato, imitação, idéia, ou imaginação. Usam-se, também 
estes termos para um significado negativo de falsificação enganosa ou de erro de imitação. 
Nos quadros cristãos, o termo “ídolo” geralmente recebe uma significação pejorativa, 
pois é visto como objeto de idolatria. Quando uma imagem ou um ícone teria esta dimensão 
enganosa ou ilusória? 
Os ícones, imagens ou ídolos, ao remeterem para além do mundo sensível, são vistos 
como ícones no sentido positivo. Caso fiquem restritos apenas ao mundo sensível, então, são 
interpretados como ídolos. A grande dificuldade está em estabelecer uma divisória e a condição 
entre o mundo sensível e supra-sensível, isto é, qual é a linha da divisa e quem diz que uma 
imagem é ícone ou idolatria? 
Uma imagem ou ícone, segundo uma crença tradicional, é um instrumento revelador do 
divino, ou seja, este objeto visível permite a manifestação do invisível. Podemos, pois, 
considerar como exemplo as imagens de santos ou de outras expressões do sagrado, que, para 
muitos católicos, é assunto inquestionável que eles remetem para além do sensível. 
 A pergunta impertinente que se pode levantar a este respeito é a seguinte: quem diz o 
que remete e o que não remete para além do sensível? Seria alguma autoridade eclesiástica? 
Poucas pessoas denunciam estas imagens como ídolos. Quando autoridades eclesiásticas 
declaram que estas imagens ou ícones que remetem para além do sensível, pressupõem que o 
ícone tem uma virtualidade em si mesmo que é a de revelar o outro mundo, o divino. Por 
 
 
31 
31 
exemplo, uma imagem de Cristo ou de alguma pessoa declarada santa, mais do que o retrato 
do personagem histórico, presume-se que esta imagem exprime uma experiência espiritual de 
santidade. O ser humano, com este objeto, participa do divino. Em outras palavras, este objeto 
remete à realidade invisível do divino. Torna-se, por isto, muito secundário o papel artístico de 
quem fez esta imagem, pois, centraliza-se o que a Igreja ensina a este respeito. Portanto, 
estimula-se o uso dos ícones para repelir os ídolos. Supõe-se que o ídolo atrai, convence e 
arrasta para si mesmo no mundo sensível e que não tem nenhuma capacidade de levar para 
além do sensível. 
Por outro lado, quando o ícone tem a capacidade de mostrar e revelar o divino, atribui-
se a ele um pressuposto de que tenha certa luz interior e própria, capaz de remeter ao 
transcendente. 
O pensamento moderno sustenta, bem ao contrário, que não é possível este salto do 
ícone para o ultra-sensível. Sustenta-se, especialmente no pensamento filosófico, que qualquer 
obra de arte, seja religiosa ou de outra natureza, é apenas uma representação intelectual de 
realidades humanas ou sobrenaturais. 
No pensamento teológico ainda parece predominar a noção de que um objeto visível 
pode remeter ao invisível, o que gera polêmicas: pode um discurso ou um ícone, da realidade 
humana e temporal contatar-se com o divino e o atemporal? 
Na verdade, somente podemos discursar sobre Deus a partir de realidades humanas que 
nos envolvem. Por isto, o discurso teológico pode facilmente esconder, como Kant já 
denunciou, que se justifica o poder e a verdade em nome de Deus para um exercício banal de 
imposição sobre as pessoas, isto é, o que se prega como sendo exigência de Deus, pode não 
passar de um desejo do pregador. 
Possivelmente seja melhor contar com medidas humanas do que aceitar esplendores de 
indicações categóricas deduzidas de ícones sobre as realidades ultra-sensíveis. 
 
 
 
 
32 
32 
 
 
XIII 
 
CONDENAÇÃO E SALVAÇÃO 
 
Outra contraposição humana é a de separar duas forças de vida: a condenável que é o 
mal; e a boa, a que salva. 
O mal é um tema extremamente aberto e difícil de ser conceituado porque pode ser 
situado no corpo do ser humano, na sociedade, no mundo e até fora do nosso mundo sensível, 
ou seja, em Deus e outras instâncias divinas. 
Sabemos que o mal não existe em si, em estado puro, como a essência de certos 
produtos. Mesmo assim, percebemos que está profundamente presente na realidade humana. 
Em certos momentos, parece ser bem mais forte do que nossa capacidade de lidar com ele. 
Segundo Herman Häring, “o mal como tal não existe: a palavra „mal‟ é atropelada pela 
multiplicidade e de suas formas reais, por isso, o „mal‟ é sempre mais do que nós somos 
capazes de imaginar e de compreender. É esta uma razão importante, embora não definitiva, 
do fascínio que ele exerce”.10 
De forma geral, podemos identificar o mal como uma misteriosa inclinação que nos leva 
a fazer o avesso das coisas. Por que haveria este fascínio? Mesmo assimilado com fatos e 
situações muito variadas, o mal se encontra presente na vida humana. Facilmente lemos e 
interpretamos os fatos numa polarização: ou são bons ou são maus. Assim, violências, desvios 
e outros procedimentos injustos podem ser interpretados como maus pelas vítimas, mas muito 
bons pelos infratores. 
 
10
 Segundo Herman HÄRING em CONCILIUM/274 – 1998/1, p.34. 
 
 
33 
33 
A dificuldade para definir o mal está em que ele nunca é visto pela mesma coisa. Há 
uma recriação e constante formulação de novos rostos ou exteriorizações do mal. Em relação a 
qualquer coisa nova que se inventa ou se descobre, logo aparece uma postura antagônica, 
interpretada como mal, porque se usa o invento para finalidades maldosas. 
O quadro das religiões é outro exemplo bem ilustrativo: querem apenas fazer o bem e 
salvar as pessoas. No entanto, umas em relação a outras, representam incontáveis situações de 
violência, desrespeito, difamações, exorcismos e, de vez em quando, implicam em terrorismo, 
guerras e mortes. 
O mal não só vem sendo personificado com muitos rostos, mas também é detectado por 
trás de muitas máscaras do relacionamento das pessoas. Como Herman Häring escreveu, “o 
insondável e o banal, o sentimento de extremo poder e o absurdo andam juntos. 
Manifestamente, fascínio e horror andam juntos”.11 
Por isto o mal não é detectado apenas em alguns seres humanos. Ele prejudica fortes e 
fracos, ricos e pobres, opressores e oprimidos, torturadores e castigados... Os culpados tendem 
a falar do mal que seus torturados lhes causaram. Em decorrência, nem todo culpado se auto-
interpreta como culpado. Nota-se, pois, que o mal pode ser ocultado, disfarçado e até mesmo 
abstraído de um fato para outro. 
Quer real ou quer imaginário, o mal induz à construção de mundos físicos, psíquicos, 
históricos e sociais com a pretensão de delimitar seu campo de ação, e proporcionar bem-estar, 
conforto e segurança às pessoas que se enquadram no alvo de interesses. Ao se fazer tal 
procedimento, já aparece o mal intencionado,cruel e procurado para outras pessoas ou grupos 
sociais. Portanto, quem se move numa ação para combater o mal, pode ver-se personificado 
como mal para outras pessoas que pensam de forma diferente. 
O mal se apresenta de forma misteriosa porque nunca se revela escancaradamente, mas 
se esconde em conceitos de ordem, de justiça, de regras e de leis. Quanta gente sente um prazer 
sádico ao poder torturar e fazer outras pessoas sofrer! Assim, até regimes sociais, tanto 
 
11
 Idem, p. 34-35. 
 
 
34 
34 
totalitários quanto os chamados democráticos, apresentam como alvo, a destruição de outros 
regimes. Algo parecido também se manifesta nas diferentes religiões que se proclamam no 
direito e no dever de salvar. Constata-se, pois, que até o nobre ato de salvar não está totalmente 
isento dos riscos de ser interpretado como manifestação do mal. Pode ser por ferir o respeito ao 
diferente, por demonização indevida, por mecanismos dominadores e totalitários e por auto-
imagem de superioridade em relação a outras religiões similares. 
Herman Häring salienta que, teologicamente, ocorrem três níveis de fascínio pelo mal: 
a) Fascínio pelo irracional – apesar de toda uma sistemática insistência de discursos 
políticos, econômicos, religiosos e sociais em torno da necessária racionalidade que 
ainda falta na convivência humana, repara-se que a tendência humana ao irracional 
parece ser bem superior em muitos momentos históricos. Mesmo diante dos quadros do 
bom, certo, correto, justo e digno, ocorrem constantes deslizes e fascínios pelo avesso 
destas valorizações. Ao lado do que é bom e que salva, há um fascínio pelo mal. Pode 
ser nos pensamentos, nas relações quanto nas contravenções. 
No quadro cristão ainda persiste uma profunda influência agostiniana, segundo a 
qual o mal decorre de três fatores: da liberdade, da ausência do bem e da herança do 
pecado. Teoricamente esta discussão é complexa: a salvação que vem de Deus, teria a 
força para erradicar o mal. Estaria Deus cumprindo esta promessa? E se o Deus da 
salvação não está resolvendo este problema, estaria Ele sendo maldoso ou fraco? Ou 
estaria este Deus querendo tantos abismos e mazelas na condição humana? 
b) O fascínio pela luta - As esperanças, ou messiânicas de salvação, ou meramente 
humanas para conquistar bens, domínios e posses, agregam uma perversa perspectiva 
para dominar outras pessoas e elevar nossos sentimentos de riqueza, seja simbólica, de 
honra, de poder, ou de horizontes desvendados no caminho da santidade. 
Como a busca de êxito, seja no campo humano que for, tende a provocar 
amarguras, decepções, mágoas e desencantos, está ali um potencial para a ação 
vingativa, porque a frustração do alcance de metas estabelecidas gera um novo potencial 
 
 
35 
35 
de violência e de luta para reaver o que foi perdido. Procede-se, desta forma, um 
combate do mal para combater outro mal. Uma vida, mal vivida, é potencialidade para 
ação que gera outro mal. Muitas vezes esta vida é assim induzida por educação. Por 
exemplo, como entender o fascínio dos mercenários de guerra e dos soldados que 
deliram e se sentem extasiados quando conseguem matar, torturar e levar outros ao 
sofrimento? 
 
c) Fascínio pelo transcendente – Aquilo que é interpretado como mal, também tende a 
provocar julgamentos subjetivos, e muitas vezes, projeções enganosas. A tendência 
humana, ao julgar algo, é a de lhe atribuir valor moral, e, por isso, logo passa a deduzir 
sobre o que não deveria estar acontecendo. Ademais, o mal não se restringe apenas ao 
que queremos controlar e manter sob rédeas, mas, o que foge do controle e das rédeas. 
Por exemplo, se como cristãos desejamos uma sociedade justa, igualitária e boa e que 
tenha um futuro promissor, segundo a rica herança do messianismo bíblico, ao 
desejarmos viver esta perspectiva, vamos encontrar dificuldades de muitas naturezas 
que não conseguimos controlar e que estão além de nossas forças e da nossa boa 
vontade. 
Esta incapacidade de estabelecer controle sobre o mal pode provocar uma crise: 
afinal, pode mesmo realizar-se esta esperança messiânica? Além disso, a vontade de 
fazer acontecer o bem sobre o mal, pode facilmente degenerar em fascínio para destruir 
e demolir coisas que, para outros, são abençoadas e boas. Por ali já se pode deduzir que 
o mal detestado facilmente implica em outro mal com vistas a combatê-lo. Este risco 
também está muito visível no campo religioso: para combater um mal fora de um 
quadro religioso, usa-se de uma maldade da mesma natureza. Assim, muitas 
expectativas em torno do reino de Deus não passam de “reino do capeta” para as 
vítimas. 
 
 
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O problema é que, nos seres humanos, afloram efeitos inconscientes de 
desejos frustrados e que levam a deslocar agressões para outros focos e superstições ou 
ainda, a expectativas de que Deus resolva tudo em nosso lugar, até mesmo os problemas 
que nós mesmos nos criamos. Vale o que Immanuel Kant referiu a Jó, no sentido de que 
convém gritar a dor, mas isto ainda não significa que, com tal procedimento, tudo já 
esteja resolvido. Sobretudo no pensamento da cristandade católica pensou-se a ação de 
Deus ao lado do terrível Satã que ofuscava quaisquer sonhos. O mal não fica dissolvido 
com meros sonhos e com cultivo de sentimentos de que Deus possa derrotar as forças de 
Satã. O mal, tão presente no mundo pode induzir-nos a pensar que Deus está perdendo a 
batalha. Entretanto, ainda que o mal seja incontestável, especialmente quando é 
sofrimento alheio, e, quando se age em favor das pessoas que se encontram neste 
sofrimento, aí o fascínio do mal realmente perde capacidade de expandir-se.
12
 
 
 Este jogo, que envolve maldição e salvação, é, na verdade a contraposição de bem e 
mal. Tal quadro nos coloca, a partir das raízes bíblicas, duas perspectivas distintas de lidar com 
os acontecimentos e com os projetos para o futuro da humanidade: 
a) A perspectiva do Gênesis – que pressupõe a revelação divina e a ação de Deus na 
história concreta para eliminar o mal que ali se estabeleceu. O mundo teria sido criado 
bom (paraíso), mas o mal produziu o pecado, a morte e a ruína da criação. Assim, o mal 
foi personificado na serpente (teria sido a cultura Cananéia que ameaçava a fragilidade 
das 12 tribos de Israel?). Isto coloca um limite: ou as pessoas obedecem a Deus, ou 
seguem a serpente – o mal. 
b) A perspectiva do Profetismo - que apresenta uma mensagem de salvação para o mundo 
presente. A profecia apocalíptica faz uma advertência a respeito do que vai acontecer no 
fim. Num quadro de perseguição e de muitas hostilidades, a perspectiva apocalíptica 
apresenta um horizonte de esperança e de estímulo para que se agüente o sofrimento até 
 
12
 Idem, ibidem, p. 53. 
 
 
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o fim, pois, então, o mal será eliminado em todas as suas formas. Acredita-se, pois, na 
erradicação do dragão, ou do mal. 
 
Bem, se o paralelismo entre bem e mal já se torna difícil de ser equacionado, como 
interpretar, então, os que vivem a religião sem Deus? 
O ateísmo foi provocado num momento histórico-cultural cristão. Então, o suposto mal 
passou a ser delineado precisamente na imagem autoritária de Deus, que se prestava muito mais 
para legitimar o poder do que para estabelecer o bem e a salvação entre as pessoas. Isto serve, 
particularmente para questionar nossos quadros de fé cristã: pode a experiência que fazemos do 
divino levar-nos a comportamentos autoritários e repressivos? Parece que não deveria levar-nos 
a tais práticas de abusos do poder político e que, em nome de Deus, implicaram em profundas 
injustiças humanas dentro e fora da Igreja. 
Ao contrário de que muitos desejam, a história cristã passou ao mundo, de forma muito 
intensa e escancarada, a imagem de um Deus injusto e opressor, ao invésde um Deus que 
aponta caminhos de experiências mais místicas, de um Ser superior capaz de vencer as vivas, 
vagas e indeterminadas manifestações do mal com tudo quanto a ele associamos. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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XIII 
 
TEMPLO E CORPO 
 
 Se nos reportamos às origens do cristianismo, podemos lembrar que uma grande 
polêmica se estabeleceu em torno da relativização do Templo, feita por Jesus Cristo. O Templo 
constituía o símbolo do sagrado. Jesus, ao proclamar a importância do corpo, relegou a 
primazia do Templo e, por isto mesmo, acabou atingido na sua vulnerabilidade corpórea: uma 
morte humilhante. 
O conceito sacralizado do templo fez com que, em nome de Deus, fosse tramada a morte 
de quem mais queria a vida e um projeto humano a favor da vida. O que mais pesou para a 
execução de Jesus Cristo foi o sentimento ferido que partiu de dentro do Templo, lugar 
considerado como o da moradia de Deus. 
Algo similar a este episódio já se repetiu inúmeras vezes ao longo da história. De 
instâncias consideradas especiais da parte de Deus, desrespeitou-se o corpo humano e, a partir 
das “luzes” oriundas dos templos, massacraram-se templos corpóreos. 
A experiência das comunidades cristãs primitivas, que procurou orientar-se no modo de 
ser como Jesus lidou com as pessoas, procurou sacralizar o corpo humano, como espaço das 
fragilidades humanas, mas também, como lugar eminente da manifestação de Deus e de 
irradiação das interpelações de Deus. A dimensão sagrada do corpo, todavia, não foi suficiente 
para que dos espaços de templos de grande aparato arquitetônico fossem profanadores de 
sagrados templos corpóreos. A história da Igreja católica ofereceu tristes ilustrações de abusos 
de poder, exercidos no interior de Templos e em nome de Deus. Por isto, ainda em nossos dias, 
parece ser mais fácil construir uma edificação pomposa do que elevar algumas milésimas 
instâncias o respeito e a dignidade aos seres humanos. 
 
 
 
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XIV 
 
 A VIOLÊNCIA HUMANA 
 
Trata-se de um tema extremamente difícil. Dada a sua amplitude e as variadas formas 
em que aparecem violências humanas, cabe até mesmo uma pergunta cabal: é possível dar uma 
resposta mais adequada do que aquelas que as ciências e as explicações religiosas forneceram 
até o momento? 
A dificuldade de delimitação nasce da variedade de violências que se cruzam nas 
relações humanas. Podem ser físicas como as de bandidos, assaltantes e policiais; ou mesmo as 
que ocorrem nas famílias, em grupos, comunidades e relações internacionais. Mesmo esta 
variedade de agressões pode variar entre formas psicológicas, simbólicas e morais, e ainda, 
podem ser as que provocam fome, extorsão abusiva, descaso, roubo, homicídio, etc. 
Seguidamente nos envolvemos em situações nas quais sentimos pessoas agredidas 
vivenciarem medos, traumas, pânicos e outros mecanismos de perturbação emocional. De 
modo geral, tendemos a pensar a agressão como manifestação em que nos sentimos vítimas. No 
entanto, há também outro lado, o de que nós que nos interpretamos não agressivos, também 
enfrentamos ímpetos de raiva, de ódio, de vingança e de outros descontroles que levam a 
ameaçar e até a atentar contra a vida de outras pessoas. Da nossa parte, também decorrem 
sadismos que implicam em sentir certa intensidade de prazer quando outros fracassam ou são 
agredidos. Ao lado deste traço, temos facilidade de apelar para punições e castigos, sejam os 
prescritos em códigos de justiça ou os que nós mesmos inventamos. Até mesmo em muitas 
manifestações religiosas um forte sadismo se expressa quando se espera que Deus execute a 
tarefa da vingança em nosso lugar. 
 
 
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Considerando apenas estes dois aspectos, a violência que vem dos outros e a que 
resulta da nossa parte, dá para acreditar que possamos ser não agressivos? 
Segundo Darwin, somos agressivos porque herdamos este traço dos animais. Como 
eles, também nós seres humanos estaríamos agredindo porque estamos mergulhados na luta 
pela sobrevivência e, nesta disputa sempre ocorre uma relação de fortes e de fracos. Entretanto, 
não existem animais que cooperam e que levam vida coletiva? Seria isto apenas um instinto de 
auto-defesa? Nós, de fato, não temos o veneno de certas cobras perigosas e nem garras ou 
dentes afiados como certos animais. No entanto, somos capazes de potencializar estas formas 
através de nossos inventos e de armas de destruição que utilizamos com toda facilidade. Apesar 
disso, porque somos agressivos? 
a) Um dos elementos de nossa agressividade está relacionado aos nossos interesses. Como 
estes interesses estão sendo re-criados, estimulados, e justificados, o planeta Terra está 
longe de oferecer tanto quanto os seres humanos desejam. Se desejos quase infinitos 
provocam desrespeito das regras estabelecidas e aos mecanismos de controle social, seria 
isto culpa do Estado que não regula os limites dos interesses? E, se tivesse tal capacidade, 
como iria conter as cargas de frustração que este controle geraria e as conseqüentes 
formas agressivas resultantes deste controle? 
 Esta situação já é suficiente para nos apontar que um governo forte e uma 
rigorosa legislação ainda não significam erradicação da violência humana, especialmente 
se pensamos a vida nos espaços urbanos porque ali naturalmente vão sendo gerados 
grupos marginais e fora do âmbito das leis estabelecidas. 
 
b) Se nos pensamos totalmente distintos do mundo animal, ou se nos pensamos filhos do 
mundo animal, mas dotados da positividade dos traços de cooperação, como explicar 
tanta injustiça e agressão entre grupos humanos? 
 
 
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 Mesmo que sustentamos nossa natural predisposição para simpatia, para a 
compaixão, para o entendimento ou da racionalidade que deve prevalecer para que possa 
haver convivência pacífica, seria possível uma sociedade sem violências? 
c) Caso assumamos o ponto de vista do pensamento cristão, que aponta perdão como 
caminho de comunhão e de solidariedade e entendimento, quem é que propiciaria uma 
possível condição de paz e harmonia: o rigor das autoridades, ou a submissão á instância 
divina? A história nos ilustra que muitos argumentos autoritários, mesmo religiosos, 
apelaram para os castigos e para as retaliações divinas sobre os infratores das regras 
estabelecidas. E quando estas regras já são caducas, como significam violência, até mesmo 
da parte de quem, em nome de Deus, quer implantar a ordem e a paz! 
 Precisamos necessariamente reconhecer que toda a história do pensamento 
cristão nunca esteve imune de situações de agressão e violência, seja na relação com 
outras formas de expressão religiosa ou na relação do interior da própria organização da 
Igreja. 
 Estes três aspectos permitem formular uma pergunta sobre as raízes mais distantes da 
agressividade humana: ela é marca registrada da criação? 
Se nos reportamos ao referencial bíblico, aparece ali a noção de que a criação foi um ato de 
bondade e que veio a ser depravada pela fraqueza humana. Ou começou a criação numa 
situação caótica e que, com a ação redentora de Jesus Cristo nos redime aos poucos? E os que 
não estão neste projeto, podem restaurar-se por meio do amor e da justiça? Uma interpretação 
possível é a de que somos agressivos por natureza, mas, que podemos redimir-nos pela graça 
que Deus nos oferece. Mas quem não entra nesta estrutura salvadora, teria a perspectiva de 
ameaçar com atos agressivos? Ou seria a agressividade, apenas um fruto da desigualdade 
social? 
Toda a evangelização, toda a boa vontade e todos os atos empreendidos para diminuir a 
desigualdade social, ou movidos pela graça de Deus ou pela iniciativa humana, ainda não 
deram passos definitivos para erradicar a agressividade humana. Mesmo que bruxas foram 
 
 
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queimadas e tantas outras pessoas foram condenadas à morte, com vistasa se estabelecer a 
paz, geralmente acirraram outras manifestações de violência iguais ou piores. 
A apregoada emancipação humana, segundo a sustentação clássica do Iluminismo também 
não nos leva a sonhos mais fáceis de suplantação da agressividade, porque o próprio 
Iluminismo gerou extraordinárias formas de violência. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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XV 
 
VIOLÊNCIA COMO CONSTANTE ANTROPOLÓGICA 
 
Os fantásticos avanços humanos, técnicos, científicos e iluministas revelam um 
paralelismo constante de derramamento de muito sangue. 
O discurso de que a educação seria capaz de superar a prática de atos violentos entre os 
seres humanos, mostra-se decepcionante, pois, o dinamismo pedagógico nos horizontes do 
sistema capitalista é gerador de profundas desigualdades, e que, por sua vez, desperta novos 
processos de violência. A educação tem mostrado pouca eficiência na capacidade de regenerar 
os seres humanos para características menos violentas. 
A violência humana revela-se em muitas dimensões: a) quanto à natureza – ocorre 
pouca preocupação para reverter uma rota de destruição do sistema necessário às condições da 
vida. O armamentismo, as grandes guerras e todo o arsenal bélico nos fazem antever outras 
guerras, genocídios, tão ou mais cruéis quanto os dos últimos séculos. Mesmo esta memória 
não sensibiliza para despertar as mentes humanas para um futuro de menos violência; b) quanto 
às relações pessoais - não se consegue vislumbrar um horizonte auspicioso a partir de 
arrependimentos das violências praticadas. As muitas terapias que tentam reorientar as 
tendências mórbidas para a prática de violências também não atingem as fontes da violência, 
pois não conseguem mudar a cultura; c) quanto à genética – as manchetes das possibilidades de 
atuação no código genético para evitar predisposições que levem às condutas desviadas, não 
indicam boas soluções porque as violências parecem originar-se muito mais da cultura do que 
da genética; d) quanto à cultura – constata-se que sua marca dominante é da violência; seja na 
ironia ante o diferente, no ataque verbal e escrito ou o simbólico de todas as regras e artes. 
Nelas aparece como uma constante a violência, que se manifesta, sobretudo, pelo Estado e 
pelas organizações jurídicas porque se impõem com verdadeira brutalidade sobre os membros 
 
 
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da sociedade. Basta lembrar somente o horizonte das exclusões e das negações... Até dos que 
pretendem controlar as ameaças de violência originam-se atos violentos. O combate de uma 
violência automaticamente gera mecanismos de revide e de outra violência, seja física ou 
simbólica. 
Ao lado dos desejos e das expectativas para uma convivência de paz e de entendimento 
vemos que muitos seres humanos se tornam agressivos precisamente na luta para o alcance 
destas metas. Muitas regras estabelecidas e aceitas, sem maior questionamento, também 
induzem a atos violentos, até mesmo os sexuais: “se considerarmos as relação sexual, não 
poderemos negar sua estrutura básica „agressiva‟. A sexualidade, com „ fato bruto‟, mas 
também as suas transformações eróticas são inconcebíveis sem um fundamento agressivo de 
desejo. Mas este fundamento está sujeito a constantes e profundas mudanças culturais”.13 
Como o simples ato de falar já é fonte indiscutível de violências, a fala dos poderosos 
também tende a constituir-se em fonte maior de violência do que a reação dos oprimidos. 
Muitas situações da vida nos levam à dolorosa experiência de que as palavras podem matar. Por 
isto, cabe a pergunta: podemos eliminar violências humanas sem outras violências? 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
13
 WILS, J. P. A violência como constante antropológica. In: CONCILIUM/272 – 1997/4, p. 148. 
 
 
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XVI 
 
O MIMETISMO DA VIOLÊNCIA 
 
 
O desejo que leva as pessoas humanas a querer estabelecer ordem no meio do caos, 
também leva a uma forma sutil de disfarce da violência. Se, por exemplo, tomamos um caso 
conhecido da Igreja Católica na Idade Média, que foi o de queimar bruxas e pessoas heréticas 
na frente das catedrais, ocorria algo interessante. Ao se queimar uma vítima, cantava-se o hino 
“Te Deum”, um hino de louvor a Deus. 
 A questão importante para o nosso entendimento é o do porque se queimava alguma 
pessoa acusada: o motivo comum era o de que praticava sacrifícios não estabelecidos na ordem 
oficial. Não se reparava que o fato de matar aquela pessoa significava outro sacrifício. Por isso, 
ao se condenar alguém ao sacrifício, se cometia um novo sacrifício, mas sem sentimento de 
culpa por tal ato. Ao contrário, elevava-se um louvor a Deus, porque se considerava ter 
colocado ordem no meio do caos. 
Curiosamente isto não foi apenas um problema da inquisição católica. Aconteceu em 
toda a história humana, aconteceu na colonização da América, e, se repete nas guerras e nas 
múltiplas formas de genocídio, tranqüilamente toleradas em nossos dias. Basta lembrar que os 
genocídios da invasão colonial americana eram justificados pelo argumento de que aqueles 
povos americanos cometiam sacrifícios humanos. Portanto, também fora da Igreja, e hoje, 
particularmente, nos governos civis e em todas as instâncias do poder, se repetem os mesmos 
fenômenos de queimação das “bruxas”, isto é, em nome da ordem, matam-se milhares de 
 
 
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pessoas, sem nenhum constrangimento de que tais atos sejam de sacrifícios humanos até 
piores do que os da inquisição. 
 Quando analisamos notícias que envolvem mortes em tiroteios, tais como as das favelas 
do Rio de Janeiro ou de Rio Verde, repete-se algo parecido: os valorosos heróis da polícia ou 
da pátria eliminaram um “marginal” ou um “elemento ameaçador” à sociedade... Parece que 
toda a sociedade consente pacificamente que tal ato foi necessário, e tampouco o interpreta 
como um sacrifício humano. Desta forma, podemos entender que, em muitos outros 
comportamentos humanos, está escondido um desejo mimético de violência. Por que 
mimético? 
 Mimetismo é o termo usado para caracterizar a adaptação de certos animais ao meio-
ambiente, a tal ponto que se confundem com ele. Por exemplo, muitos sapinhos, rãs e outros 
insetos e animais adquirem a mesma coloração das plantas nas quais vivem, a ponto de serem 
confundidos com aquelas plantas. Grande parte dos animais apresenta traços desta adequação 
ao meio-ambiente e isto lhes serve de auto-defesa ou de disfarce para captar outras presas. 
Entre os seres humanos, ocorre algo muito parecido nas relações. Sobretudo na violência, 
refletem-se estes disfarces. 
Já vimos, acima, que até em torno do sagrado ocorrem violências. Assim, em muitas 
outras formas de relacionamento humano se reproduzem violências bem disfarçadas e, por 
vezes, até justificadas como sendo atos de amor ou procedimentos estritamente necessários 
para se manter a ordem diante das ameaças de confusão e de caos. 
Podemos perceber que não é toda a realidade humana que se encontra envolvida neste 
mimetismo. Mesmo assim, a perspectiva do mimetismo da violência representa uma janela 
aberta que nos permite constatar muitos âmbitos da vida, envolvidos em atos violentos, mas, 
disfarçados como necessário procedimento de estabelecer ordem no meio do caos. 
 Isto ajuda a entender tanta violência entre os seres humanos e, especialmente, a partir 
das instituições sociais. Em nome de estatutos, ou das regras máximas de um Estado ou de 
qualquer outra organização, cometem-se verdadeiras barbaridades e que contrastam 
 
 
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profundamente com os discursos de harmonia, de paz e de serenidade na convivência. 
Recuperando uma experiência da linguagem religiosa da Bíblia, significa o pecado original, ou, 
esta natural inclinação para fazer outras pessoas sofrer. Parece que já nascemos com esta 
predisposição. Sempre que interpretamos algo como caótico, confuso

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