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O Que é um Caso? A Psicose em Freud e o Presidente Schreber

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O Conceito de Psicose em Freud
Parto da leitura dos textos enviados – “Que é um Caso?”, de J.D. Nasio; “Um Caso de S. Freud: Schreber ou a Paranoia”, de Coriat e Pisani, em livro organizado também por J. D. Nasio; “A Psicose em Freud”, de autoria não especificada; e “Psicose”, também de autoria não especificada – não deixando de fora, evidentemente, leituras anteriores e conhecimentos prévios ao curso, nem o filme recomendado acerca do Presidente Schreber. Para definir então o conceito de caso, começo com uma citação do texto de Nasio: “um caso é sempre um texto escrito”.
Podemos derivar duas dimensões disso que Nasio chama de “texto escrito”, implicadas em dois momentos da clínica. Primeiro, o momento da escuta. Pensar na escuta – ou leitura – de um texto escrito é pensar na própria técnica analítica, no aqui-e-agora da escuta clínica, em pontuações, interrogações e intervenções sobre a fala e a palavra de um analisando. 
Segundo, o momento da escrita. A organização de um caso, fruto em parte de um desejo de transmissão, realiza-se em algum produto simbólico, um registro dirigido e que possa ser transmitido. Esse texto escrito e transmitido, portanto, é a transformação do texto do analisando no texto do analista; é o que configura um caso.
Mas essa escrita, não nos enganemos, é muito mais do que o simples retrato de uma sequência de acontecimentos que tenham se passado em um consultório, instituição, ou quaisquer outros lugares ondem tenham se transcorrido as sessões. Pois o caso escrito é um registro, mas não apenas uma transcrição, como se a função da escrita fosse de manter bem guardado o momento do encontro clínico, explorá-lo e conhece-lo minuciosamente e relatá-lo sempre da forma mais “fiel” possível.
Daí Nasio fala do caso como ficção: “o caso se define como o relato criado por um clínico, quando ele reconstrói a lembrança de uma experiência terapêutica marcante. Tal reconstrução só pode ser uma ficção, uma vez que o encontro com o analisando é rememorado através do filtro da vivência do analista, readaptado segundo a teoria que ele precisa validar e, não nos esqueçamos, redigido de acordo de acordo com as leis restritivas da escrita”.
	Aqui cabe a célebre frase: “toda tradução é uma traição”. O texto que o clínico escreve no momento em que registra suas sessões e as transforma em um produto simbólico transmissível não deve pretender mimetizar todos os acontecimentos clínicos, mas antes permitir que, a partir deles, seja possível uma elaboração. Elaboração essa que se faz no momento em que se escreve o caso, no momento em que se transmite, e a cada vez que alguém o discuta ou leia.
O caso se faz então como convite ao trabalho, não apenas do leitor que o consome, mas também do próprio clínico no momento de sua redação. E que noção mais apropriada do que “trabalho” (ou leia-se elaboração) para falar dessa potente distância entre o símbolo e aquilo que se simboliza? Não é essa distância mesma que abre a possibilidade de que haja uma análise, que permite que um analisando, por meio da palavra, acesse e transforme os próprios traumas aos que ele em algum momento esteve submetido?
	Com isso chegamos a uma nova questão: o que baliza, então, esse trabalho, essa escrita do analista? Porque essa perspectiva de um caso – muito imaginária, diga-se de passagem – como mero registro literal e descritivo deixa de fora que, na transmissão, tem também algo que se produz, e nos deixa a pergunta de como nos orientar nessa produção.
Nasio nos dá uma direção: “em psicanálise, definimos o caso como o relato de uma experiência singular, escrito por um terapeuta para atestar seu encontro com um paciente e respaldar um avanço teórico.”
	É essa presença do teórico então que é fundamental para que se possa entrelaçar o momento da escuta e da escrita do caso. Pois a escuta analítica é técnica, é conceitual, se dá em um dispositivo que produz, sobre a palavra, um escopo teórico específico. Esses instrumentos conceituais então serão justamente os que utilizaremos para fazer essa escrita, para transmitir uma hipótese diagnóstica, uma possibilidade de trabalho analítico, ou até uma possibilidade de avanço teórico – se pensamos na função heurística abordada no texto de Nasio.
	Partindo para as chamadas “funções de um caso”, Nasio as classifica em três: a função didática, metafórica e heurística. A função didática deriva dessa ilustração que cada caso faz dos conceitos que se utilizam nele. É fácil pensar, por exemplo, como a leitura do célebre caso Schreber facilita a compreensão do conceito de narcisismo, ou abre discussões acerca da projeção na paranoia, ou da própria psicose.
Sobre a função metafórica, o autor escreve: “é frequente – e estou pensando sobretudo nos casos célebres da psicanálise – a observação clínica e o conceito que ela ilustra estarem tão intimamente imbricados, que a observação substitui o conceito e se torna uma metáfora dele”. E depois continua: “que são Schreber, Dora e Hans, senão histórias consagradas pela tradição psicanalítica como os arquétipos da psicose, da histeria e da fobia?”
E alcança-se a função heurística quando um caso serve, ele mesmo, como impulsor de um avanço teórico, gerador de conceitos. Peguemos mais uma vez como exemplo o caso do presidente Schreber: “foi justamente graças às espantosas Memórias de um doente de nervos, comentadas por Freud, que Lacan pôde conceber pela primeira vez a idéia de significante do Nome-do-Pai e a idéia correlata de foraclusão, noções que desde então renovaram a compreensão do fenômeno psicótico.”
Vamos então ao já mencionado “caso Schreber”. Me economizarei de apresentar a biografia de Daniel Paul Schreber, sua eleição à presidência da Corte de Apelação e os excessos pedagógicos de seu pai, entendendo que quem lê esse trabalho já conhece as tão célebres “preliminares” desse famoso caso.
Em seu livro “Memórias de um Doente dos Nervos”, Schreber escreve em minúcias a experiência de seu delírio e do desencadeamento de seu surto, e começa pelo primeiro contato que ele teve com essa radical estranheza que sabemos estar presente na psicose: o pensamento, quase já de outro, que o invade a mente, segundo o qual seria prazeroso ser uma mulher submetendo-se ao coito.
O que vemos então se desenrolar, já partindo das contribuições freudianas ao estudo das paranoias, é uma extensa tentativa de reorganização psíquica frente a esse encontro com algo que carrega a força de uma alteridade radical, de um necessariamente-outro que de alguma forma se faz presente em Schreber, ali no momento em que ele nem dorme, nem desperta.
E essa reorganização – diga-se de passagem bem sucedida em diversos aspectos – é justamente seu delírio. A resposta a esse impulso de emasculação então foi a montagem dessa cena delirante na qual estaria muito bem explicado seu desejo de submeter-se, como mulher, ao coito. Só poderia ser que tivesse sido implantado aquele pensamento na sua cabeça, e não por qualquer um, mas por Deus. Como parte de seu plano de salvação da humanidade, Deus precisaria então transformar Schreber em mulher, na mulher que seria responsável pela fertilização do mundo, então tomado por “homens feitos às pressas”, sombras de gente, vultos de outros.
Freud com precisão leu esse fenômeno de apagamento daqueles que conviviam com Schreber como sinal de um processo de retirada da libido dos objetos e seu retorno ao eu. Essa descatexia, esse desinvestimento, teriam ocorrido em tal intensidade que a própria visão do outro se escurecia para o Presidente enfermo. Mais do que um desinteresse pelo mundo externo, uma introspecção, Schreber então se viu passar por um severo processo de transformação de seu eu, fruto dessa quantidade caudalosa de libido que retornava a ponto de lhe causar alucinações.
Foi a partir da leitura do livro de Schreber que Freud fez sua formulação “gramatical” da paranoia, que teria origem em um desejo homossexual expresso na frase “eu o amo”. A negação – que posteriormente com Lacan poderíamos chamar de foraclusão e que aqui, ainda com Freud, já se sabiaque era mais radical do que o mecanismo do recalque – dessa frase viria então como uma deturpação que de alguma forma configuraria as formas de paranoia.
Pela negação do verbo, então, a frase seria transformada em “eu o odeio”, o que por projeção se tornaria “ele me odeia”, originando um delírio de perseguição. Pela negação da frase como um todo teríamos “eu não o amo, só amo a mim mesmo”, o que estaria no cerne de um delírio de grandeza.
Independente dos claros limites que essa “verbalização” um tanto quanto formulaica tem ao oferecer de uma compreensão das formas de paranoia, uma coisa me parece ser de imensa importância: essa foi a maneira freudiana de ilustrar o funcionamento de um circuito libidinal na paranoia, um jogo da libido que desliga-se do mundo externo, sobra, faz do eu seu objeto principal e depois precisa vincular-se de novo à algo exterior.
“O paranoico constitui-se como objeto de investimento”, segundo o texto passado “A Psicose em Freud”, e O Caso Schreber é um ótimo exemplo disso. Antes de mais nada, Schreber se vê como uma ameaça a existência de Deus. Por isso, Deus o persegue, por meio de figuras como seu médico Flechsig. Depois, como a salvação da humanidade, como o responsável pela geração de uma nova raça de homens.
Mas não só pelo óbvio engrandecimento de sua pessoa fica claro como Schreber toma-se como objeto de grande investimento, mas também nos momentos em que isso pode ser mais “doloroso”, digamos assim. No início de seu surto, Schreber passava “longas noites” deitado, em claro, sobre as quais ele depois relataria que pareciam durar séculos, nos quais poderiam estar havendo verdadeiras transformações na espécie humana e na Terra. Ao início das alucinações, ele era assolado por sensações de ter seu corpo manipulado, de ter seu estômago substituído pelo de um judeu, por sensações de putrefação e de contágio pela peste e pela lepra.
Schreber ouve ruídos provenientes das paredes e vozes dirigem-se a ele, intrometendo-se em sua mente. Segundo o próprio, “contra essas palavras, a vontade não tem nenhum poder”. A sensação de invasão é evidente, mas não só isso: toda essa cena de um sujeito que tem seu corpo manipulado, sua mente invadida, que tem vozes que se dirigem a ele, são a perfeita ilustração desse investimento libidinal no próprio ego, investimento que opera justamente na indistinção entre o que é o meio interno e o externo. Com isso, suas alucinações ganham esse caráter invasivo, como algo que vem do outro e o atinge, de fora pra dentro, do outro pro eu.
Ler esse texto é fundamental para que Freud possa então, a partir da paranoia, começar uma organização do que seriam as chamadas três formas da psicose, a paranoia, a esquizofrenia e a melancolia. A paranoia seria caracterizada por uma fixação no narcisismo primário, primeiro momento do desenvolvimento em que o ego é tomado como objeto de investimento libidinal para que haja a conformação de uma primeira unidade imaginária e simbólica do sujeito.
A esquizofrenia, por sua vez, seria caracterizada por um retorno da libido ao corpo, sinalizando uma fixação na posição autoerótica, que também remete a um momento primário do desenvolvimento no qual o corpo é tomado por pulsões parciais, sensações quase puras de prazer e desprazer antes mesmo que se possa falar na experiência de um corpo propriamente dito.
Mais caracterizada pela presença de um delírio extenso (como o de Schreber), a paranoia vai se diferir da esquizofrenia, que estaria mais ligada à alucinações, sensações corporais, auditivas, visuais. Esse retorno da libido ao corpo na esquizofrenia, no entanto, não deve ser entendido como mero afeto ou sensação de prazer e desprazer.
Essa libido que retorna ao corpo na esquizofrenia retorna sob a forma de gozo, tem um caráter invasivo, de um outro que efetivamente se intromete no eu e goza dele, quase que o abusa. As alucinações auditivas são um bom exemplo disso: as vozes escutadas por sujeitos psicóticos não rendem meras conversas, mas se impõe à medida que abusam desse sujeito, o diminuem, o repreendem. Esse retorno do gozo no corpo é o que faz prevalecer o quadro alucinatório na esquizofrenia, causa a desorganização típica do esquizofrênico.
Na paranoia, que evidentemente também desorganiza um sujeito – especialmente em surto –, o gozo não retorna predominantemente no corpo, mas no outro. Se retomamos as formulações freudianas da paranoia (eu o odeio, portanto ele me odeia; eu a amo, portanto ela me ama; ela o ama, portanto ela não me ama; eu não o amo, pois só amo a mim) fica mais evidente como a paranoia envolve essa relação entre eu e outro. Os delírios de perseguição, erotomaníacos, de ciúmes e grandeza (para ficar nos quatro representados acima) serão cenas que justamente organizarão a relação do sujeito com o outro.
Resta ao outro na paranoia a função do gozo, do abuso sobre o sujeito, da intromissão, da perseguição. No entanto, não devemos nos enganar. Essa já é a maneira paranoica de tornar possível de novo algum tipo de vínculo. Porque é justamente a partir dessa organização delirante que a libido poderá, aos poucos, tornar a ser investida nos objetos externos ao eu. A experiência de estranheza vivida por Schreber em seu surto é seguida da elaboração de seu extenso delírio, que é, por sua vez, o que o permite escrever seu livro e pleitear o retorno ao magistrado.
A cena delirante, que vai de uma ameaça de assassinato a uma transformação em mulher, foi a forma que o Presidente encontrou para despojar o outro da função de gozo. Esse alojamento, essa circunscrição do sintoma no seu processo de feminilização e na sua relação com Deus operam uma transformação do que antes era um mar de angústia e gozo onde Schreber se afogava, com incessantes operações, processos de putrefação e manipulação de seu corpo, em uma cena organizada que o permitia, quando longe daquilo que tocava no núcleo de seu delírio, manter relações, conversas e atividades em larga medida consideradas “normais”.
Contrapus a paranoia e a esquizofrenia por achar que didaticamente são duas estruturas que podem ser complementares, ou pelos menos ilustrativas do funcionamento uma da outra. Mas ainda é preciso falar da melancolia, que não será caracterizada pelo retorno do gozo no corpo, nem no outro; mas por uma perda permanente do gozo por um processo de identificação do eu com um objeto perdido.
Segundo Freud, o que ocorre na melancolia é uma “hemorragia de libido”. A libido escorre pelo eu, que, identificado com a perda de um objeto de investimento, se vê desprovido de capacidade de operar esse circuito libidinal que abordei nos parágrafos acima.
Com Lacan, a perda desse objeto é, antes, a perda de um ideal. Esse ideal mascararia a não-castração do outro e, no momento em que ele se perde, a libido vinculada a ele retornaria ao eu, não ligando-se novamente ao corpo ou ao outro – como nas duas outras estruturas da psicose –, mas perdendo-se, escoando pelo eu. O melancólico então é um sujeito muito deficitário de uma capacidade libidinal, de uma capacidade desejante. De acordo com a célebre frase de Freud, “a sombra do objeto perdido recai sobre o eu”.
Naturalmente, essas chamadas “três formas da loucura” são uma formalização que nem sempre corresponderá ao que se verifica na prática. O quadro esquizoparanóide será comum e veremos fenômenos que poderão ser bem mais indistintos do que os que aqui eu abordei. Mas a contribuição freudiana e psicanalítica como um todo foi essencial para que se começasse a discutir o delírio como a possibilidade de retomar um vínculo com o outro, de uma reorganização necessária para o sujeito, o delírio como um texto legível.

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