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Iniciac¸a˜o a` Matema´tica Michel Spira June 24, 2010 Introduc¸a˜o A disciplina Iniciac¸a˜o a` Matema´tica do Departamento de Matema´tica da UFMG tem o objetivo de introduzir linguagem ba´sica para o aluno do curso de Matema´tica. Estas notas pretendem ser o embria˜o de um texto para essa disciplina. Elas sera˜o escritas a conta-gotas e distribu´ıdas aos alunos pela rede e no xerox do ICEx. Sugesto˜es, correc¸o˜es e cr´ıticas de alunos e professores sera˜o extremamente bem vindas. 1 Lo´gica Nosso interesse nessa sec¸a˜o e´ estudar a lo´gica proposicional, que e´ a linguagem que nos permite afirmar que argumentos matema´ticos sa˜o corretos ou incorretos.1 1.1 Proposic¸o˜es, negac¸a˜o e conectivos Uma proposic¸a˜o e´ uma sentenc¸a ou afirmativa a` qual se pode atribuir um valor verdade verdadeiro (v) ou falso (f) , mas na˜o ambos. Na˜o vamos filosofar aqui sobre o assunto, mas cabe notar que comandos, perguntas e afirmativas contendo varia´veis na˜o sa˜o consideradas proposic¸o˜es. Exemplo 1.1 As seguintes sentenc¸as sa˜o proposico˜es: • Hoje e´ sexta-feira. • 1 + 1 = 2. • 5 < 3. • pi e´ racional. As seguintes sentenc¸as na˜o sa˜o proposico˜es: • Que horas sa˜o? • Limpe o seu prato. • x2 = 7. Proposic¸o˜es sera˜o denotadas por letras minu´sculas p, q, r, s, . . . . Para criar novas proposic¸o˜es a partir de antigas, usamos a negac¸a˜o e os conectivos conjunc¸a˜o, disjunc¸a˜o, condicional (tambe´m conhecido como implica) e bicondicional (tambe´m conhecido como se e somente se). Se p e´ uma proposic¸a˜o, sua negac¸a˜o e´ a proposic¸a˜o “p na˜o ocorre” (ou algum equivalente verbal). A negac¸a˜o de p e´ denotada por p, lido “na˜o p”. Exemplo 1.2 Se p e´ a proposica˜o 1+ 1 = 2 enta˜o p e´ a proposica˜o 1+ 1 6= 2. Se q e´ a proposica˜o “Hoje e´ quinta” enta˜o p e´ a proposica˜o “Hoje na˜o e´ quinta”. Os valores verdade de p e p esta˜o relacionados pela seguinte tabela verdade: p p v f f v 1Para efeito de transpareˆncia, declaro que a parte de lo´gica dessas notas foi desavergonhadamente adaptada, quando na˜o literalmente copiada, do livro Discrete Mathematics and its Applications de Kenneth H. Rosen. Lembro que o pla´gio e´ a mais sincera forma de elogio. 1 A leitura dessa tabela (e outras que aparecera˜o a seguir) deve ser clara; vamos em frente. A conjunc¸a˜o de duas proposico˜es p e q, dita “p e q”, e´ denotada por p ∧ q e definida por p q p ∧ q v v v v f f f v f f f f Exemplo 1.3 Se p e´ a proposica˜o “Fui ao cinema” e q a proposica˜o “Fui ao teatro”, enta˜o p ∧ q e´ a proposica˜o “Fui ao teatro e ao cinema”. Para que ela seja verdadeira, devo ter ido tanto ao cinema quanto ao teatro; se na˜o fui a pelo menos um deles, ela e´ falsa. Este exemplo deve deixar claro que a tabela correponde exatamente ao significado coloquial de “e”. A disjunc¸a˜o de duas proposico˜es p e q, notada por “p ∨ q”, e lida como “p ou q”, e definida por p q p ∨ q v v v v f v f v v f f f Aqui temos um problema, pois em linguagem coloquial “ou” tem duas interpretac¸o˜es distintas, depen- dendo do contexto. Para ver isso, consideremos primeiro a sentenc¸a “para fazer parte do nosso grupo de estudos voceˆ deve saber ca´lculo ou a´lgebra”. Isso quer dizer quese algue´m souber ca´lculo ou a´lgebra, talvez os dois, pode entrar para o grupo. Ou seja, a ide´ia aqui e´ pelo menos um. Essa interpretac¸a˜o corresponde a` disjunc¸a˜o, como definimos acima, e e´ habitualmente denotada por ou inclusivo. Por outro lado, em “com o sandu´ıche voceˆ pode escolher batatas fritas ou salada” fica claro que e´ permitido escolher exatamente uma das opc¸o˜es, mas na˜o as duas. Aqui temos o ou exclusivo, denotado por ⊕ e definido pela tabela p q p⊕ q v v f v f v f v v f f f Leˆ-se p⊕ q como “p xou q”2. O conectivo condicional e´ denotado pelo s´ımbolo → e e´ definido pela tabela p q p→ q v v v v f f f v v f f v Exemplo 1.4 (1 + 1 = 2) → (gatos miam) e´ verdadeira, bem como (1 + 1 = 3) → (gatos miam) e (1 + 1 = 3)→ (gatos latem); ja´ (1 + 1 = 2)→ (gatos latem) e´ falsa. Leˆ-se p→ q como “p implica q”, “se p enta˜o q”, “p e´ condic¸a˜o suficiente para q”, “q e´ condic¸a˜o necessa´ria para p”, “p so´ se q” e “q quando p”, entre outras maneiras. Em p→ q dizemos que p e´ o antecedente, a hipo´tese ou a condic¸a˜o suficiente; q e´ dita a consequente, a tese ou a condic¸a˜o necessa´ria. A pergunta e´: de onde veio a tabela verdade de →? A resposta seca e´ dizer que ha´ exatamente 16 maneiras de substituir os pontos de interrogac¸a˜o na tabela p q p♥q v v ? v f ? f v ? f v ? 2Terminologia inventada pelo autor, motivada pelo “xor” em ingleˆs. 2 pelas letras “v” ou “f”. Cada uma dessas maneiras pode ser vista como a definic¸a˜o do valor verdade de uma proposic¸a˜o composta p♥q em func¸a˜o dos valores verdade de p e q. Ja´ demos os nomes p ∧ q, p ∨ q e p⊕ q para treˆs dessas poss´ıveis colunas; sob esse ponto de vista, p→ q e´ apenas outro nome, que inventamos para designar a coluna “v,f,v,v”. Uma maneira mais amiga´vel de aproximar a definic¸a˜o de → da linguagem comum e´ pensar na proposic¸a˜o “se fizer sol vamos nadar”. Ela e´ verdadeira se fizer sol e formos nadar, e falsa se fizer sol e na˜o formos nadar. Mas como atribuir valor verdade a ela se na˜o fizer sol? Certamente na˜o poderemos dizer que ela e´ falsa e so´ nos resta a alternativa de considera´-la verdadeira. Para finalizar (e repetindo) notamos que decidir do valor verdade de p→ q deve ser dissociado de seus correspondentes verbais; leia de novo exemplo 1.4. Deve-se evitar a associac¸a˜o de “implica” com processos dedutivos ou relac¸o˜es de causa e efeito, ou seja, quando assumimos que a hipo´tese e´ verdadeira. Nesse contexto, pensamos apenas nas duas primeiras linhas da tabela de →, as outras carecendo de sentido. Ainda um pouco de terminologia. Chamando p → q de direta, dizemos que q → p e´ sua rec´ıproca e q → p sua contrapositiva. Exemplo 1.5 A proposica˜o “se T e´ um triaˆngulo equila´tero enta˜o T e´ iso´sceles” e´ verdadeira, mas sua rec´ıproca e´ falsa. O mesmo se aplica a (1 + 1 = 3)→ (gatos miam). Fechamos nossa lista de conectivos com o bicondicional, para o qual usamos o s´ımbolo ↔. A proposica˜o p ↔ q e´ lida como “p se e somente se q” ou “p e´ condic¸a˜o necessa´ria e suficiente para q”, e sua tabela verdade e´ p q p↔ q v v v v f f f v f f v v Em outras palavras, p↔ q e´ verdadeira quando p e q teˆm o mesmo valor verdade, e falsa caso contra´rio. Exemplo 1.6 (1 + 1 = 2) ↔ (gatos miam) e´ verdadeira, bem como (1 + 1 = 3) ↔ (gatos latem); ja´ (1 + 1 = 2)↔ (gatos latem) e (1 + 1 = 3)↔ (gatos miam) sa˜o falsas. Para proposico˜es compostas que envolvem mais de duas proposic¸o˜es, devemos discutir o problema de precedeˆncia de operadores, caso contra´rio expresso˜es do tipo p ∧ q ∨ r seriam amb´ıgu¨as3. Nessas notas vamos procurar evitar ambigu¨idades usando pareˆntesis, mas apenas para constar, registramos que na literatura a ordem usual e´ , ∧, ∨, → e ↔. 1.2 Equivaleˆncia Uma tautologia (resp. contradic¸a˜o) e´ uma proposica˜o que e´ sempre verdadeira (resp. falsa), qualquer que seja a escolha dos valores verdade das proposic¸o˜es que a compo˜e. Vamos denotar tautologias e contradic¸o˜es pelas letras T e F, respectivamente. Exemplo 1.7 Se p e´ uma proposica˜o enta˜o p ∨ p e´ uma tautologia e p ∧ p e´ uma contradic¸a˜o. Duas proposico˜es compostas p e q sa˜o equivalentes, notac¸a˜o p ≡ q, se elas teˆm o mesmo valor verdade para qualquer escolha dos valores verdade das proposic¸o˜es que as compo˜em. Notamos que ≡ na˜o e´ um conectivo; p ≡ q e´ uma maneira curta de dizer “p↔ q e´ uma tautologia”. Exemplo 1.8 Para mostrar que (p→ q) ≡ q → p basta fazer a tabela verdade: p q p q p→ q q → p v v f f v v v f f v f f f v v f v v f v v v v v e observar que as colunas de p → q e q → p sa˜o iguais. Em outras palavras uma implicac¸a˜o e sua contrapositiva sa˜o logicamente equivalentes. 3O problema aqui e´ o mesmo que em 2 + 3× 4, que pode ser lido como 2 + (3 × 4) e (2 + 3)× 4. A convenc¸a˜o habitual de × antes de + nos diz qual e´ a leitura correta.3 Entre outras equivaleˆncias importantes, mencionamos as leis distributivas p ∧ (q ∨ r) ≡ (p ∧ q) ∨ (p ∧ r) e p ∨ (q ∧ r) ≡ (p ∨ q) ∧ (p ∨ r) e as leis de de Morgan p ∧ q ≡ p ∨ q e p ∨ q ≡ p ∧ q. Equivaleˆncias teˆm, entre outras utilidades, a de simplificar proposico˜es compostas “complicadas”, transformando- as em proposico˜es equivalentes “mais simples”. Exemplo 1.9 Mostrar que p ∨ (p ∧ q) ≡ p ∧ q. Usando algumas equivaleˆncias ja´ vistas e outras que ficam a cargo do(a) leitor(a) demonstrar, temos p ∨ (p ∧ q) ≡ p ∧ (p ∧ q) ≡ p ∧ (p ∨ q) ≡ p ∧ (p ∨ q) ≡ (p ∧ p) ∨ (p ∧ q) ≡ F ∨ (p ∧ q) ≡ p ∧ q 1.3 Quantificadores Sentenc¸as4 do tipo “x > 2” ou “n e´ par” envolvem uma varia´vel – x e n, respectivamente – e um domı´nio (de discurso) para essa varia´vel – podemos pensar em R no primeiro caso e Z no segundo. Mais precisamente, temos um domı´nio D e uma predicado ou func¸a˜o proposicional P , que a cada x em D associa a sentenc¸a P (x). No primeiro caso, P e´ “maior que 2”, e P (x) e´ x > 2; no segundo, podemos usar Q para o predicado “e´ par” e enta˜o Q(n) e´ “n e´ par”. Substituindo x por valores espec´ıficos no domı´nio obtemos proposico˜es; por exemplo, P (7) e´ verdadeira e Q(3) e´ falsa. Mais geralmente, podemos ter predicados com mais de uma varia´vel e com domı´nios distintos para as varia´ veis. Por exemplo, podemos usar P (x, y) para denotar “x estuda y”, onde x percorre os alunos do ICEx e y as disciplinas oferecidas pelo Departamento de Matema´tica. Seja D um domı´nio e P um predicado. A quantificac¸a˜o universal de P e´ a afirmativa de que P (x) e´ verdadeira para todos os elementos de D; a notac¸a˜o e´ ∀xP (x), lida em voz alta como “para todo x, P (x) e´ verdadeira”. A quantificac¸a˜o existencial de P e´ a afirmativa de que P (x) e´ verdadeira para pelo menos um elemento de D; notac¸a˜o e´ ∃xP (x), lida em voz alta como “existe x tal que P (x) e´ verdadeira”. Observamos que a especificac¸a˜o (ou suposic¸a˜o ta´cita) do domı´nio de discurso e´ importante; por exemplo, ∀x(x mia) e´ verdadeira quando o domı´nio consiste de gatos (na˜o mudos), mas falsa quando o domı´nio e´ o de todos os animais. E´ comum na˜o se explicitar o domı´nio, mas isto so´ e´ feito quando ha´ uma compreensa˜o ta´cita, baseada no bom senso ou acordada entre as partes, de qual e´ o domı´nio em considerac¸a˜o. Para que ∀xP (x) seja falsa, basta que haja algum x no domı´nio tal que P (x) seja falsa; um tal x e´ dito um contraexemplo para ∀xP (x). Note que acabamos de mostrar5 que ∀xP (x) ≡ ∃xP (x). Do mesmo modo, para que ∃xP (x) seja falsa, basta que na˜o exista x no domı´nio tal que P (x) seja verdadeira, e acabamos de mostrar que ∃xP (x) ≡ ∀xP (x). Exemplo 1.10 Sejam D = R. Enta˜o ∀x(x > 0) e´ falsa; um contraexemplo (entre infinitos) e´ −1, pois −1 > 0 e´ falsa. Por outro lado, ∃x(x > 0) e´ verdadeira, pois 1 > 0 e´ verdadeira (bem como 2 > 0 e pi > 0); notamos que o fato de −1 > 0 ser falsa na˜o altera nossa conclusa˜o. Se G e´ o domı´nio dos gatos na˜o mudos, enta˜o ∀g(g mia) e´ verdadeiro, mas ∃g(g late) e´ falso. Notamos que, se na˜o dissermos qual e´ o domı´nio, as expresso˜es ∀xP (x) e ∃xP (x) na˜o sa˜o proposico˜es. Quando o domı´nio e´ especificado, elas passam a seˆ-lo e dizemos que a varia´vel x e´ ligada6 ou que ela esta´ no escopo do quantificador em questa˜o. O termo “ligada” tambe´m se aplica quando a x e´ atribu´ıdo um “valor” espec´ıfico do domı´nio. Comenta´rios ana´logos valem para func¸o˜es proposicionais com um nu´mero qualquer de varia´veis. 4Na˜o vamos elaborar sobre o significado de “sentenc¸a” 5Mais precisamente, estabelecer na base da conversa. 6Do ingleˆs bound. Quem souber de uma traduc¸a˜o melhor, favor avisar. 4 Exemplo 1.11 A expressa˜o ∀g(g e´ branco) na˜o e´ uma proposica˜o, mas passa a seˆ-lo quando especifi- camos que g percorre o domı´nio D dos gatos. Nesse caso a varia´vel g passa a ser ligada, ou seja, ao ler g pensamos em gatos. A expressa˜o isolada “g e´ branco” na˜o e´ uma proposica˜o, mas fazendo g = Nina7, g passa a ser ligada e “Nina e´ branca” e´ uma proposica˜o (falsa pois a Nina e´ malhada). Em Matema´tica e´ usual, dado um domı´nio D e um predicado P , usar ∃!xP (x) (lido como “existe um u´nico x tal que P (x) e´ verdadeira”) para substituir as duas afirmativas simultaˆneas (i) existe x tal que P (x) e´ verdadeira (existeˆncia) e (ii) se existem x e y em D tal que P (x) e P (y) sa˜o verdadeiras enta˜o x = y (unicidade). Notamos que na˜o ha´ dependeˆncia entre (i) e (ii); de fato, (ii) faz sentido sem a necessidade de sabermos se ∃xP (x) e´ verdadeira ou na˜o. Fica para o(a) leitor(a) mostrar que ∃!xP (x) ≡ (∃xP (x)) ∧ [∀x∀y(P (x) ∧ P (y))→ (x = y))]. Essa u´ltima expressa˜o merece dois comenta´rios. Primeiro, temos um exemplo de quantificadores aninhados8 cujo significado deve ser o´bvio. Tambe´m vemos “x” aparecer va´rias vezes, mas isso na˜o significa que “e´ o mesmo x”. Letras em expresso˜es lo´gicas sa˜o apenas marcadores de lugar; em vez de usar apenas x e y, poderiamos ter escrito ∃!rP (r) ≡ (∃sP (s)) ∧ [∀t∀u[(P (t) ∧ P (u)) → (t = u)] e tudo continuaria em seu lugar. 1.4 Regras de infereˆncia Regras de infereˆncia sa˜o maneiras de gerar proposic¸o˜es verdadeiras a partir de proposic¸o˜es sabidamente verdadeiras. Grosso modo, elas sa˜o tautologias devidamente verbalizadas. Por exemplo, p → (p ∨ q) e´ uma tautologia, que lemos como “se p e´ verdadeira enta˜o p ∨ q e´ verdadeira”; em outras palavras, de p concluimos p ∨ q. Esta regra e´ conhecida pelo nome de adic¸a˜o e e´ representada pelo diagrama p ∴ p ∨ q (adic¸a˜o) Esta e´ uma das regras de infereˆncia habituais; listamos outras a seguir , deixando para o(a) leitor(a) escrever as tautologias correspondentes e proceder a` verbalizac¸a˜o adequada. Em qualquer caso, dizemos que as proposico˜es acima do trac¸o horizontal sa˜o as hipo´teses e a proposica˜o abaixo do trac¸o a tese ou conclusa˜o. p ∧ q ∴ p (simplificac¸a˜o) p q ∴ p ∧ q (conjunc¸a˜o) p p→ q ∴ q (modus ponens) q p→ q ∴ p (modus tollens) p→ q q → r ∴ p→ r (silogismo hipote´tico) p ∨ q p ∴ q (silogismo disjuntivo) p ∨ q p ∨ r ∴ q ∨ r (resoluc¸a˜o) Vamos ilustrar essas regras. adic¸a˜o: Fui ao cinema, logo fui ao teatro ou ao cinema. simplificac¸a˜o: Fui ao cinema e ao teatro, logo fui ao cinema. conjunc¸a˜o: Fui ao cinema e fui ao teatro, logo fui ao cinema e ao teatro. modus ponens: Vou sair e se saio como fora, logo vou comer fora. modus tollens: Na˜o comi fora ontem e se saio como fora, logo na˜o sai ontem. silogismo hipote´tico: Se saio vou ao cinema e se vou ao cinema como fora, logo se saio como fora. silogismo disjuntivo: Fui ao teatro ou ao cinema. Mas na˜o fui ao teatro, logo fui ao cinema. resoluc¸a˜o: Continuo a` procura de um exemplo que na˜o seja forc¸ado. Isso deve ser suficiente para mostrar que, apesar de seus nomes imponentes, as regras de infereˆncia nada mais sa˜o que me´todos de racioc´ınio habituais. Apresentamos a seguir regras de infereˆncia para proposico˜es que envolvem quantificadores. 7Nina e´ o nome da gata de minha irma˜. 8Do ingleˆs “nested”. 5 ∀xP (x) ∴ P (c) (particularizac¸a˜o universal) P (c) para qualquer c ∴ ∀xP (x) (generalizac¸a˜o universal) ∃xP (x) ∴ P (c) para algum c (particularizac¸a˜o existencial) P (c) para algum c ∴ ∃xP (x) (generalizac¸a˜o existencial) A particularizac¸a˜o universal diz que se c e´ um elemento conhecido, com nome e enderec¸o, do universo do discurso e ∀xP (x) e´ verdadeira enta˜o P (c) tambe´m e´ verdadeira. Isso deve ser claro, bem como a particularizac¸a˜o e a generalizac¸a˜o existenciais. A generalizac¸a˜o universal, no entanto, merece comenta´rios mais detalhados. A generalizac¸a˜o universal diz que ∀xP (x) e´ verdadeira se P (c) e´ verdadeira para um elemento qual- quer9 do domı´nio. Isso e´ dif´ıcil de assimilar por conta do significado difuso de “qualquer”, confrontado com “para todo”. A ide´ia e´ pensar em “qualquer” como “um” membro do domı´nio do qual sabemos apenas que esta´ no domı´nio. Em outras palavras, esse “um” na˜odeve ter nenhuma caracter´ıstica es- pecial que o distinga de algum outro elemento do domı´nio; ou seja, responde por todos. Em 1984 10 o autor introduz o conceito de “duplopensar”, que devemos usar aqui: a expressa˜o “um qualquer” na˜o e´ contradito´ria. Ainda sobre essa regra, um exemplo de forc¸a bruta. Digamos que eu seja Deus11. Se eu digo “Garanto que qualquer gato que voceˆ encontrar e´ branco” enta˜o a generalizac¸a˜o universal leva a` conclusa˜o de que todos os gatos sa˜o brancos, pois afinal de contas eu sou omnisciente e infal´ıvel. Note que fazer essa afirmativa apenas sobre o gato do vizinho na˜o basta; o gato do vizinho na˜o e´ um elemento qualquer do domı´nio dos gatos, pois ele se distingue dos demais gatos pela caracter´ıstica de ser do vizinho. Em particular, isso explica por queˆ na˜o se pode mostrar que ∀xP (x) e´ verdadeira mostrando que P (c) e´ verdadeira para apenas alguns elementos c escolhidos do domı´nio; ao serem escolhidos, eles se tornam distinguidos e deixam de ser representativos. No frigir dos ovos, se isso parece um pouco esquizofreˆnico, e´ mesmo. Na pra´tica, regulamenta-se a sinonimia entre “para todo” e “para qualquer”. A vantagem e´ que se pode comec¸ar demonstrac¸o˜es com expresso˜es do tipo “Seja x um elemento qualquer do domı´nio. . . ” e proceder como se “esse x” representasse “todos os x” do domı´nio de uma so´ vez. Seguem ilustrac¸o˜es simples dessas regras. particularizac¸a˜o universal: Se todos os gatos sa˜o brancos enta˜o meu gato e´ branco. generalizac¸a˜o universal: Se qualquer gato e´ branco, enta˜o todos os gatos sa˜o brancos. particularizac¸a˜o existencial: Se existe pelo menos um gato branco enta˜o existe um gato branco. generalizac¸a˜o existencial: Se meu gato e´ branco enta˜o existe pelo menos um gato branco. Ou seja, tambe´m na˜o temos nada de novo aqui; estamos apenas registrando modos habituais de pensa- mento e expressa˜o para refereˆncia futura. Como dissemos, as regras de infereˆncia sa˜o apenas tautologias devidamente apresentadas. Vamos agora apresentar dois erros comuns de racioc´ınio, chamados de fala´cias ; ambos sa˜o baseados em con- tingeˆncias. O primeiro chama-se afirmar a tese e vem da contingeˆncia [(p→ q)∧ q]→ p. Um exemplo e´ “se voceˆ estudar, voceˆ passa. Voceˆ passou, logo voceˆ estudou”. O segundo diz-se negar a hipo´tese e e´ baseado na contingeˆncia [(p→ q)∧ p]→ q; um exemplo e´ “Se voceˆ estudar, voceˆ passa. Voceˆ na˜o estudou, logo voceˆ na˜o passou”. Deve estar claro que ambas as fala´cias equivalem a afirmar que se p→ q e´ verdadeira enta˜o a rec´ıproca q → p tambe´m o e´. Em logiqueˆs, temos [(p→ q) ∧ q]→ p ≡ (q → p) ≡ [(p→ q) ∧ p]→ q. 2 Argumentos Uma sequ¨eˆncia finita p1, p2, . . . , pn, q de proposico˜es onde p1, p2, . . . , pn sa˜o chamadas hipo´teses (em con- junto, ditas a hipo´tese ou premissas) e q e´ chamada tese (ou conclusa˜o) e´ dito um argumento. Exemplo 2.1 Abaixo temos um argumento; as duas primeiras proposico˜es sa˜o as premissas e a u´ltima e´ a conclusa˜o. 9Ou arbitra´rio ou gene´rico. 10Do escritor ingeˆs George Orwell; leitura obrigato´ria. 11Na˜o sou. 6 “Todos os leo˜es sa˜o ferozes.” “Alguns leo˜es na˜o bebem cafe´.” “Alguns animais ferozes na˜o bebem cafe´.” Um argumento e´ va´lido se a implicac¸a˜o (p1 ∧ p2 ∧ . . . ∧ pn) → q e´ verdadeira, caso em que dizemos que q segue (logicamente) de p1, p2, . . . pn. Estabelece-se a validade de um argumento atrave´s de uma sequ¨eˆncia de argumentos va´lidos. Dito assim, parece que entramos descida infinita, mas lembramos que ja´ temos uma lista de argumentos va´lidos prontos para o uso, a saber, as regras de infereˆncia. Vamos a um exemplo. Exemplo 2.2 Mostrar que das hipo´teses “Hoje na˜o faz sol e este´ mais frio que ontem”, “So´ vamos nadar se fizer sol”, “Se na˜o formos nadar vamos passear de canoa” e “Se formos passear de canoa vamos chegar tarde em casa” pode-se concluir que “Vamos chegar tarde em casa”. Para isso, consideremos as proposi- co˜es p:“Faz sol”, q:“Hoje faz mais frio do que ontem”, r :“Vamos nadar”, s :“Vamos passear de canoa” e t :“Vamos chegar tarde em casa”. Vamos ao trabalho. 1. p ∧ q (hipo´tese) 2. p (simplificac¸a˜o a partir de 1.) 3. r → p (hipo´tese) 4. r (modus tollens a partir de 2. e 3.) 5. r → s (hipo´tese) 6. s (modus ponens a partir de 4. e 5.) 7. t (modus ponens a partir de 6. e 7.) Exemplo 2.3 Sejam T (x):“x e´ aluno dessa turma”, L(x):“x leu o livro” e P (x):“x passou”. Mostrar que as premissas “Algum aluno dessa sala na˜o leu o livro”, “Todos nessa sala passaram” levam a` conclusa˜o “Algum aluno dessa sala passou sem ler o livro”. 1. ∃x[T (x) ∧ L(x)] (hipo´tese) 2. T (a) ∧ L(a) (particularizac¸a˜o existencial e 1.) 3. T (a) (simplificac¸a˜o e 2. ) 4. ∀x[T (x) ∧ P (x) (hipo´tese) 5. T (a)→ P (a) (particularizac¸a˜o universal e 4.) 6. L(a) (simplificac¸a˜o e 2.) 7. P (a) ∧B(a) (conjunc¸a˜o, 6. e 7.) 8. ∃x[P (x) ∧B(x)] (generalizac¸a˜o existencial e 8.) 3 Definic¸o˜es Ja´ usamos va´rias vezes as expresso˜es definimos, definido por e assim por diante; esta´ na hora de falarmos um pouco mais sobre definic¸o˜es. Uma definic¸a˜o e´ uma sentenc¸a que descreve o significado de um termo12. Em outras palavras, uma definic¸a˜o e´ uma sentenc¸a que estabelece o significado de um novo termo, que acabamos de introduzir, em func¸a˜o de termos mais antigos. Se isso parece um poc¸o sem fundo, de fato e´; para que ele tenha fundo, temos as noc¸o˜es primitivas, mas na˜o e´ hora de entrar em muitos detalhes e continuamos com nossa visa˜o simples. Podemos, e e´ bom fazeˆ-lo, enxergar uma definic¸a˜o como uma nova entrada em um diciona´rio de termos que usamos em nosso trabalho, ou seja, nada mais que estabelecer sinoˆnimos e/ou abreviac¸o˜es. Por exemplo: um animal e´ dito um gato quando ele e´ roxo e tem treˆs patas. Desse modo, ao ouvir “gato”, voceˆ automaticamente pensara´ em “animal roxo de treˆs patas”. E´ claro que aqui estamos criando uma convenc¸a˜o de uso bastante limitado, pois “gato” tem um significado diferente no mundo real. Mas se o autor decretar13 que esse e´ o sentido que queremos dar a “gato” ao longo dessas notas, isso deve ser aceito sem questionamento. Outro exemplo e´ a definic¸a˜o usual de nu´meros pares e ı´mpares: um nu´mero inteiro e´ par quando existe um inteiro k tal que n = 2k, e ı´mpar quando existe um inteiro k tal que n = 2k + 1. Os dois exemplos acima devem deixar claro que os ro´tulos “certo, verdadeiro” ou “errado, falso” na˜o se aplicam a definic¸o˜es. Em outras palavras, na˜o se discorda de uma definic¸a˜o, desde que se circunscreva 12http://en.wikipedia.org/wiki/Definition 13Ele na˜o o fara´. 7 claramente o ambiente de sua validade, quando restrito. Nossa definic¸a˜o de gato teve validade restrita ao para´grafo em que apareceu, enquanto a de nu´meros pares e ı´mpares e´ universal. Definic¸o˜es devem ser criticadas apenas dos pontos de vista este´tico, uso comum, utilidade e correspondeˆncia com o ambiente em que elas va˜o ser usadas, sem esquecer de sua coereˆncia interna. O(a) leitor(a) vai encontrar tudo isso ao longo de sua carreira matema´tica, de modo que paramos por aqui com esse assunto. 4 Teoremas e demonstrac¸o˜es A palavra teorema e´ sinoˆnimo de “argumento”; a demonstrac¸a˜o de um teorema consiste na apresentac¸a˜o da correc¸a˜o do argumento atrave´s de regras de infereˆncia. Para nosso consumo, podemos pensar que teoremas sempre aparecem na forma p → q ou enta˜o podem ser expressos atrave´s de um nu´mero finito de proposico˜es desse tipo. Notamos que se p e´ falsa enta˜o o teorema p → q e´ automaticamente verdadeiro; nesse caso dizemos que o teorema e´ vazio. O mesmo vale quando q e´ verdadeira, caso em que dizemos que o teorema e´ trivial. Ha´ va´rios me´todos de demonstrar teoremas. A mais comum e´ supor a hipo´tese verdadeira e mostrar que a tese tambe´m o e´; uma demonstrac¸a˜o desse tipo e´ dita direta. Vamos a um exemplo. Teorema 4.1 Se n e´ um inteiro ı´mpar enta˜o n2 tambe´m e´ um inteiro ı´mpar. Demonstrac¸a˜o: Masoquistas escreveriamassim: 1. n = 2k + 1 (hipo´tese e definic¸a˜o) 2. n2 = 4k2 + 4k + 1 (uma se´rie de teoremas verdadeiros para nu´meros inteiros) 3. n = 2(2k2 + 2k) + 1 (idem) 4. 2k2 + 2k e´ um nu´mero inteiro (idem) 5. n2 e´ ı´mpar (3. e definic¸a˜o) Pessoas normais como no´s, no entanto, escreveriam como segue: como n e´ ı´mpar, temos n = 2k+ 1 para algum k ∈ Z. Logo n2 = 4k2 + 4k + 1 = 2(2k2 + 2k) + 1, ou seja, n e´ ı´mpar. � Suponho que todos julgam a segunda maneira de escrever bem melhor. O ponto e´ dar flueˆncia a` exposic¸a˜o suprimindo a escrita de justificativas “triviais” que decorrem imediatamente de definic¸o˜es, resultados conhecidos ou de argumentos de domı´nio pu´blico. Isso deve ser feito com cuidado e levando em conta o pu´blico alvo. Por exemplo, entre no´s na˜o e´ necessa´rio justificar a passagem n2 = 4k2+4k+1, mas talvez fosse conveniente fazeˆ-lo para alunos do ensino fundamental e me´dio. Outra maneira de demonstrar teoremas e´ usar uma demonstrac¸a˜o indireta, que nada mais e´ que reenunciar o teorema como sua contrapositiva; lembramos, pela u´ltima vez, que aqui usamos p → q ≡ q → p. Teorema 4.2 Se n2 e´ par enta˜o n e´ par. Demonstrac¸a˜o: A contrapositiva e´ se n e´ ı´mpar enta˜o n e´ ı´mpar. Por sorte, esse e´ o teorema anterior, que ja´ demonstramos. � Notamos que nesse teorema a demonstrac¸a˜o direta na˜o e´ aparente; de fato, escrever n2 = 2k na˜o ajuda (em princ´ıpio) a fazer algum comenta´rio sobre n (o que fazer com n = √ 2k?). Outra maneira usual de demonstrar teoremas e´ por absurdo ou contradic¸a˜o, descrita em logiqueˆs por p ∧ q → F ≡ p→ q. Traduzindo, uma demonstrac¸a˜o por absurdo consiste em supor a hipo´tese verdadeira, negar a tese e chegar a uma contradic¸a˜o. Isso feito, concluimos que a tese e´ verdadeira. Podemos tambe´m pensar que a implicac¸a˜o p∧q → F so´ e´ verdadeira quando p∧q e´ falsa. Se conseguirmos demonstra´-la e como supomos p verdadeira, q deve ser falsa, isto e´, q deve ser verdadeira. Vamos a um exemplo de uma demonstrac¸a˜o por absurdo. Teorema 4.3 Se n2 e´ par enta˜o n e´ par. Demonstrac¸a˜o: Suponhamos, por absurdo, que n seja ı´mpar. Enta˜o n = 2k + 1 para algum k e temos n2 = (2k + 1)2 = 4k2 + 4k + 1 = 2(2k2 + 2k) + 1. Logo n2 e´ ı´mpar, um absurdo pois n2 e´ par por hipo´tese. � 8 E´ importante perceber que a demonstrac¸a˜o acima nada mais e´ que (n2 par) ∧ (n ı´mpar)→ (n2 par) ∧ (n2 ı´mpar) ≡ F, ou seja, p ∧ q → p ∧ p ≡ F. Em geral, e´ isso que acontece em uma demonstrac¸a˜o por absurdo; ou seja, falseia-se a hipo´tese que supomos verdadeira para comec¸ar. Nesse caso, deve ser claro que na˜o ha´ diferenc¸a entre demonstrac¸a˜os indiretas e por absurdo. Se admitirmos que a hipo´tese de qualquer teorema e´ tudo o que sabemos verdadeiro anteriormente, enta˜o podemos dizer que demonstrac¸o˜es por absurdo e indiretas sa˜o exatamente a mesma coisa. Uma das demonstrac¸a˜os por absurdo cla´ssicas e´ a seguinte. Teorema 4.4 √ 2 e´ irracional. Demonstrac¸a˜o: Suponhamos que √ 2 = a b , onde a, b ∈ N. Simplificando, podemos supor que mdc(a, b) = 1. Temos enta˜o a2 = 2b2. Logo a2 e´ par e segue do teorema 4.3 que a e´ par, digamos a = 2c com c ∈ N. Enta˜o a2 = (2c)2 = 4c2 = 2b2, ou seja, b2 = 2c2. Logo b2 e´ par e, outra vez pelo teorema 4.3, temos que b e´ par; segue que mdc(a, b) ≥ 2, um absurdo pois mdc(a, b) = 1. Logo √2 e´ irracional. � Se um teorema tem a forma (p1 ∨ p2 ∨ . . . ∨ pn) → q, ele pode ser demonstrado por casos, usando a equivaleˆncia (p1 ∨ p2 ∨ . . . ∨ pn)→ q ≡ (p1 → q) ∧ (p2 → q) ∧ . . . ∧ (pn → q). Como sempre, vamos a um exemplo. Teorema 4.5 Se n e´ ı´mpar enta˜o n2 e´ da forma 8k + 1. Demonstrac¸a˜o: O algoritmo da divisa˜o nos diz que n = 4q+ r com q, r ∈ Z e 0 ≤ r < 4. Como n e´ ı´mpar, devemos ter r = 1 ou r = 3. No primeiro caso, temos n2 = (4q + 1)2 = 16q2 + 8q + 1 = 8(2q2 + q) + 1, que e´ ı´mpar. No segundo caso temos n2 = (4q + 3)2 = 16q2 + 24q + 9 = 8(2q2 + 3q + 1) + 1, que tambe´m e´ ı´mpar. � Poderiamos tambe´m ter dividido essa u´ltima demonstrac¸a˜o em quatro casos diferentes, a saber n = 8k+1, n = 8k + 3, n = 8k + 5 e n = 8k + 7 e depois demonstrar o teorema em cada um desses casos. Fazemos isso abaixo para apresentar uma te´cnica de exposic¸a˜o que costuma reduzir bastante o trabalho em demonstrac¸o˜es por casos. Demonstrac¸a˜o: (outra do teorema 4.5) Suponhamos n = 8k + 5. Enta˜o n2 = (8k + 5)2 = 64k2 + 80k + 25 = 64k2 + 80k + 24 + 1 = 8(8k2 + 10k + 3) + 1 e´ da forma 8k + 1. Os outros casos sa˜o ana´logos. � O uso de “ana´logo” ao final da demonstrac¸a˜o indica que os outros casos sa˜o demonstrados de maneira ideˆntica, salvo mudanc¸as o´bvias. Notamos que n = 8k + 1 na˜o seria uma boa escolha para depois argumentar por analogia; de fato, esse caso na˜o tem o “truque” 25 = 24 + 1. Em teoremas da forma p↔ q, e´ habitual dividir a demonstrac¸a˜o em duas partes: a direta p→ q e a rec´ıproca q → p. Teorema 4.6 Mostre n e´ par se e somente se n2 e´ par Demonstrac¸a˜o: Suponhamos primeiro que n seja par, isto e´, n = 2k para algum k ∈ Z. Enta˜o n2 = 4k2 = 2(2k2) e´ par. Reciprocamente, suponhamos n2 par; nesse caso o teorema 4.3 nos mostra que n tambe´m e´ par. � Mais geralmente, e´ comum encontrar teoremas cujo enunciado e´ do tipo “mostrar que as afirmativas p1, p2, . . . , pn sa˜o equivalentes”, ou seja, que pi ↔ pj para todos os pares i, j. Idealmente, teoremas nessa forma sa˜o demonstrados usando o esquema p1 → p2, p2 → p3, . . . , pn−1 → pn e pn → p114. 14Qual e´ a regra de infereˆncia que esta´ sendo usada aqui? 9 Teorema 4.7 Mostre que as seguintes afirmativas sa˜o equivalentes: p1 : n e´ par p2 : n− 1 e´ ı´mpar p3 : n 2 e´ par Demonstrac¸a˜o: Vamos mostrar que p2 → p1 → p3 → p215. p2 → p1: temos n− 1 = 2k + 1, donde n = (n− 1) + 1 = (2k + 1)− 1 = 2k e´ par. p1 → p3: esse e´ o teorema 4.3. p3 → p2: observamos que se n2 e´ par enta˜o n2 − 1 e´ ı´mpar. Como n2 − 1 = (n − 1)(n − 1) e um produto ı´mpar so´ tem fatores ı´mpares segue que n− 1 e´ ı´mpar. � Chegamos agora a demonstrac¸a˜os de existeˆncia e unicidade. Aqui nossos teoremas sa˜o da forma p→ ∃xP (x) no primeiro caso e p→ ∃!xP (x). Vamos a exemplos. Teorema 4.8 Mostre que existe um inteiro positivo que pode ser escrito como soma de cubos de duas maneiras diferentes. Demonstrac¸a˜o: Basta escrever 1729 = 13 + 123 = 93 + 103. � Uma demonstrac¸a˜o desse tipo e´ dita construtiva, pois exibe explicitamente um objeto com as propriedades requeridas. Quando a existeˆncia e´ provada abstratamente, isto e´, sem um exemplo concreto, dizemos que temos uma demonstrac¸a˜o na˜o construtiva; um exemplo segue. Teorema 4.9 Existem nu´meros irracionais x e y tais que xy e´ racional. Demonstrac¸a˜o: Sabemos do teorema 4.4 que √ 2 e´ irracional. Seja r = √ 2 √ 2 . Se r e´ racional enta˜o o teorema esta´ provado com x = y = √ 2. Se r e´ irracional enta˜o r √ 2 = √ 2 2 = 2 e´ racional e o teorema esta´ provado com x = r e y = √ 2. � Note que ficamos sem saber qual entre r e r √ 2 e´ racional; a demonstrac¸a˜o diz apenas que um deles e´, com certeza, racional. Uma outra demonstrac¸a˜o cla´ssica, que afirma apenas a existeˆncia do objeto procurado sem exib´ı-lo, e´ a seguinte. Teorema 4.10 Existem infinitos nu´meros primos.16 Demonstrac¸a˜o: Vamos mostrar que se p1, p2, . . . , pn sa˜o primos enta˜o existe um primo distinto de todos eles. Para isso, consideremos o nu´mero r := p1p2 . . . pn + 1. Pelo teorema fundamental da Aritme´tica, r possui um divisor primo p; claramente p e´ diferente de p1, p2, . . . , pn. � Essa demonstrac¸a˜o e´ devida a Euclides (±300 a.c.) e e´ considerada uma das mais belas de toda a Matema´tica. 5 Conjuntos 5.1 Generalidades Disse Cantor17 : “Um conjunto e´ uma colec¸a˜o M , vista como um todo, de objetos definidos e separados de nossa intuic¸a˜o ou pensamento. Esses objetos sa˜o ditos os elementos de M .”18 Vamos rezar por isso; em particular, as ide´ias de conjunto, elemento e da relac¸a˜o de pertineˆncia sera˜o consideradas primitivas, isto e´, vamos supor que todos pensamos a mesmacoisa quando essas palavras forem mencionadas. Um conjunto deve ser pensado como um agrupamento de objetos, que podem ser qualquer coisa – nu´meros, cores, formas geome´tricas ou elefantes. Conjuntos sera˜o denotados por letras maiu´sculas A,B,C, . . . , R, S, . . .. Elementos sera˜o denotados por letras minu´sculas a, b, c, . . . , r, s, . . .. Finalmente, a relac¸a˜o de pertineˆncia sera´ indicada pelo s´ımbolo ∈; a expressa˜o a ∈ A leˆ-se como “a pertence a A” ou “a esta´ em A”. 15Escolhemos essa ordem por convenieˆncia pessoal, outras sa˜o evidentemente poss´ıvieis. 16Qual e´ a hipo´tese desse teorema? 17George Ferdinand Ludwig Philipp Cantor (1845–1918), matema´tico russo que nos contou que alguns infinitos sa˜o maiores que outros. 18Traduc¸a˜o livre. 10 Dizemos que A ⊆ B, lido como A e´ um subconjunto de B ou A esta´ contido em B, quando ∀x(x ∈ A → x ∈ B); em portugueˆs, A esta´ contido em B quando todo elemento de A tambe´m e´ um elemento de B. Dizemos que A = B quando (A ⊆ B) ∧ (B ⊆ A); em portugueˆs, A = B quando eles possuem os mesmos elementos. Para refereˆncia futura, destacamos o seguinte mantra: em princ´ıpio, para mostrar que dois conjuntos sa˜o iguais deve-se mostrar que um esta´ contido no outro e que o outro esta´ contido no um. A inclusa˜o pro´pria A ( B, dita A esta´ propriamente contido em ou e´ um subconjunto pro´prio de B, indica que A esta´ contido em B e que existe pelo menos um elemento de B que na˜o esta´ em A. Finalmente, usamos A * B para indicar que A na˜o e´ subconjunto de B. Ha´ essencialmente duas maneiras de indicar conjuntos. Uma e´ dita expl´ıcita e consiste em listar todos os elementos do conjunto, colocando a lista entre chaves. Exemplo 5.1 A = {1, 2, 3} indica o conjunto que consiste dos elementos 1, 2 e 3. Claramente, a notac¸a˜o expl´ıcita traz problemas quando queremos lidar com conjuntos com muitos ele- mentos. Por exemplo, e´ masoquismo listar todos os elementos do conjunto B dos nu´meros inteiros de 1 a 100. Nesse caso, B = {1, 2, 3, . . . , 99, 100} e´ um compromisso razoa´vel, os pontinhos indicando “voceˆ sabe o que esta´ aqui, eu estou com preguic¸a de escrever”. Analogamente, o conjunto Z dos nu´meros inteiros pode ser indicado por Z = {. . . ,−3,−2,−1, 0, 1, 2, 3, . . .}, embora a questa˜o aqui envolva algo mais ale´m de preguic¸a. Resumindo, a notac¸a˜o expl´ıcita tem utilidade limitada. No caso geral, o procedimento e´ considerar um conjunto universo U que conte´m todos os elementos relevantes no momento e uma func¸a˜o proposicional P em U (visto como domı´nio); denotamos enta˜o por {x ∈ U | P (x)} o conjunto dos x ∈ U tais que P (x) e´ verdadeira. Essa maneira de indicar conjuntos e´ dita impl´ıcita. Quando o universo e´ claro, escrevemos apenas {x | P (x)}; quando quisermos concentrar nossa atenc¸a˜o em elementos de um subconjunto A ⊆ U , escreveremos {x ∈ A | P (x)}. Exemplo 5.2 Com U = R, o conjunto A = {1, 2, 3} pode ser indicado por A = {x ∈ Z | 1 ≤ x ≤ 3}. Um breve comenta´rio sobre notac¸a˜o. Costuma-se dizer que “um conjunto na˜o pode ter elementos iguais”. Supostamente, isso quer dizer que ao explicitar os elementos de um conjunto, na˜o devem aparecer elementos repetidos; por exemplo, {a, a, b} esta´ “errado”. A questa˜o se resolve de maneira bem simples. De fato, consideremos o “conjunto” {a, a}; nossa definic¸a˜o de igualdade mostra que {a, a} = {a}. Vamos assim que o ponto na˜o e´ se e´ permitido ou na˜o repetir elementos, mas que fazeˆ-lo e´ perda de tempo.19 Um conjunto interessante e´ o conjunto vazio, definido como ∅ = {x | x ∈ ∅}. Essa definic¸a˜o quer dizer que ∀x(x 6∈ ∅); em portugueˆs claro, o conjunto vazio na˜o possui elementos. Notamos que o uso de o conjunto vazio em vez de um conjunto vazio na˜o e´, ainda, justificado; para que ele o seja, deve-se mostrar que se ∅1 e ∅2 sa˜o vazios enta˜o ∅1 = ∅220. No que se segue usaremos figuras como a que aparece abaixo, conhecidas como diagramas de Venn21, para visualizar relac¸o˜es entre conjuntos. Nela aparecem as seguintes informac¸o˜es: a ∈ A, b 6∈ A e A ( U . U A a b b b b b b 5.2 Operac¸o˜es com conjuntos Nosso objetivo agora e´ mostrar como fabricar novos conjuntos a partir de conjuntos velhos. Para isso, sejam A e B conjuntos; definimos 19Mais tarde, em um curso de Ana´lise Combinato´ria, sera˜o encontrados os multiconjuntos, em que elementos aparecem dotados de multiplicidades, ou seja, o nu´mero de vezes em que se repete conte´m informac¸a˜o. Nossos conjuntos sa˜o apenas multiconjuntos em que todos os elementos teˆm multiplicidade 1. 20A teoria de conjuntos e´ cheia desses detalhes o´bvios que devem ser demonstrados como exerc´ıcio de escrita. 21Assim nomeados por conta de seu inventor, o matema´tico ingleˆs John Venn (1834 – 1923). 11 a unia˜o: A ∪B = {x | (x ∈ A) ∨ (x ∈ B)} a intersec¸a˜o: A ∪B = {x | (x ∈ A) ∧ (x ∈ B)} a diferenc¸a: A−B = {x | (x ∈ A) ∧ (x 6∈ B)} a diferenc¸a sime´trica: A△B = (A−B) ∪ (B −A) o complementar : Ac = U −A = {x | x 6∈ A} Os diagramas de Venn correspondentes a essas operac¸o˜es aparecem a seguir, com as regio˜es relevantes em cinza. A ∩ BA ∪ B A△B A− B Ac A A A A A BBB B Propriedades dessas operac¸o˜es podem ser encontradas na lista de exerc´ıcios correspondente. Para consumo local e exemplos de demonstrac¸o˜es, destacamos as leis distributivas A ∪ (B ∩ C) = (A ∪B) ∩ (A ∪C) e A ∩ (B ∪ C) = (A ∩B) ∪ (A ∩ C) e as leis de de Morgan (A ∪B)c = Ac ∩Bc e (A ∩B)c = Ac ∪Bc . Vamos a algumas demonstrac¸o˜es. Exemplo 5.3 Vamos mostrar que A∩B ⊆ A. Para isso, seja x ∈ A∩B, ou seja, (x ∈ A) e (x ∈ B); segue enta˜o que x ∈ A e fim. Observamos que a justificativa desse “segue enta˜o” e´ uma de nossas infereˆncias, a saber, a simplificac¸a˜o: (x ∈ A) ∧ (x ∈ B)→ (x ∈ A). Detalhes desse tipo na˜o sera˜o sempre mencionados no que segue, mas o(a) aluno(a) deve estar preparado(a) para forneceˆ-los a qualquer momento. Exemplo 5.4 Vamos mostrar que (A ∪ B)c = Ac ∩ Bc. Comec¸amos com (A ∪ B)c ⊆ Ac ∩ Bc. Seja x ∈ (A ∪ B)c; enta˜o x 6∈ (A ∪ B), ou seja, x 6∈ A e x 6∈ B. Logo x ∈ Ac ∩ Bc. Reciprocamente, seja x ∈ Ac ∩Bc. Enta˜o x 6∈ A e x 6∈ B, ou seja, x 6∈ A ∪B. Logo x 6∈ A ∪B. Alternativamente, usando as proposic¸o˜es a : x ∈ A e b : x ∈ B, podemos traduzir x 6∈ A como a e x 6∈ B como b. Nessa linguagem, o que queremos provar e´ a ∨ b↔ a ∧ b,o que ja´ fizemos na sec¸a˜o 1. Exemplo 5.5 Vamos mostrar que A ∪ (B ∩ C) = (A ∪ B) ∩ (A ∪ C). Como temos uma igualdade de conjuntos, o esquema e´ imediato: mostrar que o lado esquerdo esta´ contido no lado direito e vice-versa. Para mostrar que A ∪ (B ∩ C) ⊆ (A ∪ B) ∩ (A ∪ C), consideramos primeiro x ∈ A ∪ (B ∩ C). Temos enta˜o (x ∈ A) ou [(x ∈ B) e (x ∈ C)]22, o que e´ o mesmo que x ∈ A e x ∈ B ou x ∈ A ou x ∈ C, ou seja, x ∈ (A ∪B) ∩ (A ∪ C). A inclusa˜o inversa e´ obtida percorrendo-se esse argumento de tra´s para a frente. Essa demonstrac¸a˜o deve parecer familiar, e de fato e´. Para ver isso, sejam a, b e c as proposic¸o˜es x ∈ A, x ∈ B e x ∈ C, respectivamente. Vimos na sec¸a˜o 1 que a ∨ (b ∧ c) ≡ (a ∨ b) ∧ (a ∨ c), ou seja, a ∨ (b ∧ c)↔ (a ∨ b) ∧ (a ∨ c) e´ uma tautologia; isso e´ exatamente o que quer´ıamos mostrar. 22Note que essa sentenc¸a e´ amb´ıgua; para torna´-la precisa, seria necessa´rio um par de pareˆntesis. 12 Exemplo 5.6 Vamos mostrar que A△B ⊆ A se e somente se B ⊆ A. Em linguagem habitual, a demons- trac¸a˜o procede como segue (por exemplo). Supomos primeiro que A△B ⊆ A e queremos mostrar que B ⊆ A. Como A△B = (A−B) ∪ (B −A), segue que B −A ⊆ A; logo B −A = ∅, ou seja, B ⊆ A. Para a inclusa˜o rec´ıproca, suponhamos B ⊆ A. Enta˜o B − A = ∅ e segue que A△B = (A − B) ∪ (B − A) = (A−B) ∪ ∅ = A−B ⊆ A. Em linguagem de lo´gica, consideramos as proposic¸o˜es a e b como nos exemplos anteriores. A igualdade proposta e´ equivalente a {[( a ∧ b) ∨ (a ∧ b)]→ a}↔ (b→ a) . Usando a equivaleˆncia (p → q) ≡ (p ∨ q), e´ imediato reduzir essa expressa˜o a (b ∨ a) ↔ (b ∨ a), e o trabalho acabou. Notamos que na demonstrac¸a˜o acima foram usados implicitamente osseguintes fatos: (X∪Y ⊆ Z)→ (X ⊆ Z), (X − Y ⊆ X) ↔ (X ⊆ Y ) e X ∪ ∅ = X . Como sempre, fatos elementares desse tipo na˜o sa˜o mencionados pois isso tornaria a exposic¸a˜o excessivamente pesada. Esperamos ter deixado claro que as propriedades elementares das operac¸o˜es entre conjuntos e suas relac¸o˜es com inclusa˜o e igualdade (em particular, todos os exerc´ıcios da 4a lista) podem ser expressas e trabalhadas em linguagem de lo´gica. Nos exemplos acima, procuramos mostrar que essa linguagem pode ser usada para, a`s vezes, substituir e simplificar os repetitivos argumentos do tipo “Seja x ∈ A. Enta˜o ...”. Isso e´ muito bom quando os conjuntos com que trabalhamos sa˜o abstratos. Quando lidamos com conjuntos com nome, enderec¸o e cpf, no entanto, e´ claro que as coisas na˜o sa˜o sempre assim, pois temos que lidar com descric¸o˜es expl´ıcitas desses conjuntos. Vamos a um exemplo. Exemplo 5.7 Vamos trabalhar no plano. A mediatriz m do segmento AB e´ a reta perpendicular a esse segmento e que passa pelo seu ponto me´dio M . Definimos l = {P | PA = PB}, isto e´, l e´ o conjunto dos pontos equidistantes de A e B23. Queremos mostrar que l = m; para isso, devemos mostrar que l ⊆ m e m ⊆ l. O resto da demonstrac¸a˜o usa argumentos geome´tricos que dependem diretamente da descric¸a˜o dos conjuntos l e m. XX AA BB MM Figura 1 Figura 2 b bb l b b b b bb bb b Comec¸amos com l ⊆ m. SejaX ∈ l, como na figura 1. Enta˜o os triaˆngulosXMA eXMB sa˜o congruentes, pois sa˜o retaˆngulos com um cateto e hipotenusa iguais. Logo XA = XB, ou seja, X ∈ l. Seja agora X ∈ l, como na figura 2. Enta˜o XA = XB e segue que os triaˆngulos XMA e XMB sa˜o congruentes,pois teˆm treˆs lados iguais. Em particular, temos X̂MA = X̂MB e como X̂MA + X̂MB = 180◦ segue que X̂MA = X̂MB = 90◦. Logo X ∈ l, donde m ⊆ l e acabamos de mostrar que m = l. Para terminar essa sec¸a˜o, algumas palavras sobre contraexemplos. Tomemos como exemplo achar um contraexemplo para A− (B ∪ C) = (A−B) ∪ (A− C). Isso pode ser feito por tentativa e erro, mas um me´todo bem mais ra´pido e´ usar diagramas de Venn, como indicamos na figura a seguir. 23Tambe´m conhecido como o lugar geome´trico dos pontos equidistantes de A e B. 13 0 A− (B ∪ C ) (A− B) ∪ (A− C ) A A BB C C b A observac¸a˜o da figura mostra que se inventarmos conjuntos A, B e C tais que haja um elemento (o ponto preto a` direita) em A ∩ B que na˜o esteja em A ∩ B ∩ C, teremos o nosso contraexemplo. Isso e´ fa´cil; por exemplo, A = {a, b}, B = {b} e C = ∅. Nesse caso, temos A − (B ∩ C) = {a}, A − B = {a} e A − C = {a, b} e enta˜o A − (B ∪ C) = {a} (A − B) ∪ (A − C) = {a, b}. Notamos que e´ necessa´rio exibir explicitamente um contraexemplo; a figura ajuda, mas na˜o prova nada. A figura indica ainda que, em geral, temos A − (B ∪ C) ⊆ (A − B) ∪ (A − C), A − (B ∪ C) = (A−B) ∩ (A−C) e (A−B) ∪ (A−C) = A− (A ∩B ∩C). As demonstrac¸o˜es ficam para o(a) leitor(a). 5.3 O produto cartesiano Conjuntos na˜o embutem a noc¸a˜o de ordem; de fato, {a, b} = {b, a}, ou seja, na˜o faz sentido dizer que a e´ o primeiro elemento de {a, b} e b o segundo, ou vice-versa. Em particular, de {a, b} = {c, d} na˜o e´ poss´ıvel afirmar que a = c e b = d. Para introduzir ordem nas regras do jogo, procedemos como segue. Dados conjuntos A e B, o produto cartesiano A × B e´ o conjunto de pares ordenados {(a, b) | a ∈ A e b ∈ B}; o par ordenado (a, b) e´ definido por (a, b) = {{a}, {a, b}}. Vamos agora mostrar a propriedade fundamental que esperamos de pares ordenados. Teorema 5.1 (a, b) = (c, d) se e somente se a = c e b = d. Demonstrac¸a˜o: Se a = c e b = d enta˜o {a} = {c}, {b} = {d} e {a, b} = {c, d}. Logo {{a}, {a, b}} = {{b}, {c, d}}, ou seja, (a, b) = (c, d). Reciprocamente, suponhamos (a, b) = (c, d), ou seja, {{a}, {a, b}} = {{c}, {c, d}}; temos dois casos a considerar. No primeiro, {a} = {c}; aqui a = c e segue de {a, b} = {c, d} que b = d. No segundo caso temos {a} = {c, d}. Aqui segue que a = c = d e enta˜o (c, d) = {c}, ou seja, (c, d) = {{c}}. Logo {b} = {c}, donde a = b = c = d e segue que (a, b) = (c, d). � A moral dessa curta sec¸a˜o e´ que a noc¸a˜o de ordem pode ser criada exclusivamente dentro da teoria de conjuntos. Fica para o(a) leitor(a) definir o produto cartesiano de treˆs ou mais conjuntos. 6 Relac¸o˜es Essa sec¸a˜o sera´ escrita oportunamente. 7 Func¸o˜es Sejam A e B conjuntos. Uma relac¸a˜o f de A em B e´ uma func¸a˜o quando para qualquer x ∈ A existe um u´nico (x, y) ∈ f . Usamos a notac¸a˜o f : A → B nessa situac¸a˜o. Se (x, y) ∈ f dizemos que y e´ a imagem de x por f e escrevemos y = f(x); informalmente, dizemos que y e´ o valor de f em x. Dizemos tambe´m que x e´ a contraimagem de y. Os conjuntos A e B sa˜o chamados, respectivamente, de domı´nio e contradomı´nio de f . A afirmativa y = f(x) e´ usualmente representada como segue. yx A B f b b 14 Vamos nos referir a representac¸o˜es desse tipo como representac¸a˜o por flechas24. Exemplo 7.1 Sejam A = {1, 2, 3} e B = {r, s}. Definimos f : A→ B por f(1) = r, f(2) = s e f(3) = s. O desenho aqui e´ 1 2 3 r s A B f b b b b b b b Exemplo 7.2 Seja A um conjunto. Definimos 1A : A→ A por 1A(x) = x para qualquer x. Essa func¸a˜o, apesar de na˜o fazer absolutamente nada, e´ importante e merece um nome especial: ela e´ dita a identidade de A. Exemplo 7.3 Sejam A = B = R e f : A → B dada por f(x) = x2. Nesse caso, temos uma “regra” ou “fo´rmula” que nos permite, dado um ponto do domı´nio, saber qual a sua imagem. Do ponto de vista formal (isto e´, vendo func¸o˜es como conjuntos) temos f = {(x, x2) | x ∈ R}; o melhor desenho aqui e´ o gra´fico habitual no plano cartesiano x x 2 b Notamos que a representac¸a˜o dessa func¸a˜o por flechas certamente na˜o e´ muito conveniente. Observamos que a definic¸a˜o formal de func¸a˜o que demos acima e´ necessa´ria para colocar em linguagem precisa a expressa˜o habitual “uma func¸a˜o e´ uma regra que faz corresponder a cada elemento de A um u´nico elemento de B”; com ela, evitamos o uso de termos vagos como “regra” e “corresponde a”ou “associa”. A ide´ia de func¸a˜o como regra na˜o e´ necessa´ria (para a definic¸a˜o) e substitui-se a expressa˜o “y corresponde a x” por y = f(x). Notamos que f no exemplo 7.1 na˜o e´ dada por uma “regra”25. De qualquer modo, uma vez feito esse comenta´rio, nada nos impede de usar linguagem informal e dizer que uma func¸a˜o e´ um “objeto” que associa a cada elemento do domı´nio um u´nico elemento do contradomı´nio. As figuras a seguir negam o “um” e o “u´nico” dessa u´ltima sentenc¸a, oferecendo assim exemplos protot´ıpicos de “na˜o func¸o˜es”. BAA B elemento com mais de uma imagem elemento sem imagem b b b b b b b b b b b Voltemos a um pouco de formalidade. Definimos func¸o˜es como relac¸o˜es, isto e´, como subconjuntos de produtos cartesianos. Desse modo, a igualdade de func¸o˜es na˜o precisa ser definida, pois ja´ sabemos 24Terminologia inventada pelo autor. 25Pode-se, e´ claro, dizer que uma vez que f e´ descrita completamente enta˜o ela passa a ser sua pro´pria regra, mas isso e´ arguir a posteriori e na˜o vamos nos preocupar com miudezas desse tipo. 15 quando dois conjuntos sa˜o iguais. O(a) leitor(a) pode verificar que se f : A→ B e g : C → D sa˜o func¸o˜es enta˜o f = g se e somente se A = C, B = D e f(x) = g(x) para todo x ∈ A. Depois disso, podemos esquecer para sempre que func¸o˜es sa˜o conjuntos e trabalhar com nosso conceito informal de func¸a˜o, como no para´grafo anterior. Para terminar essa subsec¸a˜o, um pouco de notac¸a˜o e nomenclatura. Seja f : A→ B uma func¸a˜o. Se C ⊆ A, definimos a imagem de C por f(C) = {f(x) | x ∈ C}, ou seja, o conjunto dos elementos de B que sa˜o imagens de elementos de A; em particular, f(A) e´ dita a imagem de f e denotada por Im(f). Se y ∈ B definimos a imagem inversa de y por f−1(y) = {x ∈ A | f(x) = y}, ou seja, o conjunto das imagens inversas de y. Finalmente, se D ⊆ B definimos a imagem inversa de D por f−1(D) = {x ∈ A | f(x) ∈ D}, ou seja, o conjunto dos elementos de A cujaimagem esta´ em D. Uma palavra de cautela. Em geral, f−1 remete inconscientemente ao conceito de func¸a˜o inversa, que veremos adiante. Essa e´ outra infelicidade notacional consagrada pela pra´tica. Por enquanto, enfatizamos que o f−1 usado acima na˜o tem nada a ver com func¸o˜es inversas e deve ser considerado apenas como mais uma notac¸a˜o. Exemplo 7.4 Sejam A = {a, b, c, d, e}, B = {1, 2, 3, 4, 5}, C = {b, c, d, e}, D = {3, 4} e f : A→ B como na figura. A B 1 2 3 4 5 a b c d e Im(A) C D f (C )f −1 (D) f −1 (3 ) b b b b b b b b b b Indicamos na figura f(C) = {2, 3, 4}, Im(A) = {1, 2, 3, 4}, f−1(D) = {c, d, e}, f−1(3) = {c, d}, f−1(1) = {a} e f−1(5) = ∅. 7.1 Composic¸a˜o de func¸o˜es Sejam f : A → B e g : B → C func¸o˜es. O desenho abaixo mostra como definir uma nova func¸a˜o g ◦ f : A→ C; explicitamente, definimos (g ◦ f)(x) = g(f(x)). CA B f x f (x ) g(f (x )) g ◦ f g b b b Reforc¸amos um ponto que pode ter passado despercebido: essa construc¸a˜o so´ faz sentido quando o contradomı´nio de f e´ o domı´nio de g; desse modo, f ◦ g so´ faz sentido no caso C = A. Exemplo 7.5 Sejam G o conjunto dos gatos, P o conjunto das pessoas e A o conjunto das letras do alfa- beto. Definimos f : A→ B por f(g) = dono de g26 e g : B → C por f(p) = inicial do primeiro nome de p. Enta˜o g ◦ f : G→ A e´ a func¸a˜o que associa a cada gato a inicial do primeiro nome de seu dono. Exemplo 7.6 Sejam f, g : R → R func¸o˜es dadas por f(x) = cosx e g(x) = ex. Enta˜o (g ◦ f)(x) = g(f(x)) = g(cosx) = ecosx. 26Para efeito desse exemplo, supomos que todos os gatos teˆm dono. 16 Uma infelicidade notacional e´ que f e g aparecem em g ◦ f na ordem oposta a` que aparecem no desenho e tambe´m a` ordem natural “primeiro f , depois g”; isso e´ uma consequeˆncia do fato de lermos da esquerda para a direita e da notac¸a˜o funcional f(x) com x a` direita de f 27. Notamos tambe´m que o s´ımbolo ◦ na˜o quer dizer grande coisa; gf seria bom o suficiente, mas haveria o perigo de confusa˜o com multiplicac¸a˜o, de modo que vamos nos ater a` notac¸a˜o habitual. Sejam agora f : A→ B, g : B → C e h : C → D func¸o˜es. Podemos enta˜o construir h◦ (g ◦f) : A→ D e (h ◦ g) ◦ f : A→ D. Vamos mostrar que essas func¸o˜es sa˜o iguais. Como elas teˆm o mesmo domı´nio e o mesmo contradomı´nio, basta mostrar que elas assumem o mesmo valor para qualquer x ∈ A. E, de fato, temos [h ◦ (g ◦ f)](x) = h((g ◦ f)(x)) = h(g(f(x))) = (h ◦ g)(f(x)) = [(h ◦ g) ◦ f ](x) . Mostramos assim que a composic¸a˜o de func¸o˜es e´ associativa. No resultado a seguir mostramos que, para func¸o˜es A→ B, a func¸a˜o 1A e´ uma identidade a` direita e 1B e´ uma identidade a´ esquerda com relac¸a˜o a` composic¸a˜o de func¸o˜es. Teorema 7.1 Seja f : A→ B uma func¸a˜o. Enta˜o f ◦ 1A = f e 1B ◦ f = f . Demonstrac¸a˜o: Seja x ∈ A. Enta˜o (f ◦ 1A)(x) = f(1A(x)) = f(x), ou seja, f ◦ 1A = f . De modo ana´logo mostra-se que 1B ◦ f = f . � 7.2 Func¸o˜es injetoras e sobrejetoras Seja f : A → B uma func¸a˜o. Dizemos que f e´ injetora se pontos distintos teˆm imagens distintas; em matematiqueˆs, isso e´ o mesmo que f(x) = f(x′)→ x = x′ ou, equivalentemente, x 6= x′ → f(x) 6= f(x′). Dizemos que f e´ sobrejetora se todo y ∈ B e´ imagem de algum x ∈ A, isto e´, se y ∈ B e´ qualquer enta˜o existe x ∈ A tal que y = f(x). Finalmente, dizemos que f e´ bijetora se ela e´ injetora e sobrejetora. De modo mais visual, podemos dizer que uma func¸a˜o e´ injetora se flechas que “partem” de pontos distintos do domı´nio “chegam” em pontos distintos do contradomı´nio, e sobrejetora se todos os pontos do contradomı´nio “recebem” uma flecha. Vamos aos desenhos. A B f A B f func¸a˜o injetora func¸a˜o sobrejetora b b b b b b b b b b Notamos que no desenho a` esquerda temos uma func¸a˜o que e´ injetora mas na˜o sobrejetora; a` direita temos uma func¸a˜o que e´ sobrejetora mas na˜o injetora. Fica para o(a) leitor(a) fazer um desenho de uma func¸a˜o que na˜o seja nem injetora nem sobrejetora. Exemplo 7.7 Seja f : R→ R dada por f(x) = x2. Como f(2) = f(−2) = 4, segue que f na˜o e´ injetora. E como na˜o existe x tal que f(x) = −1, segue que f na˜o e´ sobrejetora. Exemplo 7.8 Seja f : Z → Z dada por f(n) = 2n. Essa f e´ injetora; de fato, se f(m) = f(n) temos 2m = 2n, donde m = n. Por outro lado, na˜o existe n ∈ Z tal que f(n) = 3; logo f na˜o e´ sobrejetora. Exemplo 7.9 Seja f : Z→ N dada por f(n) = |n|. Aqui f na˜o e´ injetora, pois f(1) = 1 = f(−1). Por outro lado, f e´ sobrejetora, pois para qualquer m ∈ N temos m = f(m). No caso particular de func¸o˜es R→ R, injetividade e sobrejetividade podem ser interpretadas em termos de gra´ficos. Uma func¸a˜o f : R → R na˜o e´ injetora quando alguma reta horizontal corta seu gra´fico em dois pontos e na˜o e´ sobrejetora quando alguma reta horizontal na˜o corta seu gra´fico. Ilustramos isso a seguir com o gra´fico de nossa velha amiga f : R → R dada por f(x) = x2. Observamos que ela na˜o e´ injetora pois a reta horizontal pelo ponto (0, 4) corta o gra´fico em dois pontos distintos, correspondentes a x = ±2. Ela tambe´m na˜o e´ sobrejetora, pois a reta horizontal pelo ponto (0,−1) na˜o corta o gra´fico. 27Algebristas, que sabem das coisas, escrevem (x)f ; se usa´ssemos essa notac¸a˜o, a composta de f e g seria f ◦ g e o mundo ficaria bem mais bonito. 17 2 4 −2 −1 Deve ter ficado claro que a pergunta relevante e´ “dado y ∈ B, quantos x ∈ A sa˜o tais que y = f(x)?”; em outras palavras, dado y ∈ B queremos saber quantas flechas chegam em y. Em outras palavras (versa˜o 2), queremos saber quantas sa˜o as “soluc¸o˜es” x da “equac¸a˜o” y = f(x). Vamos analisar poss´ıveis respostas. 1. se para todo y houver pelo menos uma soluc¸a˜o, f e´ sobrejetora 2. se existe y para o qual na˜o haja soluc¸a˜o, f na˜o e´ sobrejetora. 3. se para todo y houver no ma´ximo uma soluc¸a˜o, f e´ injetora 4. se existe y para o qual haja mais de uma soluc¸a˜o, f na˜o e´ injetora. 5. se para todo y a resposta for exatamente um, f e´ bijetora. Vamos a exemplos. Exemplo 7.10 Seja A o conjunto dos alunos da UFMG, B o conjunto de primeiros nomes e f : A→ B definida por f(x) = primeiro nome de x. Notamos primeiro que f na˜o e´ injetora, pois a equac¸a˜o f(x) = Joa˜o certamente tem mais de uma soluc¸a˜o; isto e´, a UFMG tem pelo menos dois alunos cujo primeiro nome e´ Joa˜o (eu conhec¸o muitos). Ale´m disso, f na˜o e´ sobrejetora, pois f(x) = Altrofando na˜o tem soluc¸a˜o (podem conferir no DRCA). Exemplo 7.11 Seja f : R→ R dada por f(x) = (2x+ 7)3. Resolvendo a equac¸a˜o y = (2x+ 7)3 para x, obtemos x = 3 √ y−7 2 ; como todos os passos da resoluc¸a˜o sa˜o invers´ıveis, conclu´ımos que para todo y essa equac¸a˜o tem uma u´nica soluc¸a˜o, ou seja, f e´ bijetora. Breve digressa˜o: Vamos explicar a expressa˜o “como todos os passos da resoluc¸a˜o sa˜o invers´ıveis”, usada no exemplo anterior. Consideremos a equac¸a˜o x = 2, que possui apenas a soluc¸a˜o 2. Elevando os dois lados ao quadrado e simplificando obtemos x2 = 4, que ale´m da raiz original possui tambe´m a raiz −2. Vemos assim que, ao manipular algebricamente uma equac¸a˜o, podem aparecer ra´ızes da equac¸a˜o manipulada que na˜o sa˜o ra´ızes da equac¸a˜o original. Para entender o que esta´ acontecendo, vamos repetir o racioc´ınio do para´grafo anterior em caˆmara lenta. Ele comec¸a com “Suponhamos que exista x tal que x = 2. Enta˜o. . . ” e acaba com “Logo x = ±2”. Ou seja, supondo que existam ra´ızes concluimos que elas so´ podem ser ±2, mas e´ so´. Apenas o teste direto permite decidir quais delas sa˜o efetivamente ra´ızes da equac¸a˜o original. O problema, em geral, e´ que uma transformac¸a˜o alge´brica efetuada no processo de resoluc¸a˜o de uma equac¸a˜o pode na˜o ser revers´ıvel, isto e´, pode na˜o ser poss´ıvel retornar ao estado anterior. Voltando a y = (2x+ 7)3, os passos (um pouco resumidos) da resoluc¸a˜o acima sa˜o y = (2x+ 7)3 → 2x+ 7 = 3√y → x = 3 √ y − 7 2 e todos sa˜o revers´ıveis. Ja´ em x = 2, o passo x = 2→ x2 = 4 na˜o e´ revers´ıvel, pois de x2 = 4 na˜oe´ poss´ıvel recuperar x = 2. Qual e´ enta˜o o procedimento correto? Simples: resolver alegremente a equac¸a˜o sem se preocupar com nada28. Se suas transformac¸o˜es alge´bricas forem todas revers´ıveis, na˜o ha´ mais o que fazer; caso 28Bem, nem tanto. Alguns procedimentos, como multiplicar ou dividir por fatores que podem ser eventualmente nulos, podem trazer se´rias dores de cabec¸a. 18 contra´rio, e´ necessa´rio testar as soluc¸o˜es encontradas na equac¸a˜o original e descartar as “fantasmas”. Fim da breve digressa˜o. Para terminar essa sec¸a˜o, vamos demonstrar um resultado simples para uso posterior. Teorema 7.2 Sejam f : A→ B e g : B → C func¸o˜es. 1. Se g ◦ f e´ injetora enta˜o f e´ injetora. 2. Se Se g ◦ f e´ sobrejetora enta˜o g e´ sobrejetora. Demonstrac¸a˜o: (1) Sejam x 6= x′ ∈ A. Por hipo´tese, temos (g ◦ f)(x) 6= (g ◦ f)(x′), ou seja, g(f(x)) 6= g(f(x′)). Segue que f(x) 6= f(x′), ou seja, f e´ injetora. (2) Seja y ∈ B. Por hipo´tese, existe x ∈ A tal que (g ◦ f)(x) = y, isto e´, g(f(x)) = y, e segue que g e´ sobrejetora. � 8 Func¸o˜es inversas Vamos assumir, para efeito de conversa, que uma func¸a˜o f : A → B e´ um objeto que desenha, para qualquer x ∈ A, uma flecha que vai de x ate´ um ponto denominado f(x) ∈ B. Nosso interesse e´ saber quando e´ poss´ıvel inverter a direc¸a˜o das flechas e obter uma nova func¸a˜o g : B → A. Em outras palavras (e sem preocupac¸a˜o com rigor) em vez de saber como “calcular” a imagem dex ∈ A, estamos interessados em saber como recuperar a imagem inversa de y ∈ B. f g x y A B b b Supondo que essa g exista, deve estar claro que g(f(x)) = x e f(g(y)) = y, ou seja, (g ◦ f)(x) = x e (f ◦ g)(y) = y, para quaisquer x ∈ A e y ∈ B. Concluimos que g ◦ f = 1A e f ◦ g = 1B. Como 1A e´ bijetora, logo injetora, segue da primeira igualdade e do teorema 7.2 que f e´ injetora; analogamente, a segunda igualdade nos mostra que f e´ sobrejetora. Acabamos de concluir que se g existe enta˜o f e´ uma bijec¸a˜o; ou seja, essa discussa˜o so´ faz sentido quando f e´ bijetora. Essa conclusa˜o tambe´m segue imediatamente por observac¸a˜o dos exemplos de “na˜o func¸a˜o” dados no in´ıcio dessa sec¸a˜o. Suponhamos enta˜o que f seja uma bijec¸a˜o; definimos g : B → A por g(y) = x quando y = f(x). Como f e´ uma bijec¸a˜o segue que para qualquer y ∈ B existe um u´nico x ∈ A tal que f(x) = y. Desse modo, g associa a cada y ∈ B um u´nico x ∈ A, ou seja, g e´ uma func¸a˜o. As “contas” do para´grafo anterior mostram que g ◦ f = 1A e f ◦ g = 1B. Cabe perguntar se existe outra func¸a˜o h : B → A com essas mesmas propriedades; esse e´ o nosso pro´ximo resultado. Teorema 8.1 Sejam f : A→ B e g, h : B → A func¸o˜es tais que g ◦ f = h ◦ f = 1A e f ◦ g = f ◦ h = 1B. Enta˜o g = h. Demonstrac¸a˜o: Basta escrever h = 1A ◦ h = (g ◦ f) ◦ h = g ◦ (f ◦ h) = g ◦ 1B = g . � Resumindo, temos o seguinte resultado. Teorema 8.2 Seja f : A→ B uma func¸a˜o. Enta˜o existe g : B → A tal que g ◦ f = 1A e f ◦ g = 1B s e e somente se f for bijetora. Nesse caso g e´ u´nica e e´ definida por g(y) = x quando y = f(x). � Como a func¸a˜o g desse teorema e´ u´nica, podemos dar a ela um nome e uma notac¸a˜o espec´ıfica: ela e´ dita a inversa de f e passara´ a ser denotada por f−1. Cabe aqui lembrar que a notac¸a˜o f−1 ja´ foi usada para definir imagens inversas de func¸o˜es na˜o necessariamente bijetoras; em geral, o contexto deve deixar claro se estamos falando de func¸o˜es inversas ou imagens inversas, de modo que na˜o ha´ o risco de confusa˜o. De qualquer modo, supondo que f e´ uma bijec¸a˜o, temos agora as agrada´veis expresso˜es f−1 ◦ f = 1A e f ◦ f−1 = 1B, ou seja, f−1(f(x)) = x e f(f−1(x)) = x. 19 Aproveitamos para oferecer uma motivac¸a˜o para o uso da notac¸a˜o para func¸o˜es inversas, baseada na analogia da composic¸a˜o de func¸o˜es e a multiplicac¸a˜o de nu´meros reais. Primeiro notamos que as expresso˜es f ◦ 1A = f e 1B ◦ f = f mostram que a composic¸a˜o com a func¸a˜o identidade29 funciona como a multiplicac¸a˜o por 1. Podemos enta˜o interpretar as expresso˜es f−1 ◦ f = 1A e f ◦ f−1 = 1B como sendo ana´logas a`s expresso˜es multiplicativas a · a−1 = a−1 · a = 1. Essa e´ uma boa analogia, mas deve ser levada com cuidado, pois as situac¸o˜es sa˜o bem distintas; a composic¸a˜o na˜o e´ comutativa e apenas func¸o˜es especiais possuem inversas. Exemplo 8.1 Seja f : R→ R dada por f(x) = 3x+2. E´ imediato que f e´ uma bijec¸a˜o. Sua inversa vem da soluc¸a˜o de y = 3x+2, quando obtemos x = y−2 3 , ou seja, g(x) = x−2 3 . Usamos x propositalmente nessa u´ltima expressa˜o para enfatizar que letras na˜o sa˜o importantes; tudo ficaria na mesma se escrevessemos g(s) = s−2 3 . Se f : I → R e´ invers´ıvel, onde I e´ um intervalo da reta, podemos fazer o gra´fico de f−1 facilmente a partir do gra´fico de f . Para isso, lembramos que se y = f(x) enta˜o f−1(y) = x, como vemos a seguir. y x = f−1(y) x y = f(x) b b b b b b Observando que os pontos (x, y) e (y, x) sa˜o sime´tricos com relac¸a˜o a` diagonal principal, fica claro que o gra´fico de f−1 e´ o sime´trico do gra´fico de f com relac¸a˜o a essa diagonal. Na figura abaixo ilustramos essa ide´ia com o gra´fico (aproximado) da func¸a˜o f dada por f(x) = x(1− cosx), definida em um intervalo no qual ela e´ uma bijec¸a˜o; o gra´fico de f aparece em trac¸o mais forte e o de f−1 em pontilhado. Observamos de passagem que mostrar que essa func¸a˜o e´ de fato invers´ıvel (em um intervalo adequado) na˜o e´ imediato; para isso, e´ conveniente usar me´todos de Ca´lculo. Para finalizar essa sec¸a˜o, fazemos duas observac¸o˜es simples sobre func¸o˜es inversas. Primeiro, tomemos f : A→ B invers´ıvel. As expresso˜es f−1 ◦ f = 1A e f ◦ f−1 = 1B nos mostram que f−1 e´ invers´ıvel e que sua inversa e´ f , ou seja, ( f−1 )−1 = f . Mais uma vez vemos aqui a analogia entre composic¸a˜o de func¸o˜es e multiplicac¸a˜o, no caso com a expressa˜o multiplicativa ( a−1 )−1 = a. Suponhamos agora que f : A→ B e g : B → C sejam bijec¸o˜es. Enta˜o g ◦ f : A→ C e´ uma bijec¸a˜o e (g ◦ f)−1 = f−1 ◦ g−1. De fato, ( f−1 ◦ g−1) ◦ (g ◦ f) = f−1 ◦ (g−1 ◦ g) ◦ f = f−1 ◦ 1B ◦ f = f−1 ◦ f = 1A e analogamente temos (g◦f)◦(f−1 ◦ g−1) = 1B. A analogia aqui e´ melhor com a multiplicac¸a˜o de matrizes quadradas de mesma ordem: se M e N sa˜o invers´ıveis enta˜o MN e´ invers´ıvel e (MN)−1 = N−1M−1. 29Atenc¸a˜o: ha´ um abuso de linguagem aqui. Na˜o e´ correto dizer “a” func¸a˜o identidade, pois seX 6= Y enta˜o evidentemente 1X 6= 1Y . 20
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