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FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA Prof. Éder Gimenes FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA Marília/SP 2022 “A Faculdade Católica Paulista tem por missão exercer uma ação integrada de suas atividades educacionais, visando à geração, sistematização e disseminação do conhecimento, para formar profissionais empreendedores que promovam a transformação e o desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade em que está inserida. Missão da Faculdade Católica Paulista Av. Cristo Rei, 305 - Banzato, CEP 17515-200 Marília - São Paulo. www.uca.edu.br Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio ou forma sem autorização. Todos os gráficos, tabelas e elementos são creditados à autoria, salvo quando indicada a referência, sendo de inteira responsabilidade da autoria a emissão de conceitos. Diretor Geral | Valdir Carrenho Junior FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 5 SUMÁRIO CAPÍTULO 01 CAPÍTULO 02 CAPÍTULO 03 CAPÍTULO 04 CAPÍTULO 05 CAPÍTULO 06 CAPÍTULO 07 CAPÍTULO 08 CAPÍTULO 09 CAPÍTULO 10 CAPÍTULO 11 CAPÍTULO 12 CAPÍTULO 13 CAPÍTULO 14 CAPÍTULO 15 09 23 37 50 66 79 93 107 121 135 150 165 181 197 215 SOCIEDADE E CULTURA FILOSOFIA E ÉTICA POLÍTICA E DEMOCRACIA PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL MULTICULTURALISMO E DEMOCRACIA NECROPOLÍTICA COMO POLÍTICA DE ESTADO DIREITOS HUMANOS SEXO, GÊNERO E SEXUALIDADE RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS IDADE E GERAÇÕES PESSOAS COM DEFICIÊNCIA DIREITOS HUMANOS, MARCADORES SOCIAIS E EDUCAÇÃO TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE REDES DE SOCIABILIDADE NA CONTEMPORANEIDADE MEIO AMBIENTE E SUSTENTABILIDADE FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 6 INTRODUÇÃO Olá, estudante! Seja bem-vindo(a) à sua disciplina de Formação Sociocultural e Ética! Nosso objetivo geral, ao longo deste material didático, é promover interlocuções entre temas que permeiam tanto aspectos de sua formação na graduação quanto perspectivas de sua futura atuação profissional no mercado de trabalho e também referentes à sua inserção na sociedade por meio do reconhecimento de sua condição de cidadania. Para tanto, ao longo de nossas quinze aulas você encontrará discussões que recuperam elementos de sua formação no Ensino Médio, estabelecem diálogos com temas pertinentes a outras disciplinas de sua grade curricular e/ou produzem novas inquietações, decorrentes da interpretação humanística pertinente aos assuntos que versam sobre sociedade, cultura e ética e suas interlocuções. Isto posto, este material didático pode ser dividido em dois grandes blocos de aulas. O primeiro bloco contempla as aulas um a sete e se configura como conjunto de exposições de formação mais ampla e teórica, relacionado aos conceitos importantes e norteadores das discussões. Nas duas primeiras aulas evidenciamos os termos que compõem o título desta disciplina: primeiro, abordamos os conceitos de sociedade e cultura e sua conformação histórica no campo das Ciências Sociais; em seguida, consideramos os debates da Filosofia para compreender o que é moral e o que é ética. Na sequência, as aulas três e quatro versam sobre temas que permeiam a política, por ser tal tema transversal aos debates sobre sociedade, cultura e ética. Assim, são expostas uma discussão sobre o que é política e a construção do conceito de democracia e sua prática em diferentes sociedades, seguida por uma aula específica para tratar da relevância da participação política e social em nossa sociedade, com destaque à relevância histórica na mobilização de movimentos de trabalhadores e às configurações atuais de modalidades de engajamento político e social. Como desdobramentos do debate sobre democracia e participação, nas aulas cinco e seis discorre-se acerca de dois caminhos possíveis e opostos do desenvolvimento de governos no contexto democrático: o multiculturalismo e a necropolítica, FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 7 respectivamente. Trata-se de propostas de configurações de governo que conferem distinta expressividade às demandas de grupos sociais. Por fim, a sétima aula encerra o primeiro bloco de discussões abordando os direitos humanos. Considerando que governos que adotam o multiculturalismo e necropolítica tratam os direitos humanos de modos opostos, nossa discussão recai sobre o desenvolvimento dos direitos humanos ao longo do séculos e sua relação com a temática mais ampla dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Avançando ao segundo bloco de aulas, de oito a quinze, direcionamos nosso foco mais especificamente para assuntos que, mesmo sendo parte do cotidiano da nossa sociedade, carecem de conhecimento e interpretação crítico-analítica. São aulas em que os conceitos explorados no primeiro bloco de aula são retomados conforme o conteúdo abordado, tendo em vista especialmente as diferenciações entre grupos sociais e impactos de processos sociais sobre a vida na atualidade. As aulas oito a onze tratam de grupos sociais que representam minorias em termos de acesso a direitos e oportunidades. Em cada aula, é exposta a configuração histórico-social das categorias analíticas em destaque, para depois explorar as políticas públicas existentes e sua perspectiva de reparação ou manutenção da condição de desigualdade entre os indivíduos. Tal estrutura é adotada para abordar os seguintes assuntos: sexo, gênero e sexualidade; relações étnico-raciais; idade e gerações; e pessoas com deficiência. A décima segunda aula se relaciona com as quatro anteriores por tratar da necessidade e dos caminhos relativos à educação sobre direitos humanos, suas potencialidades e estratégias passíveis de desenvolvimento no âmbito formal e não-formal. Avançando, discute-se a questão do trabalho na contemporaneidade na aula treze, em que a abordagem remete tanto à conceitualização e detalhamento do próprio termo “trabalho” quanto à maneira como sua prática tem se alterado especialmente nas últimas décadas, em que modalidades flexíveis e prejudiciais aos direitos dos trabalhadores são ampliadas e incentivadas mediante discursos elitistas. Nossa décima quarta trata da importância das redes de sociabilidade ao longo da história da humanidade e seus impactos na vida social hoje, com destaque à internet, com suas potencialidades, limites, aspectos positivos e negativos. Por fim, encerramos esta disciplina abordando uma preocupação mundial desde as últimas décadas do século passado: a questão ambiental. Foco de debates sobre direitos humanos e ações de movimentos sociais, trata-se de aspecto que permeia FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 8 múltiplos conteúdos abordados anteriormente, de modo que as seções da aula versam sobre sustentabilidade, desenvolvimento sustentável e educação ambiental. Perceba, caro(a) acadêmico(a), que percorreremos nesta disciplina Formação Sociocultural e Ética um trajeto de conteúdos que lhe permitirão compreender, sob múltiplas perspectivas, elementos e processos sociais que não raras vezes são tomados como “dados” ou “naturais”, mas que decorrem da ação humana no campo da política, do trabalho e/ou das relações sociais. Espera-se que ao fim desse trajeto você tenha novas inquietações que impliquem repensar aspectos de sua formação, de sua profissão e de sua cidadania. Boa leitura, boa reflexão, bons estudos! FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 9 CAPITULO 1 SOCIEDADE E CULTURA Caro(a) acadêmico(a), o ponto inicial para uma discussão sobre Formação Sócio- Cultural e Ética é compreender as bases que fundamentam cada um desses pilares. Nesse sentido, nesta primeira aula trataremos de aspectos de ordem sócio-cultural com o objetivo de explorarmos as noções de sociedade e cultura.Para tanto, a aula está dividida em duas seções, que exprimem diferentes momentos de interlocução Na primeira parte da aula, você conhecerá as bases teóricas das discussões científicas sobre esses temas, que constituem um campo do conhecimento denominado Ciências Sociais. Trata-se de uma exposição relevante ao seu entendimento de que os elementos sócio-culturais não operam isoladamente em um determinado conjunto de indivíduos, mas se articulam, sofrem influências e impactam diferentes nuances da vida social. https://www.istockphoto.com/es/foto/a%C3%A9rea-la-gente-se-api%C3%B1a-en-el-paso-de-peatones-fondo-de-vista-superior-imagen-gm1180279584-330604037 https://www.istockphoto.com/es/foto/a%C3%A9rea-la-gente-se-api%C3%B1a-en-el-paso-de-peatones-fondo-de-vista-superior-imagen-gm1180279584-330604037 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 10 Já na segunda seção desta aula, trataremos sobre a relação entre sociedade e cultura e abordaremos a necessidade de nos colocarmos, enquanto seres sociais, na condição de questionar determinados aspectos da vida cotidiana que nos parecem naturais, mas são, em verdade, resultado de interações sociais e dos padrões culturais estabelecidos. Assim, ao fim desta primeira aula tem-se a expectativa de que você sinta-se provocado(a) a observar, analisar e ressignificar certos elementos de sua vida cotidiana e a maneira como lida como aspectos de ambientes sociais múltiplos nos quais circula – desde sua família e relações pessoais mais próximas até o modo como pensa sua formação e se coloca em seu ambiente de trabalho ou organizações e grupos com os quais se se relaciona de algum modo. 1.1 As Ciências Sociais como campo de conhecimento A preocupação com a interpretação das relações sociais permeia a humanidade desde os primórdios da sistematização do conhecimento e se constitui como um aspecto relevante às diferentes áreas de atuação e de formação profissional. Os primeiros registros de sistematização de análises e produção de modelos teóricos acerca do funcionamento das sociedades remetem à Filosofia – sobre o que trataremos em nossa próxima aula – e são de grande relevância histórica, porém o desenvolvimento mais aprofundado sobre questões sociais e suas implicações práticas e diretas no cotidiano dos conjuntos de indivíduos remontam às Ciências Sociais, que se estabeleceram a poucos séculos como campo reconhecido do conhecimento científico. De modo geral, as Ciências Sociais constituem uma grande área do saber com a qual a maioria das pessoas que estudaram o Ensino Médio tiveram algum contato direto, já que a matriz curricular considera a disciplina de Sociologia, mas também há autores e análises que permeiam conteúdos de disciplinas como História, Geografia, Filosofia e Artes, uma vez que se trata de uma área que tem nos indivíduos, suas instituições e relações sociais o foco de sua atenção. Até meados do milênio passado, o conhecimento mais reconhecido decorria da Filosofia e das Ciências Exatas e Naturais, de modo que, portanto, havia uma cisão entre a maneira como se pensava abstratamente e conceitualmente o ser humano e sua vida social, por um lado, e as implicações científicas de análises, testes e observações FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 11 práticas como subsídios ao desenvolvimento de teorias e modelos para outros campos do conhecimento, por outro lado. Conforme explicam Sell (2010) e Castro e O’Donnell (2018), o primeiro pensador que pode ser considerado como clássico das Ciências Sociais, ainda que de maneira a anteceder os principais autores, é Auguste Comte, cujo destaque se deve ao fato de que, estudioso, identificou aspectos do método de análise e investigação das Ciências Naturais e buscou transpor esse modo de pensar ao olhar para as sociedades. No primeiro momento, o constructo analítico de Comte foi conhecido como Física Social e se concentrou sobre fenômenos sociais para identificar regularidades que permitissem a compreensão do desenvolvimento da vida em coletividade. Para Comte (1989), o estabelecimento do conhecimento da Física Social passaria pela compreensão de que o desenvolvimento humano e de suas relações e instituições ocorreria em três distintos estágios, quais sejam: teológico, de abstração e positivo. No estágio teológico, os fenômenos naturais só seriam compreendidos com a crença de um elemento divino, sendo que nosso conhecimento sobre a vida seria superficial e a verdadeira compreensão da vida estaria além de nossa capacidade humana. O estágio de abstração, seria marcado pela preocupação com a compreensão de fenômenos físicos a partir da observação, o que permitiria a comprovação de fenômenos sociais aos moldes das Ciências Naturais, sendo que o corpo social (sociedade como um todo) deveria ser regulado pelo Estado. Por fim, no estágio positivo, a compreensão de fenômenos sociais passaria pela observação e pela comprovação científica, sendo que descobertas seriam consideradas científicas conforme sua aplicabilidade. Ainda que precursora da preocupação em tomar as sociedades como objetos passíveis de investigação, a Física Social teve como limite a transposição de teorias e modelos das Ciências Naturais, de modo que grandes eventos que promoveram alterações expressivas na vida em sociedade especialmente entre os séculos XVII e XVIII demonstraram que era necessário superar tal transposição em favor da criação de formas próprias e específicas de analisar as relações sociais. Assim, o contexto histórico do surgimento das Ciências Sociais remete às duas grandes revoluções que alteraram de maneira expressiva a organização da vida em sociedade, cujos reflexos ressoam até a contemporaneidade: a Revolução Industrial (1780-1860) e a Revolução Francesa (1789-1799). Desde o período das grandes navegações e a expansão das colonizações, entre os séculos XV e XVI, as sociedades europeias sofriam mudanças constantes, como o FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 12 crescimento do poder econômico de alguns Estados nacionais, a alteração das relações pautadas pelo mercantilismo para o liberalismo e a migração parte da população trabalhadora rural para as áreas urbanas em busca de oportunidades. Nesse sentido, Thompson (1978) afirma que foi um contexto que combinou acúmulo de capital, arrendamento de terras e atividade artesanal. Iniciada no fim do século XVII, a Revolução Industrial se configurou como um grande processo de transformações econômicas e sociais desencadeadas na Inglaterra e com efeitos se expandiram aos demais Estados nacionais europeus e depois a outros continentes. Para Paiva e Cunha (2008), durante a Revolução Industrial e ainda por muitas décadas depois, a Inglaterra foi a maior potência econômica do mundo. https://www.istockphoto.com/es/vector/f%C3%A1brica-para-la-galjanoplastia-de-plata-gm1059738176-283268474 De modo sintético, a Revolução Industrial promoveu uma radical alteração do modo de produção existente à época, que passou de artesanal para industrial, baseado na utilização de máquinas em detrimento do trabalho manual. Isso ocasionou, dentre outros efeitos, a elevação do êxodo rural, o estabelecimento da divisão social do trabalho e sua especialização, bem como impactos em ordens diversas da vida social, como o meio ambiente, as relações trabalhistas e até as relações familiares. Conforme afirmam Marx e Engels (1984), o descontentamento dos trabalhadores que esperavam por alguma oportunidade de condições dignas de vida e até mesmo https://www.istockphoto.com/es/vector/f%C3%A1brica-para-la-galjanoplastia-de-plata-gm1059738176-283268474 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 13 de mobilidade social somou-se às condições exploratórias de trabalho, à incorporação de mulheres e até de crianças nas atividades nas fábricas e na perspectivade trabalho particionado ao extremo, a ponto de cada trabalhador perder a noção daquilo que era produzido a partir de seu trabalho diante da especialização das atividades. Ademais, foi o período de exponencial crescimento da riqueza da burguesia em detrimento das condições mínimas de sobrevivência aos trabalhadores, relegados a moradias sem estrutura e distantes dos centros das cidades, sujeitos a todo tipo de poluição decorrente da produção fabril, como fuligens no ar, ruídos e água contaminada, por exemplo. Assim, a Revolução Industrial é uma das bases ao desenvolvimento do pensamento nas Ciências Sociais porque a necessidade de refletir sobre as mudanças sociais naquele contexto estavam além de modelos “importados” das Ciências Naturais e careciam de considerações sobre múltiplos interesses, atores e relações de poder. Contudo, as mudanças ocorridas no período não se manifestaram apenas pautadas pela perspectiva econômica, ainda que, em alguma medida, a segunda revolução destacada tenha sua relação com a Revolução Industrial. Trata-se da Revolução Francesa, que concentrou, no fim do século XVIII, um conjunto de perspectivas que convergiam à formulação de um pensamento social um tanto quanto distinto daquele que imperava na Europa até então. De modo geral, a Revolução Francesa foi resultado da combinação entre contestação da metafísica e das explicações da Igreja Católica como fundamentos dos fenômenos sociais, o que culminou no fortalecimento do conhecimento filosófico e científico e do destaque a pensadores que ficaram conhecidos como iluministas, os quais argumentavam que a vida em sociedade decorreria de aspectos socialmente construídos, sendo que as instituições postas estariam a serviço de elites políticas, econômicas e religiosas e, portanto, deveriam ser combatidas em favor do estabelecimento de igualdade e liberdade entre os indivíduos. ANOTE ISSO O filme “Tempos modernos”, de Charles Chaplin, foi lançado na década de 1930, ainda com cinema mudo e em preto e branco, e se tornou ao retratar a vida em sociedade baseada na produção capitalista, em que o trabalhador desenvolve atividades especializadas por conta da divisão social do trabalho. Trata-se de uma crítica aos efeitos da Revolução Industrial, que explora conceitos como Estado, modernidade, alienação e luta de classses. Fonte: O autor. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 14 A Revolução Francesa, cabe destacar, foi um marco da tomada do poder pela burguesia em contraposição à maneira como os Estados nacionais e a Igreja Católica determinavam a vida social, de modo que seu ideário amplamente disseminado até os dias atuais de “igualdade, liberdade e fraternidade” colocou-se sob a perspectiva de questionar as relações de poder concentradas em elites feudais rurais, elites políticas e econômicas nos centros urbanos e as elites religiosas á época. Como a Revolução Francesa buscou se afastar do pensamento teológico no sentido de estimular o desenvolvimento da racionalidade entre os indivíduos, seu ideário contestou a ordem da sociedade francesa e teve reflexos sobre muitos países europeus e, depois, para além daquele continente, sendo que um dos principais meios pelo qual as ideias se espalharam foi a Enciclopédia, publicação que reuniu uma sistematização de verbetes com explicações de termos, fatos e aspectos históricos e sociais, a fim de disseminar entre a população o conhecimento sobre esses fenômenos e processos sociais. Nesse sentido, essa base do Iluminismo e também da Revolução Francesa conforma a perspectiva das Ciências Sociais de questionar a naturalização de processos, fenômenos, interpretações e costumes sociais como dados, ou seja, como inerentes à vida humana, pelo fato de que se trata de elementos forjados ou moldados ao longo do tempo pelos detentores de poder de diferentes ordens – como político, econômico e religioso, por exemplo e como mencionado anteriormente – com a finalidade de parametrizar como os comportamentos dos indivíduos e o funcionamento das instituições devem ocorrer. Assim, o surgimento das Ciências Sociais esteve atrelado a duas grandes e importantes revoluções que, emergidas em distintos Estados nacionais e com finalidades também diferentes, possibilitaram reflexões e questionamentos sobre problemas sociais latentes na ordem vigente entre os séculos XVII e XVIII. Nesse sentido, Castro e O’Donnell (2018) destacam que a preocupação com o desvelamento dos determinantes das relações sociais continua sendo um foco das Ciências Sociais, cuja preocupação persiste em promover estranhamento diante da naturalização de processos e ações sociais que são socialmente constituídos, o que Wright Mills (1969) denominou imaginação sociológica. Diante desse contexto, cabe destacar que o reconhecimento das Ciências Sociais como campo de conhecimento científico iniciou-se pela Sociologia, que é uma das três áreas que compõem as Ciências Sociais, o que trataremos na próxima seção desta aula. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 15 Por sua preocupação com o estudo sobre processos, fenômenos e relações sociais, basicamente as Ciências Sociais tem como finalidade compreender as condições de desenvolvimento das sociedades em perspectiva histórica e contemporânea, a fim de analisar os impactos de fatores de múltiplas ordens sobre a vida social. Autores como Lakatos (1995), Giddens e Turner (1999) e Dias (2014) ensinam que para entendermos, caro(a) acadêmico(a) o que são as Ciências Sociais é preciso realizarmos o exercício de analisar os termos em separado – como estamos tratando nesta disciplina, onde a questão social e cultural é tratada na primeira aula e a ética será abordada na segunda aula. Assim, cabe-nos analisar os termos “Ciências” e “Sociais”. Vamos lá? Primeiramente, a noção de ciência diz respeito àquilo que decorre de um tipo específico de conhecimento, fundamentado teoricamente e com o qual você tem contato ao longo de toda a sua escolarização, mas principalmente e de modo mais aprofundado ao ingressar no Ensino Superior. Basicamente, quando se trata de ciência está sendo considerado o conhecimento produzido ao longo do tempo sobre um determinado objeto ou tema, sendo, então, o conhecimento científico cumulativo, ou seja, deve-se tomar como premissa que aquilo que foi cientificamente produzido anteriormente sobre o que estudamos é relevante para compreendermos nosso objeto ou temática. E por que é importante assumir a premissa de que o conhecimento produzido anteriormente está sistematizado de modo cumulativo? Como estudante, você já se perguntou sobre as razões pelas quais precisou ler textos clássicos ou mesmo artigos de revisão bibliográfica, também chamados quadros teóricos ou revisões de literatura? A perspectiva do conhecimento científico é de que não precisamos iniciar uma pesquisa “do zero” para entendermos sobre algo. Se outros pensadores, pesquisadores, autores já se debruçaram a investigar e sistematizar considerações e resultados sobre o que estamos analisando e tornaram públicos, então é pertinente a leitura crítica daquilo que está divulgado, o que lhe permite otimizar seu tempo dedicado à leitura sem que isso implique em aceitar tacitamente tudo o que está posto, já que outra característica do pensamento científico é verificação de recorrência daquilo que está escrito ou descrito. Em outras palavras, o conhecimento científico é falível, ou seja, é coerente pensarmos que aquilo que sabemos sobre algo não é a totalidade, mas apenas o que foi descoberto FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 16 até o momento, de modo que cabem investigações que permitam a descoberta de outros aspectos e até mesmo venham a contestar o que era conhecido anteriormente. Já o termo “Sociais” remete à sociedade, que os referidos autores tratam como o grande corpo coletivoe em constante movimento do qual fazemos parte. Aqui cabe ressaltar que, portanto, cada um de nós – independente de professor ou acadêmico(a) e de qual a sua área ou curso de formação – está inserido(a) na sociedade sob diferentes perspectivas, pois há inúmeros modos de organização, articulação ação nos âmbitos cultural, ambiental, religioso, jurídico, político e tecnológico, por exemplo. Assim, trata-se de um termo que remete a um objeto dinâmico e que se altera cotidianamente, como ressalta Dias (2014) ao destacar que uma característica recorrente nas organizações humanas é a ausência de monotonia da vida em sociedade, pensada em termos de alterações de costumes, valores, institucionalidades e percepções sobre temas diversos. Tomados em conjunto, os termos que conformam o campo do conhecimento das Ciências Sociais, portanto, implicam no ramo do conhecimento que tem por objetivo a identificação de regularidades na vida em sociedade, sendo que as alterações decorrentes de relações, processos e fenômenos sociais são analisadas a partir de sua recorrência e caracterização, a fim de identificar-se o que há de perene e de distinto em cada alteração. Para tanto, há três diferentes áreas nas Ciências Sociais e também elementos a serem considerados para a conformação do olhar crítico-analítico, sobre o que tratamos na próxima seção desta aula. 1.2 A relação entre sociedade e cultura Para compreendermos as relações entre sociedade e cultura e, consequentemente, a conformação do termo sócio-cultural, iniciamos esta seção abordando brevemente as três áreas que conformam as Ciências Sociais, dada a sua relevância à definição de cultura e ao conceito central desta aula: a noção de alteridade. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 17 https://www.istockphoto.com/es/vector/gente-hablando-pensando-concepto-gm683743480-125618875 Como abordado na seção anterior desta aula, as Ciências Sociais emergiram no contexto de duas grandes Revoluções, Industrial e Francesa, em um período em que diferentes setores da sociedade questionavam a ordem estabelecida, como os trabalhadores na Inglaterra e os pensadores e a burguesia na França. Nesse sentido, Collins (2009) discorre que aspectos que tangenciavam temas como capitalismo, antropocentrismo e mudanças culturais se destacaram, de modo que as Ciências Sociais se fortaleceram sob distintas bases teórico-analíticas: Sociologia, Antropologia e Ciência Política. A Sociologia surgiu baseada nos estudos de Comte, anteriormente mencionado, e foi a primeira área a se estruturar dentro das Ciências Sociais, tendo como foco analítico os arranjos sociais, suas transformações e implicações tendo como foco o estudo do homem atuando em sociedade, de maneira ativa e/ou passiva. Por sua vez, a Antropologia se consolidou apenas entre os séculos XVIII e XIX, mas os primeiros estudos que depois viriam a ser atribuídos à área datam do século https://www.istockphoto.com/es/vector/gente-hablando-pensando-concepto-gm683743480-125618875 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 18 XVI e remetem ao período das grandes navegações e explorações de povos, locais, e costumes diferentes daqueles dos europeus. Assim, tendo como ponto de partida a contraposição de “eu” e o “outro” dos europeus colonizadores e tidos como civilizados diante dos povos nativos que “descobriram” em suas navegações, a Antropologia estuda a cultura, entendida como o conjunto de elementos sociais que conformam o modo de vida de um povo, ou seja, os elementos cotidianos que conformam as relações entre as pessoas em determinado espaço. Retomaremos a noção de cultura na sequência desta seção, mas antes cabe mencionarmos a terceira área das Ciências Sociais, cujo desenvolvimento é mais recente, ainda que haja obras anteriormente classificadas no âmbito da Filosofia Política que também se enquadrem na Ciência Política. De maneira quase intuitiva por conta de seu nome, esta área trata dos estudos e discussões que remetem ao campo da política e aos seus desdobramentos, como relações de poder, estruturas e instituições políticas, a participação social e os direitos sociais. Ao longo desta disciplina, você perceberá que essas três áreas estão intimamente relacionadas e que tal divisão serve muito mais à produção de pesquisas do que ao contexto social de modo amplo. Em outras palavras, os arranjos sociais, os costumes e questões políticas se interpenetram cotidianamente da vida dos indivíduos. Contudo, nesta seção, por estarmos promovendo uma discussão sobre sociedade e cultura, focamos na Antropologia. É comum associarmos a palavra cultura com práticas artísticas, como música, teatro, poesia e dança, por exemplo. Contudo, esses aspectos são algumas representações culturais de um povo, grupo ou sociedade, mas a cultura diz respeito a um conjunto mais amplo de elementos, os quais são foco de estudos da área da Antropologia. Para Rifiotis (2012), os estudos antropológicos analisam como grupos, coletividades, povos e sociedade se organizam, atuam, interpretam e desenvolvem suas relações internas e com o mundo. Para o autor, trata-se de um conjunto de aspectos por vezes contraditórios e que colocam em xeque o caráter científico de identificação de regularidades, tendo em vista que a cultura é, ao mesmo tempo nesse contexto atual de globalização, composta por alguns elementos que perduram ao longo do tempo (até mesmo séculos) e por outros que são metamorfoseados constantemente diante da velocidade de circulação de informações, referências e práticas pela internet. Nesse sentido, à Antropologia cabe buscar compreender tanto as regularidades da cultura de sociedades quanto suas dinâmicas e especificidades, uma vez que – FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 19 diferentemente da Sociologia e da Ciência Política, cujos objetos muitas vezes são encontrados em condições semelhantes entre grupos distintos e até países, como a exploração nas relações de trabalho ou a relação entre partidos políticos e eleições – entre distintos agrupamentos de indivíduos há diferenças que não permitem comparação simplista, como ao considerarmos, no caso brasileiro, aspectos como as macrorregiões do país, perfis etários de jovens e idosos ou ainda minorias em termos de direitos com relação àqueles que gozam de privilégios, como mulheres, negros, a população LGBTI+ (lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais e outros) e pessoas com deficiência, por exemplo. Assim, Rifiotis (2012) ensina que a perspectiva antropológica de interpretação da cultura de uma sociedade é perpassada pelo olhar reflexivo e crítico, de modo a buscar conhecer e compreender os fenômenos sociais desde sua origem até o sentido que têm para quem os pratica. É nesse contexto que se coloca relevante nos atentarmos para a armadilha da naturalização! Conforme exposto anteriormente, você acadêmico(a) já deve ter vivenciado situações de naturalização de costumes em muitos momentos da sua vida. Procure responder mentalmente e rapidamente a essas perguntas apenas com “sim” ou “não”: Quando recebe uma instrução sobre algo a fazer, você pergunta quem definiu aquela atividade e quais critérios utilizou? Diante de uma situação em que pessoas utilizam frases ou expressões que exprimem algum pré-conceito contra outro – como “mulher não sabe dirigir”, “homem não chora”, “se tivesse apanhado na infância não seria assim” ou “tinha que ser…” – você se questiona ou questiona quem profere a frase ou expressão sobre o conteúdo do que está reproduzindo? É comum que ao longo do seu dia você pense ao menos uma vez algo do tipo “e se eu buscar conhecer mais sobre esse assunto antes de emitir uma opinião” ou “que estereótipo vazio de conteúdo, preciso tomar cuidado pra não reproduzí-lo”? Caso você tenha respondido afirmativamente a ao menos uma das perguntas acima, está,em alguma medida, questionando a naturalização de aspectos tomados como “normais” ou “naturais” no nosso dia-a-dia. Caso tenha respondido “não” para todas as perguntas, tome essa discussão como oportunidade em seu processo de formação profissional para também conformar-se como cidadão, mas não se culpe por não ter refletido desta maneira até aqui, afinal estamos sempre em construção! Todo ato, rito, frase ou costume que, quando questionados sobre a justificativa ou a origem, respondemos apenas que é “normal” ou entendemos que é óbvio e por isso não FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 20 cabe questionamento é algo que foi naturalizado, ou seja, tomado como natural, como intrínseco ou como parte de determinado indivíduo ou de uma sociedade. Contudo, não se trata de aspectos biológicos, então não são naturais, mas socialmente construídos. Aqui cabe um ponto de atenção: aquilo que tomamos como “normal” ou natural não é essencialmente bom ou ruim, a princípio se trata apenas de algo que não foi refletido antes de sua execução, seja um pensamento, uma verbalização ou uma atitude. De fato, em todas as sociedades humanas encontramos uma série de modos de agir e pensar que podem ser chamados de padrões de comportamento normativo, que são não-racionais, não utilitários, mas que desempenham um papel crucial na estruturação da vida social. Tais padrões são por um lado expressivos, ou seja, eles mostram algo de nós para os outros, mas também são instrumentais porque é através deles que criamos e mantemos as nossas relações sociais e o modo próprio de existir da nossa sociedade (RIFIOTIS, 2012, p. 22-23). Esses comportamentos, valores, tradições e costumes que conformam nosso modo de agir de maneira não necessariamente racional ou explícita constituem a dimensão simbólica de nossas sociedades e fazem do homem um ser cultural. Essa dimensão simbólica diz respeito ao conjunto de objetos, atos, conceitos ou formas de linguagem que assumem distintos significados para grupos sociais diferentes e, em cada um, remetem a sentimentos, imagens ou percepções distintas (COHEN, 1978). Nesse sentido, o olhar para os símbolos que definem uma cultura tende a seguir a perspectiva etnocêntrica, ou seja, de analisar aquilo que é produzido e valorizado pelo outro – que é um diferente de você por qualquer característica, como sexo, gênero, faixa etária, etnia, local de residência, nível de escolaridade, condição financeira, profissão etc. - a partir de um julgamento pautado pelos valores e símbolos de quem analisa. Em outras palavras, significa julgar o outro baseado naquilo que conheço, entendo e considero correto, adequado ou “normal”. Rifiotis (2012) alerta que é difícil a compreensão da dimensão simbólica de uma sociedade sem o conhecimento teórico e metodológico que permita refletir sobre a possível importância e utilidade desses símbolos àquele grupo e aos seus modos de pensar e de agir. Isso significa que o julgamento da cultura e dos costumes e símbolos deve ser precedido de conhecimento sobre como aqueles indivíduos vivenciam e interpretam aquilo que está sob análise (GEERTZ, 1997). Imaginando que este material didático está sendo lido simultaneamente por muitos acadêmicos(as), na condição de professor surge uma inquietação: Quantos de vocês FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 21 devem estar se questionando “E como desenvolver essa postura?”. O primeiro passo para isso é compreender que se trata de um processo constante ou contínuo, ou seja, que deve nos acompanhar ao longo da vida, pois as sociedades mudam e os padrões daquilo que é óbvio ou natural também. Em segundo lugar, podemos considerar os preceitos metodológicos da Antropologia para iniciar nossa reflexão, uma vez que tal área baseia-se em três princípios para romper com a naturalização decorrente do etnocentrismo, conforme preceituam Queiroz e Sobreira (2016). I) Estranhamento: parte da atitude de quebrar o monopólio na consciência do que está à frente ou voltar em termos de evento cultural ou social é evidente por si só. Pelo contrário em lugar do “é assim mesmo”, um estado de estranhamento contínuo para examinar e apreender o que se colocar à frente são apenas pontas do iceberg que o senso comum teima a conceber como o iceberg inteiro. É pelo exercício do distanciamento que efetivamente sai da “sala do evidente”, tendo como chave a pergunta epistemológica: por que os eventos que existem são assim? Tem outros modos deles existirem? Quais deles proporcionam maior grau de integração sociocultural? Qual a função ele desempenha para a sociedade aonde a realiza? II) Desnaturalização do social: significa colocar um estado de pensamento em relação ao que existe como expressão de ou da cultural de um indivíduo, tanto quanto do próprio grupo social, não é inato ou dado, mas é uma produção por um conjunto de indivíduos socializados. Por isso, pode ser investigado o momento que eles elaboraram e organizaram-se para efetivá-la, bem como as razões para produzi-la. III) Unidade plural do homem: implicar em entender que não há uma unidade centrada numa essência única, sequer biológica a determinar uma modalidade linear de comportamento para o homem, mas que os modos de se comportar, de agir são espécie de programas que as culturas e regras sociais convencionaram de diferentes maneiras a confeccionar. Fonte: Queiroz e Sobreira (2016, p. 34). Esses princípios demonstram a pertinência de considerarmos o estranhamento ao naturalizado, de expressiva relevância na conformação cidadã, de modo que cabe, então expor a você, profissional em formação, o conceito de alteridade, que se contrapõe ao etnocentrismo. Conforme diversos antropólogos (LAPLANTINE, 2003; RIFIOTIS, 2012; FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 22 RECHENBERG, 2013; QUEIROZ; SOBREIRA, 2016), trata-se da diferenciação entre o “eu” e o “outro” nas relações sem o julgamento prévio de inferioridade do segundo. O conceito de alteridade se refere a reconhecer o outro e respeitar as diferenças, ou seja, é mais do que analisar o outro, mas conferir-lhe a dimensão de humanidade que temos para nós mesmos, seja pensando em indivíduos isoladamente ou em grupos sociais de modo amplo. Rifiotis (2012, p. 26) assevera que se trata de tomar consciência da diferença entre o que eu penso e o que pensa o outro, sem hierarquização entre esses elementos. Continua o autor, afirmando que a experiência da alteridade, que aparentemente é simples, revela-se complicada na prática, porque somos condicionados ao longo da vida a estabelecer pré-julgamentos. Isto posto, em sua futura atuação, é importante lembrar-se de, antes de avaliar aqueles com quem terá contato, buscar compreender seu interlocutor e sua perspectiva. Essa noção de alteridade – e seu contrário, o etnocentrismo – é basilar para as discussões desta disciplina, pois tratar sobre a formação sócio-cultural e ética de indivíduos, como profissionais e como cidadãos, parte de premissas relacionadas a fenômenos sociais e marcadores sociais múltiplos, sobre os quais trataremos nas próximas aulas. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 23 CAPÍTULO 2 FILOSOFIA E ÉTICA Caro(a) acadêmico(a), em nossa primeira aula abordamos a relação entre sociedade e cultura que é parte do título desta disciplina, de modo que neste segundo momento focamos nossa atenção sobre a questão da ética. Para tanto, assim como partimos anteriormente do campo do conhecimento das Ciências Sociais para compreender o modo de interpretação e a maneira como aspectos sócio-culturais se revelam relevantes na formação profissional e cidadã, nesta aula expomos inicialmente a Filosofia como base teórico-conceitual em que se fundamenta a noção de ética. Esse é o tema da primeira seção desta aula. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/acropolis-athens-greece-parthenon-temple-during-753910417Na sequência, avançamos ao debate sobre moral e ética, muitas vezes tratadas como semelhantes pelo senso comum, mas que guardam diferenças e relações entre si, sobre o que trataremos de modo detalhado. Ademais, tendo em vista a preocupação com a perspectiva de significação deste conteúdo em sua vivência, avançaremos no sentido de apresentar a importância de considerar aspectos éticos em sua futura atuação profissional. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/acropolis-athens-greece-parthenon-temple-during-753910417 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 24 1.1 Filosofia e pensamento filosófico A Filosofia é uma forma de conhecimento distinta das Ciências Sociais e, portanto – apesar de muitas pessoas confundirem ou pensarem se tratar de muito semelhantes – parte de pressupostos diferentes que precisam ser considerados para entendermos as bases do pensamento filosófico e suas implicações na maneira como a Filosofia impacta a vida dos indivíduos. Há em comum, entre Filosofia e Ciências Sociais, o olhar lançado sobre os homens e as sociedades, mas a maneira como esse olhar se coloca nas análises diverge por se tratarem de duas formas diferentes de conhecimento. Em algum momento de sua trajetória de estudos, você deve ter sido apresentado(a) aos quatro tipos de conhecimento existentes: popular, teológico, científico e filosófico. De modo geral, o conhecimento popular ou de senso comum é aquele decorrente de tradições, crendices, que vem das experiências vivenciadas e transmitidas, sem uma fundamentação que necessariamente explique seu “porquê”. Nesse sentido, baseia-se em argumentos como “faça porque é bom”, “isso resolve” ou “não pergunte, sempre foi assim, apenas siga” e é permeado tanto por aspectos verdadeiros – que a ciência, por outros caminhos, é capaz de confirmar – quanto por falácias. Fato é que conformam as sociedades e majoritariamente são tomados como verdades absolutas por quem acredita e podem ter implicações sérias sobre a realidade social, como em situações em que ouvimos, por exemplo, que só prospera no trabalho quem bajula o patrão ou sabota os colegas ou que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, por um lado, mas também com relação a situações como o cuidado em não entrar no mar ou piscina algum tempo depois de realizar grandes refeições ou atenção com relação à ingestão de bebidas ou alimentos quentes e frios em sequência. Assim, Santos (2002) destaca que é um tipo de conhecimento com o qual precisamos saber lidar e “filtrar” o que absorvemos, com perspectiva crítico-analítica. O conhecimento teológico advém da religião e é dogmático, ou seja, caracterizado por uma verdade inquestionável e que deve apenas ser aceita. Trata-se de um conhecimento diferente dos demais porque não pode ser construído socialmente, mas é revelado por meio de uma tradição escrita no caso de religiões cristãs, ou pela autoridade pessoal que faz uso da tradição oral, no caso de indígenas, por exemplo (LAKATOS; MARCONI, 2011). É o tipo de conhecimento cujo conteúdo remete a noções de sacralidade, do que FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 25 é bom e de verdade postas em contexto de respeito à hierarquia, já que não permite questionamentos, deve-se apenas aceitar e seguir o que se ensina. O conhecimento científico foi mencionado na aula anterior e diz respeito àquele baseado em atividades como observação, busca por identificação de regularidades e padrões e testagens que permitem conferir caráter de verdadeiro ou falso para possíveis explicações a partir de experimentações com utilização de métodos e técnicas para coleta, sistematização, interpretação e análise de dados e informações. Assim, é um tipo de conhecimento baseado em fatos, construído socialmente de modo cumulativo, verificável e falível, que pode ser alterado, superado ou mesmo negado (ARANHA; MARTINS, 2012). Por fim, chegamos ao pensamento filosófico, tema desta primeira seção da segunda aula e sobre o qual cabe aprofundarmos a discussão. Nesse sentido, inicialmente cabe-nos definir o que é a Filosofia para compreendermos porque se trata de uma forma de conhecimento distinta das demais, especialmente do científico. De modo geral, quando pensamos em Filosofia nos vêm à mente os filósofos gregos de milênios atrás e pensamentos abstratos, conceituais, teóricos e que nada parecem ter a acrescentar na maneira como vivemos hoje, certo? Se você pensou algo semelhante a isso quando se deparou com esta disciplina ou no início da leitura desta aula, saiba que não está sozinho(a), pois é como boa parte das pessoas pensa a Filosofia. Contudo, nesta seção o nosso objetivo é romper com essa percepção – que remete ao conhecimento de senso comum – por meio da explanação sobre o tema. Vamos lá? O termo Filosofia é composto por duas palavras de origem grega, philo e sophia, sendo que a primeira significa amizade, amor fraterno e respeito pelos iguais e a segunda remete à sabedoria (ABBAGNANO, 1982). Assim, Filosofia significa, de maneira simples, o amor ou respeito pela sabedoria, ou seja, um modo de considerar a busca pelo saber como positiva. Marilena Chauí (2015, p. 19), uma das mais reconhecidas filósofas brasileiras, explica que “[…] filósofo é o que ama a sabedoria, tem amizade pelo saber, deseja saber. Assim, Filosofia indica um estado de espírito, o da pessoa que ama, isto é, deseja o conhecimento, o estima, o procura e o respeita”. Diante dessa conceitualização sobre a Filosofia, acredito que você tenha percebido que, em sua jornada de formação profissional nesta graduação, está em contato direto com a prática da filosofia. Isso porque, diferentemente da maneira como as pessoas geralmente pensam a Filosofia como uma disciplina, trata-se de um modo de se colocar diante do mundo, com maior ou menos preocupação em compreendê-lo. Se FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 26 no conhecimento popular é recorrente que alguém diga que “fulano está filosofando” quando o outro divaga ou fala sem parar, em sentido verdadeiro esse “filosofar” diz respeito à busca por conhecimento. Um ponto de atenção a ser considerado, contudo, é que não é qualquer tipo de pensamento que caracteriza esse “filosofar”, mas somente aquele baseado em um conhecimento racional e verdadeiro, ou seja, decorrente de reflexão crítica e analítica e não enviesado ou tendencioso, e que seja pautado por valores morais, éticos, políticos e culturais, capaz de lidar com as práticas sociais de maneira teórica. Para Chauí (2015, p. 15), a definição de Filosofia, em sentido prático, incorpora quatro diferentes aspectos, quais sejam: “(1) visão de mundo de um povo, de uma civilização ou de uma cultura; (2) sabedoria de vida, (3) esforço racional para conceber o Universo como uma totalidade ordenada e dotada de sentido e (4) fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas”. Assim, perceba que falar em Filosofia diz respeito tanto a aspectos amplos e gerais quanto às especificidades que podem limitar-se a uma comunidade ou grupo de pessoas. Em sentido prático, a Filosofia se coloca em diversas situações do cotidiano, de modo que considerar esse conteúdo em sua formação profissional – e também, em alguma medida, cidadã – é relevante porque existem questões filosóficas e situações em que, mesmo sem perceber, podemos nos valer do conhecimento para definir como agimos, como exemplificam autores como Freire (2011), Aranha e Martins (2013) e Chauí (2015) ao mencionarem casos como, por exemplo: a busca pelo sentido de suas ações em sociedade e de seu pensamento em geral; desenvolver o respeito por si e pelo outro em suas múltiplas formas, como gestos, palavras, atitudes e pensamentos; não apenas aprender, mas também disseminar e incentivar outros à busca por conhecimento; a reflexão diante de situações como a escolha de um candidatonas eleições, o aceite de uma oferta para um novo emprego ou o que espera de sua vida nos próximos anos (casar ou não, ter filhos ou não, especializar-se ou não, acumular dinheiro ou não etc.); e compreender o outro como diferente e respeitar essas diferenças sem partir de julgamentos que se baseiam no seu lugar, ou seja, a alteridade. Diante do que foi exposto até aqui, caro(a) acadêmico(a), a Filosofia apresenta a possibilidade de “dividir” o mesmo objeto analítico das Ciências Sociais, uma vez que também pode direcionar seu conhecimento à compreensão de aspectos da vida em sociedade, desde aqueles mais comuns, corriqueiros ou cotidianos – como a obrigatoriedade do comparecimento eleitoral (ato de votar) no Brasil – até especificidades FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 27 ou detalhes que conformam uma sociedade que é múltipla nesse país de dimensões continentais e com costumes, valores e cultura tão variados – em termos de dialetos, religiões, práticas regionais, culinária e tantos outros aspectos. Então, talvez você esteja se perguntando (ou pensando como poderia me perguntar): qual a diferença entre a Filosofia e as Ciências Sociais? A resposta é relativamente simples e está posta no decorrer desta seção: Filosofia não é ciência! É importante ter em mente que a Filosofia é uma forma de conhecimento diferente das Ciências Sociais desde sua base e essa distinção consiste no fato de que a ciência busca explicar como os processos sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e outros acontecem, enquanto que a Filosofia não se preocupa exatamente com os caminhos pelos quais determinados fenômenos se manifestam ou acontecem, mas com a justificativa dos processos e fenômenos. Isso significa que a Filosofia busca compreender a razão ou o porquê desses fenômenos ou processos sociais, políticos, econômicos, culturais, religiosos e outros, independentemente de como eles ocorrem. Assim, a diferença entre a Filosofia e as Ciências Sociais está na atitude filosófica de questionar sobre a natureza das coisas, partindo da necessidade de refletir sempre para compreender. E como colocar essa atitude filosófica em prática? Como refletir filosoficamente sobre algum processo ou fenômeno para compreender sua justificativa e não “como” algo ocorreu? Para responder a essas perguntas, vamos nos valer das observações de dois filósofos brasileiros contemporâneos, Mariano (2007) e Cortella (2019), que discutem as características do pensamento filosófico. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 28 https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/think-solution-critical-thinking-solve-problem-2086925437 De modo sucinto, podemos resumir a três as características do pensamento filosófico, que distinguem tal forma de reflexão em comparação com o pensamento científico. Trata-se da criticidade, da radicalidade e da totalidade. A criticidade diz respeito ao questionamento minucioso e criterioso de práticas sociais com relação à sua veracidade, o que implica seu julgamento. O termo “crítica”, nesse sentido, se refere ao ato de examinar, discernir, analisar criteriosamente algum objeto, fenômeno ou processos, a fim de compreender se é verdadeiro ou falso, baseado em conhecimento anterior. A radicalidade filosófica significa a busca da origem e/ou causas das práticas sociais, baseado na ideia de que “radical” remete às raízes, fundamentos ou princípios de algo analisado. Assim, o pensamento filosófico nunca deve ser superficial ou analisar um fenômeno apenas de maneira simplista, mas precisa compreender as motivações que conformaram aquela situação ou processo. Por fim, a totalidade filosófica diz respeito à abrangência das práticas sociais analisadas de modo geral ou total, pensando as especificidades no contexto amplo, de modo a compreender as relações e seus impactos e justificativas. Esta é uma característica do pensamento filosófico que em muito o diferencia do pensamento https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/think-solution-critical-thinking-solve-problem-2086925437 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 29 científico, pois a Filosofia busca a compreensão de aspectos considerando que a realidade é multifacetada e toda interpretação é, ao mesmo tempo, uma visão sobre o todo e uma perspectiva parcial. Enquanto a ciência busca generalizações e padrões, a Filosofia reconhece que os saberes e fazeres assumem distintos arranjos por conta de especificidades de trajetórias e conformações sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas, por exemplo. Assim a reflexão sobre as razões da existência humana significa pensar filosoficamente e interrogar-se a si mesmo e às relações humanas e sociais para compreender por que pensamos e agimos de determinada maneira, o que queremos ou buscamos quando pensamos e agimos e qual a finalidade do que pensamos e de como agimos. ISTO ACONTECE NA PRÁTICA A série Merlí, disponível em diferentes serviços de streaming, aborda o contexto de uma escola, com seus personagens conflitos e relações externas, tendo como fio condutor as aulas de um professor de Filosofia, que trata, em cada episódio, de um diferente pensador, estabelecendo conexões entre o pensamento filosófico e a prática cotidiana dos estudantes e daqueles com quem convivem. Trata-se de conteúdo interessante para quem deseja compreender como a Filosofia está presente em questões do dia-a-dia, mesmo que não percebamos. Fonte: O autor. Para finalizar essa seção, gostaria de apresentar – ou rememorar, para o caso de você conhecer – o mito ou alegoria da caverna, de Platão. Esse foi um dos principais filósofos clássicos, referenciado em praticamente todos os manuais que se dedicam a discutir o que é Filosofia, sendo que geralmente o referido mito costuma ser apresentado como um dos primeiros aspectos nessas discussões. O mito da caverna é uma história extraída da obra “A República”, cujo conteúdo exprime a maneira como Platão compreendia e discorria sobre o conhecimento humano. De maneira resumida, trata-se de uma exposição na qual o filósofo fala de um grupo de indivíduos que habitava em uma caverna e via sombras de estatuetas, mas não conheciam a luz, não saíam da caverna para conhecer o que havia além daquele espaço. Na verdade, então, estavam todos aprisionados. Quando alguém sai da caverna, conhece a luz e se liberta daquele limite que o espaço os impõe, tenta FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 30 explicar aos demais sobre o que viu e experienciou, para que os outros também se tornem livres, mas acaba sendo espancado e morto. Nessa alegoria, a caverna é o mundo onde vivemos, as sombras das estatuetas representam coisas sensoriais e materiais, a luz é a perspectiva de enxergar ou conhecer a verdade, o mundo fora da caverna é o mundo das ideias ou da realidade ampla (que quem está na caverna não conhece) e o prisioneiro que sai da caverna é o filósofo, aquele que busca o saber, que rompe com o que lhe é dado ou imposto por meio do questionamento. Assim, a Filosofia seria uma visão do mundo real iluminado, passível de ser visto e compreendido, algo muito maior do que o espaço da caverna e os limites do conhecimento que não busca se expandir, que não tem aprofundamento (CHAUÍ, 2015). Expor esse mito ao fim da seção, em contraposição aos textos canônicos que o fazem inicialmente ao tratar do conceito de Filosofia, tem o objetivo de fazer com que você reflita, à luz daquilo que já conheceu sobre o tema, sobre como vive – e vivemos, ainda que de maneiras diferentes, todos – em uma caverna, sobre os limites que já buscou superar e o quanto conheceu e em que medida essa busca por conhecimento alterou também os vínculos com outros indivíduos que optam ou para os quais não se coloca como possibilidade deixar a caverna rumo ao conhecimento.Em suma, a expectativa desta primeira seção foi de que você compreenda que o pensamento filosófico é mais do que refletir sobre o que os filósofos escrevem, mas colocar-se na condição de quem busca o conhecimento, de quem nutre sentimentos positivos pela sabedoria. 1.2 Moral e ética Os conceitos de moral e ética são os mais recorrentemente destacados quando se pensa e debate o pensamento filosófico durante a formação de profissionais no Ensino Superior, mas não somente nesses espaços, uma vez que, por exemplo, ao longo de campanhas políticas e no ambiente de trabalho somos também impactados pela utilização desses termos, não raras vezes como sinônimos ou como remetendo a um único significado. Isto posto, nesta seção tratamos da ética enquanto pilar estruturante das discussões desta disciplina, o que fazemos por meio do diálogo entre seu conceito e a definição de moral. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 31 Para Sung e Silva (1995), a palavra moral, que deriva do latim mores, significa costumes, ou seja, a maneira de se comportar regulada pelo uso. Assim, o homem moral é aquele que age conforme as regras estabelecidas pelo grupo social no qual encontra-se inserido. Moral é a parte da filosofia, que trata dos costumes, dos deveres e do modo de agir, de proceder dos homens para com os outros homens, ou seja, é o conjunto, o corpo de preceitos e de regras para dirigir as ações do homem, segundo a equidade natural, ou seja, a justiça natural, que é o reconhecimento imparcial do direito de cada um. É o conjunto de regras, de normas que determinam o comportamento, a conduta dos indivíduos na sociedade (MOURA, 2004, online). A moral refere-se à construção coletiva de regras e normas sociais, o que significa que não parte de simples imposição, mas precisa ser percebida por todos os indivíduos que convivem em determinado grupo, que pode ser um conjunto de voluntários de uma organização social, amigos que praticam esportes coletivos, pessoas no mesmo ambiente de trabalho, moradores de um bairro que participam de uma associação comunitária, habitantes de um município ou região, toda uma população nacional ou até mesmo, em último caso, a humanidade como um todo. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/moral-legal-symbol-businessman-turns-wooden-1964515519 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/moral-legal-symbol-businessman-turns-wooden-1964515519 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 32 Para Weiss (2011), a moral se efetiva quando cada indivíduo sente vontade de obedecê-la, ou seja, existe o respeito pela norma estabelecida e cada um se sente impelido a cumprir tal determinação, é mais do que aquilo que é imposto, mas é o que é desejado dentro de um corpo social. Isso porque, como coloca Cripa (2015), a moral não existe no indivíduo isoladamente, mas no processo de relação social, ou seja, em coletividade. É importante que seja perceptível ao grupo que a moral corresponde a essas regras sociais, que compreendam se tratar de normas socialmente partilhadas para reger o funcionamento daquela coletividade. Trata-se, portanto, de uma construção humana que tem caráter cultural, temporal e societal, ou seja, a moral não é estanque ou sedimentada eternamente, mas se altera conforme analisamos os costumes e valores de cada grupo social em determinado período de tempo, o que significa que sociedades contemporâneas entre si podem vivenciar diferentes morais e também que uma mesma sociedade pode ser perpassada por distintos valores morais em períodos diferentes de sua história. Assim, a moral se altera porque os valores não permanecem os mesmos dentro de uma cultura. O processo de construção social da realidade passa pela construção de conjuntos de instrumentos materiais e espirituais para um mundo mais humano, e isso pode, a cada geração, ser assimilado ou rejeitado, levando os indivíduos a conflitos e questionamentos sob a ordem anteriormente estabelecida. Toda essa transformação deve-se à liberdade de pensar e agir de cada um, buscando sempre o novo e uma realidade segura. Se os valores fossem iguais em todas as culturas, não haveria choques culturais, não haveria conflitos entre diferentes perspectivas de interpretação da realidade, então teríamos outra maneira de conviver, uma única forma de conviver. Por um lado, a existência de uma moral única teria como principal ponto positivo a possibilidade de redução de discrepâncias decorrentes de visões de mundo distintas ou etnocêntricas, já que teríamos todos uma mesma base moral estruturando nossos pensamentos e ações. Haveria a possibilidade de vivermos em sociedade mais tolerantes, democráticas, respeitosas e com valores sociais. Por outro lado, a inexistência de possibilidades diferentes de conformação de normas e regras sociais poderia conduzir ao domínio de elites políticas e econômicas sobre os demais indivíduos de maneira ininterrupta e imutável, já que alterações nos padrões FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 33 morais dependeriam do interesse desse grupo e invariavelmente não seriam destinadas a melhorias ou ganhos sociais para a classe trabalhadora, maioria da população. Ainda nesse sentido, a multiplicidade de culturas e sociedades e a ampliação do acesso à informação – o que retomaremos em uma de nossas últimas aulas dessa disciplina – nos permitem comparar determinadas regras e normas sociais e avaliá- las com relação à sua adequação a uma sociedade, de modo que a contestação da ordem vigente, mesmo que minimamente, passa pelo exercício de refletir sobre outras realidades possíveis. E como a moral se altera? Considerando que a moral é um conjunto de normas socialmente aceitas, mudanças ocorrem quando essas regras deixam de ser consideradas legítimas por uma sociedade, ou seja, quando os indivíduos deixam de vislumbrar aquele aspecto moral como um símbolo do funcionamento daquela sociedade e passam a interpretá-lo como uma obrigação. Trata-se, portanto, do momento em que algo deixa de ser aceito como adequado ou pertinente, ao que cabe sua modificação ou substituição. Bergamasco (2007) oferece um exemplo de como determinados conceitos ou valores podem ser alterados ao longo do tempo, fazendo com que a moral se modifique. Trata- se da definição de família, secularmente construída sob a perspectiva heteronormativa e cristã, baseada no arranjo conservador de pai, mãe e filhos decorrentes dessa união. Tanto se constituiu essa visão como a norma moral de família que até mesmo as propagandas de produtos apresentavam famílias felizes com essa composição, o que gerou a ideia de senso comum da “família de comercial de margarina”. Contudo, observando os arranjos sociais existentes em nossa sociedade – por diferentes razões – temos que os tipos de famílias hoje são múltiplos, como, por exemplo: somente um genitor com os filhos, avós que criam netos, pais separados com filhos de relações anteriores que formam uma nova família, adoções por pessoas sem cônjuge, o reconhecimento de relações homoafetivas e a redução do estranhamento a casais que não têm filhos, cuja família é composta apenas por essas duas pessoas. Perceba, caro(a) estudante, que a importância do conceito de família não foi reduzida e que a moral sobre o tema não deixou de existir, mas alterou-se diante de condições sociais em que a “família de comercial de margarina” não reflete a realidade de parcela expressiva das famílias brasileiras. Pensando em questões que podem estar passando por sua cabeça ao longo da leitura desta seção, imagino duas possibilidades, que na verdade se tornaram recorrentes em FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 34 aulas que ministrei sobre o tema sempre que chegávamos a esse ponto da discussão: Como nós podemos perceber a moral na prática? Onde “entra” a ética nessadiscussão? Essas duas perguntas nos conduzem a um mesmo caminho para resposta, uma vez que a moral se materializa ou se realiza por meio de ações éticas, ou seja, a ética corresponde à prática da moral na vida em sociedade. Partindo dessa prerrogativa, a ética é a ciência do comportamento moral dos homens em sociedade, ou seja, a ética é a própria vida, representada pelos costumes e ações humanas, que identificam seus comportamentos, uma vez que estuda as manifestações do comportamento humano (VÁSQUEZ, 1995). Conforme a filósofa brasileira contemporânea Márcia Tiburi (2014, p. 13), a ética se conforma nas experiências vivenciadas, está para além do pensamento ou do discurso: […] a mera análise de uma teoria ética ou o seu ensino podem ser puramente moralizantes, não garantem que alguém se torne ético […] isso quer dizer que a ética remete ao grande desafio que a prática nos coloca diariamente, a cada momento em que vivemos no mundo da ação partilhado com outras pessoas. Ainda refletindo sobre como a ética coloca-se como compromisso firmado pelos indivíduos entre si de maneira coletiva, a mesma autora destaca a pertinência de considerar que se trata de acordos de toda natureza, desde grandes aspectos existenciais até aquilo que vivenciamos no cotidiano, uma vez que a ética está presente na prática, nas ações que empreendemos no convívio social. O modo de pensar e de agir que demonstra sua urgência, justamente nesses contextos vazios de reflexão filosófica, em que o comodismo de pensamento é uma espécie de lei a qual se submetem todos os corpos. Ética em si mesma é a filosofia prática (TIBURI, 2014, p. 23). Essa perspectiva da ética como prática social coletiva não é recente em nossas sociedades e encontrava-se discutida desde os primórdios dos registros da Grécia Antiga. Entretanto, os filósofos políticos que ficaram conhecidos como contratualistas se destacam como expressivos teóricos do debate sobre como normas sociais se efetivam a partir de delineamentos aceitos coletivamente. De modo geral, Thomas Hobbes (1651 [2000]), John Locke (1689 [2001]) e Jean- Jacques Rousseau (1755 [2002]; 1762 [1999]) escreveram sobre como os Estados FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 35 nacionais foram conformados em torno da grandes acordos coletivos para sobreporem liberdades individuais que poderiam levar à guerra, à desigualdades sociais e a outros caminhos, em favor da segurança oferecida por um ente capaz de regular as relações sociais de modo a ditar regras e normas que favorecessem o convívio, daí a noção de contrato social. Com distintas argumentações sobre como as sociedades se organizariam e como esse ente seria superior ou subordinado ao conjunto de cidadãos, os contratualistas defenderam que os Estados nacionais teriam na figura do Estado o ente político e jurídico regulador de direitos e deveres. Assim como a moral, a ética, portanto, também é variável ao longo do tempo e em distintas sociedades, uma vez que remete à prática das normas. Então, como as regras sociais são diferentes entre determinados grupos e espaços, o mesmo acontece quando nos remetemos à moral. Isto posto, a ética se revela importante em diversos ambientes e situações de sua vida, sendo que, neste contexto específico de sua formação para o mercado de trabalho, cabem considerações sobre a atitude ética no ambiente profissional. Para Chauí (2000), a ética deve ser um fim, não apenas um meio para que alguém atinja algo. Em outras palavras, a atitude ética não deve consistir em executar determinadas ações para atingir ganhos, pois o resultado positivo da ação ética é a realização prática da moral asseverada como norma social partilhada. A partir de tal perspectiva, quando pensamos sobre o trabalho, deve-se ter em mente que os indivíduos devem considerar a natureza ética daquilo que lhes é solicitado, assim como cada empresa deve buscar conhecer os valores e práticas daqueles que contrata, uma vez que podem partir de premissas éticas discordantes ou até mesmo conflituosas, que não necessariamente visem ao bem comum. Nesse sentido, Arruda et al (2003) afirmam que a ética é aspecto fundamental para a dinâmica social no contexto do trabalho, pois é o que permite o estabelecimento de relações de confiança e de responsabilidade no interior de um grupo. Conforme os autores: Sem a ética, o convívio social torna-se insustentável. Sem confiança mútua, por exemplo, não se realizariam transações econômicas, nem haveria contratos. Ninguém empregaria, ninguém produziria, ninguém se associaria (ARRUDA et al, 2003, p. 149). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 36 Cabe, portanto, considerar que no mundo do trabalho as ações dos indivíduos são caracterizadas como apropriadas ou inapropriadas, sendo que a baliza que define essa diferenciação é a ética, responsável pelo estabelecimento de parâmetros de comportamentos, valores e atitudes aceitáveis ou não. Para Gianetti (2007), é dessa relação que denota a relevância de que empregador e profissional conheçam a ética um do outro, a fim de evitar atritos ou situações que venham a ferir sua moral por conta de atitudes éticas dissonantes das normas que considera adequadas. Ainda, cabe lembrar que conflitos dessa natureza podem ressoar de modo amplo, uma vez que a ética empresarial e coletiva, então as atitudes de cada profissional podem influenciar as ações de outros ou mesmo alterar a visão externa que se tem sobre a empresa; o mesmo vale para pensarmos como a “fama” da empresa pode ser estendida aos seus funcionários. E como lidar com situações em que os profissionais se percebem diante de atitudes éticas distintas das suas, ainda que não destoem de sua moral? Uma solução para tanto seria valer-se das múltiplas faces de sua identidade - o que retomaremos na aula em que se discute o multiculturalismo - e considerar que cada um de nós estabelece diferentes relações em espaços e entre grupos distintos. É o que Goffmam (2014) ensina sobre as representações, que consistem na maneira como agimos publicamente (em termos de estar diante de outros) de modo a nos adaptarmos aos cenários - em alusão a peças teatrais - e valemo-nos de máscaras sociais para interagir conforme os códigos de conduta aceitáveis. Ante ao exposto nesta aula, espero que você tenha percebido que a ética é mais do que um conceito filosófico antigo e teórico, mas um conjunto de elementos de ordem prática, que mobilizamos conforme normas e regras sociais interferem e são interpretadas em nossas relações cotidianos e nos espaços em que convivemos. Ainda, para além dessa importância geral, atente-se ao fato de que se trata de tema importante à sua futura inserção e atuação no mercado de trabalho. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 37 CAPÍTULO 3 POLÍTICA E DEMOCRACIA Caro(a) acadêmico(a), depois de conhecer sobre os dois termos que constam no título desta disciplina, avançamos nesta terceira aula na reflexão sobre como os aspectos sócio-culturais e éticos dialogam entre si nas sociedades contemporâneas. Para tanto, o conteúdo abordado versa sobre política e democracia. Na primeira seção, a abordagem da política é apresentada de modo a explorar com maior aprofundamento aquilo que fora mencionado nas aulas anteriores: as sociedades são conformadas por aspectos de ordem política, que influenciam e são influenciados por outros, de ordem social, econômica, cultural, tecnológica, religiosa etc. Se anteriormente a política foi tratada como parte do conhecimento nas Ciências Sociais e na Filosofia, nesta seção o tema é exposto como central à formação de indivíduos, relações sociais, instituições, valores, normas e práticas sociais. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/diverse-cultures-multiculturalism-society-international-tolerance-1887228277 Na sequência, a segunda seção aborda o regime democrático,focalizado de maneira específica por ser aquele sob o qual vivemos no Brasil e também é o mais comum ao redor do mundo. Trata-se de uma seção que objetiva demonstrar como a política se efetiva no cotidiano e tem relação com sua formação profissional e cidadã, em que dialoga com os eixos fundamentais do regime e sua relação com a cidadania. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/diverse-cultures-multiculturalism-society-international-tolerance-1887228277 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 38 3.1 A Ciência Política e a política O conhecimento de senso comum tem uma máxima de que “política se discute”, por ser um assunto que mobiliza diferentes perspectivas, expectativas e formas de pensar sobre a vida em sociedade, os interesses de grupos e aquilo que se espera daqueles que operam a política – e que, muitas vezes, acabam por serem generalizados à política, como se tais cidadãos não fossem apenas parte, mas a política em si. Contudo, se perguntarmos um ao outro, ou cada um de nós a si mesmo, “o que é política?”, é possível que muitos se surpreendam com a dificuldade de definir ou explicar tal temática. É essa dificuldade, cabe destacar, não é recente, mas permeia o desenvolvimento das sociedades ao longo dos séculos, já que o tema sempre está em pauta, mesmo que para reduzidos grupos. Em um livro clássico da reconhecida “Coleção Primeiros Passos”, organizada com a finalidade de disponibilizar conteúdos de maneira acessível àqueles que buscam conhecimento sobre temas - não apenas por formação acadêmica mas também à população em geral -, Wolfgang Leo Maar (2006) discorre sobre o tema e inicia destacando haver dois sentidos para o termo. O primeiro é aquele mencionado na primeira aula ao tratarmos da Ciência Política: a política pode ser interpretada com referência ao poder político, às instituições, aos espaços e formas de realização de ações, projetos e práticas políticas. Há ainda um outro significado, mais vago e impreciso, que corriqueiramente faz parte da vida dos indivíduos: Mas há um outro conjunto em que a mesma palavra manifesta-se claramente de um modo diverso. Quando se fala da política da Igreja, isto não se refere apenas às relações entre a Igreja e as instituições políticas, mas à existência de uma política que se expressa na Igreja em relação a certas questões como a miséria, a violência, etc. Do mesmo modo, a política dos sindicatos não se refere unicamente à política sindical, desenvolvida pelos governos para os sindicatos, mas às questões que dizem respeito à própria atividade do sindicato em relação aos seus filiados e ao restante da sociedade. A política feminista não se refere apenas ao Estado, mas aos homens e mulheres em geral. As empresas têm políticas para realizarem determinadas metas no relacionamento com outras empresas, ou com os seus empregados. As pessoas, no seu relacionamento cotidiano, desenvolvem políticas para alcançar seus objetivos nas relações de trabalho, de amor ou de lazer; dizer “Você precisa ser mais político” é completamente distinto de dizer “Você precisa se politizar mais”, isto é, “precisa ocupar-se mais da esfera política institucional” (MAAR, 2006, p. 10). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 39 Nesta disciplina, considerada a relevância da política em seu sentido formal- institucional para a conformação sócio-cultural e ética da sociedade, nos deteremos ao primeiro significado exposto por Maar (2006). Conforme Coelho (2017, p. 22), “como as primeiras discussões sobre os sentidos da Política datariam de mais de dois mil anos atrás, alguns entusiastas do tema afirmam que não existiria Ciência mais antiga no mundo do que a Política”, uma vez que as bases iniciais das discussões em torno de questões políticas remetem à vida em Atenas, já que foram primeiramente os gregos, com destaque a Platão e Aristóteles, que se debruçaram a estabelecer conjecturas acerca das relações sociais em coletividades, tendo em vista aspectos como liberdade, pluralidade, racionalidade e interações no âmbito público São muitas as definições sobre o que seria a política. Para Bobbio, Matteucci e Pasquino (2000), a partir da etimologia do termo, que decorre da palavra grega pólis, a política pode ser definida como tudo que diz respeito à cidade e, por consequência, ao urbano, ao civil e ao público. De modo mais direto e objetivo, Weber (2004, p. 60) afirmou que a política poderia ser compreendida como “[...] o conjunto de esforços feitos visando participar do poder ou a influenciar a divisão do poder, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado”. O segundo autor complementa sua explanação destacando que “[...] por política entenderemos tão somente a direção de um agrupamento político hoje denominado ‘Estado’ ou a influência que se exerce nesse sentido”, tendo em vista que “[...] o Estado consiste em uma relação de dominação do homem pelo homem, com base no instrumento da violência legítima – ou seja, da violência considerada como legítima” (WEBER, 2004, p. 59). Essa perspectiva weberiana é explorada por Maar (2006), que aponta um ponto de atenção à maneira como vivenciamos a política: as relações sociais, as práticas culturais, as normas e valores estão intimamente relacionados à política, contudo as elites políticas atribuem à população um espaço e um tempo determinado para exercerem a política, que são as eleições, o momento do voto. Essa perspectiva está tão introjetada ou mesmo naturalizada - e aqui, caro(a) acadêmico(a), lembre-se dos perigos desse termo - que Kuschnir (2007) afirma que as eleições são o tempo da política. Os autores clássicos da Teoria das Elites, o elitismo, construíram modelos teóricos baseados na argumentação de que organização política do Estado se dá a partir da FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 40 existência de dois grupos sociais e políticos distintos, dominadores e dominados ou governantes e governados, em que os primeiros exerceriam autoridade sobre o segundo grupo e seriam responsáveis pelo poder pelo fato de que, mesmo sendo um grupo menor numericamente, teriam objetivos comuns e manteriam sua condição diferentemente da grande massa de dominados ou governados, cujos múltiplos interesses dificultariam a articulação e organização (MICHELS, 1982; PARETO, 1984; MOSCA, 1992). Diante do exposto, é perceptível que a política se impõe aos indivíduos que vivem em sociedade, de modo que não se coloca a possibilidade de manter-se completamente afastado ou alheio à política, isso porque a temática está presente no cotidiano de cada um de diversas maneiras: de como fiscalizamos a distribuição e a utilização de recursos públicos à determinação dos caminhos das políticas públicas e sua utilização pela população, do modo como cada um define seu voto até o interesse em acompanhar notícias e o desempenho dos políticos eleitos. Assim, tanto o alto interesse por assuntos relacionados à política quanto o completo afastamento com relação a questões dessa natureza compreendem modos de relacionamento dos indivíduos com a política, como explicita Coelho (2017, p. 29) ao tratar do tema da apatia e indiferença política: Curiosamente, o significado etimológico da palavra “idiota” deriva do grego e sua definição está relacionada inicialmente aquele indivíduo que não participava da Pólis e por isso seria incapaz de exercer qualquer ofício público, passando depois a ser compreendido como “homem comum” – sem especial distinção – e finalmente “sujeito ignorante, de pouca inteligência e pouca valia”. Resumidamente, o “idiota” pode ser percebido também como aquele que não se interessa pelos assuntos públicos, somente pelos privados”. Maar (2006) afirma que a política exige atenção da sociedade, porque o alheamento pode decorrer de muitas fontes e ter efeitos também diversos. Sobre o primeiro aspecto, oautor destaca que conjunturas institucionais insatisfatórias em decorrência de corrupção, violência ou crise econômica, por exemplo, podem desmoralizar a atividade política, contribuir para que os cidadãos construam uma percepção de que a política é ruim ou falha. Como potenciais consequências dessas situações, pode aumentar a apatia da população, pode haver organização por mudanças efetivas na política ou a busca por alternativa extra-institucionais, como a luta armada. Essa não é uma condição exclusiva dos tempos atuais, uma vez que a política e os debates sobre os caminhos da política são antigos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 41 Conforme Maar (2006), a política é parte da vida social dos indivíduos, isso é inegável, mas apesar dessa condição ser uma constante ao longo da história, existem muitas formas pelas quais essa relação se estabelece. De modo sucinto, o autor resgata o pensamento de Platão, Cícero, Maquiavel e Marx para explicar tal afirmação. Para o filósofo clássico grego, o político não seria um ente diferenciado dos demais componentes de uma sociedade, exceto por conhecer de maneira mais aprofundada os fins da pólis, o que o permitiria ser capaz de conduzir os demais ao conhecimento sobre a política e a vida em sociedade diante de sua visão diferenciada, aos moldes do prisioneiro que consegue abandonar a caverna e descobre uma realidade distinta. Para Platão, a atividade política deveria ser pedagógica (paideia), capaz de transformar pessoas em cidadãos, sendo que o soberano governaria de modo a conduzir discussões públicas voltadas ao consenso (REALE, 1994). Por sua vez, Cícero (2002) viveu sob uma perspectiva política, o Império Romano, na qual a atividade política era centralizada e exercida pelo Estado forte e dominador, em que o bom governante deveria atentar-se para ser um bom administrador dos interesses particulares e setoriais, em detrimento do bem comum. Daí um modelo de política pautado pela propriedade privada, por interesses da elite e gestão voltada aos atendimento das demandas dessa minoria. No século XVI, o debate sobre a política ganhou uma nova abordagem sob a perspectiva de Maquiavel (1513), que apresentou na expressiva obra “O Príncipe” a distinção entre Estado e governo, sendo o primeiro o ente institucional respeitado (ou temido) pelos membros de uma sociedade e o segundo o órgão responsável pela gestão desse ente. Para o filósofo político que se tornaria conhecido como “Pai da Ciência Política”, um governo - ou o governante - seria capaz de todo tipo de ações para manter-se ocupando a posição de poder que remete ao controle do Estado. Conforme Maar (2006, p. 36), “o governo é o agente da atividade política de um Estado. [...] Através do seu agente, a atividade política do Estado realiza-se concretamente, pelo exercício do poder do governo”. A referida obra, é importante salientar, ficou conhecida como um manual para governantes que buscam manter-se ou ocupar o poder, tanto que Maquiavel entendia que a atividade política do governante - o Príncipe, para quem escreveu e dedicou sua obra - deveria balizar-se pelo uso da força combinado com a astúcia de fazer-se amado por seus súditos, de modo que não necessariamente a política deveria ser executada para atender as necessidades da população de modo FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 42 justo, mas seria necessário fazer com que a população visse no governante alguém que busca esse bem comum. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/hand-businessman-moving-chess-figure-competition-740139466 Enquanto Maquiavel enfatizou em sua discussão sobre política, Estado e governo a figura do príncipe, séculos depois Marx - no contexto da Revolução Industrial - tratou da atividade política sob a perspectiva coletiva, para o que abordou a relação entre política e classes sociais. Por classes sociais, entende-se a burguesia, detentora dos meios de produção e componente da elite política e econômica da sociedade, e o proletariado, formado pelos trabalhadores, que dispõem apenas de sua força de trabalho no processo produtivo. Segundo o sociólogo, o governo deve ser submetido à lógica das atividades políticas exercidas por um grupo, a elite política e econômica que é representada pelo Estado. Enquanto Marx e Engels (2007) escreveram que a política seria o conjunto de atividades que resultam da luta entre as classes sociais, Althusser (1980) corroborou a análise ao destacar que o Estado é sempre representante de uma classe social, sendo pertinente refletir sobre como e se a classe dominada poderia se tornar dominante. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/hand-businessman-moving-chess-figure-competition-740139466 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 43 O constructo teórico das obras de Marx, individualmente e com Engels, denota a necessidade de superar a sociedade capitalista para o estabelecimento de uma coletividade organizada socialmente com vistas à garantia de redução de desigualdades no processo de produção e na distribuição de riquezas, o socialismo. Entretanto, o desenvolvimento econômico das sociedades conduziu praticamente todos os Estados nacionais para o capitalismo globalizado, combinado com a persistência de regimes democráticos na maioria dos países. 3.2 Democracia e cidadania As primeiras reflexões sistematizadas sobre o conceito de democracia encontram- se nas discussões da teoria política clássica sobre formas de governo. Apesar de não negar a existência de sociedades democráticas anteriores à Grécia Antiga, o primeiro governo denominado democrático de que se tem registro e que se tornou referencial para o pensamento contemporâneo corresponde ao governo de Atenas. A concepção grega de democracia repudiava a ideia de representação como método democrático. A eleição de representantes era considerada como um método aristocrático, pois se tratava de uma seleção na qual os indivíduos teriam diferentes probabilidades de vencer, uma vez que possuíam capacidades diferentes. Os princípios democráticos estavam relacionados à participação igualitária. O método associado à democracia era, portanto, o sorteio, utilizado em Atenas para preencher os cargos que não exigissem capacitação ou experiência específicas e o governo do povo se materializava na noção de igualdade política, que se manifestava em métodos nos quais preponderavam oportunidades igualitárias de exercer o poder político (MANIN, 1997). Não por acaso, a democracia era o governo de muitos, em contraste ao governo de poucos, chamado de aristocracia (ou de oligarquia, em sua forma degenerada). Se, por um lado, pode-se argumentar que o escopo da cidadania ateniense era muito restrito devido à exclusão de mulheres, escravos e estrangeiros das decisões públicas, por outro, o regime democrático ateniense outorgava mais poder político à classe trabalhadora e aos pobres em comparação à versão contemporânea. O regime ateniense propiciava mais controle por parte da classe produtiva, uma vez que os problemas eram levados à esfera pública. Discutir democracia no âmbito da prática e da teoria política contemporâneas implica lidar com um evidente paradoxo: ao passo que a democracia é uma forma de governo FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 44 valorizada como “positiva”, ela se distancia de seu conceito original, relacionado à participação popular direta. Embora haja diferentes perspectivas sobre a democracia, uma delas se sobrepôs às demais a ponto de o Ocidente considerá-la como única forma possível (HEYWOOD, 2010), o liberal-pluralismo, projeto democrático baseado na existência de um conjunto de garantias legais, como as liberdades cidadãs, a competição eleitoral e a livre organização mediante grupos de pressão. Dentre os autores que defendem tal perspectiva democráticahá distinções expressivas: enquanto Schumpeter (1961) argumentava que a desigualdade política seria um aspecto natural da sociedade e que caberia aos indivíduos “comuns” limitarem sua atuação política ao momento de escolha de representantes (voto) porque as massas seriam incapazes de governar devido à sua irracionalidade inata, para Dahl (1997), argumenta que uma poliarquia – regime real mais próximo de uma democracia – seria caracterizada pela fragmentação do poder político, o qual não estaria concentrado em apenas um grupo devido à dispersão dos variados recursos na sociedade, de modo que a igualdade política também se relacionaria à distribuição do poder. Conforme Albrecht (2019), dentre as demais vertentes da teoria democrática, a maioria consiste em alternativas a esse modelo. ISTO ESTÁ NA REDE Em “Teorias da democracia: caminhos para uma nova proposta de mapeamento”, a cientista política Nayara Albrecht desenvolve uma argumentação sistemática sobre os modelos teóricos por meio dos quais é possível compreender o funcionamento das democracias, enfocando especialmente como cada modelo lida com os eixos que sustentam o regime: representação, deliberação e participação. Trata-se de leitura didática e instrutiva, presente em um periódico que se dedica a publicar balanços de literatura sobre temas relevantes, a Revista Brasileira de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais (BIB). Disponível em: http://anpocs.com/images/BIB/n88/1017666bib88032019.pdf Fonte: O autor. No geral, as teorias circundam principalmente três conceitos importantes no estudo da democracia: representação, deliberação e participação. Tais eixos podem auxiliar a compreensão acerca das semelhanças e diferenças entre teorias que servem de http://anpocs.com/images/BIB/n88/1017666bib88032019.pdf FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 45 base para a construção de modelos de democracia e suas respectivas variações. Os regimes contemporâneos são, na verdade, mesclas de elementos pertencentes aos três eixos. https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/large-group-people-gathered-together-shape-260710784 A representação se caracteriza por ser indireta, com alguém que fala “em nome dos interesses” de outrem (GURZA LAVALLE; ISUNZA VERA, 2011). Em termos práticos, é materializada por meio do voto, quando cada um de nós escolhe representantes para discutirem e decidirem em nosso nome sobre diferentes temas da agenda pública. Uma representação democrática implica vínculo entre representante e representados, de modo que aquele tenha certa margem de liberdade para atuar, mas sem estar https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/large-group-people-gathered-together-shape-260710784 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 46 alheio aos anseios destes. Quando o representante age exclusivamente voltado aos próprios interesses, trata-se de uma representação não democrática ou de uma mera transferência de poder. Dessa forma, uma democracia representativa é um regime democrático cujas decisões públicas são tomadas predominantemente mediante mecanismos de representação. As eleições fazem parte desses mecanismos, mas não são suficientes para promover uma representação democrática, que exige certo controle por parte dos representados. Os atuais sistemas de representação são imperfeitos porque carecem de instrumentos de controle mais efetivos dos representados em relação aos representantes (MANIN; PRZEWORSKI; STOKES, 1999). A representação não democrática acentua a distância entre representantes e representados. A democracia deliberativa se pauta pela ideia de que a discussão é um mecanismo para encontrar soluções coletivas e suspender a influência das diferenças de poder. Nesse sentido, a deliberação também contribui para que os indivíduos transcendam seus interesses privados (YOUNG, 2006). Por sua vez, a democracia participativa está centrada, de maneira geral, em mecanismos de participação direta, em que o engajamento do cidadão se dá de forma não mediada. A crítica da democracia participativa à deliberativa reside no fato de que alguns problemas não podem ser solucionados em instituições, uma vez que elas reproduzem as desigualdades. Nesse sentido, a inclusão formal não é suficiente, pois o acesso se restringe a determinados grupos que possuem recursos, como habilidades e posses econômicas. Assim, o eixo da “participação” salienta a importância de entender a democracia para além de seu aspecto institucional. Ao longo das aulas desta disciplina, são diversos os momentos em que destaco que abordamos conteúdos que tratam de sua formação profissional e cidadã. Nas duas anteriores e nesta, a questão da cidadania se revela relevante em contexto histórico, sendo que para pensarmos a democracia temos que considerar a ampliação, mesmo que formal, da abrangência da cidadania. Conforme destacado anteriormente, o modelo clássico da democracia grega era restritivo com relação a quem seria cidadão, de modo que a perspectiva atual em países como o Brasil - cuja Constituição nacional reverbera valores da Revolução Francesa - é de considerar o conjunto de indivíduos residentes como cidadãos, ou seja, conferir a todos, sem distinção, o mesmo caráter sócio-político. É sabido que, em termos efetivos, essa ideia de cidadania com igualdade e equidade não opera na realidade social. Contudo, tomada como perspectiva a ser buscada, a FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 47 cidadania deve ser abordada, o que é realizado, aqui, partindo de considerações sobre seu conceito. Na teoria constitucional moderna, cidadão é o indivíduo que tem um vínculo jurídico com o Estado. É o portador de direitos e deveres fixados por uma determinada estrutura legal (Constituição, leis) que lhe confere, ainda, a nacionalidade. Cidadão são, em tese, livres e iguais perante a lei, porém súditos do Estado. Nos regimes democráticos, entende-se que os cidadãos participaram ou aceitaram o pacto fundante da nação ou de uma nova ordem jurídica (BENEVIDES, 1994, p. 7). De acordo com a interpretação clássica de Marshall (1967) a partir da perspectiva da sociedade inglesa, o princípio de igualdade presente no conceito de cidadania seria tensionado, inevitavelmente, pelas desigualdades sociais existentes nas sociedades de classes, relacionadas ao funcionamento do capitalista estruturante do funcionamento de relações econômicas e, em alguma medida, até mesmo dos governos. Contudo, cabe destacar alguns aspectos. Primeiro, o “lado” desse conflito destacado pelo autor clássico, no sentido de que as noções de cidadania e de cidadão implicam no estabelecimento de condições de igualdade ou de busca para sua efetivação. Seguindo o critério ético de caráter, uma sociedade moralmente estruturada deveria ser balizada pela possibilidade de acesso semelhante de seus indivíduos a todas as oportunidades, especialmente se pensarmos o contexto democrático e a preocupação com o governo voltado ao atendimento das necessidades sociais da população. Em segundo lugar, quando nos debruçamos sobre as tensões geradas pela desigualdade de classes, nos deparamos com argumentos clássicos de diversos autores, muitos citados na primeira seção desta aula: Maquiavel (1976) e seu argumento de que o Estado é sempre um espaço de luta pela conquista ou manutenção do poder e que o governante deve valer-se de estratégias para manter sua condição, ainda que não atenda aos anseios da população; Marx (1983) e a luta entre as classes sociais como inevitável para a superação da condição de desigualdade de distribuição de recursos e exploração da mão-de-obra; e os autores do elitismo clássico (MICHELS, 1982; PARETO, 1984; MOSCA, 1992), que afirmaram que sempre haveria uma minoria organizada, denominada elite, capaz de ocupar os postos de poder e manter sua condição dominante com relaçãoà maioria desorganizada por conta de múltiplas vontades e poucos recursos, o povo. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 48 Assim, a preocupação com a questão da cidadania não é recente, o que reforça a necessidade de refletirmos sobre esse tema de interesse social, uma vez que a preocupação de debates sobre aspectos sócio-culturais e éticos é, em parte, proporcionar a formação cidadã a você, em diálogo e para além dos conteúdos específicos de sua formação profissional. Entender, portanto, que a maneira como as sociedades atuais estão organizadas limita o exercício da cidadania implica em reconhecer que o parâmetro ético que deveria balizar as relações entre os indivíduos e com os governos e demais instituições tem falhado, mas, por outro lado, permite pensarmos sobre caminhos possíveis à superação ou redução dessas desigualdades no contexto democrático, onde instrumentos de representação, participação e deliberação se colocam como caminhos possíveis ao exercício da cidadania. Esse conflito entre democracia e cidadania tem reverberado em diferentes formas de atuação social e de formalização de explicações científicas e modelos téoricos. Com relação ao primeiro aspecto, nossa próxima aula trata de participação social e abordará, dentre outros aspectos, como representação e participação encontram-se intrinsecamente relacionadas e também as formas e modalidades de engajamento político existentes. Para finalizar esta seção - e esta terceira aula - cabe observarmos implicações da relação democracia-cidadania sobre a perspectiva da crise dos regimes democráticos. Nos últimos anos, são muitas as obras que tem se dedicado a produzir modelos teórico- analíticos que colocam em xeque a vitalidade das democracias contemporâneas. Rancière (2005) afirmou que haveria um cenário de ódio ao regime democrático e à política, sendo que devemos analisar a democracia sob perspectivas múltiplas, não apenas como a combinação entre instituições, governo e partidos políticos, mas também considerando a população. Levitsky e Ziblatt (2018) analisaram o caso estadunidense e de alguns países europeus e afirmaram que as democracias podem caminhar para a morte, ou seja, para se findarem, ao menos em alguns países, o que é também tratado por Runciman (2018). Mounk (2019), por sua vez, exprime que o regime tem perdido força junto aos cidadãos e precisa ser repensado, pois a estrutura econômico do liberalismo enfraqueceria a democracia. Trata-se, portanto, de uma crítica ao modelo econômico que, dentro da exploração do capitalismo, se baseia na definição de um Estado minimamente FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 49 interventor em questões econômicas - e que está, portanto, a serviço de elites políticas e econômicas - e que não investe em políticas sociais para a população. Por outro lado, para além de perder força junto à população, a democracia estaria ainda em risco diante de ameaças de retorno ou implantações de regimes autoritários em diversos países, em decorrência da retomada do envolvimento de setores conservadores das sociedades que haviam abandonado a política nas últimas décadas e encontram- se ressentidos pelo avanço em direitos sociais e valores progressistas (DALTON, 2018; NORRIS; INGLEHART, 2018). No caso brasileiro, as manifestações de junho de 2013 representam um marco tanto da expansão da participação quanto do avanço de pautas antipolíticas e antidemocráticas, o que se ampliou com a deposição contraditória da então presidenta Dilma Rousseff em 2016, corroborando à ascensão e fortalecimento de figuras políticas antissistema e com discurso de extrema direita e até mesmo radical, contrário à democracia, à Constituição e à cidadania no Brasil, como discutem as obras de autores como Gallego (2018) e Miguel (2019) e a coletânea intitulada “Democracia em risco?” (ABRANCHES et al, 2019). A discussão sobre os caminhos da democracia passa pela compreensão de diferentes aspectos, dentre os quais está a maneira como a elite política determina os caminhos do desenvolvimento de políticas públicas, se inclusivos ou restritivos. Assim, em aulas futuras você tomará contato com duas propostas distintas de pensar cidadania e democracia: multiculturalismo e necropolítica. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 50 CAPÍTULO 4 PARTICIPAÇÃO POLÍTICA E SOCIAL Caro(a) acadêmico(a), após discutirmos sobre os termos que conferem o título desta disciplina e sua interface com a política e a democracia em nossas três primeiras aulas, o segundo bloco de aulas é composto por três desdobramentos da discussão anteriormente iniciada. Nesse sentido, como anunciado ao fim da aula anterior, nesta quarta aula abordamos a questão da participação política, baseando-nos na exposição de aspectos teóricos e também resultados de pesquisas científicas e dados empíricos, a fim de conferir materialidade ao conteúdo. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/simple-set-team-work-related-vector-1029481402 https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/simple-set-team-work-related-vector-1029481402 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 51 Isto posto, a primeira seção desta aula versa sobre a materialização de atividades políticas no contexto social, ou seja, como o governo realiza a política na prática. Para tanto, são discutidas a definição de políticas públicas e a importância de mecanismos institucionais para que a população possa participar da construção dessas políticas. A segunda seção versa sobre outro modo de organização política da sociedade, os caminhos da participação social que não obrigatoriamente dependem do contato direto ou de recursos do Estado. A expectativa desta aula é de que você, profissional em formação nesta etapa de sua vida e cidadã(o) em conformação permanente, seja capaz de compreender que os caminhos da política não são completamente distantes de seu cotidiano e nem impossíveis de serem atingidos, tanto que há espaços e modalidades em que pessoas com diferentes perfis sociodemográficos e profissionais, por exemplo, se engajam e atuam para discutir e promover mudanças sociais e políticas na realidade sócio-cultural e ética de nossa sociedade. 4.1 Participação institucional e políticas públicas Desde a instauração da República em 1889, o Brasil foi cenário de muitas revoltas, lutas e mobilizações sociais, como a revolta da vacina, os primeiros movimentos grevistas e as pressões que culminaram na criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio – até a década de 1930. Dentre vitórias substanciais de demandas sociais, destaca-se especialmente a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada na década de 1940. Para além desses resultados positivos, o país sofreu um período de retração no acesso a direitos e à mobilização social entre 1964 e meados da década de 1980, por conta do regime militar que, dentre outras ações, extinguiu partidos políticos e proibiu manifestações públicas relacionadas à política. Naquele contexto, setores da população se organizaram em torno da resistência política à ditadura e passaram a encampar lutas tanto por pautas específicas quanto pela retomada da democracia. As manifestações por “Diretas já!”, o fim do bipartidarismo e a aprovação da retomada do voto direito para presidente foram passos importantes à redemocratização, que tem na Constituição de 1988 sua principal base. Tal Carta Magna ficou conhecida como “Constituição cidadã” por conta de aspectos que ampliaram os direitos sociais dos brasileiros e os mecanismos de participação social. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 52 Tendo o Estado a finalidade de servir à população, cabe ao governo trabalhar de modo a atender as necessidades dos cidadãos por meio de ações que visem otimizar a responsabilidadee a transparência dos atos públicos (AZAMBUJA, 2005). Assim, a gestão pública está relacionada ao desenvolvimento político do Estado, cujas alterações não têm, necessariamente, relação direta com seu desenvolvimento econômico, o que implica inferir que as reformas pelas quais o Estado moderno tem passado tendem a gerar muitos conflitos, uma vez que confrontam a visão do Estado burocrático em contrapartida a inovações que podem contribuir para o desenvolvimento e aprimoramento do processo de gestão pública. Diante desse contexto, cabe ao Estado implementar ações que atendam aos interesses e necessidades da população, especialmente em um regime democrático. O meio para tal implementação corresponde às políticas públicas, que constituem mecanismos de efetivação das deliberações do poder público para com a população. Considerando sua amplitude em termos de áreas de ação e atuação, bem como as distinções que pode assumir conforme os arranjos entre Estado e governo, não há um conceito único para tratar do tema. Para Souza (2006), por exemplo, as políticas públicas correspondem ao campo de conhecimento que tem como finalidade a realização efetiva das ações de governo, bem como suas avaliações e, a depender dos resultados dessa análise, também a proposição de mudanças com relação à execução das atividades. Já Rodrigues (2010) entende que políticas públicas constituem o conjunto de processos por meio dos quais diferentes grupos, com demandas e interesses distintos, debatem com vistas à tomada de decisões coletivas que direcionem caminhos ao desenvolvimento de determinadas áreas em um âmbito da sociedade (municipal, estadual ou federal). Por fim, Amabile (2012) apresenta um conjunto de características que permeiam o conceito de políticas públicas, quais sejam: são decisões que envolvem questões de ordem pública e que gozam de abrangência ampla, com vistas à satisfação de interesses de coletividades; dizem respeito a estratégias de atuação pública com capacidade de impactar na realidade; e representam a concretização das ações governamentais, desenvolvidas por meio de um processo complexo. Tendo em vista tal perspectiva, os direitos sociais que as políticas públicas visam atender podem ser das mais diversas áreas, como educação, saúde, transporte público, lazer, cultura, habitação, previdência social ou pautas de minorias, o que significa que o foco das políticas públicas não é um campo de atuação específico, mas a garantia FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 53 de cidadania ampla, de modo que nem todas as ações contemplarão a totalidade da população, pois podem ser direcionadas a atender demandas ou necessidades de segmentos sociais, culturais, étnicos ou econômicos que estejam em condição social-política que inspire cuidados. Sendo assim, as políticas públicas podem afetar tanto a população como um todo quanto grupos específicos, considerando aspectos como gênero, faixa etária, nível de escolarização, religião, qualificação profissional, tipo de vínculo empregatício, renda familiar etc. Isso significa tanto a diversificação de áreas e grupos atendidos quanto a universalização da preocupação com o alcance do bem-estar da sociedade como um todo, ainda que a contribuição efetiva do Estado para tanto venha a ser eventualmente pequena. As políticas públicas, portanto, constituem-se como materializações do texto constitucional que menciona em seu artigo 6o um conjunto de direitos sociais que todos os brasileiros devem ter garantidos, quais sejam: Art. 6o. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. [Redação dada pela Emenda Constitucional nº 90, de 2015] Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária [Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021] (BRASIL, 1988 [2022], online). A maneira como essas políticas públicas materializam os direitos sociais, contudo, está relacionada ao modo como o ciclo das políticas públicas ocorre, ou seja, como as etapas são conduzidas em termos de tempo, abertura ao diálogo com a população, preocupação com saberes técnicos e recursos dispendidos, por exemplo. Para avançarmos na discussão sobre participação, cabe expor a configuração básica de um ciclo de políticas públicas, a qual segue. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 54 Figura 1 - Ciclo de políticas públicas Fonte: Adaptado de Brancaleon et al (2015). A representação gráfica acima é uma síntese de etapas que perpassam a materialização de uma política pública, sendo que há diferentes autores que apresentam o ciclo com números distintos de etapas, mais ou menos detalhadas, mas também há relativo consenso sobre estas cinco serem as etapas que, de fato, constituem um ciclo de políticas públicas. A definição da agenda diz respeito às disputas entre grupos para que determinado assunto se torne pauta de discussões em espaços públicos e pode ser determinada tanto por força política e/ou social de grupos e atores quanto por situações emergenciais, como calamidades que fazem com que um assunto se torne “a pauta do dia” em caráter de urgência. A formulação de políticas é a etapa em que ocorrem discussões, estudos técnicos e são ouvidos grupos relacionados ao problema que conforma a agenda - como usuários da política pública, estudiosos sobre o tema, políticos e agentes públicos e privados - para que sejam elaboradas possibilidades de ações que venham a reduzir ou sanar o problema. Na sequência, diante do debate e comparação entre propostas, é tomada uma decisão pelo poder público sobre qual ação ou conjunto de ações FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 55 devem ser empreendidas. A implementação corresponde à aplicação da legislação aprovada, ou seja, quando se coloca em prática o que foi decidido na etapa anterior, e isso implica tanto o dispêndio de recursos (financeiros, materiais, de tempo e pessoal) quanto a necessidade de monitoramento das atividades desenvolvidas, a fim de que atendam à decisão estabelecida. Por fim, temos a avaliação, que consiste na análise dos resultados da implementação da decisão, com vistas a oferecer respostas sobre a capacidade de uma política pública resolver, ainda que parcialmente, um problema que gerou a necessidade de inserção de um tema na agenda. Após a avaliação, perceba que há ainda uma seta que conduz à primeira etapa do ciclo - o que, de fato, configura essa sequência de etapas como um ciclo, algo “fechado” e que se retroalimenta - e é de grande relevância, como destacam Secchi (2013) e Brancaleon et al (2015), pois configura o momento de oferecer ao poder público e demais agentes envolvidos no processo de construção de políticas públicos os subsídios para refletirem sobre a necessidade de reestruturar o programa, ação ou projeto anteriormente aprovado, ampliá-lo ou extinguí-lo. E por que é importante conhecer essas etapas? Porque a conformação do ciclo passa por diferentes caminhos, em que cidadãos em geral e profissionais de diversas áreas podem participar. O caminho mais óbvio é a inserção no serviço público como servidor público, prestador de serviço ou contratado, situações em que o profissional pode compor o grupo que discute propostas por seu conhecimento técnico sobre o assunto. Outra possibilidade é por meio de ocupação de cadeiras de representação de segmentos em espaços de discussões e deliberações sobre políticas públicas, como conselhos e conferências - o que trataremos ainda nestaseção. E há um terceiro caminho, que se pode se configurar em diálogo, em conflito ou mesmo em paralelo às discussões no âmbito do Estado, composto por um conjunto de modalidades de ações coletivas - tema de nossa próxima seção, nesta aula. Tendo em vista que o primeiro caminho mencionado é de simples entendimento, vamos falar de maneira específica sobre as instituições participativas (IPs), também denominadas como modalidades de participação institucional, que são relevantes mecanismos de articulação de interesses e repertório de ação política, bem como se destacam como inovação político-administrativa brasileira. Com relação à sua materialidade, as IPs são amplas e multifacetadas, de modo que “a diversidade dos experimentos pode ser vista nos níveis de governo em que são aplicados, nas áreas de políticas públicas e nos contextos políticos e regionais FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 56 [...]” (ALMEIDA, 2013, p. 12) e que são diversos os conceitos que buscam expressar tal fenômeno, de modo que remetem também a instrumentos de controle social (LÜCHMANN, 2011). De modo geral, é possível inferir que a participação institucional diz respeito ao conjunto de mecanismos legais, por meio dos quais o Estado promove a interação com a sociedade, a fim de formular políticas públicas e redistribuir bens e serviços, em atendimento aos direitos sociais previstos na Constituição. Segundo Avritzer e Santos (2003) e Avritzer (2009), instituições participativas promovem o relacionamento entre Estado e sociedade por meio da operação de princípios de participação e de representação de maneira simultânea e, em alguma medida, permitem o controle do Estado pela sociedade. Para além do controle do Estado, as IPs representam, também, espaços para a tomada de decisões coletivas acerca de políticas públicas de diferentes áreas, e se constituem como uma importante alteração democrática: o Brasil passou, nas duas últimas décadas do século XX, da condição de país com baixa propensão à participação associativa à nação de destaque por conta de mecanismos de participação institucional (AVRITZER, 2015). Esse é o contexto em que operam instituições participativas, como conselhos, conferências, audiências públicas e orçamentos participativos (OPs). Os conselhos e conferências de políticas públicas são IPs em que se discute propostas para o desenvolvimento de políticas públicas por áreas, sendo obrigatórios para algumas políticas - como assistência social, direitos da criança e do adolescente e educação, por exemplo - e facultativos para as demais. Os conselhos focam em propor ações práticas e cotidianas para solucionarem problemas da ordem do dia, por terem periodicidade de reuniões mensal (majoritariamente), ao passo que as conferências são realizadas periodicamente (em geral, a cada 2 ou 3 anos) e se dedicam a reflexões sobre o delineamento nacional das políticas sociais. Em ambas as IPs, há arranjos institucionais em que agentes do governo e da sociedade ocupam cadeiras como representantes de segmentos - como usuários daquela política pública, trabalhadores da iniciativa pública e privada, agentes de mercado, organizações da sociedade civil (OSCs) etc. - e são eleitos por seus pares para comporem tais fóruns de discussões, que podem ser normativos, deliberativos ou consultivos (SOUZA et al, 2013; ROMÃO, 2014; LÜCHMANN; ALMEIDA; GIMENES, 2016). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 57 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/rear-view-audience-showing-hand-answer-1105566605 Já audiências públicas e OPs têm caráter amplo, promovendo discussões sobre questões variadas e sem foco necessariamente específico em uma área de política pública. No caso de audiências públicas, trata-se de IPs destinadas a contribuir à transparência na gestão pública, que se caracterizam como espaços dialógicos estabelecidos pelo governo com a sociedade, ainda que sem caráter decisório, para debater temas como prestação de contas, demandas sociais, aspectos de conjuntura política ou projetos de lei em discussão no Legislativo, por exemplo (BATISTA, 2012). Por outro lado, os OPs são espaços para construção coletiva de proposta de destinação de parcela dos recursos financeiros do Estado, em que as necessidades e propostas da população são ouvidas, discutidas e, após votações entre os próprios cidadãos para definir prioridades, encaminhadas ao Legislativo para inclusão na proposta orçamentária do exercício fiscal seguinte, o próximo ano civil (ROMÃO, 2010), cabendo destacar que os OPs são uma experiência participativa surgida no Brasil que é replicada em países de todos os continentes, com mais de 1500 registros internacionais (GIMENES, 2015). Tomadas em conjunto, as IPs representam avanço à democracia por proporcionarem aumento dos espaços e das possibilidades de apresentação e defesa de demandas, https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/rear-view-audience-showing-hand-answer-1105566605 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 58 bem como pela diversidade de modalidades existentes – em termos de burocratização, desenho institucional, formas de acesso, direito de voz etc. –, o que permite aos indivíduos, estabelecer contato com o Estado por mecanismos diferentes. Além disso, é benéfica ao regime democrático, também, a disseminação da participação institucional nas três esferas de governo, em ampla gama de áreas de políticas públicas e pluralidade de contextos socioeconômicos e políticos. 4.2 Participação social e ações coletivas A participação política por meio de IPs é uma alternativa relevante aos cidadãos, já que implica em possibilidade distinta do voto (representação) para envolvimento em questões de ordem pública. Contudo, há também modalidades de atuação que não necessariamente são desenvolvidas no âmbito do Estado ou por iniciativa do governo. Nesta seção, tratamos de ações coletivas como formas de participação social. [...] a expressão ações coletivas tem sido geralmente utilizada, mesmo na academia, como definição de um conceito empírico para se referir a toda e qualquer forma de ação reivindicativa ou de protesto realizada através de grupos sociais, tais como associações civis, agrupamentos para a defesa de interesses civis comuns, organizações de interesse público (SCHERER-WARREN, 2012, p. 19). De modo geral, as ações coletivas dizem respeito a formas de engajamento da população em face de organismos nos quais possam atuar de diferentes maneiras: há ações coletivas que buscam o diálogo com o Estado para sanar problemas, seja por meio do contato com atores do Executivo, Legislativo ou Judiciário ou participando de IPs; outras que se colocam como críticas e realizam protestos e manifestações públicas para chamar a atenção da população, da mídia e do poder público para os problemas; aquelas que buscam recursos públicos por meio de editais para estabelecer parcerias; e as ações que atuam à margem do Estado, realizando suas atividades sem buscar qualquer tipo de contato com o poder público, atuando junto a comunidades com recursos decorrentes de doações e voluntariado. De modo geral, Scherer-Warren (2012) apontou três modalidades preponderantes de ações coletivas: os movimentos sociais, o associativismo e as OSCs - anteriormente conhecidas como organizações não-governamentais (ONGs) ou do Terceiro Setor. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 59 Os movimentos sociais constituem forma histórica de organização de parcelas da população para pressionar o Estado por alterações sociais. Desde o período da Revolução Industrial, emergiram na Europa movimentos de trabalhadores que buscavam melhores condições de trabalho e remuneração, o que se expandiu para outras formas de institucionalização de lutas. No Brasil, os movimentos operários também se destacaram- haja vista a conquista da CLT - mas não foram os únicos, uma que vez ao longo da história houve diferentes mobilizações pela liberdade dos escravos, pela independência, pela república e outros. Como exposto no início desta aula, os movimentos sociais foram ainda essenciais à conformação social da percepção de que era necessária a retomada da democracia no país, sendo que após a redemocratização houve diversos outros movimentos expressivos em nossa história recente, como o movimento “cara pintada” que pediu o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello no início dos anos 1990, a “Ação da Cidadania contra a Fome” fundada por Betinho e que atua até hoje e diversos outros movimentos, como menciona Gohn (2010; 2011): de lutas por moradia e questões urbanas; movimentos rurais e ambientais; aqueles com pautas de direitos humanos, identitárias e culturais; de enfrentamento à fome; tradicionais, relacionados às condições de trabalho; e, no mundo globalizado, movimentos internacionais ou até globais, em defesa de pautas como preservação ambiental, paz e imigrantes. O associativismo diz respeito à modalidade de ação coletiva por meio da qual os cidadãos se articulam de modo que podem vir a acionar o poder público para sanear demandas ou atuar de modo colaborativo, sem demandar atuação do Estado. Trata- se de modalidade de ação coletiva relevante tanto internacional (HABERMAS, 1997; COHEN, 1999) quanto nacionalmente (LÜCHMANN, 2016), pois tais entidades são responsáveis, parcialmente, pela “[...] construção, na esfera pública, da formação da opinião e da vontade, influenciando o poder político institucional” (LÜCHMANN, 2016, p. 46). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 60 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/group-diverse-hands-together-joining-concept-344201303 Autores como McAdam, McCarthy e Zald (2008) destacam que o associativismo pode ser utilizado como recurso por movimentos sociais ou diretamente como estrutura de mobilização aos processos políticos, o que significa que é possível às diferentes modalidades de ação coletiva - aqui, adianto, também inserimos as OSCs - atuarem de modo combinado ou em diálogo, assim como os indivíduos podem se engajar em diferentes modalidades de ação coletiva. Um detalhe importante do associativismo, em comparação com os movimentos sociais e as OSCs, é o fato de que é difícil mensurarmos sua amplitude. No caso dos movimentos sociais, há grandes movimentos, mas como em geral todos buscam confrontar o Estado para solicitar melhorias, acabam ganhando visibilidade pública; já as OSCs têm formalização legal, como trataremos na sequência. No caso do associativismo, uma parcela dessas organizações comunitárias está registrada como OSC, mas outra parcela - especialmente aquela que atua em paralelo ao Estado, baseada no voluntariado - não tem qualquer registro formal. Em termos de dados, as informações mais atualizadas são expressas em questionários de pesquisas de opinião pública, que denotam haver relativa regularidade no número de brasileiros que manifestam atuar em algum tipo de associação. É um dado impreciso, porém relevante, já que https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/group-diverse-hands-together-joining-concept-344201303 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 61 demonstra que desde a redemocratização essa modalidade de ação coletiva segue constante no país. Por fim, em se tratando de OSCs, estas são instituições formalmente registradas junto a órgãos públicos nacionais, que atendem a cinco características, simultaneamente: a) são privadas e não estão vinculadas jurídica ou legalmente ao Estado; b) não possuem finalidades lucrativas, ou seja, não distribuem o excedente entre proprietários ou diretores e, se houver geração de superávit, este é aplicado em atividades-fim da organização; c) são legalmente constituídas, ou seja, possuem personalidade jurídica e inscrição no CNPJ [Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas]; d) são autoadministradas e gerenciam suas próprias atividades de modo autônomo; e) são constituídas de forma voluntária por indivíduos, e as atividades que desempenham são de livre escolha por seus responsáveis (LOPEZ, 2018, p. 15-16). Trata-se de organizações, que podem estar vinculadas a movimentos sociais ou serem formalizadas em decorrência de associações comunitárias, que totalizavam 820.185 entidades quando da publicação do último levantamento pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Esse número de organizações dividia-se em 86% de associações privadas, 12% de organizações religiosas e 2% de fundações privadas, sendo excluídas do cômputo entidades como partidos políticos, sindicatos, cartórios, condomínios e outras que não se enquadram na caracterização especificada (LOPEZ, 2018). As OSCs representam a modalidade de ação coletiva que mais se expandiu no Brasil nos últimos anos, com crescimento voluptuoso em todas as regiões e áreas de atuação, com destaque às finalidades, quais sejam: saúde, cultura e recreação, educação e pesquisa, assistência social, religião, associações patronais e profissionais, desenvolvimento e defesa de interesses e de direitos e outras atividades menos recorrentes. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 62 Tabela 1 - OSCs segundo a finalidade de atuação Fonte: Adaptado de Lopez (2018). Uma informação importante do levantamento do IPEA é o fato de que 83% das OSCs atuam somente com trabalho voluntário, o que reforça sua relação com o associativismo e os movimentos sociais e se constitui como condição histórica ao desenvolvimento no Terceiro Setor no Brasil (KISIL, 2000; PIMENTA; BRASIL, 2006; LOPEZ, 2018). Se, por um lado, essas organizações crescem e expandem sua atuação por conta da ampliação da legislação existente, com ênfase ao Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, aprovado por meio da Lei nº 13.019/2014, e às oportunidades que a formalização oferece, como a possibilidade de participação em conselhos e conferências de políticas públicas e pleitear recursos decorrentes de editais de chamamento público para projetos sociais, por outro lado tem-se a preocupação com a necessidade de profissionalização do setor, já que a burocracia dificulta a atuação dessa modalidade, o que praticamente não impacta movimentos sociais e associações. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 63 Tabela 2 - Participação política e social no Brasil (2018) Fonte: Elaborado pelo autor com base em dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ESEB, 2018). n = 2506 Os dados decorrentes de amostra representativa da população nacional destacam alguns aspectos: em verde, as igrejas como principal modalidade de participação social dos brasileiros, o que implica considerarmos uma forma de sociabilidade que pode (ou não) ter relação ou impacto em ações políticas; em amarelo, algumas modalidades de participação política institucional, com maior incidência de engajamento em IPs obrigatórias (conselhos de saúde e educação) do que naquelas facultativas, sendo que os OPs sequer existem em todos os municípios; e, no geral, excluindo a religião, os percentuais são baixos, nenhum superior a 12%, o que significa que os brasileiros são pouco engajados politica e socialmente. A baixa participação constitui-se como problema e ponto de atenção sob duas perspectivas. Primeiro, por ser o engajamento uma demanda da democracia para o desenvolvimento da cidadania, de modo que quanto mais se envolvem, mais os indivíduos tendem a se sentir parte dos processos sociais e políticos. Em segundo lugar, os percentuais de participação em cada modalidade escondem uma informação que análises estatísticas mais refinadas apontam, que é o fato de que são poucos os brasileiros que gozam de condições de participar política e socialmente, já que oengajamento envolve a mobilização de recursos múltiplos (como tempo FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 64 disponível, dinheiro, escolarização para decodificação do conteúdo político e redes de relações que tenham vínculos políticos e/ou sociais). Isso significa que o perfil de quem participa no Brasil está associado majoritariamente a homens, brancos, com média ou alta escolaridade, com tempo e recursos financeiros maiores do que a média da população nacional e esses indivíduos tendem a se engajar em mais uma modalidade (BORBA; GIMENES; RIBEIRO, 2015; RIBEIRO; BORBA; HANSEN, 2016). Assim, a participação política e social é restrita a uma parcela pequena da população, que atua nos espaços em que caminhos da política e da sociedade são discutidos por meio do uso de repertórios de participação, ou seja, são pessoas que mobilizam diferentes modalidades conforme a necessidade e/ou contatos e estratégias de diálogo, enfrentamento ou ação paralela ao Estado. Em Gimenes (2021) pontuo que, se a baixa participação é um problema per se no contexto democrático, por reduzir o envolvimento da expressiva maioria da população ao momento eleitoral, há outro efeito ainda mais preocupante: quem participa dos espaços políticos e sociais onde se discute, realiza e reflete sobre políticas públicas tem um perfil completamente distinto da grande massa da população brasileira que é beneficiária dos serviços e equipamentos sociais existentes, que são em sua maioria mulheres, pessoas não brancas (pardas, negras e indígenas), com nenhuma ou baixa escolarização e renda familiar mínima (ou até mesmo inexistente) e sem trabalho ou em ocupações braçais e que vivem em condições precárias de habitação, saneamento e com relação a outras políticas públicas. ISTO ESTÁ NA REDE Em decorrência de uma grande pesquisa interinstitucional que reuniu docentes e discentes da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-Araraquara), foi organizado um grande compilado de estudos sobre diversas modalidades de participação no Brasil, como associativismo, partidos políticos, voto, sindicalismo, conselhos e conferências de políticas de públicas. Disponível em https://procad.paginas.ufsc.br/files/2019/05/ Participa%C3%A7%C3%A3o-pol%C3%ADtica-e-democracia-no-Brasil- contempor%C3%A2neo.pdf Fonte: O autor. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 65 Assim, os temas discutidos nesta aula têm relação, direta e indireta, com sua vida profissional e/ou enquanto cidadã(o), uma vez que praticamente todas as profissões são impactadas, em maior ou menor medida, pelas decisões políticas e pela legislação que tem relação com as políticas públicas e, para além disso, há o efeito da materialização das políticas públicas em direitos sociais, que interferem na maneira como vivemos em sociedade. Em nossas próximas aulas conheceremos duas formas antagônicas de pensar os caminhos da democracia na atualidade, as quais se relacionam diretamente com temas tratados até aqui. Vamos falar sobre multiculturalismo e necropolítica! FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 66 CAPÍTULO 5 MULTICULTURALISMO E DEMOCRACIA Caro(a) acadêmico(a), a vida sob o regime democrático nos coloca diante de reflexões e de implicações à nossa formação sócio-cultural e ética, uma vez que os conceitos de sociedade, cultura, ética, política e democracia estão intrinsecamente relacionados, como discutido nas aulas anteriores de nossa disciplina. Conforme anteriormente anunciado, nesta quinta aula trataremos de um modelo democrático baseado em uma teoria que dialoga intimamente com a Antropologia, pois versaremos sobre o multiculturalismo, termo que tem sua composição a palavra cultura como elemento-chave. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/multicultural-society-international-tolerance-celebration-african-1975927421 Para tanto, na primeira seção desta aula retornamos ao conceito de alteridade para avançarmos à construção teórica do que seria a identidade em nossa sociedade atual, a fim de demonstrar como cada um de nós é único, múltiplo e complexo. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/multicultural-society-international-tolerance-celebration-african-1975927421 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 67 Em seguida, na segunda seção tratamos da teoria democrática do multiculturalismo, a fim de compreendermos em que se fundamenta e como se constrói, na prática, tal perspectiva de funcionamento do referido regime político. 5.1 Da construção à relevância das identidades O conceito de alteridade surgiu na Antropologia quando da própria fundação dos estudos na área, de modo que os primeiros antropólogos, ainda que sem um ramo científico que determinasse como deveriam realizar suas investigações, se dedicaram a analisar grupos sociais distintos e distantes, no contexto das grandes navegações - o que fora mencionado anteriormente nesta disciplina. Malinowski é considerado o primeiro antropólogo, aquele que inicialmente se dedicou ao trabalho de campo para a construção de uma investigação antropológica, pois conferiu legitimidade ao seu estudo por meio da discussão metodológica que expôs o passo-a-passo de sua incursão, conferindo cientificidade ou possibilidade de replicação de sua análise. Naquele período, os povos descobertos pelos navegadores eram considerados nativos, primitivos, até mesmo irracionais pelos europeus, sempre autocentrados em sua perspectiva de sociedade e em sua cosmovisão de mundo, de modo que qualquer sociedade que vivesse sob distintas regras era considerada inferior em termos de desenvolvimento. Assim, Malinowski destacou-se por realizar uma extensiva pesquisa in loco, ou seja, entre o povo primitivo, segundo os europeus, de modo que iniciou o que depois seria designado como o “fazer antropológico”, como destaca Laplantine (2003, p. 79-80): Se não foi o primeiro a conduzir cientificamente uma experiência etnográfica, isto é, em primeiro lugar, a viver com as populações que estudava e a recolher seus materiais de seus idiomas, radicalizou essa compreensão por dentro, e para isso, procurou romper ao máximo com os contatos com o mundo europeu. Ninguém antes dele tinha se esforçado em penetrar tanto, como ele fez no decorrer de duas estadias sucessivas nas ilhas Trobriand, na mentalidade dos outros, e em compreender de dentro, por uma verdadeira busca de despersonalização, o que sentem os homens e as mulheres que pertencem a uma cultura que não é nossa. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 68 De modo a propor uma interpretação diferente do conhecimento de senso comum, que chamaria os trobriandeses de irracionais ou pouco desenvolvidos, Malinowski (1978) adotou como ponto inicial de pesquisa a necessidade de compreender o modo com que os nativos enxergavam sua sociedade, suas necessidades e relações. Para o antropólogo, era importante responder: O que é uma sociedade para si mesma? O que torna uma sociedade viável para os seus integrantes? Como estratégia para buscar tais respostas, o autor dedicou-se a abandonar as noções de “eu” e “outro” para compreender o segundo grupo sem estabelecer comparações. O desafio imposto a si mesmo foi o de destituir-se de critérios e padrões de julgamento que o europeu possuía, a fim de evitar juízos de valor sobre o funcionamento de uma sociedade que desconhecia. Em outras palavras, coube ao pesquisador a difícil responsabilidade de desnaturalizar sua visão sobre a sociedade, a fim de perceber os aspectos que regiam os trobriandeses em suas relações sociais. Caso você esteja em dúvida sobre a pertinência dessas informações ou do por quê estamos tratando disso neste momento, cabe-me explicarque essa é a base da alteridade, sobre a qual mencionou-se em aula anterior. A alteridade remete à maneira como nos posicionamos socialmente a partir das noções e da diferenciação entre “eu” e o “outro”. A ideia de alteridade está intimamente relacionada não apenas ao olhar para o outro, mas a reconhecer o outro e a respeitar as diferenças identificadas, o que exige de cada um considerar dois aspectos: a compreensão sobre o que o outro pensa que faz e entende com relação aos símbolos e como eu interpreto a cultura e a interpretação do outro acerca de sua sociedade e/ou de suas práticas (LAPLANTINE, 2003; RIFIOTIS, 2012; RECHENBERG, 2013; QUEIROZ; SOBREIRA, 2016). Esse modo de interpretação social, característico da Antropologia, é capaz de permitir, àqueles que conseguem se colocar em tal condição, a superação dos limites daquilo que inicialmente pressupõem que encontrarão ou terão que decodificar, pois as noções de “cotidiano” e “habitual” tendem a se reduzir conforme a percepção acerca do que é “normal” ou “natural” se tornam questionamentos sobre como e/ou o quanto costumes, posturas, práticas e a formação intelectual do “outro” são tão pertinentes quanto a minha. Diante de tais inquietações, Rifiotis (2012) destaca que a experiência da alteridade, que aparentemente é fácil, revela-se complicada na prática, especialmente por conta de julgamentos e sensos que conformam nosso etnocentrismo, que remete à avaliação FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 69 de aspectos diversos a partir da cultura de quem julga, ou seja, minha percepção como métrica para balizar o quanto todas as demais são adequadas, corretas ou justificáveis. A necessidade de tomada de consciência por parte de cada um com relação ao etnocentrismo e à necessidade de estimular em si a prática da alteridade é salutar ao desenvolvimento das relações sociais, uma vez que interfere no caráter coletivo e mutável de funcionamento mais adequado de uma sociedade. Refletindo acerca do funcionamento das sociedades na atualidade, Hall (2006) afirmou que as alterações nas estruturas e nos padrões culturais nos dias de hoje decorreriam de rupturas que gerariam fragmentações que permeiam as relações sociais como um todo. Se anteriormente as sociedades eram pensadas a partir de um centro de poder e que este perderia espaço apenas quando substituído por outro, na pós-modernidade a substituição se daria por uma pluralidade de centros de poder, fragmentados sem necessariamente um princípio articulador ou organizador único, bem como sem obrigatoriedade de causalidade ou explicação única. As sociedades contemporâneas ou pós-modernas, portanto, não poderiam ser tratadas como unificadas, delimitadas ou totais, sendo que aquelas de modernização tardia - fora do eixo dos países que estiveram à frente da Revolução Industrial nos séculos XVII e XVIII e dos Estados Unidos - produziriam ampla variedade de identidades aos indivíduos, as quais não se desintegram não por unificação (unidade), mas porque os diferentes elementos e identidades podem, em certas circunstâncias, se articular conjuntamente, ainda que essa articulação seja parcial. Tal perspectiva nos permite inferir que Hall (2006) apresenta a noção de identidade na pós-modernidade como permeada por uma estrutura aberta, o que devemos considerar como positivo, já que a desarticulação de identidades fixas e estáveis do passado abre possibilidades a novas articulações, novos sujeitos, novas identidades e recomposições das estruturas de articulações. Contudo, para entendermos de modo mais detalhado sobre essa perspectiva, cabe-nos retornar à primeira explanação sobre a noção de identidade. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 70 https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/silhouette-profile-group-men-women-diverse-1808618392 Nesse sentido, encontra-se em Mauss uma primeira abordagem da discussão sobre a identidade, baseada no reconhecimento do “outro” como um sujeito, sem a comparação com o “eu”, mas per se. Em “Uma categoria do espírito humano: a noção de pessoa, a noção do ‘eu’”, o antropólogo argumentou que a definição de pessoa carrega em si uma entidade social que conforma a existência de todos os indivíduos em sociedade por meio de diferentes aspectos, como os direitos, os costumes, as estruturas sociais e instituições, os comportamentos e mentalidades e as religiões, por exemplo. No século passado, o antropólogo brasileiro Roberto DaMatta (1987) escreveu sobre tal perspectiva e colocou como necessário compreendermos que a identidade de cada indivíduo é conformada por inúmeras facetas, ou seja, cada um tem em si múltiplas perspectivas pelas quais pode ser interpretado e também interpreta o mundo social em que vive. Para ele, cada forma de olharmos para alguém ou cada forma como nos colocamos diante da sociedade conduzem a explicações específicas sobre um indivíduo ou grupo social, com todas as suas diferenciações. Essa interpretação faz sentido para você, caro(a) estudante? Vamos traduzí-la a uma abordagem mais próxima do cotidiano: a maneira como homens e mulheres, brancos e não brancos, jovens, adultos e idosos, heterossexuais e pessoas com distintos gêneros, mais ou menos escolarizadas etc. vivenciam a realidade social é diferente, certo? Isso porque as experiências de vida são permeadas por grupos com os quais tendem a dialogar e por lugares ou agrupamentos com os quais têm mais chance de https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/silhouette-profile-group-men-women-diverse-1808618392 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 71 interagir, por exemplo. Por outro lado, o modo como indivíduos que gozam de menos direitos e privilégios sociais - como mulheres, negros e minorias de gênero - vivenciam a realidade social, cultural, política e religiosa é muito diferente do que seus “opostos”. Essas características são inicialmente consideradas em separado, ou seja, podemos ser analisados ou analisar outros a partir de múltiplas identidades, diferentes formas de se inserir numa sociedade, com seus contratempos e/ou privilégios. Homens têm mais chance de conquistar empregos com melhor remuneração do que mulheres no Brasil, ainda que tenham a mesma formação e experiência, pessoas negras têm mais chance de serem encarceradas do brancas, homossexuais são mais agredidos do que heterossexuais nas ruas, o acesso ao ensino superior público privilegia os indivíduos de alta renda e com escolarização básica (Ensino Fundamental e Médio) mais aprofundado em detrimento de alunos de escolas públicas… perceba que são muitas as chaves para analisar os indivíduos e enquadrá-los socialmente, certo? Fato é que, neste momento de nossa discussão na disciplina, é preciso que você compreenda que os indivíduos não são fragmentos de identidades, mas possuem em si essas múltiplas identidades, que pode fazer com que acumulem privilégios, haja um equilíbrio entre aspectos dificultosos e positivos ou sejam desprovidos de muitos dos direitos sociais previstos em nossa Constituição Federal de 1988. Nesse sentido, uma relevante discussão da Antropologia gira em torno da concepção de identidade ou identidades, sendo que em Gimenes (2011, p. 96-97) explanei que a noção de identidade é perpassada por duas abordagens distintas, quais sejam: Conforme a abordagem contextual, não existe definição de identidade por si mesma, uma vez que os processos identitários não existem fora do contexto, ou seja, são sempre relativos a algo. Já a concepção relacional toma como ponto de partida para discussão das identidades individuais ou coletivas o fato de o indivíduo ser, sempre e necessariamente, o outro de alguém, o que o levaria a “pensar-se a si próprio a partir de um olhar externo, até mesmo de vários olhares cruzados”. Tal classificação dialoga diretamente com a afirmação de Agier (2001, p. 9), no sentidode que “o processo identitário, enquanto dependente da relação com os outros (sob a forma de encontros, conflitos, alianças etc.), é o que torna problemática a cultura e, no final das contas, a transforma”. Assim, tem-se na noção de identidade um importante elemento a considerar em análises que buscam a compreensão do funcionamento das sociedades na contemporaneidade. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 72 Retornando a Stuart Hall (2006), um dos principais autores das últimas décadas sobre identidades, temos uma classificação sobre a evolução dos tipos de indivíduos ao longo dos tempos: o sujeito do Iluminismo foi dotado de razão e de consciência, autocentrado em sua individualidade; o sujeito sociológico era relacional, se constrói na coletividade e nas relações, por meio de interações em que transformava o mundo e o outro e também era transformado; e o sujeito da pós-modernidade seria multi- identitário, cuja forma de análise pode ser provisória, variável ou problemática pelo fato de haver muitos aspectos a considerar sobre o indivíduo, ainda que escolhamos olhar e interpretá-lo a partir de um único prisma. Para o autor, não seria possível falarmos sobre a existência de uma identidade única, fixa ou permanente, de modo que os indivíduos podem relacionar-se social e politicamente a partir dessas múltiplas facetas. É o caso, por exemplo, de considerarmos pessoas que defendem diferentes valores ou interesses, que circulam entre grupos sociais distintos e/ou participam de modalidades de participação em que lutam por causas destoantes. O reconhecimento dessa multiplicidade de identidades que cada um de nós carrega é condição para a compreensão da teoria democrática do multiculturalismo, que exploramos na próxima seção desta aula. 5.2 Multiculturalismo como modelo de democracia Partindo da Antropologia e da Sociologia, o multiculturalismo diz respeito ao reconhecimento de variedades de culturas ou ao pluralismo de culturas que se colocam em convivência nas sociedades contemporâneas. Observando sob a perspectiva da Ciência Política, tomando os eixos clássicos a partir dos quais se interpretam os regimes democráticos - representação, participação e deliberação, conforme explorado na terceira e quarta aulas - existem muitos caminhos analíticos por meio dos quais se estabelecem teorias ou modelos explicativos sobre o funcionamento das democracias na atualidade. Um relevante balanço sobre essas teorias foi organizado por Albrecht (2019), que atualizou e ampliou discussões anteriores de autores como Held (2006) e Miguel (2007). Conforme a autora, as vertentes teóricas contemporâneas julgam a democracia como positiva e como melhor forma de governo e tentam, substancialmente, associá-la às noções de igualdade política e participação popular, sendo importante considerar FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 73 que o que caracteriza a democracia não é uma escolha excludente entre deliberação, participação e representação, mas como essas formulações são entendidas e atuam em relação a igualdade política. Isto posto, a autora apresenta sete teorias democráticas contemporâneas, quais sejam: liberal-pluralismo, pautada por garantias legais, possibilidade de participação e definição do governo pelo voto, porém com relativa autonomia; deliberacionismo, ocada na deliberação por indivíduos racionais em fóruns de debate, considerando a importância do diálogo em esfera pública para a democracia; republicanismo, caracterizada por governo misto e com participação popular no controle e ação política, porém limitada para não representar um risco ao regime; participacionismo, que busca a ampliação dos espaços e mecanismos de participação em combinação com a representação; feminismo, a qual busca romper com a dicotomia público-privado em favor de uma sociedade mais justa e equânime em direitos e oportunidades para mulheres e homens; neo-marxismo, que defende a maior integração entre Estado e sociedade, com ampliação da possibilidade de destaque à classe operária e redução da condição de Estado de classe voltado aos interesses da burguesia e elite político- econômica; e multiculturalismo, que defende a necessidade de ampliação da prática democrática para atingir grupos marginalizados ou com menor acesso a espaços e vocalização de demandas políticas e sociais. Assim, o princípio do multiculturalismo está relacionado à existência de múltiplas identidades em cada indivíduo e em cada sociedade, as quais precisam ser consideradas de modo que não apenas os interesses do grupo que conforma a elite política e econômica sejam atendidos. A saber, significa uma democracia voltada não apenas aos interesses tidos como universais de pessoas que acumulam características como ser homem, branco, de classe média-alta ou alta, heterossexual e com vínculos sociais influentes. Significa, também, que o multiculturalismo defende que a democracia considere e atenda as demandas e necessidades de grupos que são minorias em termos de acesso a direitos, como mulheres, não brancos, com menor renda, LGBTI+, com deficiência, imigrantes etc. Portanto, trata-se de uma corrente interpretativa que se pauta pela defesa de grupos que têm acesso restrito a diversas esferas de reconhecimento, de modo que cabe destacar que a perspectiva multiculturalista é positiva no contexto democrático por conta da possibilidade de valorização de grupos como agentes políticos, tendo em FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 74 vista que se pautam pela manifestação de que direitos sociais lhes são devidos e carecem de atenção e atendimento. Isso significa que uma manifestação de insatisfação de grupos deve fazer emergir a consideração em torno da necessidade de incluir políticas direcionadas a minorias, de caráter redistributivo e voltado àqueles que necessitam especificamente de determinado serviço ou recurso, o que reforça o caráter ético coletivo de busca pelo atendimento de necessidades de distintos grupos e expande a noção de cidadãos à totalidade da população, independente de características sociais específicas. Ademais, o multiculturalismo estabelece uma crítica ao ideal de imparcialidade que vigora nos governos em que a elite política e econômica ocupa os postos de mando e trabalha para a manutenção de seu status quo, de modo que grupos menos favorecidos sequer têm voz, não raras vezes, e que toda oportunidade de vocalizar demandas e necessidades deve ser aproveitada! Conforme Miguel (2005), trata-se de uma maneira de pensar a sociedade em contraposição ao liberalismo, que não negava a existência de interesses de grupos, mas excluía a possibilidade de “direitos de grupos”. Ao passo que o sujeito do liberalismo era o indivíduo, o multiculturalismo inclui os grupos como agentes na reflexão política, já que tais coletividades são entendidas não como mera agregação de indivíduos, mas como conjuntos de pessoas que compartilham uma identidade e lutam pela garantia de direitos sociais pertinentes a essa identidade. Nesse sentido, a força das ações coletivas no Brasil, crescente nas últimas décadas, encontra-se em consonância com o multiculturalismo, uma vez que são cada vez mais recorrentes movimentos sociais, associações e OSCs que se mobilizam por causas de direitos sociais e de minorias, atuando de maneira isolada ou coletivamente e também ocupando espaços de representação nas IPs mencionadas, os conselhos e as conferências de políticas públicas. Essas articulações indicam a perspectiva de que existem pautas que mobilizam cada uma dessas ações coletivas individualmente, mas também outras que demandam sua união por se tratarem de pautas comuns. Alguns exemplos de situações em que minorias podem se juntar para pleitear alterações da realidade social são as lutas coletivas de movimentos feministas e negros em torno da recorrênciade casos de violência obstétrica contra mulheres negras, a articulação de grupos de mulheres, negros e LGBTI+ pela criação de conselhos voltados à políticas para a diversidade e de moradores de regiões periféricas dos municípios, de pessoas com deficiência, de FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 75 trabalhadores e de setores envolvidos com esporte e cultura pelo direito à cidade, para que haja transporte coletivo adequado e em horários que permitam sua circulação pelo território municipal aos fins de semana e feriados. ISTO ESTÁ NA REDE Existem muitas explicações sobre o multiculturalismo na internet, especialmente após o início da pandemia, quando as aulas presenciais migraram para o ensino remoto emergencial. Um conteúdo com qualidade é a aula do professor de Sociologia João, Gabriel, que trata do tema de maneira didática e pertinente. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4vji3JUEg84 Fonte: O autor. O multiculturalismo traz, assim, uma reflexão sobre o próprio significado de democracia: constantemente associada à maioria, a democracia, em defesa do multiculturalismo, passa a ser vista como um regime protetor de minorias, constituídas não pelo aspecto numérico, mas pela posição que ocupam na sociedade em uma perspectiva relacional quanto à sua cidadania e aos direitos sociais. Assim, o multiculturalismo opõe-se à ideia de que democracia é meramente um governo “do maior número”. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/world-day-diverse-cultures-multiculturalism-society-1913245321 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/world-day-diverse-cultures-multiculturalism-society-1913245321 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 76 Em se tratando dos principais marcadores sociais que marcam o contexto multiculturalista de enfrentamentos por direitos de minorias, Rifiotis (2012), destaca quatro aspectos ou temáticas, quais sejam: sexo, classe social, idade e geração e etnia. O sexo se apresenta como um vetor biológico definidor, ainda que parcialmente, de modos de pensar, agir e sentir dentro da maioria das sociedades contemporâneas, as quais, em alguma medida, refletem a diferenciação entre homens e mulheres e suas ocupações e limites nos âmbitos público e privado (RIFIOTIS, 2012). Nesse sentido, uma desconstrução latente a ser enfrentada pela noção de alteridade é a determinação dos papeis sociais atribuídos a homens e mulheres no cuidado com o lar e a família (no âmbito privado) e sua capacidade de atuação no mercado de trabalho em geral, em cargos e funções hierarquicamente elevados e nos espaços da política (no âmbito público). O segundo marcador social relevante no contexto multicultural atual é a questão de classe social, critério que assume características econômicas e culturais, de maneira simultânea. Por um lado, remete à manutenção do domínio e da diferenciação social que perpetua uma elite política e econômica como ocupante do poder, ao mesmo tempo que, por outro lado, dialoga com um discurso de meritocracia, pautado pelo argumento de que o esforço é a condição necessária para que todos alcancem seus objetivos. Tendo em vista o impacto da qualidade do ensino sobre a possibilidade de alteração de classe social dos indivíduos, é pertinente considerar que uma sociedade mais ética e com valores de cidadania seria aquela em que a democracia defende a melhoria da educação pública. Com relação ao terceiro marcador social, a relação entre idade e geração, cabe destacar que enquanto idade remete à mera contagem de anos de vida, o conceito de geração remete às experiências e perspectivas que cada período da vida pode reservar aos indivíduos. Da mesma maneira, trata das necessidades individuais com as quais o Estado deve arcar para com o indivíduo. Isso significa que os jovens, por exemplo, fazem maior uso de equipamentos públicos de educação e esportes, bem como carecem de políticas de inserção no mercado de trabalho e de acesso ao ensino superior ou cursos técnicos para profissionalização. Por outro lado, àqueles em idade “produtiva” cabe a preocupação com a Previdência Social e aos idosos cabe a maior utilização do Sistema Único de Saúde. Essa noção de geração, portanto, remete às experiências vivenciadas, de modo que as experiências que conformam as identidades FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 77 dos indivíduos e sua relação com o caráter ético da vida em sociedade e sua cidadania diferem. Por fim, o quarto marcador social destacado por Rifiotis (2012) é a questão da etnia, indicador voltado à interpretação das relações existentes entre distintos grupos étnico-raciais, referentes aos quais é conhecida a diferenciação em termos de acesso a oportunidades e preconceitos, especialmente ao nos depararmos com a história do Brasil após a abolição da escravatura (1888) e a proclamação da república (1889). Sobre tal marcador, o autor chama atenção com a seguinte exposição: A desigualdade social no Brasil passa com certeza pelo marcador étnico. Porém, a questão atual está em compreender como se dá o “preconceito à brasileira” e como ele opera no nosso cotidiano. Neste campo entre desigualdade social e preconceito, há muito para fazer e muitos aspectos para analisar. E não se iluda, porque o mais difícil de ver é o óbvio. De fato, a questão envolve múltiplos aspectos da vida social (RIFIOTIS, 2012, p 99). Contudo, para além da consideração sobre cada marcador em separado, é preciso ter em mente que se tratam de categorias analíticas, as quais podem apresentar-se isoladas ou de maneira conjunta na prática, uma vez que o multiculturalismo nos coloca o desafio de considerar a multiplicidade de aspectos conformadores das identidades individuais e pensarmos, de modo coletivo, sobre a prática ética e os direitos de cidadania. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/diverse-group-people-entrepreneurs-office-workers-1927342577 Assim, tem-se como desafios para pensar uma sociedade que seja democraticamente multicultural o enfrentamento de questões práticas palpáveis como o enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher, o rompimento com o conhecimento https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/diverse-group-people-entrepreneurs-office-workers-1927342577 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 78 de senso comum de que a política e os cargos administrativos hierarquicamente superiores cabem aos homens e não às mulheres, o ageismo que denota preconceitos e determinações contra a faixa etária ou etapa de vida em que os cidadãos se encontram, os cuidados com a população com menor renda em geral, com os que vivem em periferias, favelas e a população em situação de rua, melhorar a qualidade de atendimentos nas políticas setoriais de educação e saúde, desenvolver ações que reparação histórica em face de grupos étnicos desfavorecidos por meio de cotas e outras providências etc. Em suma, o multiculturalismo é uma teoria política que compreende que a democracia deve atender as demandas de todos os grupos sociais, independentemente de quanto representem em termos numéricos na sociedade e se coloca como uma corrente do pensamento democrático atinente aos direitos sociais, políticas públicas e direitos humanos em geral. Entretanto, há inúmeros outros arranjos de governos e Estados que não prezam por tais valores, de modo que na próxima aula exploraremos uma forma de “fazer político” expressamente contrário ao multiculturalismo, a necropolítica. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 79 CAPÍTULO 6 NECROPOLÍTICA COMO POLÍTICA DE ESTADO Caro(a) acadêmico(a), após tomar conhecimento de uma perspectiva de Estado democrático aberto às demandas sociais de diferentes grupos e com marcadores que podem se acumular no sentido da dificuldade de acesso a direitose políticas públicas, nesta aula tratamos da necropolítica enquanto modo de governo oposto àquele do respeito e valorização de múltiplas identidades e marcadores sociais. Na primeira seção desta aula, abordaremos aspectos teórico-conceituais que colaboraram para que fosse cunhada a abordagem da necropolítica. Para tanto, serão abordadas as definições de biopolítica e de estado de exceção. A segunda seção enfoca objetivamente a dimensão necropolítica do governo, de modo que a exposição trata da origem dessa forma de “ser” do Estado até suas implicações nas sociedades contemporâneas. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/identity-absence-surreal-concept-man-front-767658412 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/identity-absence-surreal-concept-man-front-767658412 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 80 A expectativa desta aula é de que você compreenda como arranjos institucionais políticos legais podem promover, dentro de democracias constitucionais, o apagamento de corpos e identidades. 6.1 Bases conceituais da necropolítica O conceito de necropolítica foi cunhado pelo filósofo político camaronês Achille Mbembe (2018) e tem duas raízes que compõem sua denominação: necro se relaciona à morte e política é um termo que já exploramos anteriormente, relacionado à gestão de espaços e equipamentos institucionais voltados à coletividade. Assim, o termo necropolítica remete à ideia de morte política de indivíduos, pensada sua morte como a ausência de atendimento por parte de instituições políticas ou sendo apagados pelo governo. Conforme explicita no ensaio utilizado como referência nesta aula, o autor africano assume duas bases conceituais para a conformação de sua análise: o debate sobre biopolítica de Michel Foucault (2005) e a discussão sobre estado de exceção em Giorgio Agamben (2007). Refletindo sobre o impacto do poder sobre os corpos, Mbembe (2018) resgata de Foucault (2007) a afirmação de que existiria um biopoder capaz de determinar a divisão dos indivíduos entre quem deve viver e quem deve morrer. Para o autor utilizado como embasamento teórico à discussão, a soberania política é responsável pela preservação da vida, então assume o direito sobre a vida dos cidadãos e, por consequência, sobre sua morte, o que significa que tais fenômenos naturais (biológicos) assumem caráter político desde o século XVIII – mesmo período em que os filósofos políticos contratualistas escreveram suas teorias sobre a existência de um contrato social para regular a vida em coletividade. Conforme Foucault (2007), até a primeira metade do século XVIII o corpo era visto sob a perspectiva individual, onde buscava-se discipliná-los por meio de um sistema de vigilância e hierarquias que manipulava, vigiava e regulava tais corpos. Na segunda metade daquele século, houve uma expansão das tecnologias de poder pensadas para os indivíduos enquanto espécie e não mais apenas como corpos, o que produziu a massificação da atenção dos corpos e fez emergir a biopolítica, conforme explica o autor: Highlight FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 81 um conjunto de processos como a proporção dos nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, etc. São esses processos de natalidade, de mortalidade, de longevidade que, justamente na segunda metade do século XVIII, juntamente com uma porção de problemas econômicos e políticos [...] constituíram, acho eu, os primeiros objetos de saber e os primeiros alvos de controle dessa biopolítica (FOUCAULT, 2005, p. 289-290). Assim, a biopolítica segrega os corpos saudáveis e os nocivos à melhor reprodução da espécie humana, sobrepondo características sociopolíticas às biológicas, reforçando a perspectiva etnocêntrica e elitista de que determinado grupo deve prevalecer em detrimento de outros, tanto que o autor afirma que o conceito de população se torna um “[…] problema político, como problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder [...]” (FOUCAULT, 2005, p. 293). Trata- se, portanto, da definição de governos que operam com previsões, classificações, estatísticas e taxas, impondo médias para “encompridar a vida” por meio da combinação entre disciplina do corpo, regulamentação e gestão da vida, por meio da norma. Essa gestão regulamentada da população ocorreria por seu reconhecimento para exercício do controle sobre as vidas, de modo a disciplinar e vigiar os classificados como “normais” e “anormais”, uma vez que a sociedade deveria tornar-se padronizada e essa normalização passaria por reduzir os “anormais”, sendo que a relação entre soberania, população e gestão governamental seria regida pelos dispositivos de segurança. Nesse sentido, a população é tratada pela técnica da “governamentalidade”, definida por Foucault (2008, p. 143-144) como [...] o conjunto constituído pelas instituições, os procedimentos, análises e reflexões, os cálculos e as táticas que permitem exercer essa forma bem específica, embora muito complexa, de poder que tem por alvo principal a população, por principal forma de saber a economia política e por instrumento técnico essencial os dispositivos de segurança. Em segundo lugar, por “governamentalidade” entendo a tendência, a linha de força que, em todo o Ocidente, não parou de conduzir, e desde há muito, para a preeminência desse tipo de poder que podemos chamar de “governo” sobre todos os outros - soberania, disciplina - e que trouxe, por um lado, o desenvolvimento de toda urna série de aparelhos específicos de governo [e, por outro lado], o desenvolvimento de toda uma série de saberes. Enfim, por “governamentalidade”, creio que se deveria entender o processo, ou antes, o resultado do processo pelo qual o Estado de justiça da Idade Média, que nos séculos XV e XVI se tornou o Estado administrativo, viu-se pouco a pouco “governamentalizado”. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 82 Isto posto, para Foucault (2007), a biopolítica da segunda metade do século XVIII alterou a noção de soberania sobre a vida dos indivíduos no sentido de que, se antes poderia se deixar morrer por omissão, depois passou a considerar-se em que vidas investir ou de quais cuidar. É uma maneira de compreender como o racismo estrutura muitas sociedades, tendo como exemplo máximo o nazismo alemão. Cabe destacar que a perspectiva racial reverberou também no Brasil, onde historicamente encontramos análises biologizantes como a de Nina Rodrigues (????) sobre os negros serem uma raça inferior, que precisaria ser “dissolvida” em meio à branquitude da população para o desenvolvimento nacional. Não foi apenas um constructo teórico, mas uma prática do governo imperial que buscou, com a imigração massiva de europeus, branquear o povo brasileiro, considerando que os europeus seriam uma raça superior aos negros e o desenvolvimento de nossa sociedade seria potencializado conforme tal branqueamento ocorresse. A crítica de Mbembe (2018) à visão foucaultiana consiste na maneira como o autor combina a defesa da vida da raça tida como predominante em combinação com o espaço secundário que a morte assumiria em tais sociedades, tomando o racismo como efeito colateral da preocupação com a vida. Daí o limite do eurocentrismo na análise. Para tentar superar tal limite, o filósofo camaronês buscou também embasamento em Agambem (2004), cuja definição inicial de estado de exceção é apresentada a partir do nazismo, ou seja, de uma organização política de governo reconhecida como expressão máxima da biopolítica. Para o autor italiano, A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora de relação com a norma; ao contrário, esta se mantémem relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão (AGAMBEN, 2007, p.25). Assim, temos no estado de exceção uma condição no interior do Estado, que se aplica a determinados grupos, não à totalidade da população, em que esses grupos são excluídos de uma norma ou regra geral no sentido de serem atendidos, mas continuam submetidos a ela. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 83 Trata-se, para Agambem (2007), do paradoxo da soberania: o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do estatuto jurídico, pois deve seguir as leis mas pode agir aquém da legalidade e ter seu ato legitimado se for considerada uma necessidade, uma demanda por exceção. Isso significa que no estado de exceção, a transgressão da lei e a exceção, ou o que viola a norma e a própria norma, coincidem. É o que autor determina como a vigência da lei sem significado: Dado que a vida sob uma lei que vigora sem significar assemelha- se à vida no estado de exceção, na qual o gesto mais inocente ou o menor esquecimento podem ter as consequências mais extremas. E é exatamente uma vida deste gênero, em que a lei é tão mais disseminada enquanto carente de qualquer conteúdo e na qual uma pancada distraidamente dada em uma porta desencadeia processos incontroláveis (AGAMBEN, 2007, p. 60). A questão se complexifica, contudo, quando observa-se que o estado de exceção tem se tornado regra para o governo de muitos Estados, ao que o autor afirma se tratar de um novo paradigma de governo na política contemporânea, uma transformação de medidas provisórias e excepcionais em um modo de governar que ameaça a estrutura constitucional e a própria democracia. Quando a lei para todos não se aplica a todos, tem-se uma contradição que fere a democracia e o preceito constitucional de igualdade entre os indivíduos. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/law-legal-enforcement-stop-sharing-bully-1964142079 Pensando sobre o caso brasileiro, temos a máxima constitucional de que todos são iguais perante a lei, porém assistimos diariamente a situações que demonstram como a regra não é cumprida: a ausência de direitos sociais básicos a pessoas que vivem em situação de rua, as lutas de pessoas com deficiência para inserção no mercado de trabalho, as demandas da população LGBTI+ pelo reconhecimento de https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/law-legal-enforcement-stop-sharing-bully-1964142079 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 84 direitos humanos previstos constitucionalmente, a recorrência de mortes de jovens negros e o preconceito racial recorrente etc. Esses públicos – em situação de rua, com alguma deficiência, LGBTI+ e negros – são exemplos de corpos que se encontram na condição de homo sacer, o que Agamben (2007) explica ser um tipo de indivíduo decorrente do direito romano arcaico que é caracterizado como um “ser matável”, que pode ser eliminado ou exterminado sem que seu assassino seja criminalizado ou penalizado. ISTO ACONTECE NA PRÁTICA Há mais de duas décadas, o Padre Julio Lancelotti, da Igreja Católica de São Paulo, enfrenta e denuncia as ações necropolíticas destinadas à exclusão da população em situação de rua no Brasil, desde aquelas explícitas, como violência física, até outras silenciosas, como colocar blocos de concretos intercalados em posição vertical (como pseudo-lanças) para que seja possível deitar-se embaixo de pontes, por exemplo. Por seu trabalho junto a esse público, o Padre recebeu o Prêmio Zilda Arns em 2021, concedido pela Câmara dos Deputados. Fonte: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/mesa/segunda-secretaria/servicos/premio-zilda-arns Tem-se, portanto, no homo sacer, uma vida que pode ser findada, cujo impacto da morte é menor, até mesmo justificável, por vezes sem ser considerada como um crime, então excluída do ordenamento jurídico. Mas trata-se de uma vida ambígua, no sentido de que não seria uma vida sacrificável, pois acreditava-se que eram vidas menos importantes, até mesmo não humanas, indignas de serem vividas e de serem retiradas dos indivíduos. Assim, não seriam pessoas que o Estado poderia matar deliberadamente e objetivamente, mas que poderiam ser excluídas da vida social e política, de modo que a ausência de direitos – o não o Estado – levasse sua existência ao fim. Aquilo que define a condição do homo sacer, então, não é tanto a pretensa ambivalência originada da sacralidade que lhe é inerente, quanto, sobretudo, o caráter particular da dupla exclusão em que se encontra preso e da violência à qual se encontra exposto. Esta violência - a morte insancionável que qualquer um pode cometer em relação a ele - não é classificável como sacrifício e nem como homicídio, nem como execução de uma condenação e nem como sacrilégio (AGAMBEN, 2007, p. 90). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 85 No estado de exceção, então, o homo sacer encontra-se em uma zona subtraída de direitos humanos, ocupando a zona da indiferença e do abandono, em que lhe é retirada a vigência da lei para, após viver aquém do Estado, seja novamente capturado por esse Estado, na condição de transgressor ou passível de punição legal ou simbólica. Assim, a inclusão se dá em decorrência da exclusão! E se você se perguntou “como assim?”, explico: àqueles que não cabem posições sociais de respeito e consideração como entes da sociedade, por quaisquer características que conformam suas identidades, cabe a condição de exclusão, de não serem contemplados ou atingidos por políticas públicas e direitos sociais. Contudo, quando esses indivíduos excluídos se rebelam contra o Estado e o enfrentam, questionam ou se organizam, tornam-se passíveis de punição, já que o governo busca sempre manter a ordem, de modo que ao serem submetidos a leis de punição aqueles excluídos são incluídos no Estado, pois ao se tornarem passíveis de punições legais têm algum tipo de reconhecimento dentro da norma. Wacquant (2003) denomina de “novo governo da miséria”, que surge na cena contemporânea, aquele que surge como reação do Estado ao crescimento de uma dita marginalidade, utilizado para escamotear os problemas sociais que ele mesmo cria, como “desemprego, sem-abrigo, criminalidade, drogas, juventude desocupada e enraivecida, exclusão escolar, dissolução familiar e social, etc.” (WACQUANT, 2008, p. 468). É o que Butler (2019) assevera ao corroborar que define-se a parcelas da população uma vida precária, de vulnerabilidade insuportável - pensada sob diversas perspectivas, como a fome, a ausência de condições básicas de saúde e higiene, acesso insuficiente à educação e outras políticas públicas, não reconhecimento de aspectos identitários como gênero e raça, por exemplo. Em suma, tem-se na biopolítica e no estado de exceção teorias que tratam da maneira como o Estado pode adotar estratégias que conduzam à morte social e política dos indivíduos. Essa noção é essencial para avançarmos na discussão sobre o conceito de necropolítica, tema de nossa próxima seção de estudos. 6.2 Necropolítica como prática de governo O conceito de necropolítica decorre do campo de estudos do pensamento pós- colonial, ao qual se filiam autores que produzem críticas ao modo eurocêntrico de produção de teorias e análises históricas, no sentido de que a história contada Highlight FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 86 a partir de visões de europeus tende a ser a história dos colonizadores, portanto desenvolvida sem uso da alteridade para com os colonizados, tanto que seria uma história em que a desumanidade e a diferença racial não tem o devido reconhecimento (MBEMBE, 2018). Para o filósofo, a necropolítica diz respeito às formascontemporâneas que subjugam a vida dos indivíduos ao poder da morte, sendo o conceito forjado a fim de [...] dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos-vivos” (MBEMBE, 2018, p. 71). A crítica do autor inicia por desconsiderar a razão como elemento central do poder soberano, o que evidencia ao expor que são irreais os pressupostos de que todos os indivíduos são livres e iguais para atuar na conformação de normas para o corpo coletivo e de que a política possibilitaria a autonomia dos corpos em coletividade por meio do seu reconhecimento, tanto que Mbembe (2018) chama tais pressupostos de “romance da soberania”, baseados em teorias que desconsideram as desigualdades presentes na política. Para o autor, a política é, em verdade, um campo onde a igualdade é negada e a razão e a soberania são utilizadas para eliminação de determinados corpos e grupos sociais. Assim, trata o Estado como um ser social que produz um mundo onde se mata e deixa morrer, seja pela eliminação ou pelo desejo de extermínio. A soberania de um país, então, consistiria “no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer [...]. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais” (MBEMBE, 2018, p. 5). Assim, a soberania consistiria no controle sobre a vida e a morte, não um lócus de razão, mas de guerra, em que o direito de matar seria meio para atingir a soberania política. Considerando as noções de biopolítica e de estado de exceção que fundamentam seu pensamento – e que foram anteriormente expressas nesta aula -, o autor expõe uma série de questionamentos: FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 87 Mas sob quais condições práticas se exerce o poder de matar, deixar viver ou expor à morte? Quem é o sujeito dessa lei? O que a implementação de tal direito nos diz sobre a pessoa que é, portanto, condenada à morte e sobre a relação de que opõe essa pessoa a seu ou sua assassino/a? Essa noção de biopoder é suficiente para contabilizar as formas contemporâneas em que o político, por meio da guerra, da resistência ou da luta contra o terror, faz do assassinato do inimigo seu objetivo primeiro e absoluto? A guerra, afinal, é tanto meio de alcançar a soberania como uma forma de exercer o direito de matar. Se consideramos a política uma forma de guerra, devemos perguntar: que lugar é dado à vida, à morte e ao corpo humano (em especial o corpo ferido ou massacrado)? Como eles estão inscritos na ordem do poder? (MBEMBE, 2018, p. 6-7). Isto posto, Mbembe (2018) se dedica a buscar justificativas e critérios para compreender como são determinados quais corpos podem viver e quais devem morrer, quais devem ser protegidos e quais podem ser expostos. É nesse sentido que as dimensões da biopolítica e do estado de exceção se colocam em diálogo com o pensamento pós-colonial, pois o filósofo afirma que todos os relatos históricos que remetem ao terror na modernidade tratam de escravidão, seja nas colônias ou nos campos de concentração, por exemplo, pois refletem em ausência de lar, de direitos sobre o corpo e de estatuto político, ou seja, o subjulgamento de indivíduos a outros, que ocupam postos políticos de mando. Nessas situações, assim como no caso do apartheid na África do Sul, a raça é parâmetro para o estabelecimento burocrático entre o correto, civilizado, aceitável e o “outro”, tanto que o autor afirma que a necropolítica objetiva provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, que não se restringem apenas à morte física (do corpo), mas também à morte simbólica, desses indivíduos em seu caráter de oportunidades, de convívio, de existência na sociedade. Essa perspectiva de tornar possível a morte física e/ou simbólica de corpos tem no Estado o principal agente agressor, seja porque atua de diferentes maneiras contra esses corpos ou porque não reprime quem o faz e ainda busca silenciar ou minimizar as demandas e necessidades desses corpos. A percepção da existência do Outro como um atentado contra minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria meu potencial de vida e segurança, é este, penso eu, um dos muitos imaginários de soberania, característico tanto da primeira quanto da última modernidade (MBEMBE, 2018, p. 19-20). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 88 O silenciamento de corpos é uma estratégia necropolítica recorrente contra esses grupos sociais, ao que o filósofo concentra sua análise pensando as questões raciais decorrentes da escravidão mas podemos expandir para diversos marcadores sociais que tratamos na aula anterior como relacionados ao multiculturalismo, como sexo e gênero, idade, classe social e também etnia. Em diálogo com essa perspectiva de existência de um necropoder de governos que visam o apagamento de determinados grupos sociais, há diversos autores e estudos que também se dedicaram a compreender o diferente e a diferença nas sociedades. É o caso de Elias e Scotson (2000), que discutiram a inferiorização de um grupo por outro em dada sociedade a partir das categorias analíticas de estabelecidos e outsiders, ou seja, aqueles considerados membros de determinado segmento social e os que estão à margem, não constituem o corpo social. A necropolítica baseia-se na perpetuação da discrepância entre “nós” e os “outros” a partir de características tomadas como “normais” ou “naturais” e aquelas consideradas errantes. É o caso, por exemplo e sem expectativa de generalização, de como mulheres são tratadas ao disputarem cargos políticos ou em empresas e ouvirem que “não é lugar de mulher” ou que “é preciso ter pulso firme, ser forte” ou de como a criação de cotas sociais e raciais para reparação histórica de práticas que negligenciam esses grupos são atacadas com argumentos de “favorecimento” ou frases como “esse tipo de política é que gera preconceito”. O mesmo vale para situações em que pessoas LGBTI+ lutam por direitos e ouvem que “não precisa ser tratado como diferente, o direito existe para todos” ou que pessoas em situação de rua que não aceitam as imposições de equipamentos públicos de assistência social que deveriam ser instituições de acolhimento são taxadas como “vagabundos”, que “não querem nada da vida, preferem ficar pedindo a ter alguma coisa”. Assim, de acordo com Mbembe (2018, p. 41), “a soberania é a capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é”, o que significa que o necropoder permite ao governo determinar quais corpos importam e quais são elimináveis ou podem ser deixados para morrer, bem como que condições de sobrevivência serão possíveis a esses corpos até que cumpram seu destino físico ou simbólico. O que seria o destino desses corpos então? Pensando nos mesmos marcadores sociais que foram expostos e problematizados na aula anterior, podemos mencionar a diferença salarial entre homens e mulheres e a sobrecarga de trabalho das mulheres FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 89 em atividades domésticas como ações que provocam sem silenciamento no sentido de que dificultam sua ascensão social e tiram-lhe parte do tempo que poderiam dedicar a outras atividades. Além disso, quando não conselhos de políticas públicas voltados à diversidade sexual e de gênero nos municípios, a possibilidade de que tal segmento populacional receba atendimento especializado com qualidade diminui, tanto por conta de constrangimentos na busca por atendimento (no caso de violência) quanto por despreparo do poder público (em situaçõesem que transgêneros buscam atendimento ginecológico), por exemplo. Ainda em se tratando de diálogos de outros pensadores com a necropolítica, o próprio Mbembe (2018) estabelece diálogo com a reflexão de Bauman sobre a vida líquida na contemporaneidade. Enquanto para o segundo a pós-modernidade é caracterizada pela fragilidade das relações sociais e a ausência de preocupação com o outro, o primeiro afirma que o necropoder utiliza-se de uma estratégia de guerra para dissipar a vida do outro, pois busca aniquilar sua garantia de sobrevivência, ou seja, não bastaria não estabelecer direitos específicos para determinados grupos sociais, mas também é preciso minar as condições básicas de manutenção desses direitos. Considerado debate sobre a crise ou morte das democracias, é essa a lógica de governos que buscam reduzir os direitos de minorias e as condições de sobrevivência da classe trabalhadora, ao que se filia também as propostas e ações governamentais que buscam reduzir os espaços de participação, deliberação e representação de interesses sociais no âmbito de discussões sobre políticas públicas. Diante de tais considerações, cabem duas observações importantes para a reflexão no âmbito desta disciplina. A primeira diz respeito ao que Mbembe (2018) denomina como “gestão das multitudes”, uma forma governamental que consiste no uso de tecnologias trágicas e extremas, empregadas para imobilizar, dispersar categorias inteiras de indivíduos. O autor toma as populações como categoria política, as quais são massacradas e têm seus sobreviventes encurralados em campos e zonas de exceção, que hoje não são campos de concentração, mas se materializam em bairros e comunidades afastadas em regiões periféricas e com pouca infraestrutura social ou em favelas e aglomerações urbanas sem condições mínimas de habitação segura. A prática de afastamento ou exclusão, inclusive, não deve ser velada ou encoberta, mas ocorrer à luz de toda a sociedade, para que seja nítido a todos como a diferenciação entre os grupos sociais tem impactos sobre sua vida – e potencial morte social. É nesse sentido que Mbembe (2018, p. 61) assevera que o necropoder sobre os corpos FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 90 está interessado em massacrá-los, não em discipliná-los, de modo que aqueles que não são eliminados passam a viver em um mundo de morte: Os vestígios dessa cirurgia demiúrgica persistem por um longo tempo, sob a forma de configurações humanas vivas, mas cuja integridade física foi substituída por pedaços, fragmentos, dobras, até mesmo imensas feridas difíceis de fechar. Sua função é manter diante dos olhos da vítima - e das pessoas ao seu redor - o espetáculo mórbido do ocorrido. A segunda observação diz respeito a como o caso nacional é, hoje, reflexo de nossa herança colonial. A necropolítica, pensada inicialmente para o contexto de países africanos, antes também colônias, pode ser estendida a diversos outros países que estão na periferia do capitalismo, ou seja, que não são os grandes expoentes da economia mundial, como é o caso do Brasil (HILÁRIO, 2016). O passado brasileiro foi de exploração da mão-de-obra escrava nas plantações e, com a Lei Áurea em 1888, de abandono desses indivíduos à própria sorte, uma vez que a monarquia brasileira havia trazido imigrantes portugueses e de outras nações europeias para trabalhar no Brasil algumas décadas antes e os ex-escravos não foram incorporados nas produções fabris nas cidades, bem como perderam espaço e tiveram condições praticamente análogas à escravidão quando permaneceram no campo. Conforme elucida Fernandes (1978), não houve uma incorporação dos negros na sociedade de classes no Brasil, mas, ao contrário, foi-lhes relegada a condição de segregação social, racial e espacial, pois aqueles que permaneceram nas cidades receberam os trabalhos mais pesados em termos de exigência de força física e/ou com menor remuneração, sem qualquer reconhecimento, tendo que viverem longe dos centros urbanos em espaços sem condições mínimas de sobrevivência, expostos a fuligens, ruídos e água e solo contaminados, sem acesso a saúde, educação e habitação com alguma qualidade. Não por acaso, dentre aqueles que vivem em favelas e periferias, que têm menor escolaridade, que até hoje trabalham em profissões braçais ou vivem em situação de rua, mendicância ou criminalidade, a maioria é de negros ou pardos. E quando tais informações são utilizadas pelo conhecimento de senso comum, não raras vezes é com intuito preconceituoso e de reforçar a discriminação, ou seja, fazendo valer as condições históricas de segregação como argumento para manter ou reforçar essa FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 91 diferenciação, que consiste no afastamento físico e no silenciamento simbólico dessa parcela da população. Ao longo das próximas aulas trataremos de direitos humanos e abordaremos diversos direitos sociais voltados a grupos, contudo cabe, para concluirmos essa aula, refletirmos sobre como a necropolítica opera em sentido prático, para o que lhe convido a pensar sobre a população em situação de rua. Trata-se de um contingente populacional cujo silenciamento e apagamento na sociedade são evidentes. Ao longo da história, há registros de pessoas em tal situação desde a Grécia antiga, sendo que ao longo dos séculos foi sendo alterada a perspectiva social: por muitos séculos, quem vivia na rua era tratado pela Igreja como os necessitados, para quem a burguesia realizava doações e ações sociais, numa tentativa de fazer o bem com vistas a garantir “o seu lugar no céu”; com a valorização do trabalho pós-Revolução Industrial, quem vivia na rua passou a ser visto como vagabundo, como quem não queria trabalhar; no caso brasileiro temos desde as últimas décadas do século passado a visão de que se trata de pessoas que vivem em condição de vagabundagem e drogadição; e, ainda, o crescimento de situações de repressão, invisibilidade e violência física e simbólica (CASINI, 2021). Esse grupo, que deixou de ser tratado como “moradores de rua” e recebeu a alcunha de “pessoas em situação em rua” apenas no fim da primeira década deste século, só começou a receber atenção do Estado brasileiro em 2009, ano em que foi aprovada a política nacional para a população em situação de rua, implantados consultórios móveis para atendimento desse grupo e também a mendicância deixou de ser considerada como crime. Nos anos seguintes, houve implantação de centros específicos para seu atendimento (os Centros POP) em 2010, a determinação de atendimento no Sistema Único de Saúde mesmo sem documentos em 2011, a expansão do financiamento para criação de Centros POP em 2012, o cofinanciamento do Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS) e para a modalidade de acolhimento em repúblicas em 2013 e a revisão da tipificação dos serviços socioassistenciais em 2014 (CASINI; GIMENES, 2021). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 92 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/homeless-man-beggar-living-on-sidewalk-2022717635 Entretanto, esses múltiplos avanços no atendimento a essa população não findaram com os casos de violência ou romperam com o estigma social a que o grupo é submetido, o que foi reforçado pela ausência de investimento público nessa política a partir de 2015 e potencializado com a pandemia do Covid-19, quando esse contingente populacional não dispunha de recursos básicos para a manutenção da higiene e equipamentos de proteção e distanciamento, já que o slogan “fique em casa” não se aplicava àqueles que não têm onde morar e a quem, em tal contexto, o Estado demorou a lançar olhares e políticas emergenciais (MOREIRA, 2021). Se a população em situação de rua encontra-se aquém dos direitos sociais básicos e dos direitos humanos, cabe-nos compreender como a questão dos direitos é basilar à formaçãosócio-cultural e ética de uma sociedade. A partir da próxima aula, esta será a nossa discussão! https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/homeless-man-beggar-living-on-sidewalk-2022717635 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 93 CAPÍTULO 7 DIREITOS HUMANOS Caro(a) acadêmico(a), nesta aula que trata sobre direitos humanos inauguramos um terceiro bloco de discussões, as quais encontram-se intimamente relacionadas com os debates estabelecidos em aulas anteriores, mas têm como foco a questão dos direitos enquanto chave analítica para compreender aspectos de formação sócio- cultural e ética. Assim, a sétima aula desta disciplina trata justamente dos direitos enquanto ampla norma social pactuada pelos Estado nacionais, o que significa que nossa abordagem tratará de um tema que fazer parte da vida social e política de todos os países, seja em menor ou maior medida, seja por seguirem as diretrizes internacionais ou não. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/human-rights-vector-illustration-flat-tiny-1271932024 Para tanto, na primeira seção da aula é realizado um panorama histórico do desenvolvimento dos direitos humanos ao longo do tempo, com explanação sobre as gerações desses direitos até a atualidade. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/human-rights-vector-illustration-flat-tiny-1271932024 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 94 Já na segunda seção, tratamos dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), um conjunto de diretrizes que engloba direitos humanos e outros aspectos da vida social e política, especificamente questões de natureza econômica e ambiental. 7.1 História das gerações dos direitos humanos O debate sobre direitos humanos conforma as sociedades desde muitos séculos, mas se tornou relevante especialmente a partir dos últimos séculos do milênio passado. Até o século XVII, a preocupação com direitos individuais encontrava pouca ressonância para além da Filosofia, de modo que somente no contexto de mudanças sócio-políticas na Europa começou a se discutir de modo político a existência, a necessidade e a amplitude de direitos humanos. Trata-se de um tema importante tanto para compreendermos como aspectos de ordem social, cultural e de valores éticos se arranjam nas sociedades ao longo do tempo quanto para dimensionarmos em que medida os regimes políticos contemporâneos se aproximam ou distanciam da perspectiva de direitos humanos globalmente pactuada. Nesses termos, adianto que países onde os direitos humanos são mais respeitados tendem a aproximar-se do modelo multiculturalista de democracia, ao passo que nações em que os direitos humanos são menos evocados ou relegados a poucos grupos – e excluem parcelas da população – se aproximam de governos que fazem uso da necropolítica como estratégia de controle do Estado. De modo geral, os direitos humanos são definidos como direitos comuns a todos os indivíduos que se encontram inseridos em uma sociedade. Dado o caráter atual da vida social e dos Estados nacionais, significa dizer que os direitos humanos devem ser pactuados no âmbito de cada país e também assumem caráter global. Então, dizem respeito a aspectos que conformam a política, pensada especialmente sob a perspectiva de que é no espaço local, no dia-a-dia das municipalidades, que a política de fato se manifesta – positiva e/ou negativamente – na vida dos indivíduos (WAMPLER, 2010). Conforme autores como Bobbio (2004) e Hunt (2009), os direitos humanos se caracterizam por serem naturais, iguais e universais: naturais enquanto inerentes a todos os indivíduos, iguais por serem expansivos a todos e universais considerando que são aplicáveis a todos. Em outras palavras, os direitos humanos referem-se aos direitos fundamentais de todos os indivíduos, o que significa que se trata do conjunto FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 95 de direitos sem os quais uma pessoa não poderia se desenvolver e participar da vida em sociedade. Alguns estudantes, assim como quaisquer pessoas em qualquer espaço, podem pensar o seguinte: “se os direitos humanos são tão fundamentais assim, então todos os temos”, certo? Não necessariamente, pois mesmo o direito à vida só existe se reconhecido ou legitimado. Você se lembra quando tratamos sobre valores morais e éticos e como a política e a justiça têm relação com tais valores? Priori e Kischener (2019) afirmam que o direito a vida é considerado como primeiro direito humano, do qual decorrem todos os demais, relacionados a aspectos como alimentação, saúde, moradia, educação, liberdade e dignidade, por exemplo. Contudo, “[...] para que esses direitos se tornem direitos fundamentais, eles devem ser reconhecidos como tais pelos Estados e no plano internacional” (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 10). Nesse sentido, é importante expor que ao longo da história houve distintas interpretações sobre o que são direitos humanos. A primeira menção ao termo encontra- se associada à Bill os Rights, uma declaração de direitos forjada na Inglaterra no fim do século XVII, após a deposição do Rei Jaime II (católico) e com a ascensão do príncipe Guilherme de Orange e Maria de Stuart (protestantes) ao poder monárquico, no processo histórico que ficou conhecido como Revolução Gloriosa. Ainda que não houvesse naquele documento a preocupação ampla com direitos individuais, tratou-se de uma declaração de direitos que considerou a existência de direitos fundamentais. No século XVIII, antes mesmo das grandes revoluções que abordamos anteriormente, a declaração de independência dos Estados Unidos da América expôs, em 1776, a consideração de que todos os homens são iguais e possuem como direitos inalienáveis a vida, a liberdade e ser felizes. Poucas décadas depois, no contexto da Revolução Francesa (1789), foi publicada a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, que se tornou uma referência ao delimitar em seu artigo primeiro que os homens nascem livres e devem assim permanecer, sendo todos iguais em direitos com relação à liberdade, à propriedade, à segurança e à resistência à opressão. [...] a declaração instituiu o que no futuro conheceremos como Estado de direito, ou seja, uma organização política em que os governantes não criam o direito para justificar o seu poder, mas para submeter-se às normas e aos princípios editados por uma autoridade superior, geralmente, a Constituição (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 12). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 96 Esse período histórico de conformação do estabelecimento de direitos civis e políticos relacionados às liberdades (no plural) ficou conhecido como primeira geração de direitos humanos. Entretanto, cabe uma ressalva a tal conjuntura histórica: a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão foi amplamente criticada por Marx (1983), que entendia que a garantia da propriedade e da segurança eram direcionadas aos detentores de posses e à manutenção de sua condição, de modo que somente com a extirpação da propriedade privada é que seria possível garantir amplos direitos humanos com vistas à igualdade entre os indivíduos. Isso significa que desde a conformação das bases da primeira geração de direitos humanos já havia distinção entre a elite política e econômica e a massa de trabalhadores que constituem a maior parcela das populações. Comparato (2015), diferentemente de Marx, destaca que a referida Declaração oportunizou a materialização de direitos por conta do ideário da Revolução Francesa. Conforme o autor, para além das discussões e preocupação com liberdade e igualdade, a questão da fraternidade foi materializada por meio de ações de solidariedade, que teria proporcionado conhecermos direitos humanos como direitos sociais, os quais devem ser garantidos à população pelo Estado, com vistas à proteção social dos mais pobres emtodo o mundo. Ainda que, em sentido prático, esses valores e a perspectiva de solidariedade como valor social não tenham dizimado as desigualdades sociais ao redor do mundo, trata-se de importante avanço à época, especialmente porque boa parte do que hoje são países da América, África e Oceania e também alguns asiáticos eram domínios europeus, portanto sem condições de dignidade e acesso aos direitos humanos como conhecemos. A preocupação mais ampla com a ampliação efetiva dos direitos humanos a grandes contingentes da população só ocorreu após a Segunda Guerra Mundial, que deixou muitos países destruídos, povos assolados com a crueldade e as atrocidades do nazismo alemão, do fascismo italiano e também, por outro lado, com o medo diante do impacto das bombas nucleares estadunidenses. Era necessário pensar caminhos globais para garantir que uma nova catástrofe de proporção mundial não ocorresse, sendo o caminho estabelecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) e de diálogo entre os países, a fim de conformarem um documento único em defesa dos direitos humanos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 97 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/geneva-switzerland-5-apr-2019-exterior-1551232529 Assim, em 10 de dezembro de 1948, foi assinada por praticamente todos os países a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), à exceção de União Soviética, Ucrânia, Tchecoslováquia, Polônia e Iugoslávia (países comunistas naquele período) e também Arábia Saudita e África do Sul. Em seu preâmbulo, a referida Declaração destacava a igualdade e a impossibilidade de alienação de direitos como liberdade, justiça e paz. Já nos artigos iniciais, a DUDH destaca que todos os homens nascem livres e em igualdade em termos de direitos e de dignidade, independentemente de distinções como raça, cor, sexo, língua, religião, origem, classe social, opinião ou outra condição. Assim, a segunda geração de direitos humanos ampliou os direitos civis, somando-os a direitos sociais, relacionados ao trabalho, educação, saúde, habitação, cultura, lazer e segurança. Apesar de ampla e construída em um momento delicado da relação entre os países, a DUDH não foi suficiente para que os direitos humanos passassem a ser respeitados, tanto que em menos de duas décadas a ONU buscou a da aprovação de dois tratados com detalhamentos de aspectos constantes na Declaração. Assim, em 1966 foram assinados o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/geneva-switzerland-5-apr-2019-exterior-1551232529 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 98 A aprovação de dois pactos, ao invés de um amplo e geral, tem uma justificativa histórica. As grandes potências ocidentais defendiam apenas o reconhecimento das liberdades individuais clássicas, tais como a proteção da pessoa humana contra abusos e interferência do Estado na vida privada. Já os países socialistas e as jovens nações africanas defendiam que o foco deveria ser nos direitos sociais e econômicos, cujo objetivo era adotar políticas públicas de apoio aos grupos ou classes menos favorecidas. No entrecruzamento dessas divergências, os dois lados saíram vitoriosos com a publicação de dois pactos (PRIORI; KISCHENER, 2019, p. 16). Merece destaque o fato de que a ONU encampa a busca pela efetivação de direitos humanos desde a criação da DUDH, tanto que ao longo dos anos foram muitos os organismos internacionais e independentes para monitorar a implementação de mecanismos e dispositivos garantidores dos direitos humanos nos países, dentre os quais destacam-se o Comitê para Eliminação da Discriminação Racial (criado em 1965), Comitê de Direitos Humanos (em 1966), o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (também em 1966), o Comitê para Eliminação da Discriminação contra Mulheres (em 1979), o Comitê contra a Tortura (em 1984), o Comitê para os Direitos da Criança (em 1989), o Comitê para Trabalhadores Migrantes (1990) e o Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (em 2007). No fim do século passado, a ampliação das preocupações globais com temas para além de direitos civis e sociais levou ao surgimento de uma terceira geração de direitos humanos, considerados direitos difusos por serem coletivos, como a promoção da paz e do desenvolvimento em geral, a comunicação e a proteção ao meio ambiente, aos povos e aos patrimônios cultural e histórico da humanidade. E ainda no fim do século XX estabeleceram-se os direitos humanos de quarta geração, onde se enquadra a defesa de grupos historicamente inferiorizados em termos de direitos, as minorias. Em decorrência da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (Áustria) em 1993, a ONU reafirmou direitos anteriormente consagrados e destacou o enfrentamento a problemas como violência de gênero, preconceito contra etnias, deficientes, indígenas e migrantes (RABENHORST, 2016). Ademais, como destacam Priori e Kischener (2019), o documento de Viena destacou três temas fundamentais, especialmente aos mais vulneráveis: o investimento em políticas públicas para enfrentamento da pobreza e da exclusão social, o combate à tortura em suas FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 99 múltiplas faces e a necessidade de incluir nos conteúdos escolares o debate sobre direitos humanos. ISTO ESTÁ NA REDE “O Pacto Global advoga Dez Princípios universais, derivados da Declaração Universal de Direitos Humanos, da Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho, da Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento e da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção. As organizações que passam a fazer parte do Pacto Global comprometem-se a seguir esses princípios no dia a dia de suas operações”. Fonte: https://www.pactoglobal.org.br/10-principios No Brasil, os direitos humanos se desenvolveram entre avanços e retrocessos. A Constituição do período monárquico (1824-1889) contemplou os direitos de liberdade, segurança e proteção da propriedade privada, aos moldes da primeira geração de direitos humanos calcada na Revolução Francesa. Contudo, apesar de haver garantia de direitos a todos os cidadãos, a Constituição limitava tal categoria a homens, libertos e nascidos no Brasil ou naturalizados, sendo que mesmo entre esses o voto era ainda mais restritivo, pois havia critério de renda mínima para ser considerado eleitor. Após tornar-se república, a Constituição promulgada em 1891 reduziu os direitos humanos por conta do impacto negativo da legislação sobre políticas sociais: a educação primária deixou de ser obrigação do Estado, a assistência social não deveria mais ser promovida e à regulamentação do trabalho não caberia interferência do poder público. Com relação ao último aspecto, os movimentos operários enfrentaram fortemente o governo com relação à estipulação de direitos trabalhistas, especialmente nas duas primeiras décadas do século XX, com destaque às greves em torno de 1910. Após o Brasil assinar o Tratado de Versalhes e ingressar na Organização Internacional do Trabalho (OIT), na virada para a década de 1920, houve algum avanço em termos de direitos trabalhistas, mas a pressão operária continuou expressiva até a aprovação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), cujos direitos persistem até os dias atuais, como a regulamentação de descanso semanal remunerado, décimo-terceiro salário, limite de carga horária de trabalho diário e outros aspectos. Contudo, a CLT foi, naquele período, uma política restritiva por dois aspectos, um direto e outro indireto. De maneira direta, seus benefícios não contemplaram todos os FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 100 trabalhadores, sendoque aqueles que atuavam na zona rural ou no âmbito doméstico não foram considerados. Já indiretamente, o reconhecimento profissional foi atrelado à cidadania para acesso a políticas públicas, o que ocorria por via sindical, sendo que o governo determinava quais sindicatos teriam suas profissões consideradas a partir da pressão (ou melhor, sua ausência) com relação às ações públicas. Em outras palavras, a cidadania foi regulada pelo interesse do governo em enfraquecer sindicatos para reduzir a pressão popular e a oposição à sua atuação (SANTOS, 1979). Porém, foi o período militar que mais contribuiu negativamente aos direitos humanos no Brasil. A partir da tomada do poder em 1964, os direitos civis e políticos dos brasileiros foram reduzidos e tornaram-se expressivas ações ditatoriais, como o fechamento do Congresso Nacional, a repressão aos movimentos sociais, os exílios e assassinatos de inimigos políticos e a extinção dos partidos políticos existentes até aquele momento. A repressão teve um efeito reverso entre a população, abordado anteriormente: a mobilização social e fortalecimento de movimentos sociais pela redemocratização. Conforme Priori e Kischener (2019, p. 21), “a Constituição de 1988 é o documento mais importante e significativo existente no Brasil sobre direitos humanos”, pois trata dos direitos à vida, à liberdade, à igualdade à segurança e à propriedade como inalienáveis ou invioláveis. Ademais, o texto constitucional em vigor destaca a proibição da tortura e permite a liberdade de manifestação de pensamento, de expressão artística e cultural, de manifestação de religião, de organização pública e de circulação. Ademais, cabe salientar que em 1996 foi lançado o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH), que reconheceu os direitos dos indivíduos em situação de vulnerabilidade social e as mortes de desaparecidos durante a ditadura militar. Em 2002, foi publicado o PNDH II, que expandiu os direitos humanos amplos defendidos na Constituição a minorias como mulheres, indígenas, negros, homossexuais, refugiados, ciganos e deficientes, por exemplo. Tal plano foi ampliado em 2010, quando o PNDH III fortaleceu os objetivos de atenção aos direitos humanos ao determinar os órgãos responsáveis pela implementação de políticas públicas em atendimento às demandas no campo dos direitos humanos no Brasil. 7.2 Os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável Considerando o avanço dos direitos humanos em suas gerações e a conjuntura global que denota atenção à questão ambiental, na 70ª Sessão da Assembleia Geral FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 101 das Nações Unidas, realizada em 2015, reunirm-se chefes de Estado e de governo, representantes da própria ONU e da sociedade civil para discutir os avanços necessários e os entraves à DUDH, no sentido de identificar os pontos negativos e determinar estratégias para sua superação, com vistas a garantir que os direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais dos indivíduos sejam respeitados em todo o mundo. Isto posto, o resultado foi a proposição de um conjunto de indicadores e ações a serem adotados mundialmente para garantir, de modo amplo, a atenção aos direitos humanos de modo direito e indireto. Daí decorreu o estabelecimento de uma lista de compromissos que se configurou como uma agenda global de desenvolvimento de metas, a “Agenda 2030”. O principal destaque da “Agenda 2030” são os ODS, dezessete indicadores norteadores das ações a serem implementadas, quais sejam: 1. Erradicação da pobreza; 2. Fome zero e agricultura sustentável; 3. Saúde e bem-estar; 4. Educação de qualidade; 5. Igualdade de gênero; 6. Água potável e saneamento; 7. Energia limpa e sustentável; 8. Trabalho decente e crescimento econômico; 9. Indústria, inovação e infraestrutura; 10. Redução das desigualdades; 11. Cidades e comunidades sustentáveis; 12. Consumo e produção responsáveis; 13. Ação contra a mudança global do clima; 14. Vida na água; 15. Vida terrestre; 16. Paz, justiça e instituições eficazes; 17. Parcerias e meios de implementação. Conforme o documento da ONU, há duas maneiras de classificar esse conjunto de ODS: por dimensões ou pela natureza dos direitos humanos a ser garantidos. Com relação às dimensões, a própria plataforma da “Agenda 2030” apresenta um esquema FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 102 sobre a configuração dos objetivos distribuídos entre os eixos biosfera, sociedade e economia, conforme exposto a seguir. Figura 1 - Distribuição dos ODS por eixos Fonte: http://www.agenda2030.com.br/os_ods/. Trata-se de uma distribuição dos ODS que permite verificar que a maioria dos objetivos estão vinculados à sociedade, o que decorre da preocupação direta desses objetivos com os direitos humanos, porém é pertinente destacar que o desenvolvimento social deve ocorrer combinado com a preservação da natureza e com a preocupação com questões de natureza econômica - daí o eixo sociedade estar entre biosfera e economia, demonstrando a relação entre eles. Ademais, o tamanho conferido a cada eixo demonstra o quão grande e desafiador é tratar de cada temática, com destaque às questões de ordem ambiental. Por fim, ainda com relação à imagem, destaca-se o objetivo 17 no topo e separado dos demais, uma vez que trata dos mecanismos para a consecução dos ODS em geral. O ODS 1 é “Erradicação da pobreza” e busca, de modo geral, acabar com a pobreza em todas as manifestações e em todo o planeta. Para tanto, há metas destinadas ao combate da pobreza extrema e ao estímulo aos governos nacionais para implementação de medidas e sistemas de proteção social por meio de garantia de acesso a serviços FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 103 básicos e também da criação de marcos políticos que visem a destinação de investimentos públicos para a erradicação da pobreza nos níveis nacional, regional e internacional. O ODS 2, “Fome zero e agricultura sustentável”, é pautado por três preocupações, quais sejam: acabar com a fome, desenvolver a segurança alimentar com melhoria da nutrição e a promoção da agricultura sustentável. Para tanto, há metas voltadas ao enfrentamento da fome para extingui-la e também à desnutrição, bem como o foco em investimentos para aumento da produtividade agrícola e da renda dos pequenos produtores de alimentos com expansão de sistemas de produção de alimentos e de práticas agrícolas sustentáveis, para manutenção da diversidade genética de sementes e de animais de criação e domesticados e ainda para melhorias na infraestrutura rural e em pesquisas. Por fim, é preocupação da “Agenda 2030” a correção e prevenção de restrições ao comércio e de distorções no mercado agrícola mundial. O ODS 3 trata de “Saúde e bem-estar” e remete a dois focos: redução de mortes e cuidados com a vida. No primeiro foco encontram-se metas para mortalidade materna, mortes evitáveis de recém-nascidos e mortes prematuras por doenças não transmissíveis, bem como por acidentes em estradas e por produtos químicos ou contaminações. No segundo foco enquadram-se a ampliação dos serviços públicos de saúde, o enfrentamento a epidemias e ao abuso de substancias, bem como o apoio à pesquisa e ao desenvolvimento de vacinas e medicamentos e, de modo específico, o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva. O ODS 4, “Educação de qualidade”, é pautado pela preocupação com infraestrutura e formação educacional. Por um lado, há metas para construção e melhoria de instalações físicas para educação e qualificação de professores; por outro lado, visa-se garantir o fim do analfabetismo e o acesso e qualidade na primeira infância (educação pré-escolar), ensino primário e secundário e educação técnica e superior, com desenvolvimento de competências profissionais e do empreendedorismo e disponibilização de bolsas de estudos para países em desenvolvimento.Para atingir o ODS 5, que visa a “Igualdade de gênero”, deve-se buscar a eliminação de todas as formas de violência e discriminação contra as mulheres, inclusive com reconhecimento e valorização de atividades não remuneradas domésticas e de cuidado e por meio da garantia plena e efetiva de igualdade de oportunidades de liderança no âmbito empresarial, público e eletivo. Para tanto, é de responsabilidade dos governos FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 104 nacionais a adoção e o fortalecimento de políticas públicas garantidoras de direitos e promotoras de empoderamento das mulheres. O acesso universal e equitativo a água potável, saneamento e higiene compõem o ODS 6, “Água potável e saneamento”, pautado pela redução da poluição combinada com proteção e restauração de ecossistemas relacionados à água, gestão de recursos hídricos com aumento da eficiência do uso da água e fortalecimento da participação de comunidades locais em ações. Já ODS 7, de “Energia limpa e sustentável”, busca assegurar acesso universal e de qualidade a serviços de energia com preços acessíveis, bem como o investimento em infraestrutura para o desenvolvimento de serviços de energia modernos e sustentáveis e para pesquisas e implementação de tecnologias de energias limpas e renováveis, com vistas à melhoria da matriz energética global. O ODS 8 é “Trabalho decente e crescimento econômico” e se pauta pelo preocupação com crescimento econômico atrelado a maior produtividade combinada com menor utilização de recursos naturais e respeito ao trabalhador por meio de emprego pleno e decente, da extinção do trabalho forçado ou escravo e da proteção dos direitos trabalhistas. Ademais, há metas para o estímulo ao turismo sustentável e de atenção à empregabilidade de jovens. Com relação à “Indústria, inovação e infraestrutura”, o ODS 9 se caracteriza por ações que visam a construção de infraestruturas resistentes que permitam a industrialização inclusiva e sustentável, bem como fomentem a inovação. Para tanto, deve haver investimento público em pesquisa e desenvolvimento de tecnologias e atenção especial às pequenas indústrias de países em desenvolvimento. Para atingir a “Redução das desigualdades”, o ODS 10 estabeleceu como metas a busca por crescimento sustentável da renda da população mais pobre, o empoderamento e a inclusão social, econômica e política de todos, a extinção de leis, políticas e práticas discriminatórias e a adoção de políticas de proteção social ampla. Além disso, no âmbito internacional deve-se facilitar a migração e a mobilidade ordenada de indivíduos e garantir maior representação e voz aos países em desenvolvimentos nos fóruns e espaços de tomadas de decisão sobre políticas e instituições econômicas e financeiras globais. Em se tratando do ODS 11, “Cidades e comunidades sustentáveis”, a preocupação é tornar cidades e assentamentos mais seguros, inclusivos e sustentáveis. Para tanto, há metas que visam garantir acesso universal a habitação, sistema de transportes e FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 105 espaços públicos, com segurança, acessibilidade e preços acessíveis (se pertinente), considerando a salvaguarda dos patrimônios cultural e natural, a redução do impacto ambiental e a atenção à urbanização de favelas e outros assentamentos humanos. O ODS 12 de “Consumo e produção responsáveis” busca assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis por meio de ações como redução do desperdício de alimentos, incentivo a práticas empresariais sustentáveis, manejo ambiental saudável de produtos químicos e resíduos e racionalização do uso de combustíveis fosseis. De ordem ambiental, o ODS 13 visa a “Ação contra a mudança global do clima” e se pauta por metas relacionadas à educação e conscientização de indivíduos, organizações empresariais e instituições políticas sobre a necessidade de integração de planejamentos e medidas para combater a mudança climática e seus impactos, em caráter de urgência. Pautado pela “Vida na água”, o ODS 14 tem metas relacionadas à conservação e ao uso sustentável de oceanos, mares, costas e recursos marinhos, focado no desenvolvimento sustentável com preservação de ecossistemas, redução de poluição marinha, limites à pesca e busca por desenvolvimento de pesquisas e tecnologias concomitantemente ao respeito às normas de Direito Internacional. Por sua vez, o ODS 15 trata da “Vida terrestre” e remete a ações pertinentes à proteção, recuperação e uso sustentável de ecossistemas terrestres, de modo a cuidar de florestas e da biodiversidade e a combater a degradação da terra e sua desertificação. Para tanto, propõe-se ações de cunho político nacional e transnacional para conservação da natureza terrestre e combater a caça ilegal es espécies animais. O penúltimo objetivo, o ODS 16, remete à “Paz, justiça e instituições eficazes” trata de metas referentes ao enfrentamento de todas as formas de violência (e consequentes taxas de mortalidade) e de corrupção, bem como do desenvolvimento de instituições eficazes e transparentes, que promovam o estado de Direito e a participação cidadã na tomada de decisões. Concluindo os objetivos da ONU, o ODS 17 de “Parcerias e meios de implementação” visa fortalecer os mecanismos para implementação e revitalização de parcerias em nível global, com vistas ao desenvolvimento sustentável. Para tanto, há metas que perpassam eixos de finanças, tecnologia, capacitação, comércio, questões sistêmicas, parcerias multissetoriais, monitoramento de dados e prestação de contas. De modo geral, a expectativa é de estímulo à cooperação entre países. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 106 A outra maneira de classificar os ODS é com relação à natureza dos direitos humanos contemplados ou norteadores de cada indicador. Nesse sentido, o documento oficial do Ministério dos Direitos Humanos (BRASIL, 2016) delimitou quatro eixos de direitos humanos, nos quais distribui os dezesseis primeiros ODS, conforme segue: os objetivos 8, 10, e 16 dizem respeito aos direitos civis; (primeira geração) os ODS 1, 2, 3 e 4 referem-se a direitos econômicos, sociais e culturais (segunda geração); os direitos de solidariedade estão expressos nos objetivos 5, 6, 7, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15 (terceira geração); e o ODS 5 trata de direitos políticos (quarta geração). Perceba-se que alguns ODS estão atrelados a mais de um direito e a ausência de classificação do objetivo 17, por ser amplo e geral, de modo a não relacionar-se especificamente a nenhum tipo de direitos. Ainda que o ODS 17 não seja classificado pelo Governo Federal junto aos demais objetivos, no documento do Ministério dos Direitos Humanos - que foi redimensionado como Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos em 2019 com o início do mandato do Presidente Jair Bolsonaro - constou a responsabilização do poder público com relação aos indicadores propostos e também a sinalização de que é imprescindível o envolvimento das empresas (setor privado) e da sociedade para que o Brasil consiga atingir todos os objetivos propostos pela ONU e pactuados por nossos governantes. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 107 CAPÍTULO 8 SEXO, GÊNERO E SEXUALIDADE Caro(a) acadêmico(a), nesta aula iniciamos a discussão mais aprofundada sobre direitos humanos que conformam, também, direitos sociais e marcadores sociais relevantes à vida em sociedade, especialmente no regime democrático. Como esse recorte detalhado persistirá também em algumas de nossas próximas aulas, nesse oitavo encontro nos dedicamos às questões que tangenciam sexo, gênero e sexualidade, sem dúvida um grande tabu no campo de discussões sobre direitos humanos, cujo conhecimento é importante à sua formação como profissional e também em termos de cidadania. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/gender-equality-concept-female-male-sign-1708707880Na primeira seção desta aula nos dedicamos a compreender os conceitos de sexo, gênero e de sexualidade, bem como a perspectiva histórica de determinação de espaços, possibilidades e condições sociais que permeiam essas categorias. Em seguida, nosso foco recai sobre aspectos práticos relacionados aos direitos humanos nesta seara, para o que dialogamos sobre as demandas por políticas públicas e fragilidades no enfrentamento de situações que minimizam ou mesmo desconsideram os direitos de parte da população. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/gender-equality-concept-female-male-sign-1708707880 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 108 8.1 Conceitos e perspectivas sociais de gênero e sexualidade Discutir sobre gênero e sexualidade implica abrir espaço para um debate público que carece de conhecimento e informação, de modo a abandonarmos visões pré- estabelecidas ou pré-conceitos conformados por cosmovisões de mundo que são afetadas por aspectos políticos, culturais ou religiosos que não permitem com que enxerguemos os demais indivíduos como iguais. Assim, o primeiro passo para que esta aula seja proveitosa é introjetarmos a necessidade de nos desligarmos de conhecimentos do senso comum ou fundamentados em saberes diferentes do acadêmico, uma vez que encontramo-nos em espaço de construção de reflexões sobre a vida em sociedade, a fim de compreendermos como aspectos de ordem sócio-cultural e ética se manifestam no cotidiano, podem impactar e são impactados por nossas ações e omissões. Cabe-nos iniciar tratando da definição de gênero, a qual Joan Scott (1995) afirma ser um elemento constitutivo das relações sociais fundadas em diferenças percebidas em entre os sexos, com a finalidade de oferecer “atalhos” para a generalização de significados sobre espaços de atuação, capacidades e papeis sociais passíveis de atribuição. Isso significa que, na contemporaneidade, discutir questões de gênero implica pensarmos sobre as determinações que representam grupos com características que os identificam, unem ou generalizam em relação ao sexo, à identidade de gênero e à orientação sexual. Cabe-nos, portanto, conhecer essas três categorias para, em seguida, conhecer a problematização que envolve o tema. Para tanto, expomos uma imagem didática elaborada para a abordagem em cursos de formação de professores. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 109 Figura 1 - Sexo, identidade de gênero e orientação sexual Fonte: Reis (2018, online). Disponível em <http://petpedagogia.ufba.br/importancia-das-discussoes-de-genero-e-sexualidade-no-ambiente-escolar>. Acesso em 17 fev. 2022. A imagem acima sintetiza as tês categorias analíticas que dizem respeito ao debate desta aula: sexo, identidade de gênero e orientação sexual. Observando a parte inferior da figura, é perceptível que o sexo diz respeito à categoria analítica mais simples deste conjunto, pois remete à características biológicas de cada indivíduo, conhecidas antes mesmo de seu nascimento. Isso significa que quando nascemos, somos apenas homem ou mulher a partir do registro sobre o nosso sexo, identificado por nossas genitálias e cromossomos. Em termos biológicos, o correto é dizermos que somos do sexo masculino ou do sexo feminino, apenas, sem utilizar os termos homem ou mulher. Contudo, ao longo da vida os indivíduos podem manifestar diferentes orientações com relação à sua sexualidade, de modo que podem seguir ou não o parâmetro social esperado pela perspectiva normativa conservadora, ou seja, as pessoas podem se ver http://petpedagogia.ufba.br/importancia-das-discussoes-de-genero-e-sexualidade-no-ambiente-escolar FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 110 como homens e/ou mulheres e se interessar por homens e/ou mulheres. Aí se colocam as questões de sexualidade, mais precisamente sobre orientação sexual e gênero. O termo orientação sexual se refere a como a pessoa se sente em relação à afetividade e sexualidade. Já a identidade de gênero faz referência à forma como alguém se sente, se identifica, se apresenta, para si próprio e aos que o rodeia, bem como se perceber como ser “masculino” ou “feminino”, ou ambos, independente do sexo biológico ou de sua orientação sexual. Assim, não são apenas as características biológicas que determinam a construção da identidade de gênero (REIS, 2018, online). A orientação sexual - por muitos anos chamada de “opção sexual” - diz respeito à maneira como cada indivíduo se sente com relação a quem lhe desperta interesse afetivo e sexual. Assim, cada indivíduo pode sentir-se atraído por pessoas do sexo oposto (heterossexuais), do mesmo sexo (homossexuais), de ambos os sexos (bissexuais) ou mesmo não sentir atração física ou sentimental por qualquer sexo (assexuais). A luta pela alteração da utilização do termo “opção sexual” por orientação sexual é histórica no Brasil e remete à pauta de movimentos LGBTI+ pelo reconhecimento de que os sentimentos e desejos não são meras escolhas (ou opções), mas partes constitutivas dos seres humanos, de modo que sua manifestação indicaria uma orientação. Por fim, ao nos depararmos com o gênero, nos colocamos com a categoria em que é correto utilizar os termos homem e mulher, pois remete à maneira como cada indivíduo se percebe em sociedade e no convívio com os demais. É nesta categoria que se enquadram, portanto, aqueles que se veem socialmente como homens e mulheres, sendo que os nascidos com o mesmo sexo com que se identificam são considerados cis-gêneros, os que se percebem com sexo distinto ao do sexo biológico são transgêneros e aqueles que não se identificam apenas como homens ou mulheres ou que se percebem como uma mistura de ambos são denominados não-binários. Perceba, caro(a) estudante, que discutir gênero e sexualidade, portanto, implica em possibilidades múltiplas de autoidentificação, muito mais complexas do que apenas definir os indivíduos pelo sexo masculino ou feminino. Por exemplo, uma pessoa do sexo masculino que se identifica como homem e se sente atraída por outra com igual perfil é um homem, cis-gênero homossexual, ou seja, cada um de nós reúne as três categorias - sexo, orientação sexual e identidade de gênero - e demanda, por um lado, respeito e tratamento igualitário em muitas situações cotidianas, mas também consideração e tolerância em outros casos em que h´pa despreparo para lidar com FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 111 aspectos formativos de cada um, que correspondem a prismas ou facetas de sua identidade. Conforme Santos e Oliveira (2010) e Cortella (2011), tendemos reproduzir o estereótipo de gênero por conta da construção histórica da moral burguesa e conservadora baseada em valores que distinguem o certo e o errado a partir de papeis sociais atribuídos. A ideia de “homem ideal”, correto ou adequado dessa moral é de que deve-se buscar ser heterossexual, rico, magro, branco e católico, sendo que quaisquer características diferentes dessas são erradas e não devem ser plenamente aceitas, no máximo suportadas, mas desde que marcada a noção de que esse desviante ou “outro” que foge do padrão estabelecido é inferior aos demais. Nesse sentido, Santos e Oliveira (2010) afirmam que as compreensões do que é uma família e como deve ser composta - o que já discutimos previamente - e de sexo e gênero como sinônimos são construções sociais, amplamanete naturalizadas de maneira a confrontar a realidade em que muitos se autolocalizam com relação a essas características. Cito mais um exemplo: uma pessoa que nasceu com o sexo feminino mas não se percebe socialmente como mulher não está incorrendo em um erro ou falta que venha a ferir a moral estabelecida, então não é correto que sofra preconceito ou exclusão por conta de uma ou duas características que conformam sua identidade, masnão a definem por completo. Sobre a base dessa discussão sobre sexo e gênero, Miguel e Biroli (2014) ensinam que as sociedades sempre foram forjadas tendo como base a diferenciação entre sujeitos masculinos e femininos. Desde os primórdios da organização social humana, à mulher coube tarefas relacionadas ao espaço privado, a casa, com funções de cuidado dos filhos, do lar, do marido, sendo que construiu-se uma definição de que caberia sua atuação no espaço público em áreas também de cuidado, como ocupando profissões de professora, assistente social ou enfermeira, por exemplo. Já ao homem cabia o predomínio do espaço público, as atividades da vida comum em sociedade, como a política, os postos de mando e o dom da oratória, de modo que a face pública das sociedades era masculina. Se essa descrição remete a períodos remotos, como a democracia grega há mais de dois mil anos, persiste definindo os caminhos dos estereótipos que circundam os sexos feminino e masculino até a atualidade. Reflita comigo: Quantos professores você conheceu ao longo do seu Ensino Fundamental (antigo 1o Grau)? Nos hospitais e unidades básicas de saúde, há diferença na quantidade de homens e mulheres que FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 112 são enfermeiros e médicos? E no caso de motoristas de ônibus de transporte coletivo? Se você pesquisar quem ocupou a secretaria de assistência social do seu município, quantos homens e mulheres haverá entre os cinco últimos? E aqueles que ocupam cargos de chefia em empresas? Por fim, quantos vereadores e quantas vereadoras existem em seu município nesta gestão? São muitas perguntas, é fato, mas para a maioria delas a resposta deve ser a mesma independente de qual seja seu município: as mulheres são a grande maioria em formações como Pedagogia, Enfermagem e Serviço Social, enquanto os homens ocupam postos de médicos, motoristas, chefias e mandatos políticos. Silva (2011) destaca que a transmissão desses valores reverbera ao longo das gerações de muitas maneiras, mas especialmente no âmbito familiar, de modo que reproduz na educação das crianças esse modo de disciplinar o que cabe a cada sexo por meio de brinquedos, brincadeiras, cores e comportamentos. Souza (2004, p. 71) afirma que essa educação das crianças “[...] acontece durante as atividades de imitação sobre esses conteúdos e quando atribuem valores aos comportamentos sociais e transmitidos pela cultura”. A expectativa transmitida de que filhos se espelhem no pai e filhas na mãe, o padrão de consumo de roupas discrepante para meninos e meninas, frases como “menino não chora” ou “seja delicada, se comporte como uma mocinha” delimitam a identidade sexual e os papeis sociais dos sexos masculino e feminino, de modo que “corresponder ao que é esperado vai dando consciência do grupo ao qual pertencemos, se é o de homens ou de mulheres” (PICAZIO, 1998, p. 20). Para além da questão de sexo, há ainda as questões decorrentes de sexualidade, ou seja, orientação sexual e gênero. Costa (2012) expõe que a sexualidade é regida por normas morais que delimitam como cada pessoa pode vivenciá-la, o que Pinsky (2009) corrobora ao afirmar que gênero e diferenças sexuais remetem à cultura, pois implica confrontar as categorias padrões de masculino e feminino. Assim como para quaisquer condições em que indivíduos são desviantes do modelo tido como “normal”, a população LGBTI+ sofre com desrespeito e intolerância, bem como enfrenta situações de violência simbólica e física, uma vez que o preconceito encontra-se enraizado na sociedade brasileira. Ante ao exposto, após essa conceituação exploraremos como as políticas públicas lidam com as demandas relacionadas às questões de gênero e sexualidade no Brasil, mas antes cabe uma última consideração: os estereótipos a que mulheres e pessoas FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 113 LGBTI+ estão sujeitos reverbera em diversos espaços sociais, então, tanto em sua atuação profissional quanto na vida de modo geral, você poderá estar exposto(a) a situações que envolvem tais pessoas e deve sempre fazer-se o seguinte questionamento: Estou julgando o(a) outro(a) a partir do meu parâmetro de normalidade ou considerando- o(a) como indivíduo com identidade múltipla na qual essa é só das características? 8.2 Demandas por políticas públicas e reconhecimento social As principais demandas envolvendo mulheres e a população LGBTI+ no Brasil versam sobre a violência doméstica e familiar e o reconhecimento de direitos sociais básicos, respectivamente. Nesse sentido, exploramos nesta seção esses dois problemas sociais. A violência contra esses corpos remete à maneira como são tratados como inferiores ou passíveis de menos direitos do que os daqueles do estereótipo social dominante: homens, brancos, cis-gêneros, heterossexuais. Ao mesmo tempo que a sociedade luta por mais reconhecimento de direitos e atendimento de demandas sociais, há também forças elites que tentam manter determinados padrões sociais que inferiorizam esses corpos. E por que? Conforme autores como Souza (2004), Silva (2011) e Miguel e Biroli (2014), essa inferiorização está atrelada a diferentes aspectos de controle social ou exercício de poder, como, por exemplo: a manutenção do pagamento de menores salários para mulheres tem relação direta com a perpetuação do pensamento de senso comum de que elas estão menos preparadas para o mercado de trabalho, pois são mais instáveis psicologicamente e têm responsabilidades domésticas; para pessoas LGBTI+, a oferta de empregos com menores salários não raras vezes é acompanhada de discursos de inclusão diante do mercado que não aceita indivíduos estereotipados, com conselhos como “acho que você deveria aproveitar essa oportunidade, não é todo dia que lhe oferecem um emprego assim”. Em ambas as situações, o machismo histórico é mobilizado para explorar trabalhadores e tal situação opera também em outros espaços de julgamentos e estigmas, como nos ambientes escolares, religiosos, serviços públicos e também nas ruas e espaços públicos e nas próprias famílias. Pensando nos direitos às mulheres, as barreiras que se colocam à sua presença em cargos eletivos e de chefias em empresas têm sido enfrentadas lentamente por meio de ações que visam a conscientização da população sobre a necessidade de uma mudança cultural. Contudo, um problema latente é a questão da violência. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 114 A Constituição Federal de 1988 determinou a proteção do Estado à família e em 1990 houve uma importante alteração da legislação nacional, quando o Superior Tribunal de Justiça (STJ) declarou a ilegalidade da “tese da legítima defesa da honra” em face da igualdade de direitos entre homens e mulheres, assegurada na Carta Magna, sob pena de incitação à discriminação de gênero (BAKER, 2015, p. 25). Poucos anos depois, em 1994, a Lei dos Crimes Hediondos (Lei no 8.072/90) foi modificada, de modo que tratamento dado ao homicídio passional se tornou mais severo, não sendo possível ao autor o direito à anistia, graça ou indulto, fiança e liberdade provisória e progressão no regime prisional, devendo a pena de reclusão ser cumprida em regime integralmente fechado (ELUF, 2007, p. 170). Muitas foram as leis elaboradas após o ano de 1994, dentre as quais destacam-se: • Lei. Nº 9.029/1995, que passou a considerar crime a exigência de atestado de esterilização e teste de gravidez para efeitos de admissão ou permanência em emprego; • Lei nº 9.281/1996, que revogou o parágrafo único relativo aos artigos 213 e 214 do Código Penal, aumentando as penas para os crimes de estupro e atentado violento ao pudor; • Lei nº 9.318/1996, que alterou o artigo 61 do Código Penal, que trata das circunstâncias agravantes de um crime, acrescentando à alínea h a expressão “mulher grávida”; • Lei nº 9.520/1997,que revogou dispositivos processuais penais que impediam que a mulher casada exercesse o direito de queixa criminal sem o consentimento do marido; • Lei nº 10.224/2001, que alterou o Código Penal para dispor sobre assédio sexual; • Lei nº 10.778/2003, que estabeleceu a notificação compulsória, em todo o território nacional, no caso de violência contra mulheres que forem atendidas nos serviços de saúde, públicos ou privados; • Lei nº 10.886/2004, que reconheceu o tipo penal “violência doméstica”, alterando a redação do artigo 129 do Código Penal, que trata da lesão corporal, para incluir os §§ 9º e 10; • Lei nº 11.106/2005, que alterou diversos artigos do Código Penal deliberadamente discriminatórios (arts. 148, 215, 216, 226, 227 e 231); • Lei nº 11.340/2006, conhecida como Maria da Penha, que determinou a tipificação da violência doméstica e familiar contra a mulher; FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 115 • Lei nº 12.015/2009, que alterou o Título VI do Código Penal para nomenclaturá- lo “Dos crimes contra a dignidade sexual”, tornando a mulher sujeito protegido nos crimes de violência sexual, antes existente em proteção aos bem jurídicos “costumes”, e alterou também a redação do artigo 213, que passou a contemplar, em um único dispositivo penal, o crime de estupro e atentado violento ao pudor, unificando as penas previstas para ambos os crimes; • Lei nº 12.650/2012, conhecida como Lei Joana Maranhão, que alterou o artigo 111 do Código Penal, no qual o prazo prescricional do crime de abuso sexual infantil passou a ter início na data em que a vítima completa 18 anos de idade; • Lei nº 13.104/2015, que prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, com inclusão no rol dos crimes hediondos; • Lei nº 13.344/2016, que dispõe sobre a prevenção e repressão ao tráfico internacional de pessoas, enfatizando em vários artigos o recorte do gênero; • Lei nº 13.718/2018, que alterou o Código Penal para definir os crimes de importunação sexual e outros, estabeleceu causas de aumento de pena para o estupro coletivo e corretivo, revogou a contravenção da importunação ofensiva ao pudor e alterou a natureza da ação penal nos crimes sexuais para pública incondicionada; e • Lei nº 13.718/2018, que incorporou o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio; • Lei nº 14.132/2021, acrescentou o art. 147-A ao Código Penal, para prever o crime de perseguição; e revoga o art. 65 da Lei das Contravenções Penais. • Lei nº 14.188/2021, que define o programa de cooperação Sinal Vermelho contra a Violência Doméstica como uma das medidas de enfrentamento da violência doméstica e familiar contra a mulher e alterou o Código Penal, para modificar a modalidade da pena da lesão corporal simples cometida contra a mulher por razões da condição do sexo feminino e para criar o tipo penal de violência psicológica contra a mulher. Ainda que em 1985 tenha sido criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, as décadas de 1990 e 2000 se destacam em importância para as políticas de enfrentamento à violência contra a mulher, o que se relaciona diretamente com a assinatura da Plataforma de Beijing (BARTED; PITANGUY, 2011), mas também os movimentos feministas tiveram papel fundamental nesse processo, sendo que seu FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 116 intenso diálogo com gestores e instituições e a ocupação de cargos nas administrações locais contribuíram para que a pauta da violência de gênero viesse a compor a agenda política (SANTOS; IZUMINO, 2005). Contudo, os maiores avanços ocorreram a partir de 2002, ano de criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, e 2003, por conta da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres. Nos anos de 2004 e 2007 foram estabelecidos planos nacionais de políticas para tal público, a ser implementados nas três esferas de governo, mas o grande marco do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher é a Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, que estabeleceu a tipificação de cinco tipos de violência aos quais as mulheres podem ser submetidas e que são passíveis de punição, quais sejam: física, patrimonial, moral, psicológica e sexual. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/woman-raised-her-hand-dissuade-abuse-1932336341 Desde a implementação da lei, o número de registros de casos aumentou, o que significa que reduziu-se a subnotificação daquelas situações em que as vítimas não sabiam a quem recorrer, porém persistem muitos desafios, como destaca Carnieto (2022): falta ampliar a circulação da informação à população em geral, pois muitos entendem como violência apenas aquelas que envolvem o corpo (física e sexual) e há ainda parcelas da população (mulheres e homens) que desconhecem a lei; faltam equipamentos públicos adequados para acolhimento e acompanhamento das vítimas https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/woman-raised-her-hand-dissuade-abuse-1932336341 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 117 em muitos municípios, o que desestimula a denúncia por receio da vítima em voltar a conviver com o agressor; é necessário capacitar de modo mais adequado os policiais que prestam atendimento às vítimas, a fim de que estabelecem contato com empatia e sem julgamentos, o que revitimiza a vítima e inibe a procura por ajuda; ainda são poucas as delegacias específicas para mulheres, muitas dessas funcionam apenas em horário comercial - portanto em período contrário àquele de maior incidência de violência, que ocorre à noite e nos fins de semana - e tem apenas homens em seu corpo efetivo, o que pode inibir as vítimas; e os indicadores sobre denúncias durante a pandemia de Covid-19 são dúbios em termos de resultados, pois ao mesmo tempo que a maior convivência doméstica em situação de estresse (por isolamento, perda de emprego, consumo de álcool, uso mais recorrente de redes sociais etc.) contribui para casos de violência, o medo do registro sem ações efetivas posteriores também se coloca, já que nem todas as cidades dispõem de casas-abrigo ou equipamentos para acolhimento de mulheres (e crianças, se pertinente). No caso da população LGBTI+, há menos direitos instituídos formalmente, ainda que haja a máxima constitucional de que todos os brasileiros são iguais perante a lei. As décadas de 1950 a 1980 foram marcadas por pautas expressivas e cuja interpretação incorreta até hoje permeia o imaginário popular: a discussão sobre o termo “opção sexual” e a retirada da palavra “homossexualismo” da lista de doenças mentais (FACCHINI, 2005; TREVISAN, 2011). Como pouco era considerado nas discussões legislativas para alterar esses aspectos que estimulavam a estigmatização e a falta de informação sobre os temas, os movimentos LGBT (à época) passaram a se organizar para promover manifestações nas ruas, em que garantiriam visibilidade às pautas em sua luta por cidadania e igualdade (SILVA, 2008). O primeiro marco legal sobre o tema no Brasil foi o Programa “Brasil Sem Homofobia”, criado em 2004 e destinado ao enfrentamento da violência e discriminação contra a população LGBTI+, ao passo que em 2008 ocorreu a I Conferência Nacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis e Transexuais, organizada pelo Governo Federal com o tema “Direitos Humanos e Políticas Públicas: o caminho para garantir a cidadania GLBT” e posteriormente foram realizadas mais duas conferências em 2011 e 2016 (FEITOSA, 2017). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 118 https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/pride-parade-group-people-participating-lgbt-1713714019 No que diz respeito às instituições participativas, um marco foi a criação do Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD) por meio do Decreto nº 3.952/2001 no Ministério da Justiça, cujo objetivoprimeiro foi acompanhar as políticas públicas envolvidas na defesa dos direitos sociais e individuais de vítimas de discriminação racial ou outra forma de intolerância, incluída a LGBTfobia. Já em 2003 houve uma desvinculação, quando a promoção da igualdade racial passou a ter seu conselho próprio e o CNCD/LGBT passou a vivenciar uma atuação mais expressiva de setores organizados pelo reconhecimento dos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais (VILELLA; GIMENES, 2021a, online). Aqui, cabe atualizar a informação de que o referido conselho foi extinto em 2019 junto a outras esferas e mecanismos de participação, no início do governo do presidente Jair Bolsonaro. Conforme destacam Abers e Tatagiba (2014), a vitória eleitoral de um partido progressista com bases operárias e de movimentos sociais proporcionou trânsito e deslocamento de ativistas sociais para o âmbito do Estado, o que fez do período entre 2003 e 2015 frutífero para formalização de reconhecimentos nos âmbitos jurídico, social e de saúde à população LGBTI+, como a autorização de redesignação sexual https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/pride-parade-group-people-participating-lgbt-1713714019 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 119 e sua oferta pelo Sistema Único de Saúde em 2008, a utilização do nome social para identificação em alguns órgãos e serviços públicos como o próprio SUS e para inscrição no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), o reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011 e o casamento ou conversão de união estável em casamento pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em 2013. Mais recentemente, apesar do retrocesso político, a força das lutas dos movimentos LGBTI+ resultaram, ainda, na aprovação pelo STF da possibilidade de alteração de nome e sexo no registro civil de pessoas transsexuais (2018), a criminalização da LGBTI+fobia como crime de racismo até a aprovação de lei específica pelo Congresso Nacional (2019) e o fim da proibição de doação de sangue por homens que tiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses, também pelo STF (2020). Um ponto de atenção, nesse caso, é o fato de que ainda há poucos espaços institucionais de discussão sobre políticas para tal população, pois ao observarmos as esferas subnacionais temos que, no contexto dos municípios, conforme as Pesquisas de Informações Básicas Municipais (MUNIC) e Estaduais (ESTADIC) do IBGE, no ano de 2014 apenas 0,6% dos municípios brasileiros possuíam conselhos municipais LGBT e 44,4% dos estados brasileiros dispunham de conselhos estaduais LGBT. Segundo Chaia e Martins (2021), é preciso valorizar a importância dos conselhos municipais e sua relação mais direta com a participação popular, o que corrobora, em alguma medida, o argumento de Wampler (2010) de que os municípios representam o chão da política, onde de fato a política “acontece”, ou seja, se materializa na sociedade. Ante ao exposto, é perceptível, caro(a) acadêmico(a), que as questões sobre sexo, gênero e sexualidade reverberam em nossa sociedade sob o tabu do machismo histórico e precisam ser enfrentadas em ambientes diversos: nas famílias, nos espaços educacionais, nas relações cotidianas, no trabalho e em outros locais onde socializamos. Os avanços em termos de legislação representam, sem dúvida, um cenário muito favorável ao reconhecimento dos direitos de mulheres e pessoas LGBTI+ se compararmos com algumas décadas atrás, porém ainda são incipientes a conscientização da população e geral e o atendimento efetivo às demandas desses grupos, ao que nos cabe refletir sobre a seguinte indagação: Os direitos humanos, no que tange a sexo, gênero e sexualidade, são respeitados e efetivados no Brasil? E mais: pensando sobre as perspectivas de governos multiculturalistas ou necropolíticos, podemos afirmar que o caso brasileiro é um misto entre ambos os modelos? FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 120 ANOTE ISSO Historicamente, o Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística não apresenta questões sobre identidade de gênero e orientação sexual, de modo que esta é uma discussão cada vez mais recorrente, tendo em vista a necessidade de estabelecimento de políticas públicas para a população LGBTI+ no Brasil. Há municípios em que tal população, por meio de movimentos sociais, OSCs e/ou conselhos têm se mobilizado para realizar mapeamentos aos moldes da pesquisa censitária, como São Paulo, por exemplo. Vilella e Gimenes (2021b) analisaram resultados preliminares de pesquisa em Maringá (PR), em que identificaram necessidade de atendimento psicológico, espaço para acolhimento e urgência no enfrentamento da violência em espaços públicos e privados. Os resultados encontram-se no paper “Diagnóstico social sobre a população LGBTI+ como instrumento à conformação de políticas públicas: relato de experiência”. Fonte: O autor. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 121 CAPÍTULO 9 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS Caro(a) acadêmico(a), avançando em nossa explanação sobre direitos humanos, a nona aula desta disciplina se dedica a um marcador social que permeou tanto o debate sobre multiculturalismo quanto a apresentação da necropolitica: a questão étnico-racial. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/brazil-brasil-map-multicultural-group-people-677328199 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/brazil-brasil-map-multicultural-group-people-677328199 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 122 Tendo em vista o Brasil ser um país reconhecido pela mistura de etnias e também pelas desigualdades sociais, nesta aula abordaremos aspectos históricos e elementos que visam a reparação de problemas que conformam a história do povo brasileiro. Para tanto, em nossa primeira seção são expostos os conceitos de raça e etnia e também discutida a maneira como negros e indígenas foram incorporados à sociedade brasileira ao longo do tempo. Assim como na aula anterior, a segunda seção também é direcionada às políticas públicas e equipamentos sociais que atendem a essas populações e atuam no sentido de reduzir, mesmo que minimamente, as disparidades que tangenciam as relações étnico-raciais no Brasil contemporâneo. 9.1 Aspectos conceituais e históricos das relações étnico-raciais no Brasil Considerada a importância de compreendermos sobre as relações étnico-raciais por conta de sua relação com diferentes modelos de governo e com impactos sobre os direitos humanos e formação sócio-cultural e ética da sociedade, cabe-nos uma análise sobre como os conceitos de etnia e raça se interpenetram e porque conformam marcadores sociais relevantes na realidade brasileira. Isto posto, cabe destacar que as pesquisas do Censo organizadas a cada década pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros questionários produzidos por órgãos oficiais tratam etnia e raça como sinônimos, o que não necessariamente é adequado, ainda que seja socialmente aceitável ou tenha sido naturalizado pela população, tratado como “normal”. Conforme destacam Moreira e Felipe (2019), definir o que são raça, etnia e relações étnico-raciais é tratar de termos importantes em se tratando de direitos humanos e deve ser um passo inicial para qualquer debate ou exposição sobre o tema. Nesse sentido, cabe nossa atenção às explicações dos referidos autores sobre os três termos. Etnia diz respeito ao conjunto de indivíduos que possui aspectos comuns, como origens, interesses ou relações de solidariedade, de modo que é mais do que um conjunto de pessoas, apenas, mas compõe-se a partir de sentimento de identificação ou pertencimento histórico e cultural. Já a raça seria uma categoria social, cultural e histórica - portanto, não biológica, no caso brasileiro - paraclassificação de indivíduos em grupos, o que ocorre baseado FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 123 em características físicas como cor de pele e tipo de cabelo, o que significa a definição de grupos a partir de marcas simbólicas. Já as relações étnico-raciais dizem respeito à construção social das interações entre os três principais grupos que forjaram a população brasileira: os brancos (europeus), os negros e os indígenas. O processo de colonização no Brasil foi de exploração de mão-de-obra, desconsideração e desapropriação de culturas e de generalização de indígenas e de negros, como houvesse uma única etnia para cada raça. Esse é, até hoje, um ponto de atenção que precisa ser considerado, tanto porque existem muitas etnias indígenas no Brasil, em áreas de preservação e também nas cidades, e também para os negros, tendo em vista principalmente os processos migratórios de latino-americanos e africanos para nosso país! Felipe et al (2019) salientam que a preservação e a valorização das bases eurocêntricas de nossa formação identitária negligenciam ou mesmo não reconhecem elementos relevantes à formação de nossa sociedade que decorrem de indígenas e negros. A chegada dos portugueses às terras hoje denominadas Brasil, em 1500, não foram uma descoberta, mas uma invasão europeia a terras indígenas, sendo que Vinha et al (2020) afirmam haver estimativas de que entre quatro e cinco milhões de indígenas habitavam este território quando da chegada dos primeiros navios portugueses. O século XVI foi marcado, preponderantemente, pelo choque étnico e por conflitos entre portugueses e os povos locais: como os portugueses se denominaram donos do território que exploravam, consideraram que os indígenas também lhes pertenciam e demonstraram completa ausência de alteridade ao adotar medidas como a tentativa de catequização e evangelização e também a sua exploração como trabalhadores escravos em atividades agrícolas e em garimpos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 124 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/pow-wow-canada-communities-huron-wendat-1804674541 Os estrangeiros consideravam os indígenas primitivos e sem alma, de modo que lhes faltaria conhecer a religião para que fosse despertada sua humanidade, o que significa que os índios não eram considerados humanos na mesma medida que os portugueses viam a si mesmos. Por outro lado, a busca pela padronização dos indígenas àquilo que os portugueses desejavam que se tornasse seu modo de vida foi permeado por conflitos e desrespeitos que conduziram a perdas imateriais expressivas, como linguagens, dialetos e idiomas e também crenças e ritos que não eram permitidos pelos colonizadores, especialmente no que dizia respeito a aspectos de matriz religiosa, distintos dos preceitos católicos (VINHA et al, 2020). Ademais, a combinação entre catequização com escravização para o trabalho promoveu o extermínio, direito ou indireto, de indígenas, por conta de conflitos violentos entre portugueses e povos que não aceitaram pacificamente a escravidão, por doenças trazidas pelos estrangeiros que acometeram os indígenas e por ações violentas para disciplinar os escravos indígenas ao trabalho nas fazendas. Entre o século XVII e o início do século XVIII essas condições se intensificaram, tanto por conta da resistência persistente dos indígenas à escravidão quanto pela expansão econômica portuguesa na colônia brasileira, já que, para além da exploração https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/pow-wow-canada-communities-huron-wendat-1804674541 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 125 de itens agrícolas e madeiras, havia expedições bandeirantes que buscavam riquezas minerais pelo território, como ouro e pedras preciosas. Com o tempo, essas expedições bandeirantes, como eram desbravadoras de territórios, passaram também a comercializar índios capturados com a finalidade de venda para trabalho escravo. Somente após dois séculos e meio de colonização, a Coroa portuguesa aboliu a escravidão indígena, não por reconhecimento dessa população, mas por conta dos entraves ao desenvolvimento econômico da colônia. Entretanto, tratou-se de uma ação isolada, pois não houve reconhecimento da humanidade dessa população e tratamento como indivíduos ou povo, tanto que os índios foram deixados à margem do desenvolvimento da civilização e da vida no Brasil pelos portugueses. Por cerca de um século e meio, não houve atenção do governo colonial e, depois, imperial com os indígenas, de modo que o estabelecimento das primeiras ações efetivas do poder público para com essa população ocorreu já no período republicano, de modo problemático, como será abordado na próxima seção desta aula. Antes, cabe-nos tratar da questão dos negros. Ainda no início do período colonial, a dificuldade em utilizar a mão de obra indígena fez com que os portugueses trouxessem negros capturados da África para a colônia por meio do tráfico negreiro. Os escravos negros não vistos como semelhantes aos demais humanos (portugueses, senhores de terras e membros da Igreja Católica, majoritariamente)e foi-lhes extirpada essa condição biológica. O trabalho que desempenhavam era interpretado como inferior, o que corroborou para fazer dos negros um grupo ao qual deveria ser considerado apenas o suficiente para a sobrevivência, fortalecendo a conformação de um preconceito que começou com sua objetificação. Para Ricupero (2000), o pior e principal impacto da escravidão foi negar a humanidade dos negros, trabalhadores escravos, reduzidos à condição de irracionais, já que esperava-se deles apenas a força física. Assim, definiu-se sua condição social como animalesca, não como humanos. Anteriormente, Caio Prado Junior (1987) já havia afirmado que a conformação do preconceito racial no Brasil não teve relação com aspectos biológicos, também entendendo que os escravos não foram considerados humanos como os colonizadores, mas foi definido pela condição histórica e social de imposição do trabalho forçado aos grupos indígena e negro. Em decorrência dessa imposição, continuou o autor, ambos os grupos foram obrigados a viver em locais e sob costumes distintos daqueles de sua origem e criação, o que resultou em relutância e desprezo à realização de tarefas. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 126 Conforme o autor, os dois grupos de escravos eram tratados pelos portugueses como raças bárbaras com nível cultural ínfimo, como pretos boçais e índios apáticos. Essa situação sofreu alterações apenas no século XIX, após a Independência do Brasil (1822). A pressão pelo fim da escravidão se espalhara pelo mundo e o Império começou a enfrentar dificuldades para manter tal condição de trabalho. O ano de 1850, por exemplo, foi marcado por forte repressão ao tráfico de escravos, sendo que pouco tempo depois começaram a tramitar no Parlamento propostas emancipacionistas voltadas à garantia de liberdade aos nascituros e alforria àqueles escravos cujo preço definido fosse pago ao senhor (dono). Ademais, o desenvolvimento das lavouras no Sul do Brasil demandou cada vez mais mão de obra, a ponto de restringir-se o comércio de escravos entre províncias, o que contribuiu para que se fizesse necessária uma ação do Imperador em favor do crescimento das plantações rurais e também do desenvolvimento da maquinofatura: como os escravos e os servos não demonstraram aptidão para o manuseio de máquinas e nem capacidade para aprenderem serviços mais complexos, a monarquia optou por subsidiar a vinda de imigrantes portugueses e de outros países europeus para trabalharem no Brasil. Como já havia na sociedade brasileira a percepção de que negros eram preguiçosos e pouco afeitos à terra, ao trabalho e ao Brasil, a vinda de imigrantes foi considerada também como uma possibilidadede “melhoria” do povo brasileiro, já que haveria um branqueamento da população nacional conforme os imigrantes se procriassem, entre si e também gerando mestiços que tenderiam a ter filhos cada vez mais brancos. Essa percepção da importância do branqueamento por conta da falta de apreço dos negros pelo Brasil foi tratada também pelo médico Raimundo Nina Rodrigues (2010) em sua interpretação preconceituosa e biologizante da maneira como os escravos africanos e seus descendentes lidavam com a vida social. Para o autor, aquele grupo seria negativo ao desenvolvimento da sociedade nacional, de modo que o Brasil seria mais desenvolvido conforme diminuíssem os negros. Daí a ideia de branqueamento da população: a miscigenação entre portugueses e outros europeus com os brasileiros mestiços ou negros levaria a futuras gerações cada vez mais próximas do padrão europeu, já que a raça negra seria inferior e, portanto, se tornaria cada vez mais reduzida conforme os cruzamentos entre os povos. Conforme Prado Junior (1987), a segunda metade do século XIX foi o momento de maior transformação econômica da história brasileira, em que verificou-se expressiva FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 127 prosperidade e ativação da vida econômica nacional com a fundação de empresas industriais, bancos e de companhias de navegação a vapor, de seguros, de colonização, de mineração, de transporte urbano, de gás e de estradas de ferro. Foi o início do capitalismo, ainda que incipiente, no Brasil, forjado no trabalho livre e com menor atenção e preocupação com o trabalho escravo. Aprovada em 1871, a chamada Lei do Ventre Livre gerou descontentamento, pois determinava que o proprietário dos pais do nascituro seria seu tutor até os seus dezoito anos, período pelo qual deveria sustentá-lo, mas poderia usar seus serviços. Na década seguinte, a aprovação da Lei do Sexagenário em 1885 inflamou ainda mais os movimentos abolicionistas, já que a expectativa de vida dos escravos era baixa e a lei seria pouco efetiva. Desde então, o povo passou a se agitar, muitos escravos começaram a fugir, os abolicionistas estimulavam, ajudavam e protegiam os fugitivos e as Forças Armadas passaram a se recusar a capturar escravos. Diante de tamanha pressão, em maio de 1888 foi assinada a Lei Áurea, findando a escravidão no Brasil. Como os negros conviveram com os “civilizados” até o fim da escravidão, foram, em alguma medida, incorporados à sociedade de classes brasileira, o que gerou teorias conflitantes acerca dessa incorporação, propostas nos estudos de Gilberto Freyre e Florestan Fernandes. Freyre pertencia à aristocracia rural nordestina e estudou nos Estados Unidos, produzindo obras acerca da integração de negros à sociedade nacional a partir de uma perspectiva um tanto quanto romantizada. Em “Casa grande & senzala” (1936), o autor tratou da maneira como os diferentes grupos raciais conviviam harmonicamente nos espaços coletivos rurais, baseado especialmente em sua experiência familiar. Assim, a partir da maneira como percebia negros e brancos trabalhando em atividades domésticas e outros afazeres nas fazendas, o autor construiu um modelo analítico em que argumentava sobre o modo integrado com que brancos e negros, senhores e trabalhadores viviam nos espaços rurais. Já em “Sobrados e mucambos” (1996), o mesmo autor abordou o processo de migração de elites rurais para as cidades e destacou a conformação das estruturas urbanas centrais e periféricas. O título dessa segunda obra, inclusive, remete às transposições dos locais de habitação dos senhores de terras a burgueses, das casas grandes aos sobrados, e dos escravos a negros livres, das senzalas aos mucambos. Nessa segunda obra, Freyre (1996) destacou novamente o negro como FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 128 sujeito constitutivo da identidade nacional ao considerá-lo integrado aos brancos nos processos sociais. Posteriormente à sua escrita, as interpretações do autor acabaram relacionadas ao termo “democracia racial”, que consiste na maneira de analisar as relações entre brancos e negros como perpassadas por respeito na conformação da identidade brasileira, o que, por certo tempo, foi considerada a interpretação verossímil da realidade nacional, ao mesmo tempo que sofreu críticas severas por desconsiderar uma das características mais relevantes da escravidão no Brasil: a violência física cometida contra os negros (OLIVEIRA, 2016). Por sua vez, Florestan Fernandes (1978) dedicou-se à análise de dados estatísticos e sociais da população da cidade de São Paulo nas primeiras décadas do século passado e argumentou de modo enfático que os negros não foram incorporados à sociedade de classes do Brasil após a abolição da escravidão. Assim, diferentemente de Freyre, para Fernandes não haveria no país uma sociedade harmônica ou uma democracia racial, mas a conformação de uma sociedade segregadora e classista. Em sua interpretação, o autor constatou que após a abolição uma parcela significativa dos negros, recém libertados, buscou a vida nas cidades para afastar-se da realidade vivenciada no período de escravidão. Contudo, ao chegarem às cidades, depararam-se com algumas condições que lhes pareceram semelhantes àquelas do trabalho rural, como horários e atividades a cumprir, além do fato de não disporem de conhecimento ou treinamento para atividades sofisticadas para a época, como lidar com maquinofatura. Somando-se a essa situação, tínhamos um contexto no qual desde meados do século anterior havia incentivos à vinda de europeus para o país, sendo que os estrangeiros já sabiam trabalhar com máquinas e conheciam a lógica de funcionamento do capitalismo, ou seja, estavam mais adaptados à realidade ainda incipiente no Brasil de transformação de uma sociedade monárquica, escravocrata e rural em uma república capitalista industrial. O resultado da combinação desses dois fatores foi o reduzido número de oportunidades aos homens negros, sendo que muitos acabaram retornando à zona rural. Nas cidades, as negras encontraram mais oportunidades, especialmente por conta de atividades que replicavam o trabalho escravo, como as funções de lavadeira, criada, ama de companhia ou cuidadora de crianças e aos negros estaram os trabalhos braçais mais pesados ou com menor remuneração. Dentre os que circulavam pela área central da cidade, via-se engraxates ou coletores de lixo, por exemplo. Aos demais, FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 129 couberam trabalhos nas fábricas, localizadas nas regiões afastadas do centro onde residiam os burgueses. Os trabalhadores das indústrias residiam, em sua grande maioria, nos arredores das instalações laborais, portanto sujeitos a doenças decorrentes de contaminações do solo e da água, da fuligem das máquinas, dos ruídos emitidos e, logicamente, também em virtude das condições mínimas de sobrevivência. Em tal contexto surgiram as periferias, com favelas e cortiços. Conforme Fernandes (1978), a segregação espacial que distanciava centro e periferia era também uma separação entre grupos, os burgueses brancos e os operários negros. Assim, para o autor, não apenas seria equivocada a percepção de convivência harmônica entre esses grupos, como também a segregação racial acabou se conformando em conjunto com a segregação social de classes. 9.2 Ações do Estado brasileiro frente às questões étnico-raciais De maneira a resumir aspectos da seção anterior, temos que o fim da escravidão indígena não pode ser considerada apenas como um ganho no processo de conformação de nosso povo, pois a contrapartida da extinção do trabalho escravo dos índios foi a intensificação do tráfico negreiro e a ampliação da escravidão de africanos. Isto posto, os indígenas foram “esquecidos” pelo Estado brasileiro até o início do século passado, como destaca o levantamentode legislações e órgãos públicos relacionados à questão por Vinha et al (2020), que identificaram que os primeiros registros sobre a presença dos indígenas no contexto de urbanização, industrialização e capitalismo nascente no Brasil tratavam daquele grupo como indivíduos que ainda careciam de ser civilizados - o que denota a persistência da ausência de alteridade com relação aos indígenas, desta vez por uma sociedade completamente distinta dos colonizadores de 1500. Acreditava-se que era necessário aproximar-se dos índios para que pudessem assimilar a cultura ocidental, para “evoluírem” a ponto de se tornarem “não índios”. Perceba, por tal denominação, que não havia a perspectiva de integração dos indígenas a ponto de não mais diferenciá-los com relação aos brancos, mas a preocupação em torná-los “menos índios” com relação a sua cultura e costumes. Em se tratando de marcos históricos, “já no ano de 1910 foi criado o SPI - Serviço de Proteção ao Índio, que tinha por missão fazer contatos com tribos isoladas e promover FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 130 a convivência pacífica entre colonizadores e indígenas nas frentes de expansões econômicas” (VINHA et al, 2020, p. 63), de modo que a análise do nome do órgão e de sua finalidade demonstram que entendia-se que proteger os indígenas passaria por incorporá-los ao processo expansionista de trabalho. Em alguma medida, persistiu a mesma visão dos portugueses do século XVI. Na década de 1930 o SPI foi incorporado ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio no governo do Presidente Getúlio Vargas e as populações indígenas passaram a ser classificadas como comunidades transitórias que rumariam para se tornar trabalhadores rurais. Assim, a expectativa era de que os indígenas migrassem e aceitassem o trabalho no campo a ponto de miscigenarem-se com os demais trabalhadores e, para além de características biológicas, abandonarem sua cultura, tradições, religiosidade e ritos. Ainda em 1934, o texto da Constituição determinou a posse dos indígenas sobre terras que deveriam ser gerenciadas pela União e não poderiam ser alienadas, sendo que a Carta Magna de 1967 assegurou a posse permanente das terras aos índios e a possibilidade de usufruto de seus recursos naturais. No mesmo ano, foram criadas a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o Conselho Nacional de Pesquisa Indígena (CNPI) e o Parque Nacional do Xingu. Na década seguinte, o Estatuto do Índio (1973) parecia um ganho expressivo a essa população, porém seu conteúdo buscava, ao mesmo tempo, homogeneizar as culturas indígenas ao desconsiderar suas tradições e peculiaridades e integrá-los aos demais grupos populacionais nacionais para promover seu desenvolvimento. Somente com a Constituição de 1988 os indígenas foram considerados cidadãos e passaram a gozar de direitos sociais básicos, como cidadania, respeito à sua identidade cultural e elementos dela decorrentes, como organizações sociais, costumes, crenças, tradições e línguas, de modo que não há dados atualizados sobre o tamanho da população indígena por conta de impossibilidade de realização do Censo 2020 do IBGE em virtude da pandemia do coronavírus, mas a comparação entre os levantamentos de 2000 e 2010 demonstrou um crescimento expressivo desse grupo naquele período, em que quase triplicou-se o número de indígenas: de 350.00 em 2020 para cerca de 900.000 em 2010, distribuídos em 305 povos com 274 línguas diferentes por todo o território nacional (SILVA; SILVA, 2016). Sobre esse aumento, os mesmos autores destacam que não se trata especificamente de nascimento de novos indígenas, mas também das políticas e ações de reconhecimento FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 131 dessa população e do estabelecimento, no questionário do IBGE, de pergunta que permite a autoidentificação dos respondentes, de modo que verificou-se crescente declaração como indígenas entre moradores de áreas urbanas ou fora de aldeias, o que reflete o fortalecimento de sua percepção como cidadão de direitos. Isto posto, cabe destacar que a FUNAI continua em funcionamento e é responsável pela coordenação e execução de políticas públicas destinadas aos povos indígenas no Brasil, de modo que sua missão institucional é de promover e proteger os direitos dos povos indígenas nacionais, reconhecidos em sua multiplicidade. Vinha et al (2020, p. 64) destacam que cabe à FUNAI “[...] promover estudos de identificação e delimitação, demarcação, regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, além de monitorar e fiscalizar as terras indígenas”. Contudo, os mesmos autores afirmam que a preservação das terras e da cultura dos distintos grupos indígenas é um dos grandes desafios ao governo brasileiro. De modo expressivo, a maioria das políticas que visam a igualdade material aprovadas no Brasil concentram-se no período entre 2001 e 2014, quando minorias com relação a gênero, idade, classe social e raça foram contemplados por projetos e programas sociais. Se, grosso modo, muito se fez pela população em geral, há somente algumas poucas ações e políticas específicas para a população negra, sendo que a ausência de leis anteriores expressa a maneira como o Estado assumiu a visão de que se tratava de população integrada à sociedade nacional. Como mencionado na aula anterior, em 2001 foi criado o Conselho Nacional de Combate à Discriminação (CNCD), inicialmente pensado para a questão racial, que depois ganhou mais espaço em 2003, com a criação do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR) e da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial -(antes com a sigla SEPPIR, depois alterada para SNPIR). Após anos de demandas e debates, a aprovação da Lei no 12.288/2010 instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, com vistas a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância étnica. Ainda que estruturada e reconhecida como importante marco no reconhecimento de especificidades das relações sociais vivenciadas por essa população, a elei encontrou limites em termos de oportunidades para transformações sociais na vida dos negros, FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 132 de modo que foram estabelecidas normas posteriores com vistas ao enfrentamento das desigualdades raciais. A Lei no 12.711/2012 dispôs sobre o Sistema de Seleção Unificada (SiSU), que regulamenta a garantia de reserva de 50% das vagas em universidade e institutos federais de educação para alunos oriundos integralmente do ensino médio público, em cursos regulares ou da educação de jovens e adultos, cuja candidatura para disputa das vagas está atrelada à realização, pelo candidato, da prova do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e fortaleceu a implementação de cotas sociais e raciais nas universidades públicas brasileiras, primeiro atingindo aquelas federais e posteriormente se expandindo a outras, estaduais e locais. Avançando nesse mesmo sentido de conferir oportunidades de acesso a espaços e posições, a Lei no 12.990/2014 instituiu a reserva de 20% das vagas oferecidas em concursos públicos da administração pública federal, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista controladas pela União para que se autodeclararem pretos ou pardos no ato da inscrição. Assim, mesmo que minimamente, a legislação nacional tem oferecido possibilidades de que minorias étnicas ocupem posições que características históricas e limites institucionais e culturais em muito dificultam. Contudo, há que se destacar que ainda há muito a ser superado. Assim como nos Estados Unidos, por exemplo, onde o movimento Black lives matter - vidas negrasimportam, em tradução livre - denuncia a violência sofrida majoritariamente pela população negra, dados oficiais demonstram que os negros sofrem com a invisibilidade no Brasil, como se suas vidas tamém importassem menos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 133 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/black-lives-matter-blackout-tuesday-week-1747515116 Estudos recentes expuseram dados que demonstram que a população negra está sujeita a violências e violações diversas, como a recorrência de casos de violência obstétrica concentrada entre muheres negras, os homicídios como principal causa de mortes de jovens negros em taxa cerca de dez vezes superior àquela registrada entre brancos, a dependência de cerca de 80% dos negros dos serviços do SUS, a concentração dessa população como ocupantes de favelas e aglomerados subnormais e a prevalência da presença de negros na população carcerária brasileira, em condições de subemprego e entre a população em situação de rua (CASINI, 2021; PASSOS, 2021; FERNANDES, 2021; KILDUFF, 2021). https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/black-lives-matter-blackout-tuesday-week-1747515116 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 134 Cabe destacar, para finalizarmos esta aula, que ainda em meados da primeira década deste século houve outro importante avanço no sentido de contribuir à mudança da cultura da população brasileira sobre a conformação histórica da incorporação de indígenas e negros em nossa sociedade, uma vez que as Leis no. 10.639/2003 e 11.645/2008 instituíram a educação para as relações étnico-raciais nos conteúdos de formação da educação básica no Brasil, o que significa que as gerações de cidadãos que se conformam com acesso a tais conteúdos podem desenvolver uma perspectiva cultural distinta sobre os papeis sociais e identidades de negros e indígenas em nossa sociedade. Contudo, essas leis serão abordadas em aula específica, na qual trataremos sobre a educação para os direitos humanos no Brasil, pensando tanto a escolarização formal quanto outros caminhos de informação e conscientização. ANOTE ISSO As mudanças sociais decorrentes da incorporação de indígenas e negros na sociedade de classes brasileira ainda é incipiente, mesmo passado tanto tempo após o fim de sua exploração escrava para o trabalho, uma vez que a condição de humanidade continua lhes sendo tratada como secundária. O filme “Quanto vale ou é por quilo?”, de 2005, explora a analogia da escravidão negra com a maneira com essa parcela da população é tratada no Brasil neste início de século. É uma reflexão provocadora, inquietante e até mesmo incômoda, mas muito pertinente e necessária. Fonte: O autor. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 135 CAPÍTULO 10 IDADE E GERAÇÕES Caro(a) acadêmico(a), seguimos discutindo como marcadores sociais são relevantes à conformação sociocultural e ética de nossa sociedade, desta vez focalizando em um elemento que pode parecer simples, mas revela-se complexo ao nos debruçarmos pormenorizadamente sobre ele: a idade. Nesse sentido, esta aula tem o objetivo de lhe proporcionar a ampliação de sua percepção sobre como o passar dos anos é relevante à estruturação da vida em sociedade, compreendendo como o onde você se encontra nesse debate e seus impactos sobre sua trajetória profissional e pessoal. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/people-different-age-sitting-on-blank-2092167835 Para tanto, a aula encontra-se dividida em duas seções. Na primeira, nos dedicamos a entender as justificativas que delimitam a relevância da questão etária em nossa disciplina, para o que nos apoiamos nos conceitos de geração e de ageísmo. Na segunda seção desta aula, nosso foco é direcionado às políticas públicas voltadas às demandas de grupos etários que configuram minorias no acesso a direitos sociais, quais sejam: crianças, adolescentes e/ou jovens e idosos. Você perceberá como, em comum, esses grupos têm no Brasil a institucionalização de estatutos específicos que lhes conferem garantias previstas na Constituição Federal de 1988. 10.1 A questão etária, estudos geracionais e ageísmo A idade é, dentre os marcadores sociais, talvez aquele que seja menos perceptível aos olhos da sociedade como um todo enquanto uma característica que define papeis FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 136 sociais, delimita espaços e possibilidades de ação e atuação e impõe estereótipos sociais. Isso porque tem-se a idade como marcador natural, pois a cada ano completamos uma nova idade e, portanto, esse é um aspecto biológico que pode ser compreendido como não tendo relação com a sociabilidade ou com a maneira como os grupos sociais e elementos de ordem cultural, política e econômica se colocam na coletividade. De fato, idade é um marcador biológico. Ao nascermos, inicia-se uma contagem de tempo que é igual para todos, mas não se trata – nesta aula – de discutirmos o passar dos anos, pura e simplesmente, mas as experiências sociais que conformam as vivências dos indivíduos com o passar dos anos. Assim, a abordagem implica em considerar dois aspectos. O primeiro diz respeito ao fato que a idade é cercada de ritos culturais e socio- políticos. No Brasil, são inúmeros os exemplos, como o ingresso na educação básica aos 5 anos, a possibilidade de escolher começar a votar aos 16 anos (voto facultativo) e sua obrigatoriedade aos 18 anos, o direito a obter a carteira nacional de habilitação (CNH) também a partir dos 18 anos e as restrições ao trabalho como menor aprendiz a partir de 14 anos e em tempo parcial aos 16 anos. Há ainda imposições relacionadas a outros marcadores sociais, como a obrigatoriedade de alistamento militar para indivíduos do sexo masculino no ano em que completam 18 anos, por exemplo. Por outro lado, há ainda direitos específicos, como a prioridade no processo de imunização contra a Covid-19 (coronavírus) na campanha nacional de vacinação iniciada no início de 2021, em que faixas etárias com maior idade foram as primeiras a receber os imunizantes. O contexto de pandemia da Covid-19 fez emergir discussões sobre a questão etária e suas interfaces em todo o mundo, inclusive no Brasil. No caso de crianças e adolescentes, a preocupação girou majoritariamente em torno da escolarização diante da implementação, em caráter de urgência, do ensino remoto emergencial (ERE), tendo em vista que o ensino presencial teve que ser suspenso em caráter imediato no mês de março de 2020 e as aulas passaram a ocorrer aos moldes da educação a distância (ainda que sem metodologia específica). Para jovens e adultos, o trabalho e a sociabilidade ampla foram afetados, ao passo que dentre os mais velhos foram impostas condições mais severas por conta da ausência de estudos sobre o impacto da doença, que dizimou em sua primeira onda um contingente expressivo de indivíduos com 60 anos ou mais em todo o mundo (MOREIRA et al, 2020). Essas mudanças despertaram um debate na Organização Mundial da Saúde (OMS) sobre o caráter do termo “velhice”, tanto em que 2021 o organismo internacional FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 137 mencionado propôs que essa palavra que define a faixa etária onde os indivíduos se encontram passasse a remeter a uma doença, já que foi proposta sua inclusão na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID). E qual o impacto dessa mudança? Caso vigorasse, o que não ocorreu devido a pressões de diversos países a partir de grupos sociais e políticos, significaria que a condição de saúde de pessoas com 60 anos ou mais poderia ser negligenciada pela medicina – especialmente pensando no setor público – porque eventuais tratamentos seriam desconsiderados ao considerar-se que a idade do indivíduo é o diagnósticode sua doença, o que não teria tratamento, já que não se pode reverter a passagem do tempo. Ademais, e no mesmo sentido, a morte dessas pessoas não precisaria mais obrigatoriamente ser investigada e diagnosticada (autópsia), pela mesma razão. No caso brasileiro, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) emitiu a Recomendação n. 020, de 09 de agosto de 2021, apontando recomendações contrárias à inclusão do termo velhice na CID (CNS, 2021a, online1), bem como declarou em nota que O documento do CNS considera que a possível inclusão do termo como potencial negativo que pode levar a associação da velhice como uma doença e desta forma mascarar problemas de saúde reais para a pessoa idosa, além de aumentar o preconceito e o estigma à esta população, interferindo no tratamento e pesquisa de enfermidades e na coleta de dados epidemiológicos (CNS, 2021b, online2). Perceba, caro(a) estudante, que pensar sobre idade não é apenas considerar o fluxo do tempo sobre os corpos dos indivíduos, mas compreender que há direitos e deveres específicos que se relacionam com esses marcos temporais e também considerar as interseccionalidades que se colocam diante de grupos com a mesma faixa etária e outras características diferentes, como os marcadores de sexo e gênero, de raça e de classe social. Tais aspectos perpassam as experiências de vida das pessoas de diferentes maneiras, com atravessamentos que lhes oferecem privilégios ou sanções, a depender da condição individual, ao que cabe um importante conceito: as gerações. Conforme Debert (1998), a perspectiva da utilização do conceito de gerações para a promoção de uma periodização da vida humana consiste na tentativa de superar a análise unicamente biológica de contagem da passagem do tempo, o que corrobora com a visão do clássico sociólogo Karl Mannheim em seu estudo “O problema sociológico 1 http://conselho.saude.gov.br/recomendacoes-cns/1956-recomendacao-n-020-de-09-de-agosto-de-2021 2 http://conselho.saude.gov.br/ultimas-noticias-cns/1959-cns-e-contrario-a-inclusao-do-termo-velhice-em-classificacao-internacional-de- doencas FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 138 das gerações” (1928), em que se dedica a compreender os espaços sociais e as experiências individuais de modo conexo, a fim de analisar as vivências coletivas no tempo e espaço. Para o autor clássico, a reflexão sobre essas vivências coletivas nos permitiria compreender o comportamento humano e o desenvolvimento social da humanidade, em que é possível pensarmos o diálogo entre a importância das gerações e aspectos de ordem sócio-cultural e ética. Nesse sentido, Mannheim (1928) determinou que a questão das gerações deve ser considerada sob três ramificações: a posição geracional, a conexão geracional e a unidade geracional – aspectos que são atravessados, em diferentes medidas ao longo do tempo e espaço, por marcadores sociais como aqueles anteriormente mencionadas nesta aula. A posição geracional diz respeito às condições de localização dos indivíduos no tempo e no espaço, ou seja, o lugar onde essas pessoas habitavam ou habitam em determinado período. Assim, para considerar um grupo geracional é condição necessária que estejam situados no mesmo espaço-tempo. Assim, a posição geracional deve ser pensada para cada grupo no tempo e no espaço que ocupa, sendo que não seria adequado comparar grupos geracionais de diferentes países, por exemplo, entre as décadas de 1990 e 2010, pois ainda que haja condições sociais semelhantes em termos de indicadores – como aqueles de desenvolvimento social e econômico – há aspectos de ordem política, cultural e histórica que são específicos de cada local, de modo que as experiências dos grupos tendem a ser diferentes. O mesmo vale se pensarmos a população de um mesmo país ao longo do tempo, uma vez que cada nova geração vivencia experiências que sobrepõem de algum modo a anterior, mas isso depende, em maior ou menor intensidade, justamente dos avanços, produções, delimitações e arranjos que as gerações anteriores produziram. A segunda ramificação exposta por Mannheim (1928) é a conexão geracional, que consiste no estreitamente da noção de posição geracional no sentido de que não basta estar no mesmo espaço-tempo, mas é preciso que haja partilha de valores, direitos e deveres, moral e ética, aspectos políticos, sociais, econômicos e culturais entre os indivíduos para que possam ser considerados de modo agrupado. E por quê? Porque só é possível considerar um grupo geracional se suas experiências e vivências forem perpassadas pelas mesmas características sociais gerais, ou seja, não é necessário que todos os indivíduos vivenciem as mesmas situações ou enfrentem os mesmos problemas ou gozem dos mesmos benefícios, mas é essencial que esse conjunto de pessoas esteja submetido ao mesmo contexto social geral. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 139 Como explica Silva (2020, p. 24): Não basta, portanto, nascer em um determinado período para estar conectado geracionalmente, mas, a conexão surge por meio da adesão as possibilidades impostas pelos processos em curso, o que significa que o grupo de pessoas nascidas entre as décadas de 1940 e 1960, por exemplo, ao compartilhar determinadas tendências comportamentais, maneiras de agir, ser e pensar, configurados de acordo com as forças sociais em que estão imersos, conectam-se geracionalmente, pois aderem as possibilidades de possuir uma experiência comum do tempo histórico em que vivem, possibilidades estas que são emergentes da sua posição geracional. No entanto, é possível haver diversas perspectivas dentro deste grupo, condicionadas pela condição de classe, cor, gênero, orientação sexual, entre outros, essa diversidade de perspectivas forma as unidades de geração. Por fim, a ramificação da unidade geracional trata da maneira como os indivíduos se relacionam no âmbito de uma sociedade em que convivem no espaço-tempo (posição geracional) sob as mesmas normas e valores (conexão geracional), baseado nas afinidades e experiências comuns partilhadas por conjuntos de indivíduos no interior do grande grupo social. Assim, o que confere a unidade geracional são as identidades conformadas pelos indivíduos nessa sociedade – sobre o que tratamos anteriormente – e o modo como os marcadores sociais se revelam transversais na vida de cada um: ser homem ou mulher, a orientação sexual e de gênero, a raça ou etnia, estar trabalhando ou desempregado, a condição de classe social e renda e possuir alguma deficiência ou não, por exemplo, são aspectos que se somam à idade dos indivíduos para compor suas experiências e a construção de identidades coletivas que geram a unidade geracional. Assim, tem-se em Mannheim (1928) a perspectiva de que não é correto limitar os indivíduos à classificação por sua idade, pois são múltiplos os aspectos que estruturam as experiências de vida em sociedade. Nesse sentido, Silva (2020) afirma que o conceito de geração do autor clássico permite o dimensionamento das vivências de grupos, que podem ser antagônicos, e nos permite depreender as interações sociais a partir da dinâmica que denota a inexistência de estruturas sociais rígidas e estáticas. Isso significa que a formação de uma sociedade compreende movimentos de interação entre os agentes sociais, esses movimentos se materializam em um conjunto de eventos que apenas são possíveis a partir da produção de seres individuais que compartilham experiências em comum (SILVA, 2020, p. 26). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 140 É o mesmo argumento desenvolvido por Simmel (2006) ao expor que as interações sociais representam a base dos sistemas sociais, pois a ação dos indivíduos é capaz de reforçar, questionar, modificar ou transformar os processos sociais e a sociedade como um todo. Mas, agora nos encaminhando para o fim desta primeiraseção da nossa décima aula, você já se perguntou que diferença faz em sua vida ou em sua formação esse debate? Pense no público que atenderá, as pessoas com quem terá contato profissional, com quem trabalhará e também sua vida pessoal… As generalizações fazem sentido para você? As noções de que aos 17 ou 18 anos precisamos definir nosso futuro profissional e ingressar na faculdade para cursar a graduação que nos proporcionará o trabalho que teremos até a aposentadoria já não se coloca como em décadas anteriores. A ideia de que devemos nos casar “cedo” para constituir família antes dos 30 anos, quando já se deve ter atingido “estabilidade financeira” também não é uníssona, assim como se modificaram elementos relacionados às atividades adequadas para crianças – com a inserção de aulas de robótica, por exemplo, na educação básica – e a maneira como a sociedade olha para os idosos. Aliás, a própria noção de idoso é parte do imaginário social e está estabelecida na sociedade como se a partir dos 60 ou 65 anos, pelo senso comum, pensando a idade para aposentadoria no Brasil, nos tornássemos idosos. Contudo, Mantovani, (20073) apresenta diferentes classificações para o envelhecimento, com destaque àquela da OMS, que categoriza os indivíduos como estando na faixa de meia idade entre 45 e 59 anos, como idosos dos 60 aos 74 anos, como anciões entre 75 a 90 anos e em velhice extrema para aqueles acima de 90 anos (WEINECK, 1991). Isto posto, o envelhecimento é uma condição biológica a qual todos estão sujeitos, caso a vida persista ao longo de décadas, de modo que compreender como cada idade representa distintas experiências para grupos sociais também diferentes é importante a profissionais e cidadãos. Uma criança de classe baixa e outra de família com alta renda enfrentam realidade sociais dissonantes que se configuram para além de sua idade e tendem a definir os delineamentos possíveis ao seu desenvolvimento social, como o acesso ao ensino básico de qualidade, a possibilidade de ingressar no ensino superior e os empregos que poderão pleitear. 3 https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/diagnostico_vinhedo_cap13.pdf https://www.fef.unicamp.br/fef/sites/uploads/deafa/qvaf/diagnostico_vinhedo_cap13.pdf FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 141 https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/elderly-man-sitting-line-interview-human-222101434 O mesmo vale para homens e mulheres e minorias de gênero em diferentes espaços sociais e também para grupos étnico-raciais não brancos, cujas experiências são impactadas ao longo de sua vida considerando sua idade mas também para além desse marcador biológico, uma vez que há situações relacionadas à faixa etária dos indivíduos e outras que se perpetuam independentemente de sua idade, como situações de preconceito, desrespeito, estigmatização e intolerância – como abordado em aulas anteriores. Ainda em diálogo com as aulas passadas, na próxima seção desta aula o foco recai sobre políticas públicas específicas para grupos etários, o que dialoga diretamente com a noção de gerações, de modo amplo e em suas ramificações. 10.2 Políticas públicas para minorias etárias Faz sentido falarmos sobre direitos de minorias quando nos referimos a questões etárias? São necessárias políticas públicas específicas conforme a idade dos indivíduos? Essas são duas perguntas que podem permear seus pensamentos nesse momento, as quais são elucidadas já no início desta seção, pois a resposta para ambas as perguntas é sim! FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 142 As políticas públicas sociais no Brasil não são, todas, universais, de modo que a Constituição Federal de 1988 e demais legislações vigentes apresentam especificidades para grupos, a despeito da prerrogativa de que todos os cidadãos brasileiros são iguais perante a lei. Na Carta Magna, o destaque cabe à preocupação com crianças e adolescentes, o que se estende à obrigatoriedade da existência de conselhos gestores em todos os municípios para tratar de políticas para esse contingente populacional, além de outros órgãos, como os conselhos tutelares. Fato é que, historicamente, as políticas sociais no Brasil foram estabelecidas com foco nos trabalhadores, não na população em geral. Desde a segunda metade do período monárquico e depois nas primeiras décadas do período republicano, a massa de trabalhadores vivia afastada dos espaços urbanos com alguma infraestrutura, relegados a condições de moradia e trabalho péssimas, sujeitos a fuligens que poluíam o ar em decorrência das fábricas, moradias precárias em favelas, cortiços e habitações no entorno dessas fábricas, poluição sonora e também contaminação do solo e da água, sem acesso a tratamento de água e esgoto (FERNANDES, 1978). Conforme evidencia Camargo (1982), não havia políticas públicas que garantissem condições mínimas de sobrevivência aos trabalhadores, sendo que as primeiras organizações por direitos e reivindicações sociais foram tratadas sob ao estigma de se tratarem de vagabundos, degenerados, avessos ao trabalho, portanto responsabilizados por sua condição social (KHOURY, 1981). Os primeiros direitos sociais determinados constitucionalmente foram estabelecidos aos trabalhadores registrados por meio da Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) de 1943, conferindo a dimensão de cidadãos somente à parcela da população que desempenhava funções laborais no espaço urbano e em empresas (SOUZA, 1976), comércios e indústrias que efetuassem o registro formal, porém tal reconhecimento era determinado pela existência de reconhecimento da profissão e seu sindicato pelo governo federal. Tal reconhecimento restrito foi definido por Santos (1979) como cidadania regulada, pois remetia-se à ideia de que o acesso à cidadania era determinada pela regulação do governo sobre as atividades laborais e organização dos trabalhadores brasileiros. […] são cidadãos todos aqueles membros da comunidade que se encontram localizados em qualquer um das ocupações reconhecidas e definidas em lei. Neste sentido a expansão da cidadania pode se dar pela regulamentação de novas profissões e / ou ocupações, e mediante a ampliação do escopo de direitos associados a estas profissões, antes que por meio dos valores inerentes aos conceito de membro da comunidade. A cidadania está embutida na profissão e os direitos do cidadão restringem-se aos direitos do lugar que ocupa no processo produtivo, tal como reconhecido por lei (SANTOS, 1979, p. 75). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 143 Assim, foi um período em que os trabalhadores vivenciaram um conflito entre seus interesses enquanto categoria e o acesso às políticas sociais públicas, pois somente os sindicatos que atuassem em conformidade com a perspectiva do governo teriam suas profissões reconhecidas e o consequente acesso dos trabalhadores aos direitos sociais. Em contrapartida, esses mesmos trabalhadores precisariam amenizar ou mesmo abandonar lutas sociais por garantias laborais para que seus sindicatos não sofressem represálias do governo Vargas (GOMES, 2005). Após a redemocratização na década de 1980 os direitos sociais foram expandidos e os trabalhadores passaram a ser considerados em sua totalidade, urbanos e rurais, formais e informais, das mais diferentes profissões e independentemente de terem ou não sindicatos organizados. Isso significa que os direitos ao grupo etário que se encontra em idade produtiva e partilha condições geracionais semelhantes na vida adulta é o direito majoritariamente garantido, até mesmo porque são esses indivíduos que contribuem ao fluxo da economia no país – o que retomaremos em aula posterior, ao discutirmos sobre o trabalho. Se a vida adulta está no centro do debate sobre direitos, os demais grupos etários são consideradas minorias em termos de acesso a esses direitos e políticaspúblicas sociais, sendo que destacamos nesta seção os marcos institucionais decorrentes de estatutos criados para definir os direitos de crianças e adolescentes, dos jovens e dos idosos. Nesse sentido, cabe destacar que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) considera como seu público a população até os 18 anos de idade, ao passo que o Estatuto da Juventude define como jovens os indivíduos com idade entre 15 e 29 anos – havendo certa sobreposição nas idades de 15 a 18 anos dos termos e direitos referentes a adolescentes e jovens – e o Estatuto do Idoso define como tais todos que atingem 60 anos ou mais, sem distinção em categorias, como sinaliza a OMS e foi mencionado no fim da primeira seção desta aula. Em se tratando de crianças e adolescentes, a história nacional é de ausências e fragilidades, já que esses grupos foram negligenciados pelo Estado por séculos, já que a primeira legislação específica data de 1927, ano da aprovação do Código de Menores, cuja preocupação era com a recuperação ou regeneração de menores infratores, pois até então cabia o olhar público especificamente sobre crianças e adolescentes abandonados e/ou em situação de delinquência. Aos primeiros cabia a caridade praticada pelas famílias abastadas e as igrejas, aos demais aplicou-se o referido código (RUSSO, 2012). Conforme destacam Castro e Macedo (2019), os órgãos destinados à política pública para crianças e adolescentes foram inicialmente criados com o intuito de repressão e correção: o Serviço de Assistência ao Menor em 1941, substituído pela Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM) e pelas Fundações Estaduais FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 144 do Bem-Estar do Menor (FEBEMs). Conforme as autoras, tais órgãos balizaram-se pela perspectiva de que crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade eram considerados como em situação de irregularidade, o que gerou ações expressivas do Estado, especialmente durante a ditadura militar, marcada por denúncias de violência contra esses grupos. Após a redemocratização, a promulgação da Constituição de 1988 foi marcada pela atuação de movimentos sociais e instituições como o Movimento nacional de Meninas e Meninas de Rua, a Pastoral da Criança da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Fórum dos Direitos das Crianças e Adolescentes, que redefiniram as políticas para atender crianças e adolescentes em situações como trabalho infantil, abandono e extrema pobreza. Dois anos depois, foi aprovado o ECA, por meio da Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Desde então, crianças e adolescentes passaram a ser considerados sujeitos de direitos, com garantias de prioridades e política de proteção integral. Ademais, definiu-se no artigo 4o que É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 1990). De acordo com Castro e Macedo (2019), o ECA promoveu a superação do assistencialismo em favor de direitos, do foco na delinquência para a proteção integral e da promoção do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, independente de se encontrarem em situação de vulnerabilidade. Ademais, destaque-se que o ECA considera crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, sendo crianças os indivíduos com até 12 anos e adolescentes aqueles entre 13 e 18 anos. Além disso, desde 2006 encontra-se em funcionamento o Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente (SGDCA), responsável pela criação de órgãos e pela operacionalização dos direitos constantes no ECA. Avançando ao Estatuto da Juventude, este também decorreu de avanços na legislação brasileira, que durante muito tempo tratou apenas de jovens na condição de menores infratores, aos quais era imputada a participação em programas de reabilitação para que superassem sua condição de risco e fossem reinseridos na sociedade. Castro (2013) afirma que o público-alvo das ações para a juventude eram jovens em situação de delinquência e/ou violência urbana. Com o avanço de governos progressistas, pautas de minorias foram encaminhadas ao Estado e grupos sociais diversos estabeleceram diálogos com o poder público, FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 145 incluídos os jovens. Com intenso engajamento político e mobilização, os jovens galgaram importantes conquistas nas primeiras décadas deste século: primeiro a Lei Nº 11.129, de 30 de junho de 2005 que instituiu o Programa Nacional de Inclusão de Jovens (ProJovem), criou o Conselho Nacional da Juventude (CNJ) e a Secretaria Nacional de Juventude; depois a realização de Conferências Nacionais de Políticas Públicas para a Juventude em 2008, 2011 e 2015; por fim, em decorrência da Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013, a instituição do Estatuto da Juventude e do Sistema Nacional de Juventude (SINAJUVE). Essa mudança de paradigma só pôde ocorrer porque um ator se fez presente: jovens disputando seu reconhecimento. A temática juventude no âmbito governamental ganhou contornos mais dialógicos a partir dos anos 2000, com a intensificação e ampliação de processos organizativos da juventude nos partidos políticos, movimentos sociais, e em uma infinidade de outras formas de organização política e cultural. O tema conquistou, assim, densidade política e, nesse sentido, desenha-se um campo de disputa de políticas públicas com a configuração de categorias identitárias de juventude (CASTRO; MACEDO, 2019, p. 1225). Em seu texto, o Estatuto da Juventude estabelece os direitos dos jovens, caracterizando-os como pessoas com idade entre 15 e 29 anos, respeitada a aplicação do ECA àqueles em idade de sobreposição dos estatutos (15 a 18 anos) e considerado o Estatuto da Juventude para tais indivíduos somente em casos em que não houver conflito com o ECA. O Estatuto da Juventude define aos jovens o direito à cidadania, à participação social e política e à representação juvenil; direito à educação; direito à profissionalização, ao trabalho e à renda; direito à diversidade e à igualdade; direito à saúde; direito à cultura; direito à comunicação à liberdade de expressão; direito ao desporto e ao lazer; direito ao território e à mobilidade; direito à sustentabilidade e ao meio ambiente; e direito à segurança pública e o acesso à justiça. Ademais, o referido Estatuto determina que a promoção de políticas públicas para a juventude deve considerar diretrizes decorrentes das Conferências Nacionais de Juventude, em que os jovens, organizados politica e socialmente, têm condições de participar e apresentar demandas e expectativas, considerada a amplitude de unidades geracionais em que se localizam. Por sua vez, o Estatuto do Idoso adveio da necessidade de estabelecer direitos e garantias a um público anteriormente desconsiderado de legislações por já ter cumprido seu papel social – no senso comum – no âmbito do trabalho. Conforme Silva e Momesso (2012), a velhice é impactada por diferentes representações: o idoso FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 146 como ser capaz de vida autônoma e plena versus o idoso como frágil, impotente e dependente de cuidados alheios. Como exposto na seção anterior, a noção de velhice é perpassada por marcadores sociais e geracionais, portanto, deve-se considerar que são múltiplos os perfis desse grupo etário. [...] expressões como “terceira idade” ou “melhor idade” são produtos dos tempos atuais, usualmente utilizadas nas proposições relativas à criação de atividades sociais, culturais e esportivas. Ou seja, tais expressões designam os aposentados dinâmicos, visados por um novo mercado que engloba desde produtos alimentarese de beleza a atividades de turismo e lazer (SILVA; MAMESSO, 2012, p. 52). Tendo em vista que a população mundial em geral esta envelhecendo, assim como tem-se identificado especialmente nas últimas décadas no Brasil (HELAL; VIANA, 2021), a sociedade tem se preocupado cada vez mais com a maneira como está preparada – ou não – para lidar com esse contingente populacional. Os dados nos gráficos a seguir, extraídos de projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) demonstram a expectativa de envelhecimento da população brasileira entre os anos de 2022 e 2060. Projeção da população do Brasil (2022-2060) Fonte: https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html https://www.ibge.gov.br/apps/populacao/projecao/index.html FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 147 Um exemplo é a ampliação dos profissionais da saúde voltados ao público idoso, como geriatra, gerontólogos e cuidadores. Outro exemplo é a preocupação com questões cotidianas que envolvem tal grupo etário, como a participação sociocultural das pessoas idosas (CARVALHO, 2022), a necessidade de contenção de idosos em instituições de longa permanência (BARROS et al, 2022) e o enfrentamento dos crimes contra tal público (ANJOS, 2022) no contexto da pandemia e questões mais amplas e com potencial para atingir a toda a população idosa, como o debate sobre a isenção tributária (BATISTA, 2022). Por outro lado, ao pensarmos sobre os idosos e o mercado de trabalho, já há algumas décadas atingir os 60 anos não é mais sinônimo de aposentadoria e reclusão, mas, ao contrário, é cada vez mais recorrente o número de idosos que retorna ao mercado de trabalho após a aposentadoria – majoritariamente por conta da reduzida percepção financeira recebida, mas alguns por conta da sociabilidade que o ambiente laboral proporciona – e essa alteração tem evidenciado um fenômeno social já percebido por Butler (1969) há algumas décadas nos Estados Unidos, mas ainda pouco discutido no Brasil: o ageísmo. Estudos referenciados por Helal e Viana (2021) denotam que o ageísmo ou etarismo consiste na estigmatização de indivíduos por conta de sua idade, do que decorrem preconceito e estereotipificação de grupos geracionais, podendo ser jovens ou idosos, porém com efeitos mais expressivos sobre os idosos, uma vez que – diferentemente dos jovens, que alteram sua condição juvenil ao adentrar a vida adulta – aqueles que atingem a velhice estão “presos” a tal condição pelo restante de suas vidas. Assim, o ageísmo tem como base a preocupação com o envelhecimento, tratado como um problema, de modo que o autor que cunhou o termo explica que: Existem três distinguíveis, mas inter-relacionados aspectos do problema do envelhecimento: 1) Atitudes pré-judiciais em relação aos idosos, com idade avançada e com o processo de envelhecimento, incluindo atitudes dos próprios idosos; 2) práticas discriminatórias contra os idosos, particularmente no emprego, mas em outros papéis também; e 3) práticas e políticas institucionais que, frequentemente sem malícia, perpetuam crenças estereotipadas sobre os idosos, reduzam suas oportunidades de vida satisfatória e minar sua dignidade pessoal (BUTLER, 1980, p. 8). Assim, é perceptível que os idosos constituem minoria em termos de direitos, ainda que, diferentemente de crianças e adolescentes, venham a dispor de alguma fonte FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 148 recorrente de renda. Nesse sentido, destaca-se a aprovação do Estatuto do Idoso por meio da Lei no 10.741, de 1 de outubro de 2003 no Brasil. Conforme Veras e Oliveira (2018), até o século XX predominou no Brasil a segregação dos idosos, com seu afastamento social, político e econômico e prática recorrente de internação em asilos. Assim como para tantas outras áreas de políticas sociais e direitos de minorias, a alteração em tal condição decorreu da Constituição Federal promulgada em 1988, a partir da qual a perspectiva de participação popular incentivou a realização de seminários e espaços para diálogos e debates que culminaram na sensibilização dos governos e da sociedade para a questão da velhice. A Política Nacional do Idoso é datada de 1994, quando a Lei nº 8842 inaugurou as discussões específicas sobre o tema, priorizando aspectos como o convívio em família em detrimento do atendimento asilar e a definição de pessoa idosa como aquela maior de 60 anos de idade. Nesta lei é definido que a garantia dos direitos da população idosa compete à família, à sociedade e ao Estado. Ainda na mesma década a Portaria nº 1395/1999 do Ministério da Saúde instituiu a Política Nacional de Saúde do Idoso (PNSI) com vistas à promoção do envelhecimento saudável, com foco na prevenção de doenças, recuperação da saúde, preservação e/ou reabilitação da capacidade funcional dos idosos, tendo como expectativa uma vida autônoma. Contudo, como destacam Veras e Oliveira (2018), os movimentos sociais de pensionistas e aposentados – e aqui note-se novamente a importância das ações coletivas à estruturação de políticas sociais e direitos de minorias no Brasil pós- redemocratização – já se mobilizavam desde 1997 pelo estabelecimento de um arcabouço legal específico para tal contingente populacional, o que ocorreu em 2003 com a aprovação do Estatuto do Idoso. De acordo com os mesmos autores, trata-se de um documento com 118 artigos que consolidam direitos conferidos em leis federais, estaduais e municipais que versam sobre saúde, educação, cultura, esporte e lazer, profissionalização e trabalho, Previdência Social, assistência social, habitação, transporte, fiscalização de entidades de atendimento e tipificação de crimes contra os idosos. Assim, tem-se no Estatuto do Idoso uma legislação específica para a garantia de direitos sociais às pessoas com 60 anos ou mais no Brasil, o que em tese é garantido na Constituição mas, assim como para crianças, adolescentes e jovens, não necessariamente se encontra materializado no cotidiano nacional. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 149 ANOTE ISSO As gerações vivenciam cada vez mais experiências diferentes, tanto que a noção de tempo e espaço se altera com frequência em diálogo com condições relacionadas ao acesso à internet e sociabilidades em geral. Em artigo publicado na Revista de Saúde Coletiva Physis, Freitas Silva (2008) expõe como as vivências geracionais nesse mundo globalizado têm propiciado o surgimento de novas identidades e a reinvenção de gerações, como a velhice e a juventude. Fonte: O autor, baseado em “Terceira idade: nova identidade, reinvenção da velhice ou experiência geracional?” Um detalhe relevante sobre a questão das políticas para grupos etários específicos, mencionado ao longo desta aula em ambas as seções e que retomamos neste parágrafo a fim de concluir o assunto é a importância de sempre considerarmos as especificidades relacionadas aos marcadores sociais que acompanham a caracterização etária dos brasileiros. No caso dos idosos, significa considerarmos os impactos da oferta e acesso a políticas públicas, como, por exemplo, para homens e mulheres em uma cultura machista em que homens procuram menos os serviços de saúde para cuidados pessoais, os impactos das atividades desenvolvidas ao longo da vida – especialmente no trabalho – sobre a condição de saúde física dos idosos, as diferentes possibilidades de lidar com a aposentadoria enquanto fase da vida para descanso ou a necessidade de trabalhar para complemento de renda e os diferentes impactos da velhice para minorias étnicas, de gênero e sexualidade e com deficiências, dentre outros aspectos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 150 CAPÍTULO 11 PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Caro(a) acadêmico(a), assim como para diversos marcadores sociais que aqueles que não se encontram na condição deminoria é difícil compreender as necessidades do outro e mesmo quais políticas públicas existem para tal público, temos a questão da deficiência como importante tema a ser debatido em sua formação profissional e cidadã. Por um lado, é cada vez mais recorrente a possibilidade de que você venha a conhecer ou trabalhar com pessoas com alguma deficiência ou que você seja uma pessoa com deficiência inserida em espaços profissionais em que nem sempre há inclusão. Por outro lado, é salutar a todos os cidadãos terem noção da relevância de olharem para o outro em suas especificidades, sem julgamentos. Nesse sentido, na primeira seção desta aula discutimos aspectos legais internacionais e nacionais sobre normas que tratam de direitos para pessoas com deficiência, tendo em vista a compreensão desse público como historicamente desfavorecido em termos de atenção e cuidado. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/group-diverse-people-disabilities-work-together-1902009634 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 151 Na segunda seção, nos debruçamos sobre políticas públicas brasileiras para as pessoas com deficiência, estabelecendo o que dispomos atualmente em termos de assistência social e inserção no mercado de trabalho, ressalvadas as críticas e/ou limites da inclusão – ou, por vezes, ainda integração – desse público à sociedade em geral. 11.1 A deficiência como questão social e legal A deficiência é uma das problemáticas mais delicadas dentre os múltiplos marcadores sociais com os quais nos deparamos ao analisarmos políticas públicas voltadas às demandas sociais e necessidades de grupos que dispõem de acesso restrito aos direitos sociais que deveriam ser amplos a todos. Antes de abordarmos o tema em si, cabe uma breve reflexão: Você faz ideia de quantas pessoas com deficiência vivem no Brasil hoje? Há pessoas com deficiência nos meios sociais onde você circula? Parecem perguntas simples, mas que relacionam diretamente com a percepção de cada um sobre o que é deficiência e as necessidades desse público, que não é pequeno! De acordo com os dados do último Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2010 – ressaltando que devido à pandemia de Covid-19 não foi realizado o Censo em 2020 – em torno de 24% ou 46 milhões de brasileiros podem ser consideradas pessoas com deficiência. Conforme Barboza e Almeida Junior (2017), de acordo com dados da Organização Mundial de Saúde, entre a população mundial mais de um bilhão de pessoas têm alguma deficiência, o que significa mais de 15% do total. Diferentemente de características como sexo, gênero, etnia, raça ou idade, a palavra “deficiência” carrega estigmas que nem sempre remetem ao preconceito no sentido de determinar o outro como limitado em si, já que não raras vezes nos deparamos ao longo da vida com diálogos como: “Você ficou sabendo que a filha do chefe nasceu deficiente?” respondido com “Nossa, coitado, vai ter que cuidar a vida toda” ou “Que tristeza para a família”. Assim, imputa-se uma condição de impossibilidade de viver em condições, mesmo que parcialmente, semelhantes aos demais. Para Plaisance (2010), são múltiplas as representações da deficiência em nosso cotidiano, que recorrentemente manifestam preconceitos e julgamentos sobre o outro e conduzem a atitudes de discriminação ou de rejeição na maioria das situações e em diversos ambientes. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 152 Nas palavras do autor: As palavras que se utilizam são carregadas de sentidos: anormal, retardado, débil, incapaz, inválido etc. Alguns desses termos perderam espaço no campo científico, mas ainda são de uso popular corrente, e os termos da moda (“necessidades especiais”) nem sempre são desprovidos de conotações depreciativas e, portanto, negativas em relação à pessoa (PLAISANCE, 2010, 21). Em discussões sobre a classificação de pessoas com deficiência por organismos internacionais, Plaisance (2010), Silva, Leitão e Dias (2016) e Barboza e Almeida Junior (2017) destacam a relevância da Organização Mundial de Saúde (OMS), responsável pela proposição de muitas definições e modelos de compreensão sobre a deficiência ao longo dos anos, sempre tendo como principal objetivo o de proporcionar a oferta de uma descrição precisa e detalhada sobre o assunto de modo complementar à Classificação Internacional de Doenças (CID). Para tanto, essa descrição é acompanhada de informações sobre consequências das diferentes deficiências, sendo que Plaisance (2010) afirma que há ainda a preocupação em comunicar tais informações com uma linguagem comum entre especialistas. Na década de 1980, a OMS estabeleceu a deficiência como um tipo de desvantagem social eventualmente sofrida por um indivíduo em virtude de limitações às suas capacidades, de modo que, portanto, considerar que alguém possui uma deficiência passa por aspectos físicos (de saúde) e as normas sociais de um grupo. Plaisance (2010) destaca que tal delimitação constituiu uma visão ampla e social sobre a deficiência, em que o reconhecimento de alguém como “deficiente” decorre de também de normas sociais, tanto que o autor menciona argumentos presentes no quadro teórico sobre o tema de que “com a mesma deficiência, uma pessoa por ser ‘normal’ em um contexto social, mas ‘anormal’ em outro” (PLAISANCE, 2010, p. 26). Desde então, os modelos de classificação evoluíram e se alteraram ao longo do tempo e conforme as classificações médicas de países, mas segue a OMS como referência no que esse refere à determinação de diagnósticos sobre pessoas com deficiência. Atualmente, a classificação em vigor data de 2001 e é denominada Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), sistematizado como um esquema interativo que considera as funções orgânicas e as estruturas anatômicas do corpo, as atividades e a participação social. Assim, pode-se afirmar que a CIF considera FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 153 o funcionamento global do corpo do indivíduo com relação a aspectos contextuais, ambientais e pessoais, de modo que a deficiência passa a ser considerada como uma característica em um esquema global de saúde e doenças. Nesse sentido, há cerca de duas décadas Singly (2005) já observava e apontava que as pessoas com deficiência lutam para que tal aspecto de sua condição de saúde seja tratado como apenas uma característica ou parte constitutiva de sua identidade global. Lembre-se, caro(a) estudante, que em uma de nossas primeiras aulas discutimos sobre a multiplicidade de nuances que conformam nossa identidade – ou identidades, tomadas no plural pela maneira como podemos mobilizar determinados aspectos em situações, espaços ou momentos – e aquela discussão está alinhada à demanda reivindicatória dessa parcela da população, que espera não ser reduzida ao estigma vitimizador, mas considerada também em suas outras necessidades e modos de sociabilidade, como sexo e gênero, aspectos étnicos e culturais, habilidades e conhecimentos para inserção no mercado de trabalho etc. Nesse sentido, Plaisance (2010) alertou que as práticas de discriminação são cada vez mais consideradas ilegítimas, ao que espera-se, especialmente com o avanço na circulação de informação de maneira rápida e ampla até o início da década de 2020, que toda forma de preconceito e intolerância sejam denunciadas e combatidas, a fim de que vigoram cada vez menos em nossa sociedade. Avançando do campo de saúde para a educação, é pertinente destacar que até a virada para a década de 1980 tratava-se os alunos como deficientes, portanto passíveis de medicalização e sem preocupação com as especificidades de suas capacidades e/ ou dificuldades cognitivas no processo de escolarização. Desde então, ganhou força a expressão “necessidades educativas especiais”, que denota a perspectivade que as análises e as ações devem buscar superar problemas de aprendizagem em favor dos indivíduos, não da medicalização que pode não contribuir em nada com seu desenvolvimento. Ao longo da década de 1980, tal expressão ganhou destaque ao ser adotada por muitos organismos internacionais de grande expressão, como a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), por exemplo, ao que Plaisance (2010, p. 28) destaca que: FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 154 Assim, em 1994, o encontro de Salamanca, na Espanha, coordenado pela Unesco, culminou em uma declaração sobre os princípios, as políticas e as práticas no âmbito das necessidades educativas especiais. A Declaração de Salamanca diz que o princípio da educação para todos inclui necessariamente a educação de pessoas com necessidades educativas especiais. Ao mesmo tempo, estabelece o princípio da educação “inclusiva”, que implica mudanças nas escolas “regulares” para o acolhimento da diversidade dos alunos. Ao nos voltarmos especificamente para o caso brasileiro, temos que a Constituição Federal de 1988 garantiu direitos sociais básicos às pessoas com deficiência, especialmente pensando em sua inserção no mercado de trabalho e por meio de ações no campo das políticas de assistência social, ou seja, buscaram, por um lado, sua integração ao mercado – em necessariamente considerar sua inclusão – e a garantia de benefícios sociais. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/6-pictograms-representing-different-disabilities-blind-1934764802 Como destacam Barboza e Almeida Junior (2017), o texto constitucional afirma que todos os brasileiros devem ser iguais perante a lei, sem distinções de qualquer natureza, e que é vedada toda forma de tratamento desumano ou degradante, inclusive a discriminação em termos de admissão e salário às pessoas com deficiência, conforme consta no inciso III do artigo 5o e no inciso XXXI do artigo 6o da Constituição (BRASIL, 1988). FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 155 Entretanto, além desses aspectos gerais, em diversos elementos da Constituição Federal há respeito às especificidades e necessidades das pessoas com deficiência, como sistematizam Barboza e Almeida Junior (2017, p. 20) em sua análise ao elencarem: […] à reserva de percentual dos cargos e empregos públicos (art. 37, VIII); à adoção de requisitos e critérios diferenciados para a concessão de aposentadoria (art. 40, § 4o, I e 201, § 1o); à assistência social com o objetivo de habilitação, reabilitação e promoção de sua integração à vida comunitária (art. 203, IV); à garantia de um salário mínimo de benefício mensal, desde que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (art. 203, V); à garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (art. 208, III); à garantia de acesso a logradouros e edifícios de uso público e a veículos de transporte coletivo, a depender de disposições legais infraconstitucionais (art. 227, § 2o e 244). Tais disposições, segundo os mesmos autores, têm caráter assistencial, uma vez que buscam diminuir os impactos de diferenciações sociais sem atacar o problema em si, ou seja, buscam reduzir as disparidades das pessoas com deficiência com relação às demais sem necessariamente promover sua integração na sociedade. E caso você esteja se questionando por quê isso seria um problema, a resposta é direta: se uma sociedade busca reduzir os efeitos da discriminação e/ou da estigmatização de um grupo sem que ocorra em paralelo uma mudança social efetiva em termos de reconhecimento das diferenças e promoção de uma cultura com valores inclusivos, o problema sempre persistirá, o que significa que sempre serão necessárias políticas assistenciais reparadoras porque a “raiz” da questão não está sendo enfrentada. Em outras palavras, significa afirmar que não estaremos buscando acabar com o problema, mas apenas minimizar seus efeitos, ao que cabe um exemplo simples relacionado à área de saúde: a discriminação e a falta de informação sobre as pessoas com deficiência pode ser comparada a uma doença, sendo que se houver apenas ações e políticas assistenciais estaremos tratando os sintomas da doença para que as pessoas deixem se sentí-los, mas não atacaremos a doença em si, o que carece de revisitarmos nossa formação sociocultural e ética enquanto nação. É essa mudança, que pode ser comparada a uma vacina neste exemplo figurativo, que faria com que a “doença” discriminação contra as pessoas com deficiência se extinguisse com o passar do tempo. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 156 A preocupação com a aceitação social de pessoas com deficiência não é uma questão nova no Brasil, sequer decorre do período de redemocratização, pois ainda da década 1950 foi identificado um movimento que buscava a integração de pessoas tratadas como “portadores de deficiência”, cujo intuito era integrá-las na medida do que fosse possível à sociedade. “Sob essa ótica, era necessário criar condições para que a pessoa com deficiência de adequasse às condições normais da sociedade em que vivia” (BARBOZA; ALMEIDA JUNIOR, 2017, p. 21), tendo como parâmetro, então, a noção de um padrão social ao qual os indivíduos deveriam se ajustar. Ainda que fosse uma perspectiva problemática por assumir etnocentricamente uma visão de “normalidade” a ser atingida, ou ao menos buscada, por todos independentemente de suas limitações, a preocupação com a integração era melhor do que a prática social corrente à época, que era a exclusão das pessoas com deficiência por serem consideradas incapazes, inválidas, portanto sem utilidade para a sociedade, na medida em que desde a Revolução Industrial as pessoas são cada vez mais julgadas por aquilo que oferecem como potencialidades de exploração no mercado de trabalho – discussão que retomaremos em aula posterior. Ao longo de décadas discutiu-se como a integração, apesar de inicialmente importante, precisaria ser superada por políticas públicas que estabelecessem a inclusão como parâmetro. E o que isso significa? Seriam apenas termos diferentes ou há sentido distinto? Caro(a) estudante, a integração – como colocado nos parágrafos anteriores – significou romper com a segregação das pessoas com deficiência em termos de fazer-se presentes em espaços sociais múltiplos, então a integração significa romper a prática de exclusão desses indivíduos para que possam circular e socializar com outros grupos sociais. Contudo, essa possibilidade de socialização era muito mais física do que simbólica, ou seja, as pessoas com deficiência passaram a ter mais oportunidades de estar em locais de ampla sociabilidade – como no mercado de trabalho e nas escolas – sem que esses espaços e a população estivesse preparada para recebê-los com tratamento igual aos demais ou diferenciado apenas em virtude de necessidades específicas, mas despido de preconceito e discriminação. Por isso a inclusão se revela um caminho frutífero em substituição à integração, pois incluir implica considerar o outro como parte do grupo, respeitando suas especificidades e pensando o desenvolvimento da sociedade junto com essas pessoas – e não “em nome de”, sem saber exatamente o que passam, sentem ou precisam. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 157 Para Barboza e Almeida Junior (2017, p. 21), a educação se destaca como uma política pública que já há algumas décadas tem buscado promover a inclusão de pessoas com deficiência, conforme destacado no excerto a seguir: Em 1994 houve mudança de perspectiva em matéria de Educaçãovoltada para a inclusão em lugar da integração, assumindo-se que “as diferenças humanas são normais e que, em consonância com a aprendizagem de ser adaptada às necessidades da criança, ao invés de se adaptar a criança às assunções pré-concebidas a respeito do ritmo e da natureza do processo de aprendizagem”. Essa alteração significou um marco no sentido de pensar a política pública de educação em sua complexidade e de modo radical, sistemático e amplo, de modo que passou-se a considerar a necessidade de que a todos fosse disponibilizada uma escolarização capaz de atender as necessidades da totalidade dos alunos, para o que foi necessário considerar não apenas os alunos com deficiências, mas também professores e outros profissionais da educação. Destacam ainda Barboza e Almeida Junior (2017) que a mudança mais ampla em termos de inclusão social de pessoas com deficiência tem como marco a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) decorrente de Assembleia Geral da ONU em dezembro de 2006, que discutiu políticas voltadas à garantia de direitos sociais com vistas aos direitos humanos e teve desdobramentos em diversas áreas de políticas públicas. Os desdobramentos desta Convenção impactaram a formulação de políticas públicas e ações de governo em diversas áreas com vistas a promover a inclusão social de pessoas com deficiência, sobre o que tratamos na próxima seção desta aula. 11.2 Políticas públicas para pessoas com deficiência O Brasil aderiu à Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU no ano seguinte à sua realização (2007), mas somente em 2009 houve a promulgação do Decreto 6.949 com a incorporação formal da preocupação com as discussões daquele documento internacional à legislação brasileira. Sobre a importância da referida Convenção e, por conseguinte, de sua adoção no Brasil, Barboza e Almeida Junior (2017, p. 24) explicam que “[…] a Convenção deve ser considerada um marco histórico na evolução do entendimento destinado à deficiência, ao configurá-la sob perspectiva inédita”, uma vez que rompeu com o “modelo moral” de deficiência como desígnio religioso onde tal indivíduo não tem a contribuir com a FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 158 comunidade e deve ser “arrastado” pela família e sociedade – como se a deficiência fosse fruto de um castigo divino (SILVA; LEITÃO; DIAS, 2016) - e também com o “modelo reabilitador” que entendia que essas pessoas “serviriam” à sociedade na medida em que pudessem se aproximar de características de normalidade. Assim, ambos os modelos anteriores eram deterministas e limitantes, não reconhecendo a pessoa com deficiência em si, mas em comparação com o outro - e aqui mais uma vez se coloca, caro(a) estudante, a questão da alteridade como valor imprescindível à nossa formação sociocultural e ética. Desde então, as políticas públicas de inclusão para pessoas com deficiência são destinadas a romper ou ao menos minimizar a situação de exclusão vivenciada pela maior parte dessa população. Nesta seção exploramos as iniciativas do poder público brasileiro com vistas a enfrentar tal problema, com foco na política de assistência social e na legislação referente à garantia de acesso dessa população ao mercado de trabalho. No campo das políticas públicas, a instituição da Lei 13.146, de 6 de julho de 2015, formalizou o Estatuto da Pessoa com Deficiência por meio da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência, cujo objetivo principal é de assegurar e promover, em condições de igualdade, o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais para a pessoa com deficiência, visando a sua inclusão social e cidadania. Sobre a criação e a importância dessa expressiva legislação às pessoas com deficiência, Destro (2019) explanou que se trata de uma lei influenciada por normas internacionais em vigor, o que significa que assim como para tantas políticas públicas e sociais ao longo de sua história – como a legislação trabalhista, com grande destaque nas primeiras décadas do período republicano – também em se tratando dessa população o Brasil inspirou-se em legislações internacionais e/ou foi pressionado por tratados e convenções para adotar normas em favor das pessoas com alguma deficiência. Ainda segundo a autora, o Estatuto da Pessoa com Deficiência não representou uma completa inovação nas políticas existentes para tal público, pois antes de sua aprovação já existiam algumas normas que tratavam de direitos, mas nenhuma tao abrangente e nem tão direcionada à promoção da cidadania por meio da inclusão. Um aspecto central para tanto foi a definição de pessoa com deficiência expressa na lei, que contribuiu para romper, ainda que minimamente, a noção de senso comum de que pessoas com deficiência são incapazes e também a percepção de que se tratam de indivíduos distantes da maioria, cuja situação de saúde é muito diferente daquela em que vivemos. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 159 A autora questiona e explica: Mas você sabe quem é considerado pessoa com deficiência e o que é inclusão? Considera-se pessoa com deficiência, segundo o art. 2º do Estatuto, aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (DESTRO, 2019, online). A definição ampla e detalhada de características que conformam a classificação de um indivíduo como pessoa com deficiência contribui para a redução do estigma social sobre esse grupo, pois a noção de invalidez, por exemplo, pode ser contestada ao perceber-se que não se trata de pessoas sem condições de sociabilidade, mas com necessidades específicas para que exerçam sua cidadania e convivam em ambientes múltiplos com os demais, como o trabalho. Isto posto, Sassaki (1997) já afirmava a mais de duas décadas que os problemas das pessoas com deficiência são maiores na sociedade do que a esses indivíduos em si, pois é a sociedade que lhes imputa essa noção de incapazes de desempenhar diversos papes sociais, o que faria da deficiência um problema social, cujas causas estão além de aspectos médicos, mas são socialmente construídos – aos moldes de nossa discussão nas primeiras aulas desta disciplina e também daquilo que debatemos com relação à dimensões de gênero e sexualidade, idade e ageísmo e raça. Para Barboza e Almeida Junior (2017), a superação desse problema passaria por considerar a sociedade como um todo na condição de protagonista da atenção a esse público, o que é reforçado pelo artigo 2o da CDPD, anteriormente mencionado. Ademais, é pertinente expor que o reconhecimento do outro, nesse caso as pessoas com deficiência, não é um favor ou caridade, mas uma necessidade em um Estado democrático constitucional, como o Brasil, sendo que tal reconhecimento implica conformarmos uma sociedade amigável às diferenças (diversidade), que vise – ainda que mais normativamente do que em termos práticos – a igualdade e busque realizá- la, o que configura um agir ético coletivo. Pensando em desdobramentos de políticas públicas das quais essa população pode ser beneficiária, é preciso destacar que historicamente as pessoas com deficiência estão entre os grupos socialmente mais excluídos e vulneráveis, pois são sobrerrepresentados FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 160 entre a população com menor renda, sendo também associada a deficiência com mobilidade social descendente. Silva, Leitão e Dias (2016, p. 18) afirmam que “deficiência e pobreza são termos inter-relacionados” e que, mesmo o Brasil sendo um país dentre os poucos em que há legislação específica para pessoas com deficiência, “os deficientes brasileiros continuam a compor percentuaiselevados nas estatísticas de exclusão social”. Nesse sentido, Barboza e Almeida Junior (2017, p. 33) destacam a maneira como esse contingente populacional é tratado na sociedade, o que nos remete à discussão sobre invisibilidade e necropolítica, de que tratamos em aula anterior desta disciplina: A promulgação do Estatuto da Pessoa com Deficiência, expressão legal da Convenção dos Direitos da Pessoa com Deficiência acolhida como emenda constitucional em nosso ordenamento [jurídico brasileiro], desafia uma cultura ainda vigente no país que é a invisibilidade, na medida em que essas pessoas têm seus direitos sistematicamente desrespeitados, inclusive pelo próprio Poder Público, que num círculo vicioso de omissão, mantém esse grupo vulnerado à margem da proteção legalmente estabelecida. Dentro da Política de Assistência Social há o Benefício de Prestação Continuada (BPC), garantido pela Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), a Lei nº 8.742/1993, que está integrada ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS) e é gerida pelo Ministério da Cidadania – atualmente dentro da pasta da Secretaria Especial de Desenvolvimento Social desde 2019, criada por ocasião da reformulação da estrutura burocrática do Poder Executivo Federal pelo presidente Jair Bolsonaro em substituição ao Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) - e pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). Figueiredo (2016) afirma que a efetivação do cadastro para acesso ao BPC depende de critérios que impõem como condicionalidades, sendo o principal a renda per capita familiar inferior a ¼ do salário mínimo mensal – o que significa que, conforme o salário mínimo em vigor em 2022 o valor percebido financeiramente por cada membro da família que reside no mesmo local deve ser de no máximo R$ 303,00 (trezentos e três reais). Além disso, o requerente não pode encontrar-se na condição de beneficiário de nenhum outro benefício pago pela Previdência Social, precisa obrigatoriamente comprovar não dispor de meios para garantir sua própria subsistência e, por fim, a pessoa com deficiência deve comprovar estar incapacitada para o trabalho e para a vida independente. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 161 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/side-view-disabled-businessman-sitting-on-1921582520 Em se tratando da inserção desta população no mercado de trabalho, existe em vigor no Brasil desde 24 de junho de 1991 a lei que dispõe sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social , na qual o artigo 93 estabelece o percentual de vagas a serem direcionadas pelas empresas a pessoas com deficiência nas seguintes proporções: empresas com 100 a 200 empregados devem destinar 2% de suas vagas para tal público, entre 201 e 500 empregados a taxa sobre para 3%, depois para 4% para empresas com 501 a 1000 funcionários e é de 5% para empresas com 1001 empregados ou mais. ISSO ESTÁ NA REDE A inclusão de pessoas com deficiência nas empresas, ainda que seja uma obrigatoriedade legal, pode ser utilizada para produzir uma imagem de responsabilidade social junto aos consumidores, investidores, poder público e a mídia, de modo que instituições privadas que cumprem a lei – ainda que não estejam realizando mais do que a obrigação legal – constroem narrativas que contribuem ao fortalecimento de sua imagem positivamente junto à população, o que se revela uma estratégia importante no competitivo mercado capitalista. Fonte: Silveira et al (2017), disponível em https://proceeding.ciki.ufsc.br/index.php/ciki/article/view/324/160 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 162 Contudo, na prática esse artigo não vem sendo cumprido, mesmo após décadas de aprovação da lei, como destacam Barboza e Almeida Junior (2017, p. 34): De acordo com dados do Ministério do Trabalho e Previdência Social (MTPS) divulgados em 2016, caso as empresas cumprissem a Lei de Cotas, pelo menos, 827 mil postos de trabalho estariam disponíveis. Entretanto, pouco mais de 381 mil vagas foram criadas. Observa-se ainda que é bastante comum que as empresas somente contratem após a imposição de multas pelos órgãos responsáveis. Cabe destacar também que o Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, estabelece a obrigatoriedade de reserva de ao menos 5% das vagas de concursos públicos para pessoas com deficiência. No caso de concursos públicos essas vagas podem ser preenchidas, desde que haja aprovados em tais condições, diferentemente do que ocorre na iniciativa privada, em que a ocupação das vagas não raramente decorre de denúncias, fiscalização e/ou aplicação de multas. Mas o problema não consiste apenas na ausência de atendimento à legislação com relação à ocupação de postos de trabalho, mas há também uma questão social envolvida, muito delicada por envolver estigmas e valores culturais: não raras vezes as pessoas com deficiência contratadas executam tarefas aquém de sua capacidade intelectual, muitas vezes sem tarefas e responsabilidades atribuídas, como se sua contratação respondesse apenas à obrigatoriedade legal, sem impacto sobre as atividades da empresa. Ademais, a lei não trabalha empregabilidade para pessoas com deficiências mais graves, de acordo com a superintendente do Instituto Brasileiro de Pessoas com Deficiência, Teresa Amaral, em discussão apresentada por Peduzzi (2019), que exemplifica que os indivíduos totalmente cegos, por exemplo, são pouco procurados para ocupação de postos de trabalho, a despeito de serem caracterizados por terem ótima capacidade para trabalhar com computadores, devido aos recursos de voz disponíveis em decorrência do avanço da tecnologia nos últimos anos. De modo semelhante, Defendi (2018, online) argumenta sobre a chamada de lei de cotas se constituir como uma política afirmativa relevante em termos de representatividade para esse público e de preocupação com sua inserção social via mercado de trabalho, mas também salienta limites da referida lei: FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 163 A Lei de Cotas representa uma importante política afirmativa de inclusão de pessoas com deficiência no mundo do trabalho. Ela estabelece, por exemplo, uma porcentagem mínima de vagas reservadas a trabalhadores com deficiência de acordo com o tamanho da empresa. Entretanto, apesar dos esforços de vários atores envolvidos no processo de inclusão das pessoas com deficiência, o número de contratações no mercado formal de trabalho para esses candidatos ainda está abaixo do esperado. Ainda sobre as dificuldades enfrentadas por pessoas com deficiência visual, Almeida, Mazzafera e Rolim (2017) reforçam haver um pré-conceito sobre o potencial desempenho desses indivíduos no âmbito laboral, o que se desfaz quando há oportunidades para que essas pessoas demonstrem suas habilidades e se revelem como produtivas, além de sua destacada capacidade de concentração. Ainda, os mesmos autores problematizam sobre uma dificuldade desse público específico para sua inserção no mercado, a qual se estende a muitos outros indivíduos com diferentes situações de saúde que definem sua classificação como pessoas com deficiência: Outra grande barreira enfrentada pelas pessoas com deficiência visual para a inserção no mercado de trabalho é a locomoção, pois ao procurar instituições responsáveis pelo apoio a eles, ele precisa de uma pessoa com visão, que o acompanhe, pois, o caminho é desconhecido, apresenta muita insegurança e medo, o que é natural (ALMEIDA; MAZZAFERA; ROLIM, 2017, online). ANOTE ISSO Um caminho para a inclusão social de pessoas com deficiência para por desenvolver entre a população em geral a capacidade de se comunicar com esses indivíduos. Atualmente, o ensino de Libras, a Língua Brasileira de Sinais, é obrigatória apenas em cursos de graduação na modalidade de licenciaturas (voltadosàs profissões da educação, como Pedagogia e cursos para formação de professores de disciplinas específicas), mas a expansão dessa e conhecimento à população em geral poderia facilitar a inclusão de deficientes surdos. Fonte: Basso, Strobel e Masutti (2009), disponível em https://www.libras.ufsc.br/colecaoLetrasLibras/eixoFormacaoPedagogico/ metodologiaDeEnsinoEmLibrasComoL1/assets/631/TEXTO-BASE_SEM_AS_IMAGENS_.pdf A obrigatoriedade do ensino de Libras para cursos de licenciaturas e sua oferta opcional nos demais cursos de graduação constituem ações relevantes para que a FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 164 deficiência auditiva seja vislumbrada como questão social, porém é incipiente tanto para atender tal grupo quanto com relação aos demais perfis de deficientes, cujas necessidades são diversas e não contempladas até o momento. Entenda, caro aluno, que essa observação não é uma crítica ao ensino de Libras e ao seu reconhecimento como relevante no processo de formação de profissionais. Ao contrário, trata-se de considerar essa importante iniciativa, mas também de pontuar que de maneira isolada ela não atende a totalidade de necessidades de grupos com deficiências que carecem de atenção no serviço de educação. Afinal, as deficiências são múltiplas e exigem ações direcionadas tanto para as conhecermos quanto para seu enfrentamento enquanto desigualdades a ser combatidas e reduzidas. Para a conclusão desta aula, caro(a) acadêmico(a), deixo uma reflexão em que Plaisance (2010) dialoga com os escritos do sociólogo francês Pierre Bourdieu (1993), que se baseia no fato de que a existência de normativas sobre a inclusão – seja no mercado de trabalho, nas escolas ou em outros ambientes sociais – não é suficiente para considerarmos sua efetividade, pois sem a prática o discurso e a norma são apenas ilusões. Isso significa que não basta apenas inserir as pessoas com deficiência nos ambientes ou grupos sociais, pois elas podem sofrer rejeições diretas ou veladas, desde receber um tratamento preconceituoso até sua marginalização ou exclusão quando da realização de atividades, por exemplo. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 165 CAPÍTULO 12 DIREITOS HUMANOS, MARCADORES SOCIAIS E EDUCAÇÃO Caro(a) acadêmico(a), após discutirmos diferentes marcadores sociais que se colocam como aspectos pertinentes à sua formação sociocultural e ética, nesta aula nos dedicamos a debater a importância de expandir o conhecimento sobre as disparidades a que estão sujeitas as minorias em termos de direitos. Assim, o intuito desta décima-segunda aula é tratar da educação como caminho importante, necessário e talvez até mesmo decisivo para que o conhecimento que circula no ambiente acadêmico possa ser reproduzido, adaptado e adequado à população em geral. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/group-multicultural-students-flat-vector-illustration-1782666869 Diante de tal expectativa ampla e audaciosa, na primeira seção desta aula retomaremos elementos debatidos nas aulas em que foram assuntos os direitos FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 166 humanos e os direitos de grupos sociais específicos, a fim de expandir o debate para a educação inclusiva e sua relação com a ética, dentro e fora dos ambientes escolares. Posteriormente, nossa segunda seção expõe uma outra vertente da educação em direitos humanos, a obrigatoriedade do ensino sobre questões étnico-raciais no sistema educacional brasileiro, tanto na educação básica quanto no ensino superior. 12.1 Educação para os direitos humanos Até esta décima segunda aula trabalhamos múltiplos aspectos da vida em sociedade, desde as concepções de sociedade, cultura e ética aos modos de interpretar o funcionamento do Estado e importantes marcadores sociais que impactam nossa formação como profissionais e como cidadãos. Discutir a educação para os direitos humanos – ou sobre direitos humanos – é salutar diante de tudo que foi exposto até então, pois se consideramos os direitos humanos sob a perspectiva de que se tratam de caminhos à efetividade do estabelecimento de relações sociais com vistas à promoção de igualdade de equidade, então é necessário que toda a sociedade conheça sobre o assunto. Isto posto, iniciemos pela explicação de França e Felipe (2019) sobre os conceitos de diferenças, diversidade e desigualdade: diferenças são características que distinguem indivíduos uns dos outros, que não existem no sujeito isoladamente, mas somente no contexto social, em comparação; diversidade é o conjunto de diferenças existentes numa sociedade e o respeito diante de seu reconhecimento, especialmente nas democracias; e desigualdade remete à hierarquização dos indivíduos conforme as diferenças são identificadas e contextos de diversidade, estabelecida por relações de poder materiais ou simbólicas e pela valorização de determinadas características em detrimento de outras. Assim, ao longo de parte de nossas aulas anteriores discutimos diferenças e a diversidade – de sexo e gênero, étnico-raciais, etárias e geracionais e com relação às pessoas com deficiências – para refletirmos sobre como esses aspectos conformam desigualdades sociais em nossa sociedade. O enfrentamento a essa realidade é objetivado por tratados internacionais e nacionais, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável e a Constituição Federal brasileira de 1988, por exemplo. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 167 Quando falamos em educação praticamente de modo instantâneo nos remetemos às escolas, tanto que Borges e Felipe (2019) ao tratar do espaço escolar, destacam a importância da inclusão por meio de uma abordagem que também podemos considerar para os demais espaços da vida social: a inclusão pode ser definida pelo seu oposto, a exclusão. Isso significa, caro(a) estudante, que pensar uma sociedade inclusiva implica em romper com padrões segregadores e de estigmatização, desrespeito e intolerância em favor do reconhecimento das diferenças e valorização da diversidade. Nesse sentido, educar para a diversidade significa educar considerando os direitos humanos em sua plenitude. Tendo em vista que a determinação dos parâmetros educacionais cabe ao Estado, temos o poder público como protagonista dos processos relacionados ao ensino e à aprendizagem, tanto por meio da definição das legislações referentes aos conteúdos de cada nível escolar quanto pela rede pública de educação desde o ensino básico até o ensino superior e a pós-graduação. Cabe ressaltar que a educação para os direitos humanos tem como base três preocupações: transmitir conhecimentos com compreensão das normas e dos princípios norteadores dos direitos humanos; aprender e ensinar sobre o respeito aos direitos dos entes envolvidos nos processos educacionais e na sociedade como um todo; e empoderar os indivíduos para que transfiram à vida cotidiana o exercício de seus direitos e o respeito e a proteção aos direitos dos demais (PEREIRA; FELIPE, 2019). Segundo os autores citados no parágrafo acima, a educação para os direitos humanos deve ocorrer nas escolas, mas não somente, uma vez que a promoção de uma mudança que venha a surtir efeitos em curto prazo na sociedade deve atingir a todos, ao passo que a escolarização demora alguns anos para formar indivíduos que socializem a ponto de promover alterações sociais e, ainda assim, se trataria de mudanças que se estabeleceriam lentamente ao longo das próximas décadas. Para Pereira e Felipe (2019, p. 98): Compreender como a efetivação dos direitos humanos e de seus princípios afeta a vida das pessoas é uma estratégia viável para entendermos a importância de uma educação contra violência, uma educação para cidadania, uma educação para diversidade, uma educação para relaçõesétnico-raciais e uma educação para a discussão de gênero e sexualidade no espaço escolar. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 168 Educar para os direitos, portanto, significa buscar a educação de todos e para todos, independentemente das estruturas e das estratégias por meio das quais esse conhecimento seja promovido, ou seja, devemos considerar que esse tipo de conhecimento deve ser tratado entre todas as faixas etárias e todas as classes sociais, nos diversos espaços e oportunidades em que seja pertinente ou possível abordá-lo. Assim, cabe a você, enquanto indivíduo que está tomando contato com tal conhecimento, replicar, dialogar, expor e atuar para que o maior número de pessoas conheçam de que se trata a educação para os direitos humanos. https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/world-diversity-earth-day-international-culture-1814911268 Corroborando tal perspectiva Borges e Felipe (2019, p. 56) argumentam que a educação inclusiva deve abordar conteúdos que tratem de respeito à diversidade e à cidadania: Assim, queremos levantar a bandeira, ao final de nossas discussões, de que a heterogeneidade é muito mais profícua como ambiente de aprendizagem, em detrimento de espaços homogêneos (se bem que nunca acreditamos na existência da homogeneidade, mas, sim, na homogeneização forçada, no silenciamento dos sujeitos. Ramos (2020) aponta que as sociedades têm vivenciado múltiplas transformações nas últimas décadas, em que a escola passa a ser considerada e atua como local democrático que se propõe a discutir os mais diversos valores necessários ao desenvolvimento de competências e perspectivas para que os alunos saibam lidar com as diferenças e a diversidade ao longo da vida, sendo que “[…] para que de fato FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 169 aconteça essa diversidade, cabe à escola contemplar um trabalho alicerçado para superar a exclusão, a discriminação e os preconceitos tão presentes no ambiente escolar” (RAMOS, 2020, p. 13). Nesses termos, cabe à educação o papel de construir uma cidadania inclusiva, que é perpassada por repensar o papel da escola tendo em vista as demandas sociais que se colocam – como a inclusão de pessoas com deficiência e o respeito à diversidade étnica e de gênero – e também as determinações legais – expressas pelas leis sobre a abordagem de relações étnico-raciais, que trataremos em nossa próxima seção. Neste momento, nos cabe refletir juntos sobre como a ética se revela importante diante da necessidade de considerarmos a diversidade como valor democrático a ser defendido. Como os ambientes formais são balizadores de nossos comportamentos éticos, então uma educação formal que busque o desenvolvimento de valores com vistas à autonomia dos indivíduos e respeito às diferenças é premente para que se tornam cidadãos – e, em alguma medida, também profissionais – com senso crítico. De acordo com Puig (1998,p. 15), “a educação ética e moral precisa ajudar a analisar com criticidade a realidade encontrada no cotidiano, para que se possa contribuir com formas mais justas e adequadas de convivência em sociedade”. Entretanto, não é um processo corriqueiro ou simples, pois exige repensar diversos aspectos para que as diferenças e a diversidade sejam contempladas. Nesse sentido, Ramos (2020) afirma que educar na diversidade implica em considerar que a educação, para ser inclusiva, precisa conferir visibilidade à pluralidade de características que compõem o mosaico de diversidade que existe em nossa sociedade na atualidade, considerados os aspectos mencionados no início desta seção e muitos outros sobre os quais não tratamos nesta disciplina, como a religião, por exemplo. Ainda conforme a autora, uma educação inclusiva e ética se pauta por desenvolver dentro dos conteúdos curriculares e para além deles os debates sobre aspectos sociais relevantes, como os marcadores que estudamos em aulas anteriores. Para Sassaki (1998, p. 8): Educação inclusiva é o processo que ocorre em escolas de qualquer nível preparadas para propiciar um ensino de qualidade a todos os alunos independentemente de seus atributos pessoais, inteligências, estilos de aprendizagem e necessidades comuns ou especiais. A inclusão escolar é uma forma de inserção em que a escola comum tradicional é modificada para ser capaz de acolher qualquer aluno incondicionalmente e de propiciar-lhe uma educação de qualidade. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 170 Diante das considerações dos autores mobilizados nesta discussão, temos que uma educação inclusiva pauta-se pela construção do ensino que contemple a todos os grupos, com suas especificidades, e que seja pautado por considerar aspectos constitucionais, como a igualdade de todos os brasileiros em termos de acesso a direitos e também de oportunidades. Um detalhe importante a considerar nesta discussão é que comumente nos lembramos da educação inclusiva sob a tônica da inclusão de pessoas com deficiência, que foi tratada em nossa aula anterior e o que configura, de fato, a principal maneira como o tema é tratado, porém pensar em inclusão é mais amplo e implica em considerar diversos marcadores sociais, de modo que nesta seção não tratamos especificamente da questão das pessoas com deficiência ou outro grupo. E, nesta parte de nossa aula, imagino que algum(a) acadêmico(a) está dialogando com esses escritos e pensando sobre como promover valores éticos de respeito, tolerância e alteridade entre o restante da população, já que a educação básica geralmente compreende as crianças e adolescentes entre cinco e dezessete anos e um percentual muito pequeno dos brasileiros acessa o ensino superior. Independentemente de ser ou não o seu caso, é preciso destacar que a educação inclusiva não precisa ocorrer apenas no ambiente escolar, ou seja, por meio dos processos formais de educação. E como ocorre esse movimento, então? De acordo com a internacionalmente reconhecida socióloga Maria da Glória Gohn (2009, p. 28), As práticas da educação não-formal se desenvolvem usualmente extramuros escolares, nas organizações sociais, nos movimentos, nos programas de formação sobre direitos humanos, cidadania, práticas identitárias, lutas contra desigualdades e exclusões sociais. Tal perspectiva implica considerarmos que não apenas a educação formal ou tradicional dentro do sistema educacional brasileiro é capaz de ser inclusiva e ética, voltada aos direitos humanos, mas também – e, por vezes, de modo mais efetivo e impactante – as possibilidades de realização de ações por meio da educação não- formal. Conforme Gohn (2009), a educação não-formal sofreu com a desconfiança da mídia e da população em geral por ocorrer fora do espaço escolar, ainda que desenvolva temas de extrema relevância social e atualidade, uma vez que se pauta pela disseminação FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 171 de conhecimento sobre conteúdos que buscam a conscientização da população com relação a valores democráticos e se desenvolve de modo mais participativo – e, portanto, menos hierarquizado e burocrático – do que na educação formal. Alguns eixos de educação não-formal foram sistematizados por Gohn (2009) em diálogo com autores como Gadotti (2005), quais sejam: a) Educação para justiça social. b) Educação para direitos (humanos, sociais, políticos, culturais etc.). c) Educação para liberdade. d) Educação para igualdade. e) Educação para democracia. f) Educação contra discriminação. g) Educação pelo exercício da cultura, e para a manifestação das diferenças culturais. São múltiplas as formas de desenvolvimento da educação não-formal na atualidade, sendo que o cenário exposto por Gohn (2009) sofreu uma alteração importante ao longo da segunda década do século XXI no Brasil: a relevância crescente do desenvolvimentode atividades extensionistas nos cursos de graduação, especialmente após a publicação da Resolução 7, de 18 de dezembro de 2018, estabeleceu as diretrizes para a prática de atividades de extensão na educação superior, o que favoreceu a ampliação e atuação de profissionais em formação e também tem expandido as iniciativas de disseminação de informações e/ou capacitação de grupos sociais, a depender da área de cada curso. Um exemplo de iniciativas de educação não-formal é um projeto de extensão coordenado pelo professor que escreveu este material didático, no qual foram oferecidas diferentes atividades formativas a gestores de organizações da sociedade civil, usuários de políticas públicas e envolvidos em iniciativas sociais e movimentos sociais não institucionalizados, a fim de que compreendessem seus direitos, como acessá-los e quais os caminhos possível à participação social em conselhos de políticas públicas, para que tivessem a oportunidade de atuar politicamente na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas (GIMENES, 2021). Assim como esse projeto, são possíveis inúmeros outros que versem sobre aspectos diversos de sua profissão, de modo que você pode se perguntar: Há algum estigma ou preconceito na profissão para a qual estou em processo de formação? Trata-se de uma profissão em que a diversidade é subjulgada, não há grandes preocupações com essa questão ou há igualdade e luta social ativa? FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 172 Pesquise, busque se informar, dialogue com profissionais já formados e atuantes e há chance de que descubra traços etnocêntricos de alguma natureza, ao que cabe sua atuação nos espaços não-formais de educação para romper com tal ciclo, seja por meio de atividades de extensão ainda ao longo de sua graduação ou após, se engajando em alguma modalidade de ação social. 12.2 Obrigatoriedade da educação para as relações étnico-raciais Enquanto a educação inclusiva e a abordagem ética sobre a diversidade configuram- se como temas socialmente relevantes e que podem ser incorporados aos conteúdos escolares, a legislação brasileira determinou com obrigatória a inserção de conteúdos curriculares acerca de questões de ordem étnico-racial no Brasil. Conforme a versão aprovada na última década do século passado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) aprovada com Lei 9.394/1996 determinou que o tema das relações étnico-raciais deve ser compulsório na abordagem pedagógica para o Ensino Fundamental e o Ensino Médio no Brasil - antes denominados Primeiro e Segundo Graus, respectivamente, e que configuram a educação básica. De acordo com tal legislação, o ensino da História do Brasil deve considerar as contribuições de diferentes culturas e etnias à formação do povo brasileiro, conferindo ênfase aos negros e aos indígenas, já que preponderantemente a escolarização considera a perspectiva europeia e etnocêntrica ao abordar o assunto. Antes dos marcos principais dessa mudança da LDBEN, cabe destacar que no ano seguinte à publicação da referida lei foram aprovados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) a ela relativos, os quais destacaram a necessidade de alterar a interpretação sobre o discurso democrático de convivência entre as raças ao longo da formação nacional. Assim, no ano de 1997 houve o reconhecimento por parte do Governo Federal da incorreção presente nos materiais didáticos que sempre apontaram a existência de relações harmônicas entre raças no Brasil no período monárquico e republicano, o que se deu por meio da promoção de conteúdos relacionados às questões étnico-raciais. Isto posto, nesta seção discorreremos sobre duas diferentes leis que foram criadas na primeira década deste século com vistas a delimitar o modo de inserção dos conteúdos sobre questões e relações étnico-raciais na educação. A primeira foi a legislação que determinou a abordagem de aspectos históricos sobre a população negra, ao passo que a segunda se concentrou sobre os indígenas. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 173 Com relação à primeira lei, o contexto que justificou sua criação está relacionado ao conteúdo que tratamos na nona aula, quando abordamos as relações étnico-raciais enquanto marcadores sociais relevantes à conformação da maneira como negros e pardos estão integrados em nossa sociedade. Cabe reforçar aqui que a análise que ficou conhecida como “democracia racial” de Gilberto Freyre (1996) afirmava que os negros – principalmente, mas em menor medida também os indígenas – haviam sido incorporados à sociedade brasileira ao longo dos séculos, tanto que coabitavam ordeira e pacificamente com brancos (seus senhores). Na mesma aula, também foi exposta a construção teórica e empírica de Florestan Fernandes (1978), que contestou essa interpretação de Freyre ao expor dados e problematizar que a conformação da sociedade brasileira, especialmente após a abolição da escravidão ocorrida um ano antes da proclamação da república, caracterizou-se pela segregação racial, espacial e social dos negros, que foram incorporados na sociedade de classes brasileira como subalternos ou indivíduos inferiores. A reparação histórica da interpretação eurocêntrica do ensino sobre a conformação das relações sociais entre os grupos étnico-raciais no Brasil, que sempre pautou-se pela construção narrativa dos europeus colonizadores (STOKES BROWN, 2010), ocorreu por meio da aprovação da Lei 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que determinou a obrigatoriedade da abordagem de temas sobre a presença dos africanos na conformação da História do Brasil. https://www.shutterstock.com/pt/image-illustration/oil-painting-on-canvas-fire-flame-2012620460 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 174 A aprovação dessa legislação representou dois diferentes marcos importantes: por um lado, ocorreu a valorização de aspectos sociais, culturais e históricos da população negra, amplamente demandado por movimentos negros ao longo das décadas, o que significa que tal lei é, também, uma vitória de pautas de ações coletivas decorrentes da mobilização social de um grupo que constitui minoria em termos de acesso aos direitos; por outro lado, remete à efetivação, no espaço escolar, de discussões no âmbito da educação para as relações étnico-raciais, o que deve contribuir à formação de cidadãos com olhares menos estigmatizantes sobre a conformação da sociedade brasileira, pois preceitua a abordagem de narrativas significados, sentidos e representações de experiências de um contingente populacional pouco contemplado até então pelos conteúdos curriculares (FELIPE et al, 2019). […] as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana no currículo do ensino básico, que foram elaboradas a partir da aprovação da Lei 10.639/2003, mobilizam os professores e as professoras a discutirem os conteúdos referentes a estas temáticas, nos currículos escolares. Neste processo, é necessário repensar e rever as subjetividades cristalizadas historicamente, no que se refere às relações étnico-raciais no Brasil e construir outras formas de ver a participação da população negra e dos povos africanos na construção da identidade nacional (FELIPE et al, 2019, p. 9). Cabe destacar que não se trata de começar a desvelar a história das questões étnico-raciais, como se não houvesse conhecimento produzido sobre o tema, mas de sistematizar esse conteúdo por meio de curadoria que permita uma abordagem adequada do assunto, de modo que a educação para as relações étnico-raciais aborde, de fato, aspectos interpretados sob a perspectiva dos dominados, ou seja, daqueles que foram primeiro escravizados e depois subjulgados à periferia da sociedade brasileira. Assim, caro(a) estudante, são exemplos de materiaisque apresentam balanços de literatura sobre a implementação e o efeito da legislação os textos de autores como Silva e Tobias (2016) e Santos Junior e Bugni (2018). Entretanto, tanto os materiais escolares (livros didáticos) quanto conteúdos produzidos e/ou organizados por movimentos negros também oferecem informações sobre referências para conhecermos sobre o tema. E caso, nesse momento, você esteja se perguntando se a lei determinou a instauração de novas matrizes curriculares, as análises de Carvalho (2019) e Santos e Felipe (2019) FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 175 argumentam que a Lei 10.639/2003 não propôs a alteração da matriz de conteúdos da educação básica, mas a reformulação das estratégias, abordagens e referenciais teóricos, de modo a romper com a perspectiva eurocêntrica em favor de conteúdos que remetam à alteridade interpretativa sobre a presença e o papel dos negros na formação da sociedade nacional e de nossa identidade. Para tanto, Thomaz e Costa (2019) afirmam que o reconhecimento das diferenças e da marginalização dos negros como processo histórico e social no Brasil configura um racismo estrutural existente em nossa sociedade, o qual só poderá ser superado – ao longo do tempo, mas de modo mais direto e, espera-se, imediato – ou reduzido a partir dessa exposição ampla e incisiva de aspectos que continuam a caracterizar a sociedade brasileira mesmo mais de um século após a abolição da escravidão. São muitas as pesquisas e dados que corroboram tal afirmação, dentre as quais destacamos nesta aula apenas dados recentes, com primeiro destaque ao título de um capítulo de livro de Passos (2020) que é também trecho de uma música imortalizada na música popular brasileira (MPB) por Elza Soares: “a carne mais barata do mercado é a carne negra”, no sentido de desvalorização dessa parcela da população em relação a outros grupos em esferas múltiplas da vida social. Temos dados atuais que corroboram as desigualdades existentes desde o período colonial e fortalecidas pelo mito da democracia racial: o analfabetismo é maior entre os negros, que têm menos chances de concluírem o Ensino Médio e atingem em proporção muito menor do que os brancos o acesso ao Ensino Superior; os negros são mais expostos à violência urbana, em geral, e as mulheres negras sofrem mais violência doméstica do que as brancas. Segundo os autores, uma abordagem mais efetiva da maneira como os negros conformaram historicamente a sociedade nacional poderia potencializar a reflexão e a ação dos alunos para que tais dados de realidade social se tornem cada vez menos recorrentes (THOMAZ; COSTA, 2019; MOREIRA, 2019). Em se tratando de condições de saúde, Passos (2020) apresenta um conjunto de dados que demonstram as disparidades nos tratamentos a brancos e negros no Brasil. Dentre os casos de violência obstétrica, 65,9% ocorrem com mulheres negras, o que dialoga com os resultados de pesquisa de Santiago (2019), que identificou que as mulheres negras recebem atendimento menos humanizado por serem consideradas mais fortes, então são deixadas por mais tempo com contrações até que seja realizado o parto e recebem menos (ou nenhuma) medicação. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 176 Ainda segundo Passos (2020), a população negra tem menor acesso a serviços privados, tanto que cerca de 80% da população que depende exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) para atendimento é negra. Ademais, os jovens negros são vítimas de homicídios mais do que os brancos – em muitas situações sem qualquer justificativa para além de sua cor – e a elevação da taxa de homicídios no Brasil nos últimos anos gira em torno de 33,1% de negros e 3,3% de brancos, o que significa que a elevação do número de jovens negros no Brasil é 10 vezes maior do que o de jovens brancos. Para Fernandes (2020), ainda que os dados da pandemia não tenham sido agregados por raça/etnia, é perceptível que as condições sanitárias afetaram diferentemente a população das favelas, cortiços e aglomerados urbanos de periferia e outros conjuntos populacionais, uma vez que a população em condições precárias de moradia majoritariamente não tem acesso regular e adequado a instalações sanitárias, tratamento de água e esgoto e vivem em muitas pessoas – que precisaram continuar trabalhando – em espaços minúsculos, sem condições de realizar distanciamento social, por exemplo. Historicamente, em decorrência da segregação racial, espacial e social temos que os negros são maioria entre os que vivem em tais condições. Ainda, sendo o Brasil o país com a terceira maior população carcerária do mundo, onde o superencarceramento é tratado como política de Estado, com precariedade, insalubridade e violação de direitos, Kilduff (2020) destaca que o perfil predominante dentre os reclusos é de jovens, pouco escolarizados, negros, desempregados ou com empregos precários. A partir desses dados que ilustram a situação e não têm a pretensão de encerrar a pauta, temos que ainda que haja brancos e negros pobres, a maioria da população pobre e sem acesso – ou com acesso reduzido – a direitos sociais e oportunidades de emprego é de negros, o que significa que vivenciamos até hoje os reflexos da colonização escravista iniciada no século XVI. E como promover uma educação para as relações étnico-raciais de maneira prática? São muitas as possibilidades e propostas, sendo que nesta aula selecionamos a abordagem de Moreira e Felipe (2019, p. 82), que ressaltam a necessidade de desenvolver um conjunto de ações no processo educacional em sala de aula, de modo a considerar não apenas a relação dos conteúdos a serem ensinados: FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 177 • formar um perfil de docentes e de discentes que no exercício de relação apropriem dos saberes da população negra e dos povos indígenas, rompendo assim com uma prática pedagógica que prioriza conteúdos e temas eurocêntricos; • promover a releitura da história africana,desde o mundo africano existente no período pré-colonial e dos povos indígenas no Brasil como meio de reconhecimento e de valorização das matrizes formadoras da identidade nacional; • construir uma abordagem pedagógica que considerem as reivindicações da população negra e dos povos indígenas como uma estratégia que questione as narrativas história da formação brasileira de uma de mistura racial harmônica e civilizatória; • desconstruir gradativamente o conhecimento dos colonizadores europeus sobre os povos colonizados como os povos indígenas e a população negra como forma de combater as inúmeras generalizações, estereótipos e preconceitos cristalizados nessas narrativas colonizadoras; • reconhecer que o racismo marginaliza mais da metade da população e é sustentado por estruturas de opressões e privilégios que vêm desde a colonização brasileira; • viabilizar materiais didático-pedagógicos que questionam os preconceitos históricos que incidem sobre o corpo negro e indígena e privilegia o corpo branco, problematizando visão reducionistas e as imagens que reforçam o racismo no Brasil. Esse conjunto de ações implica, portanto, alterações que cabem aos professores que conduzem a exposição de conteúdos em sala de aula e também à concepção dos livros didáticos e à formação de professores. Contudo, não basta que a escola se coloque diante de um novo perfil de aluno a ser conformado, pois a mudança social efetiva demoraria algumas décadas até que os valores socioculturais e éticos fossem remodelados em favor da desconstrução de estereótipos e preconceitos. Isso significa que para além do ensino que contemple a participação dos negros na conformação da sociedade e da identidade nacional com seu reconhecimento como iguais em termos de importância e como diferentes em termos de necessidades sociais para atingimento de igualdade e equidade,é necessário considerar também ações para educação ética e inclusiva, aos moldes do que discutimos na seção anterior desta aula, pensando a disseminação de informações entre a população de modo geral. Já no que se refere à segunda lei de que falamos no início desta seção, alguns anos após a Lei 10.639/2003 ocorreu a aprovação de uma norma específica para que os conteúdos de História do Brasil contemplem também a história e as culturas indígenas. Trata-se da Lei 11.645, de 10 de março de 2008. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 178 https://www.shutterstock.com/pt/image-photo/brazilian-indians-ethnic-group-during-their-1373681444 Conforme destacam Silva e Silva (2016, p. 257), em um dos ainda escassos balanços analíticos sobre a temática, a Lei 11.645/2008 contribui “[...] para o reconhecimento e a inclusão das diferenças étnicas dos povos indígenas, para se repensar em um novo desenho do Brasil em suas sociodiversidades e da pluralidade socioculturais”. Diferentemente da relevância dos movimentos sociais negros, os indígenas são povos - no plural, pois não existe uma denominação e é equivocado reduzir esses povos e suas culturas e valores a um grupo único e homogêneo – que não se organizaram politicamente de modo expressivo ao longo do tempo, pois historicamente estiveram à margem da sociedade brasileira por séculos. Assim, muitos de seus direitos foram conquistados por grupos organizados em defesa dos direitos humanos e/ou de proteção ambiental. ISTO ESTÁ NA REDE A música é um recurso importante para a reflexão sobre questões sociais, tanto que são muitas as canções que tratam de mazelas relacionadas às relações étnico- raciais no Brasil. Em “Identidade e diferença nas canções ‘Canto das três raças’ e ‘Etnia’: uma análise comparativa”, o autor discorre sobre os diferentes olhares lançados sobre as populações branca, negra e indígena a partir das duas músicas que constam no título do artigo, que conclui ressaltando as distintas interpretações sobre a conformação da história das relações entre esses povos no país. Fonte: Celeste (2017), disponível em http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/viewFile/676/426. Acesso em 23 fev. 2022. http://eventos.udesc.br/ocs/index.php/STPII/IIISIHTP/paper/viewFile/676/426 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 179 Aqui cabe destacar que a perspectiva etnocêntrica e eurocêntrica que recaiu sobre os negros ao longo do período colonial atingiu de modo diferente os indígenas brasileiros, pois foram tratados como o “outro” que é inferior e necessita ser domesticado, catequizado e ensinado sobre como deveriam se comportar para “caberem” na sociedade. Ainda no século XVI, os portugueses entenderam que os indígenas eram selvagens a ponto de não serem capazes de ser escravizados, relegando a esses povos o isolamento da conformação social do Brasil. Perceba, caro(a) acadêmico(a), o quanto é pertinente que as futuras gerações compreendam essa história a fim de respeitarem os indígenas e não replicarem aquilo que foi a prática corrente até meados do século passado. Isso quer dizer que precisamos compreender os povos indígenas como iguais em direitos para não subjulgá-los como ocorreu ao longo de mais de quatro séculos! Assim, como destacam Silva e Silva (2016), a inclusão de conteúdos sobre os povos indígenas nas discussões sobre as relações étnico-raciais no Brasil é relevante por três razões. A primeira é reforçar a noção de que não existem características nacionais que permitam a determinação de uma identidade única para o Brasil, já que somos resultado da mestiçagem e do caldo cultural de diversos povos europeus, de muitos grupos africanos e de centenas de etnias indígenas. Praticamente ninguém é apenas descendente de europeu, a despeito do que manifestam aqueles que julgam os brancos como superiores aos demais! A segunda razão é que o ambiente escolar é tido como espaço de formação de valores humanísticos, éticos, sociais e políticos, com desenvolvimento da cidadania no contexto democrático, de modo que cabe à educação combater preconceitos e discriminação. No caso dos indígenas, por ainda haver muitos grupos que vivem em tribos e outros que estão nas cidades mas pouco interagem com equipamentos, serviços e espaços urbanos, é incipiente a percepção de alteridade para com os indígenas, ainda carregados com estereótipos, estranhamento e preconceito. Por fim, a referida lei atendeu a acordos internacionais que destacam a coibição de práticas educativas discriminatórias e buscam estimular comportamentos contrários ao preconceito e aos estereótipos de povos e grupos sociais, ainda que tardiamente, já que Silva e Silva (2016) destacam a relevância da “Declaração sobre a raça e os preconceitos raciais” da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1978 e a Convenção sobre povos indígenas e tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 1989. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 180 Um caminho para tanto é seguir a mesma estratégia definida para a incorporação de temas sobre negros, ou seja, repensar conteúdos para abordagens que consideram a importância dos indígenas à formação histórica do Brasil e seu impacto sobre diferentes áreas, como exemplificam Silva e Silva (2016, p. 262) ao expor possibilidades de conteúdos em disciplinas da educação básica: a) Ciências Exatas – sair do universalismo e estudar a diversidade de noções de medidas e sistema de contagem usado pelos povos indígenas contemporâneos; b) Geometria/Artes – explorar os desenhos geométricos de cestarias e outras expressões socioculturais indígenas; c) Linguagem e códigos – desmistificar a ideia de uma língua nacional brasileira ressaltando a existência da diversidade linguística no país. Enfatizando a função sociopolítica da linguagem oral associada aos saberes indígenas; d) História/Literatura – explorar criticamente os discursos históricos sobre os povos indígenas nas obras literárias de José de Alencar, Darcy Ribeiro, dentre outros autores; e) Geografia – localizar os territórios indígenas contemporâneos, as condições climáticas, as formas de manejo dos recursos naturais, os conflitos agrários e suas consequências; f) Educação Ambiental – discutir as formas de relações dos povos indígenas com o Ambiente nas maiores reservas de recursos naturais no Brasil onde estão localizadas áreas indígenas; g) Religião – desmistificar a ideia do Cristianismo como religião universal, e destacar a diversidade religiosa no Brasil, dentre essa as diferentes expressões religiosas dos povos indígenas. Perceba, caro(a) estudante, que discutir as questões étnico-raciais atende a perspectiva de educação inclusiva, ainda que restrita e especificamente nos ambientes escolares. Contudo, remetendo ao diálogo entre nossas duas seções desta aula, lembre-se que não basta falar sobre o tema, mas é preciso fazê-lo com alteridade, respeitando a história dos povos. E, além disso, que não apenas na escolas deve-se dialogar sobre as questões étnico-raciais, afinal o conhecimento que você desenvolve nesta disciplina tem por finalidade impactar sua atuação profissional e sua inserção cidadã na sociedade. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 181 CAPÍTULO 13 TRABALHO NA CONTEMPORANEIDADE Caro(a) acadêmico(a), depois de aprender sobre diferentes direitos e como impactam e são impactados pelas sociabilidades, nesta aula tratamos exclusivamente de um tema que permeou todas as discussões ao longo de nossa disciplina: a questão do trabalho. Aqui, você encontrará reflexões, diálogos teóricos e análises que visam lhe fornecer subsídios para interpretar as relações de trabalho e como você se insere ou inserirá no contexto contemporâneo de atuação profissional. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/group-different-occupations-standing-on-white-1805921272Para tanto, em nossa primeira seção discutiremos aspectos históricos e conceituais do trabalho, pensados a partir dos impactos da Revolução Industrial - mais uma vez - sobre a sociedade, com vistas à compreensão de como as classes sociais moldam a estrutura de funcionamento de nossa sociedade desde os primeiros efeitos da industrialização até a contemporaneidade. Na segunda seção, nossa atenção é direcionada para a exploração do trabalhador no capitalismo industrial, de modo que percorremos um percurso desde a análise clássica de Karl Marx sobre o tema até os arranjos flexíveis existentes no mundo do trabalho nos dias atuais, bem como são expostas considerações sobre o trabalho no período pandêmico e seus desdobramentos. https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/group-different-occupations-standing-on-white-1805921272 FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 182 13.1 A construção da categoria trabalho como questão social O debate sobre o trabalho e sua importância na conformação da sociabilidade pode ser explorado sob múltiplas perspectivas nos campos de conhecimento, pensando as dimensões econômica, política, social, cultural e legal, por exemplo. Em comum, essas diferentes dimensões partem e se baseiam, em maior ou menor medida, nos escritos de Karl Marx. O autor – que além de clássico na área das Ciências Sociais em geral e na Sociologia é também referência nas Ciências Econômicas, Ciência Política e Filosofia Política – define que o homem foi o primeiro ser que atingiu a liberdade de movimento diante da natureza, pois emancipou-se, de certo modo, do domínio dos instintos e das forças naturais, que determinam os comportamentos dos demais animais em busca da manutenção de sobrevivência. O homem, nesse sentido, buscou dominar, ainda que parcialmente, as forças da natureza, estabelecendo uma relação em que a mesma é colocada a seu serviço. Para Marx (1975), esse domínio do homem sobre a natureza se materializa por meio do trabalho, que se coloca como condição necessária à liberdade humana, uma vez que a humanidade tem sido capaz de definir mecanismos e estratégias para utilização da natureza, de modo a atingir seus objetivos. Antunes (1999) complementa que como o trabalho implica nas relações sociais e arranjos sociais, pode-se considerá-lo como fenômeno originário da noção de ser social, ou seja, da perspectiva do homem em sociedade. Isso porque o trabalho seria compreendido como atividades que os indivíduos desenvolvem por meio da materialização de produtos que expressam o que fora imaginado, planejado e executado, sendo que o trabalho é – sempre, inegável e inevitavelmente – destinado à satisfação de necessidades humanas, de modo que o ponto de atenção aqui, caro(a) estudante, é refletirmos sobre o que é gerado com o trabalho e quem se beneficia desse trabalho e seu resultado. Essa lógica do trabalho que toma como parâmetro a ação em busca da satisfação de necessidades tem sentido libertador por considerar que a capacidade de trabalhar confere a essência do ser humano. Em contraposição, haveria outra condição de trabalho que não se pautaria pelas necessidades e pelo produto em si, mas por considerar o trabalho como estando a serviço do capital, sem focar nas necessidades humanas, estabelecendo o que Marx (1975) define como trabalho alienado. FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 183 Diante do que foi exposto até aqui, temos que o trabalho é uma característica que conforma o ser social, já que é um dos aspectos que determina a maneira como os indivíduos se colocam, atuam e se relacionam em sociedade, o que nos propomos a refletir a partir do modo de produção capitalista, vigente em praticamente todos os países na contemporaneidade, inclusive no Brasil. Paulo Netto (1978) afirma que o homem se transforma em ser social por meio do trabalho porque a atividade laboral implica em abandonar sua condição de ser natural orgânico – que desempenha funções relacionados aos instintos e são biológicas ou naturais, o que nos lembra o debate em nossas primeiras aulas – em face da preocupação e busca por satisfazer suas necessidades por meio da realização de atividades que variam em termos de intensidade, recorrência, recursos utilizados e outros elementos, o que configura o uso da capacidade intelectual que difere os homens de outros seres. Ricardo Antunes, sociólogo reconhecido nacional e internacionalmente como referência no campo de estudos sobre o trabalho, afirma que “[...] o complexo que dá fundamento ao ser social encontra seu momento originário, sua protoforma, a partir da esfera do trabalho [...]” (ANTUNES, 1999, p. 145), pois o trabalho assume caráter de atividade fundamental na vida humana, sendo considerado como categoria originária da mediação entre o ser orgânico e o ser social. Mais do que pensar uma alteração, o autor destaca que o trabalho configura uma transformação do ser orgânico em social sem que sequer tenhamos consciência prévia, já que o trabalho é uma atividade intrínseca, naturalizada, de nossa vida social. Braz e Paulo Netto (2008) corroboram tal argumento ao afirmarem que o ser social é aquele que realiza atividades orientadas teleologicamente, ou seja, por meio de interações que visam agir sobre a realidade existente, como atingir seus objetivos materiais e intelectuais, estabelecer a comunicação por meio da expressão e linguagem articulada, refletir sobre si e o outro e suas atividades de modo consciente e autoconsciente, universalizar-se e socializar-se. Trata-se de um conjunto de características que se alteram ao longo do tempo, sofrendo metamorfoses ao longo do processo de trabalho e também da socialização, o que agrega e desvela aspectos que conformam sua essência transformadora do ser orgânico em ser social. Assim, tendo em vista que ao longo do curso da história da humanidade o trabalho sempre esteve presente nas civilizações, desde os primórdios da vida dos indivíduos em ambiente natural houve trabalho e este instruiu a socialização, FORMAÇÃO SOCIOCULTURAL E ÉTICA PROF. ÉDER GIMENES FACULDADE CATÓLICA PAULISTA | 184 de modo que à importância do trabalho somou-se a compreensão de que existe uma força de trabalho empregada na produção de qualquer elemento (produto). https://www.shutterstock.com/pt/image-vector/icon-illustrations-finance-businesses-that-illustrate-639843892 Nesse sentido, Costa (1997) afirma que a força de trabalho, com o tempo e o desenvolvimento do feudalismo e – depois - do capitalismo, passou a ser interpretada como uma mercadoria que seria a real fonte de riqueza das sociedades. No contexto atual, é por meio do modo de produção capitalista, pautado pela combinação entre a propriedade privada e o trabalho assalariado, que os detentores dos meios de produção compram a força de trabalho dos indivíduos que vendem-na em troca de remuneração. Assim emergiu, em Marx (1996), o conceito de classes sociais: de um lado, a burguesia, formada pela elite política e econômica dos burgos, que detêm os meios de produção e as propriedades privadas; e de outro, o proletariado, composto pela massa de trabalhadores operários que dispõem apenas de sua mão-de-obra como recurso ao processo produtivo. Conforme o autor, a primeira classe destacada dominaria a segunda por meio da exploração de seu trabalho. Em complemento ao debate clássico marxista, Braverman (1987) argumenta que, em um mundo ideal, a força de trabalho humana é um recurso diferente de todos os demais, que não poderia ser trocada por outro bem ou recurso, já que a habilidade, os membros e o intelecto de um indivíduo não podem ser comprados por outro. Contudo, o desenvolvimento do capitalismo a prática é outra: os indivíduos trocam, rotineira e cotidianamente, sua força de trabalho por recursos financeiros, ou seja, vendem sua mão-de-obra para a produção de materiais ou prestações de serviços e desenvolvem trabalho