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APROVAÇÃO
Eu,	abaixo	assinado,	que	me	 fiz	passar	por	sábio	e	mesmo	por	homem	de	espírito,	 li	este	manuscrito	que,
contra	minha	vontade,	achei	curioso,	divertido,	moral,	filosófico,	digno	de	agradar	aos	que	odeiam	os	romances.
Assim	o	reprovei	e	assegurei	ao	cádi	Lesquier	que	é	um	livro	detestável.
Epístola	dedicatória	à	sultana	Sheraa
por	Sadi[1]
Em	10	do	mês	de	Xaual,	no	ano	837	da	Hégira
Encanto	dos	olhos,	tormento	dos	corações,	luz	do	espírito,	não	beijo	a	poeira	de	vossos	pés	porque	raramente
andais,	ou	porque	andais	sobre	tapetes	do	Irã	ou	sobre	rosas.	Ofereço-vos	a	tradução	de	um	livro	de	um	antigo
sábio	que,	tendo	a	felicidade	de	nada	ter	que	fazer,	divertiu-se	em	escrever	a	história	de	Zadig,	livro	que	diz	mais
do	que	parece	dizer.	Rogo-vos	a	lê-lo	e	a	julgá-lo;	pois,	embora	estejais	na	primavera	da	vida,	embora	todos	os
prazeres	 vos	procurem,	 embora	 sejais	 bela	 e	 vossos	 talentos	 realcem	vossa	beleza,	 embora	 vos	 enalteçam	da
manhã	à	noite	e	por	todos	esses	motivos	não	sejais	uma	pessoa	comum,	mesmo	assim	tendes	o	espírito	instruído
e	o	gosto	muito	fino,	e	vos	ouvi	argumentar	melhor	que	velhos	dervixes	de	barba	longa	e	chapéu	pontudo.	Sois
discreta	e	não	desconfiada;	sois	doce	sem	ser	fraca;	sois	benevolente	com	discernimento;	amais	vossos	amigos	e
não	 fazeis	 inimigos.	 Vosso	 espírito	 nunca	 se	 diverte	 com	 a	maledicência,	 não	 prejudicais	 ninguém,	 apesar	 da
prodigiosa	 facilidade	 que	 teríeis	 para	 isso.	 Enfim,	 vossa	 alma	 sempre	 me	 pareceu	 pura	 como	 vossa	 beleza.
Tendes	mesmo	um	pendor	para	a	filosofia	que	me	fez	acreditar	que	gostaríeis,	mais	que	qualquer	outra,	deste
livro	de	um	sábio.
Ele	foi	escrito	primeiramente	em	caldeu	antigo,	que	nem	vós	nem	eu	entendemos.	Traduziram-no	em	árabe,
para	distrair	o	célebre	sultão	Ulug-beb.	Foi	no	tempo	em	que	os	árabes	e	os	persas	começavam	a	escrever	as	Mil
e	uma	noites,	os	Mil	e	um	dias	etc.	Ulug	gostava	mais	da	leitura	de	Zadig;	mas	as	sultanas	preferiam	as	Mil	e
uma.	 “Como	 podeis	 preferir”,	 dizia-lhes	 o	 sábio	 Ulug,	 “contos	 sem	 razão	 e	 que	 nada	 significam?”	 “É
precisamente	por	isso	que	gostamos	deles”,	respondiam	as	sultanas.
Estou	convencido	de	que	não	fareis	como	elas	e	que	sereis	um	verdadeiro	Ulug.	Espero	mesmo	que,	quando
estiverdes	 cansada	 das	 conversas	 gerais,	 que	 tanto	 se	 assemelham	 às	Mil	 e	 uma,	 com	 a	 diferença	 de	 serem
menos	divertidas,	poderei	encontrar	um	minuto	para	 ter	a	honra	de	vos	 falar.	Se	 tivésseis	sido	Taléstris[2]	no
tempo	de	Scander[3],	filho	de	Filipe,	se	tivésseis	sido	a	rainha	de	Sabá	no	tempo	de	Suleiman[4],	esses	reis	é	que
vos	teriam	procurado.
Rogo	às	virtudes	celestes	que	vossos	prazeres	sejam	puros,	vossa	beleza	duradoura	e	vossa	felicidade	sem
fim.
Sadi
[1]	Voltaire	se	vale	aqui	do	nome	de	um	poeta	persa	do	século	XII.	(N.T.)
[2]	Rainha	das	Amazonas.	(N.T.)
[3]	Alexandre.	(N.T.)
[4]	Salomão.	(N.T.)
CAPÍTULO	I
O	caolho
No	tempo	do	rei	Moabdar,	havia	na	Babilônia	um	jovem	chamado	Zadig,	nascido	com	uma	boa	índole	que	a
educação	reforçara.	Embora	moço	e	rico,	sabia	moderar	suas	paixões;	nada	fingia,	não	queria	ter	sempre	razão	e
sabia	 respeitar	 a	 fraqueza	 dos	 homens.	 Era	 surpreendente	 que,	 sendo	 tão	 inteligente,	 nunca	 insultasse	 com
zombarias	 aos	 dizeres	 tão	 vagos,	 tão	 triviais,	 tão	 tumultuosos,	 às	 maledicências	 temerárias,	 às	 decisões
ignorantes,	às	chacotas	grosseiras,	a	esse	vão	ruído	de	palavras	que	em	Babilônia	se	chamava	conversação.	Ele
havia	aprendido,	no	primeiro	livro	de	Zoroastro,	que	o	amor-próprio	é	um	balão	inflado	de	vento,	do	qual	saem
tempestades	quando	lhe	dão	uma	alfinetada.	Zadig	não	se	vangloriava,	sobretudo,	de	desprezar	as	mulheres	e	de
subjugá-las.	Era	generoso.	Não	temia	de	modo	algum	prestar	serviços	a	ingratos,	seguindo	este	grande	preceito
de	Zoroastro:	Quando	comeres,	dá	de	comer	aos	cães,	ainda	que	te	mordam.	Também	era	tão	sábio	quanto	se
pode	ser,	pois	procurava	viver	com	sábios.	Instruído	nas	ciências	dos	antigos	caldeus,	não	ignorava	os	princípios
físicos	da	natureza,	 tais	 como	eram	conhecidos	então,	e	 sabia	da	metafísica	o	que	dela	 se	 soube	em	 todas	as
épocas,	 isto	 é,	 muito	 pouca	 coisa.	 Estava	 firmemente	 convencido	 de	 que	 o	 ano	 tinha	 365	 dias	 e	 um	 quarto,
apesar	da	nova	filosofia	do	seu	tempo,	e	de	que	o	sol	estava	no	centro	do	mundo;	e,	quando	os	principais	magos
lhe	diziam	com	arrogância	que	estava	errado,	e	que	era	ser	inimigo	do	Estado	acreditar	que	o	sol	girasse	sobre
si	mesmo	e	que	o	ano	tivesse	doze	meses,	ele	se	calava	sem	cólera	e	sem	desprezo.
Possuindo	 grandes	 riquezas,	 portanto	 com	 amigos,	 tendo	 saúde,	 um	 rosto	 agradável,	 um	 espírito	 justo	 e
moderado,	um	coração	sincero	e	nobre,	Zadig	acreditou	que	podia	ser	feliz.	Devia	casar	com	Semira,	cuja	beleza,
o	nascimento	e	 a	 fortuna	a	 faziam	o	melhor	partido	de	Babilônia.	Tinha	por	 ela	um	afeto	 sólido	e	 virtuoso,	 e
Semira	o	amava	com	paixão.	Eles	chegavam	ao	momento	afortunado	que	ia	uni-los	quando,	ao	passearem	juntos
perto	de	uma	das	portas	de	Babilônia,	 sob	as	palmeiras	que	ornavam	as	margens	do	Eufrates,	 viram	homens
armados	 de	 sabres	 e	 de	 flechas	 vindo	 em	 sua	 direção.	 Eram	 os	 capangas	 do	 jovem	 Orcan,	 sobrinho	 de	 um
ministro,	a	quem	os	cortesãos	do	tio	fizeram	acreditar	que	tudo	lhe	era	permitido.	Ele	não	tinha	as	graças	nem
as	 virtudes	de	Zadig;	mas,	 julgando	 valer	mais,	 estava	desesperado	por	não	 ser	 o	preferido.	Esse	 ciúme,	 que
vinha	 apenas	 de	 sua	 vaidade,	 o	 fez	 pensar	 que	 amava	 perdidamente	 Semira.	 Queria	 raptá-la.	 Os	 capangas	 a
pegaram	e,	no	 ímpeto	de	 sua	violência,	 a	 feriram,	 fazendo	correr	o	 sangue	de	uma	pessoa	 cujo	aspecto	 teria
enternecido	os	tigres	do	monte	Imaús.	Ela	lançou	um	grito	de	queixa	ao	céu:	“Meu	caro	esposo!	Arrancam-me	de
quem	adoro”.	Não	estava	ocupada	com	seu	perigo,	pensava	apenas	no	seu	querido	Zadig.	Este	a	defendia	com
toda	a	força	que	o	valor	e	o	amor	conferem.	Ajudado	somente	por	dois	escravos,	pôs	os	raptores	em	fuga	e	levou
para	casa	Semira,	desmaiada	e	sangrando.	Quando	ela	abriu	os	olhos	e	viu	seu	libertador,	disse-lhe:	“Ó,	Zadig,
eu	te	amava	como	esposo;	agora	te	amo	como	aquele	a	quem	devo	a	honra	e	a	vida”.	Nunca	houve	um	coração
mais	 agradecido	 que	 o	 de	 Semira.	 Nunca	 lábios	 encantadores	 se	 exprimiram	 de	 forma	 tão	 comovente,	 por
palavras	 de	 fogo	 inspiradas	 no	 sentimento	 do	maior	 dos	 benefícios,	 na	 exaltação	 do	 amor	mais	 terno	 e	mais
legítimo.	Seu	ferimento	era	leve	e	logo	sarou.	Zadig	fora	atingido	mais	perigosamente;	uma	flechada	lhe	causara
um	corte	profundo	perto	do	olho.	Semira	só	pedia	aos	deuses	a	cura	do	seu	amado.	Com	os	olhos	banhados	de
lágrimas	noite	e	dia,	ela	esperava	o	momento	em	que	os	de	Zadig	poderiam	se	deleitar	com	seu	olhar.	Mas	um
abscesso	surgiu	no	olho	 ferido,	 trazendo	grande	preocupação.	Mandou-se	chamar	em	Mênfis	o	grande	médico
Hermes,	 que	 veio	 com	 numeroso	 cortejo.	 Ele	 visitou	 o	 doente	 e	 declarou	 que	 este	 perderia	 o	 olho;	 predisse
mesmo	o	dia	e	a	hora	em	que	esse	funesto	acidente	aconteceria.	“Se	fosse	o	olho	direito,	disse,	eu	o	teria	curado;
mas	as	feridas	do	olho	esquerdo	são	incuráveis.”	Lastimando	o	destino	de	Zadig,	a	Babilônia	inteira	admirou	a
profundidade	 da	 ciência	 de	 Hermes.	 Dois	 dias	 depois,	 o	 abscesso	 se	 rompeu	 por	 si	 mesmo;	 Zadig	 ficou
perfeitamente	curado.	Hermes	escreveu	um	livro	em	que	prova	que	ele	não	devia	ter-se	curado.	Zadig	não	o	leu;
mas,	tão	logo	pôde	sair,	preparou-se	para	visitar	aquela	que	era	a	esperança	de	felicidade	de	sua	vida,	e	a	única
para	quem	queria	ter	olhos.	Semira	estava	no	campo	havia	já	três	dias.	No	caminho	ele	ficou	sabendo	que	essa
bela	dama,	após	declarar	abertamente	que	tinha	uma	aversão	insuperável	pelos	caolhos,	acabara	de	casar	com	o
próprio	Orcan.	Ao	receber	a	notícia,	Zadig	perdeu	os	sentidos;	sua	dor	o	levou	à	beira	do	túmulo.	Ficou	muito
tempo	 doente,	 mas	 enfim	 a	 razão	 prevaleceu	 sobre	 a	 dor;	 e	 a	 atrocidade	 do	 que	 vivera	 serviumesmo	 para
consolá-lo.	“Já	que	experimentei,	pensou,	o	capricho	tão	cruel	de	uma	moça	educada	na	corte,	casarei	com	uma
cidadã.”	 Escolheu	 Azora,	 a	mais	 ajuizada	 e	 bem-nascida	 da	 cidade.	 Desposou-a	 e	 viveu	 com	 ela	 um	mês	 nas
doçuras	da	união	mais	 terna.	Contudo,	observava	nela	certa	 leviandade	e	uma	forte	 tendência	a	achar	que	os
rapazes	mais	bonitos	eram	os	que	tinham	mais	espírito	e	virtude.
CAPÍTULO	II
O	nariz
Um	dia,	Azora	voltou	de	um	passeio	furiosa	e	lançando	grande	exclamações.
–	Que	houve,	minha	querida	esposa?	O	que	a	pôs	assim	fora	de	si?	–	ele	perguntou.
–	Ah,	você	ficaria	indignado	como	eu	se	tivesse	visto	o	espetáculo	que	acabo	de	testemunhar.	Fui	consolar	a
jovem	 viúva	 Cosrou,	 que	 há	 dois	 dias	 ergueu	 um	 túmulo	 a	 seu	 jovem	 esposo	 junto	 ao	 riacho	 que	 corre	 pela
pradaria.	Em	sua	dor,	ela	prometeu	aos	deuses	permanecer	junto	ao	túmulo	enquanto	a	água	do	riacho	passar
por	ali.
–	Bem,	eis	aí	uma	mulher	estimável	que	amava	realmente	o	marido	–	disse	Zadig.
–	Mas	sabe	o	que	ela	fazia	quando	fui	visitá-la?
–	O	que,	bela	Azora?
–	Fazia	desviar	o	riacho.
Azora	estendeu-se	em	 invectivas	 tão	 longas,	 fez	críticas	 tão	violentas	à	 jovem	esposa,	que	esse	excesso	de
virtude	não	agradou	a	Zadig.
Ele	tinha	um	amigo,	chamado	Cador,	um	daqueles	moços	em	quem	sua	mulher	via	mais	probidade	e	mérito
do	que	nos	outros:	confiou-lhe	seus	pensamentos	e	certificou-se,	tanto	quanto	podia,	de	sua	fidelidade	dando-lhe
um	presente	considerável.	Azora,	tendo	passado	dois	dias	na	casa	de	uma	amiga	no	campo,	voltou	no	terceiro	dia
para	casa.	Domésticos	aos	prantos	lhe	anunciaram	que	seu	marido	morrera	subitamente	na	noite	anterior,	que
não	tiveram	coragem	de	levar	a	ela	essa	notícia	funesta	e	que	haviam	sepultado	Zadig	no	túmulo	de	seus	pais,
num	canto	do	jardim.	Ela	chorou,	quis	arrancar	os	cabelos,	jurou	morrer.	À	noite,	Cador	veio	conversar	com	ela	e
os	 dois	 choraram.	No	 dia	 seguinte	 choraram	menos	 e	 almoçaram	 juntos.	 Cador	 lhe	 confiou	 que	 o	 amigo	 lhe
deixara	a	maior	parte	de	sua	fortuna,	e	deu	a	entender	que	ficaria	feliz	em	compartilhar	essa	fortuna	com	ela.	A
dama	ficou	 irritada,	chorou,	depois	se	acalmou;	o	 jantar	 foi	mais	 longo	do	que	o	almoço;	os	dois	conversaram
com	mais	confiança.	Azora	fez	o	elogio	do	defunto,	mas	confessou	que	ele	tinha	defeitos	que	Cador	não	tinha.
No	meio	do	jantar,	Cador	se	queixou	de	uma	violenta	dor	no	fígado;	a	dama,	inquieta	e	prestimosa,	mandou
trazer	 as	 essências	 com	 que	 se	 perfumava	 para	 ver	 se	 havia	 alguma	 que	 fosse	 boa	 para	 o	 mal	 do	 fígado;
lamentou	muito	que	o	grande	Hermes	não	estivesse	mais	em	Babilônia;	chegou	mesmo	a	apalpar	o	ponto	onde
Cador	sentia	dores	tão	fortes.
–	Costuma	ter	esses	acessos	de	dor?	–	ela	perguntou	com	compaixão.
–	Às	vezes	eles	me	põem	à	beira	do	 túmulo	–	 respondeu	Cador	–,	e	existe	um	único	remédio	capaz	de	me
aliviar:	é	aplicar-me	no	ponto	dolorido	o	nariz	de	um	homem	que	tenha	morrido	na	véspera.
–	Remédio	estranho	–	disse	Azora.
–	Não	mais	estranho	que	os	saquinhos	do	dr.	Arnou	contra	a	apoplexia.
Essa	razão,	somada	ao	mérito	extremo	do	moço,	fez	a	dama	finalmente	se	decidir.
–	 Afinal	 –	 ela	 disse	 –,	 quando	 meu	 marido	 passar	 do	 mundo	 de	 ontem	 ao	 mundo	 do	 amanhã	 na	 ponte
Tchinavar,	o	anjo	Asrael	não	lhe	bloqueará	a	passagem	porque	seu	nariz	está	menos	comprido	na	segunda	vida
do	que	na	primeira.
Pegou	 então	 uma	 navalha,	 foi	 até	 o	 túmulo	 do	 marido,	 regou-o	 com	 lágrimas;	 depois	 se	 aproximou	 para
cortar	o	nariz	de	Zadig,	que	estava	deitado	no	túmulo.	Zadig	se	levanta,	segurando	o	nariz	com	uma	das	mãos	e
detendo	a	navalha	com	a	outra.
–	Senhora	–	ele	disse	–,	não	se	inflame	tanto	contra	a	jovem	Cosrou;	o	projeto	de	me	cortar	o	nariz	equivale
ao	de	desviar	um	riacho.
CAPÍTULO	III
O	cachorro	e	o	cavalo
Zadig	viu	que	o	primeiro	mês	do	casamento,	como	está	escrito	no	livro	do	Zend[1],	é	a	lua	de	mel,	e	que	o
segundo	é	a	 lua	de	 fel.	Algum	tempo	depois	ele	 foi	obrigado	a	 repudiar	Azora,	com	quem	passou	a	ser	difícil
viver,	e	buscou	sua	felicidade	no	estudo	da	natureza.	“Nada	mais	feliz”,	ele	dizia,	“do	que	um	filósofo	que	lê	no
grande	 livro	que	Deus	pôs	sob	nossos	olhos.	As	verdades	que	descobre	são	verdades	próprias;	ele	alimenta	e
eleva	a	alma,	vive	tranquilo;	nada	teme	dos	homens	e	sua	terna	esposa	não	vem	lhe	cortar	o	nariz.”
Repleto	dessas	ideias,	retirou-se	numa	casa	de	campo	às	margens	do	Eufrates.	Ali	não	se	ocupou	em	calcular
quantas	polegadas	de	água	corriam	num	segundo	sob	os	arcos	de	uma	ponte,	ou	se	chovia	mais	no	mês	do	rato
do	 que	 no	 mês	 do	 carneiro.	 Não	 imaginou	 fazer	 seda	 com	 teias	 de	 aranha,	 nem	 porcelana	 com	 garrafas
quebradas,	 mas	 estudou	 principalmente	 as	 propriedades	 dos	 animais	 e	 das	 plantas	 e	 logo	 adquiriu	 uma
sagacidade	que	lhe	revelava	mil	diferenças	onde	os	outros	homens	veem	apenas	uniformidade.
Um	 dia,	 enquanto	 passeava	 perto	 do	 pequeno	 bosque,	 viu	 se	 aproximar	 dele	 um	 eunuco	 da	 rainha
acompanhado	 de	 vários	 oficiais	 que	 pareciam	 muito	 inquietos,	 correndo	 para	 cá	 e	 para	 lá	 como	 homens
desorientados	que	procuram	o	que	perderam	de	mais	precioso.
–	Jovem	–	disse-lhe	o	primeiro	eunuco	–,	por	acaso	não	viu	o	cachorro	da	rainha?
Zadig	respondeu	modestamente:
–	É	uma	cadela	e	não	um	cachorro.
–	Tem	razão	–	disse	o	eunuco.
–	É	uma	cadela	felpuda	e	pequena	–	acrescentou	Zadig.	–	Há	pouco	deu	várias	crias;	manqueja	com	a	pata
dianteira	esquerda	e	tem	orelhas	muito	compridas.
–	Então	você	a	viu	–	disse	o	eunuco,	esbaforido.
–	Não	–	respondeu	Zadig	–,	nunca	a	vi	e	nunca	soube	que	a	rainha	tivesse	uma	cadela.
Precisamente	no	mesmo	momento,	por	um	estranho	capricho	da	fortuna,	o	mais	belo	cavalo	da	estrebaria	do
rei	 escapou	 das	 mãos	 do	 palafreneiro	 nas	 planícies	 de	 Babilônia.	 O	 monteiro-mor	 e	 todos	 os	 outros	 oficiais
corriam	atrás	dele	com	tanta	inquietação	quanto	o	eunuco	atrás	da	cadela.	O	monteiro-mor	se	dirigiu	a	Zadig	e
lhe	perguntou	se	não	tinha	visto	o	cavalo	do	rei.
–	É	o	cavalo	que	melhor	galopa	–	respondeu	Zadig.	–	Tem	cerca	de	dois	metros	de	altura,	o	casco	é	muito
pequeno,	e	o	rabo	mede	pouco	mais	de	um	metro	de	comprimento;	os	ornamentos	do	freio	são	de	ouro	de	23
quilates,	e	as	ferraduras	são	de	prata	de	onze	denários.
–	Que	caminho	ele	tomou?	Onde	ele	está?	–	perguntou	o	monteiro-mor.
–	Não	o	vi	–	respondeu	Zadig	–,	e	nunca	ouvi	falar	desse	cavalo.
O	monteiro-mor	e	o	primeiro	eunuco	não	 tiveram	dúvidas	de	que	Zadig	havia	 roubado	o	cavalo	do	 rei	e	a
cadela	da	rainha;	conduziram-no	à	assembleia	do	grande	Desterham[2],	que	o	condenou	ao	knut[3]	e	a	passar	o
resto	 dos	 dias	 na	Sibéria.	 Tão	 logo	 pronunciado	 o	 julgamento,	 encontraram	o	 cavalo	 e	 a	 cadela.	Os	 juízes	 se
viram	na	dolorosa	obrigação	de	reformar	a	sentença;	mas	eles	condenaram	Zadig	a	pagar	quatrocentas	onças	de
ouro	por	ter	dito	que	não	vira	o	que	vira.	Primeiro	foi	preciso	pagar	a	multa;	depois	permitiu-se	a	Zadig	advogar
em	sua	causa	no	conselho	do	grande	Desterham.	Ele	falou	nos	seguintes	termos:
–	Estrelas	da	justiça,	abismos	da	ciência,	espelhos	da	verdade,	vós	que	tendes	o	peso	do	chumbo,	a	dureza	do
ferro,	 o	 brilho	 do	 diamante	 e	muita	 afinidade	 com	 o	 ouro:	 já	 que	me	 é	 permitido	 falar	 diante	 dessa	 augusta
assembleia,	juro	por	Orosmade[4]	que	nunca	vi	a	cadela	respeitável	da	rainha,	nem	o	cavalo	sagrado	do	rei	dos
reis.	 Eis	 o	 que	me	 aconteceu:	 eu	 passeava	 nas	 proximidades	 do	 pequeno	 bosque	 onde	 encontrei	 o	 venerável
eunuco	e	o	ilustríssimo	monteiro-mor.	Vi	na	areia	as	pegadas	de	um	animal	e	julguei	com	facilidade	que	eram	as
de	um	pequeno	cão.	Sulcos	leves	e	longos,	impressos	sobre	montículos	de	areia	entre	as	marcas	das	patas,	me
fizeram	 compreender	 que	 se	 tratava	 de	 uma	 cadela	 cujas	 tetas	 estavam	 pendentes	 e	 que,	 portanto,
recentemente	tivera	filhotes.	Outras	marcas	de	sentido	diferente,	que	pareciam	sempre	raspar	a	areia	ao	 lado
das	patas	dianteiras,	me	indicaram	que	as	orelhasdeviam	ser	muito	compridas;	e,	como	notei	que	a	areia	era
sempre	menos	 afundada	 por	 uma	 pata	 do	 que	 pelas	 outras	 três,	 compreendi	 que	 a	 cadela	 de	 nossa	 augusta
rainha	era	um	pouco	manca,	se	ouso	dizer.
“Quanto	 ao	 cavalo	 do	 rei	 dos	 reis,	 devo	 dizer	 que	 observei,	 ao	 passar	 pelos	 caminhos	 desse	 bosque,	 as
marcas	das	ferraduras	de	um	cavalo:	todas	tinham	a	mesma	distância	entre	si.	Eis	aí,	pensei,	um	cavalo	que	tem
um	galope	 perfeito.	 A	 poeira	 das	 árvores,	 num	caminho	 estreito	 de	 dois	metros	 de	 largura,	 estava	 um	pouco
retirada	à	direita	e	à	esquerda,	a	uma	distância	de	pouco	mais	de	um	metro	do	meio	do	caminho.	Esse	cavalo,
pensei,	tem	um	rabo	de	um	metro	e	pouco	que,	com	seus	movimentos	à	direita	e	à	esquerda,	varreu	essa	poeira.
Vi	 sob	 as	 árvores,	 que	 formavam	 uma	 arcada	 de	 dois	 metros	 de	 altura,	 folhas	 de	 galhos	 recém-caídas;
compreendi	que	o	cavalo	tocara	nelas	e	que,	portanto,	tinha	dois	metros	de	altura.	Quanto	ao	freio,	deve	ser	de
ouro	 de	 23	 quilates,	 pois	 ele	 raspou	 seus	 ornamentos	 contra	 uma	 pedra	 que	 reconheci	 ser	 uma	 pedra	 de
toque[5],	e	verifiquei	o	risco	que	deixou.	Por	fim,	pelas	marcas	que	as	ferraduras	deixaram	em	pedras	de	outro
tipo,	vi	que	eram	de	prata	de	onze	denários.”
Os	 juízes	ficaram	admirados	com	o	profundo	e	sutil	discernimento	de	Zadig:	a	notícia	chegou	até	o	rei	e	a
rainha.	 Não	 se	 falava	 senão	 de	 Zadig	 nas	 antecâmaras,	 na	 câmara	 e	 no	 gabinete;	 e,	 embora	 alguns	 magos
opinassem	que	ele	devia	ser	queimado	como	feiticeiro,	o	rei	ordenou	que	lhe	devolvessem	as	quatrocentas	onças
de	ouro	de	que	fora	multado.	O	escrivão,	os	meirinhos	e	os	procuradores	foram	até	sua	casa	com	grande	pompa
para	lhe	devolver	as	quatrocentas	onças;	retiveram	apenas	398	relativas	aos	custos	da	justiça,	e	seus	auxiliares
exigiram	honorários.
Zadig	viu	quanto	era	perigoso	às	vezes	ser	muito	perspicaz	e	prometeu-se,	na	próxima	ocasião,	não	dizer	de
modo	algum	o	que	tinha	visto.
Essa	ocasião	não	tardou	a	chegar.	Um	prisioneiro	escapou	da	prisão,	passou	sob	as	janelas	da	sua	casa.	Zadig
foi	 interrogado	 e	 nada	 respondeu;	 mas	 lhe	 provaram	 que	 ele	 havia	 olhado	 pela	 janela.	 Por	 esse	 crime,	 foi
condenado	a	pagar	quinhentas	onças	de	ouro,	e	ele	agradeceu	a	indulgência	dos	juízes,	segundo	o	costume	de
Babilônia.	“Grande	Deus!”,	disse	a	si	mesmo.	“Que	lastimável	é	passear	num	bosque	onde	a	cadela	da	rainha	e	o
cavalo	do	rei	passaram!	Que	perigoso	é	pôr-se	à	janela!	E	como	é	difícil	ser	feliz	nesta	vida!”
[1]Zend-Avesta,	o	livro	sagrado	dos	persas,	discípulos	de	Zoroastro.	(N.T.)
[2]	Magistrado.	(N.T.)
[3]	Chicote.	(N.T.)
[4]	Um	dos	princípios	da	alma	e	do	mundo,	segundo	a	doutrina	de	Zoroastro.	(N.T.)
[5]	Mineral	usado	antigamente	para	avaliar,	mediante	atrito,	a	pureza	do	ouro	num	metal.	(N.T.)
CAPÍTULO	IV
O	invejoso
Zadig	 quis	 se	 consolar,	 pela	 filosofia	 e	 pela	 amizade,	 dos	 males	 que	 a	 fortuna	 lhe	 fizera.	 Ele	 tinha,	 nos
arrabaldes	de	Babilônia,	uma	casa	ornada	com	gosto,	onde	reunia	todas	as	artes	e	todos	os	prazeres	dignos	de
um	homem	honesto.	De	manhã,	sua	biblioteca	estava	aberta	a	todos	os	sábios;	à	noite,	sua	mesa	se	oferecia	à
boa	companhia.	Mas	ele	logo	descobriu	quanto	os	sábios	são	perigosos.	Surgiu	uma	grande	discussão	sobre	uma
lei	de	Zoroastro	que	proibia	comer	grifo.
–	Como	proibir	o	grifo	–	diziam	uns	–	se	esse	animal	não	existe?
–	Ele	deve	existir	–	diziam	outros	–,	já	que	Zoroastro	não	quer	que	seja	comido.
Zadig	quis	conciliá-los,	dizendo-lhes:
–	Se	há	grifos,	não	os	comamos;	se	não	há,	com	menos	razão	os	comeremos.	E	assim	todos	obedeceremos	a
Zoroastro.
Um	 sábio,	 que	 havia	 escrito	 treze	 volumes	 sobre	 as	 propriedades	 do	 grifo	 e	 que,	 além	 do	 mais,	 era	 um
grande	adepto	da	ciência	do	maravilhoso,	se	apressou	a	ir	acusar	Zadig	diante	de	um	arquimago	chamado	Yebor,
o	mais	tolo	dos	caldeus	e	o	mais	fanático.	Esse	homem	teria	feito	empalar	Zadig	para	a	maior	glória	do	sol,	para
depois	recitar	o	breviário	de	Zoroastro	num	tom	mais	satisfeito.	O	amigo	Cador	(um	amigo	vale	mais	do	que	cem
sacerdotes)	foi	procurar	o	velho	Yebor,	dizendo-lhe:
–	Vivam	o	sol	e	os	grifos!	Abstenha-se	de	punir	Zadig,	ele	é	um	santo:	há	grifos	no	seu	galinheiro,	e	ele	não	os
come;	e	seu	acusador	é	um	herege	que	ousa	afirmar	que	os	coelhos	têm	a	pata	fendida	e	não	são	imundos.
–	Pois	bem	–	disse	Yebor	balançando	sua	cabeça	calva	–,	Zadig	deve	ser	empalado	por	ter	pensado	mal	dos
grifos,	e	o	outro	por	ter	falado	mal	dos	coelhos.
Cador	resolveu	a	questão	por	meio	de	uma	dama	de	honra	com	quem	ele	 tivera	um	filho	e	que	gozava	de
muito	 crédito	 no	 colégio	 dos	 magos.	 Ninguém	 foi	 empalado	 –	 o	 que	 fez	 vários	 doutores	 murmurarem	 e
pressagiarem	a	decadência	de	Babilônia.	Zadig	exclamou:
–	O	que	é	a	felicidade?	Tudo	me	persegue	neste	mundo,	até	mesmo	seres	que	não	existem.
Ele	amaldiçoou	os	sábios	e	não	quis	mais	viver	senão	em	boa	companhia.
Em	sua	casa	reunia	as	pessoas	mais	honestas	de	Babilônia	e	as	damas	mais	amáveis;	oferecia	ceias	delicadas,
geralmente	precedidas	de	concertos,	e	animadas	por	conversações	agradáveis	das	quais	soubera	banir	a	pressa
de	mostrar	espírito,	que	é	a	maneira	mais	segura	de	não	ter	nenhum	e	de	estragar	a	melhor	companhia.	Nem	a
escolha	dos	amigos	nem	a	das	iguarias	eram	feitas	por	vaidade:	em	tudo	ele	preferia	o	ser	ao	parecer,	e	assim
atraía	uma	verdadeira	consideração,	à	qual	não	cobiçava.
Defronte	 à	 sua	 casa	 morava	 Arimaze,	 personagem	 cuja	 alma	 maldosa	 estava	 pintada	 em	 sua	 grosseira
fisionomia.	Era	um	homem	roído	de	fel,	inflado	de	orgulho	e,	ainda	por	cima,	um	chato	espirituoso.	Nunca	tendo
obtido	sucesso	na	sociedade,	vingava-se	falando	mal	dela.	Embora	rico,	tinha	dificuldade	de	reunir	em	sua	casa
aduladores.	O	ruído	dos	carros	que	entravam	à	noite	na	casa	de	Zadig	o	 importunava,	o	 ruído	dos	 louvores	o
irritava	 ainda	mais.	 Às	 vezes	 ia	 à	 casa	 de	 Zadig	 e	 punha-se	 à	mesa	 sem	 ser	 convidado:	 ali	 corrompia	 toda	 a
alegria	do	convívio,	como	é	dito	das	harpias	que	infectam	as	carnes	que	tocam.	Aconteceu-lhe	um	dia	de	querer
dar	uma	festa	a	uma	dama	que,	em	vez	de	aceitá-la,	foi	cear	na	casa	de	Zadig.	Outro	dia,	conversando	com	ele
no	palácio,	foram	abordados	por	um	ministro	que	convidou	Zadig	para	jantar,	mas	não	Arimaze.	Os	ódios	mais
implacáveis	 geralmente	 não	 têm	 grandes	 fundamentos.	 Esse	 homem,	 que	 era	 chamado	 “o	 invejoso”	 em
Babilônia,	quis	a	desgraça	de	Zadig	porque	este	era	chamado	“o	feliz”.	A	ocasião	de	fazer	o	mal	se	apresenta
cem	vezes	por	dia,	e	a	de	fazer	o	bem	somente	uma	vez	no	ano,	como	diz	Zoroastro.
O	invejoso	foi	à	casa	de	Zadig,	que	passeava	nos	jardins	com	dois	amigos	e	uma	dama,	à	qual	ele	costumava
dizer	 coisas	 galantes	 sem	 outra	 intenção	 senão	 a	 de	 dizê-las.	 Conversavam	 sobre	 uma	 guerra	 que	 o	 rei
felizmente	terminara	contra	o	príncipe	da	Hircânia,	seu	vassalo.	Zadig,	que	se	destacara	por	sua	coragem	nessa
curta	guerra,	louvava	muito	o	rei	e	mais	ainda	a	dama.	Ele	pegou	suas	tabuinhas	de	escrever	e	compôs	na	hora
quatro	versos	que	deu	a	ler	a	essa	bela	pessoa.
Os	amigos	lhe	pediram	para	ler	o	que	escrevera:	a	modéstia,	ou	melhor,	um	amor-próprio	bem	compreendido,
o	impediu	de	mostrar.	Ele	sabia	que	versos	improvisados	nunca	são	bons	senão	para	aquela	em	cuja	honra	foram
feitos:	partiu	em	dois	a	tabuinha	na	qual	havia	escrito	e	lançou	as	duas	metades	numa	moita	de	rosas	onde	seria
inútil	 procurá-las.	Começou	a	 cair	 uma	chuvinha	e	 eles	 entraram	de	 volta	na	 casa.	Tendo	 ficado	no	 jardim,	 o
invejoso	procurou	tanto	que	acabou	por	encontrar	um	pedaço	da	tabuinha.	Ela	fora	partida	de	tal	modo	que	cada
metade	 de	 linha	 fazia	 sentido,	 formando	mesmo	 um	 verso	 de	menor	medida;	mas,	 por	 um	 acaso	 ainda	mais
estranho,	esses	pequenos	versos	formavam	um	sentido	que	continha	as	injúrias	mais	horríveis	contra	o	rei.	Neles
se	lia:
Pelo	maior	dos	males
O	rei	fortalecido
Recuperada	a	paz
É	o	único	inimigo
O	 invejoso	 foi	 felizpela	 primeira	 vez	 na	 vida.	 Tinha	 nas	 mãos	 um	meio	 de	 levar	 à	 desgraça	 um	 homem
virtuoso	e	amável.	Cheio	de	cruel	alegria,	fez	chegar	ao	rei	essa	sátira	escrita	por	Zadig,	o	qual	foi	preso	junto
com	seus	dois	amigos	e	a	dama.	O	processo	não	tardou	a	ser	montado	sem	que	se	dignassem	ouvi-lo.	Quando
veio	receber	a	sentença,	o	invejoso	surgiu	em	seu	caminho	e	lhe	disse	em	voz	alta	que	seus	versos	não	valiam
nada.	 Zadig	 não	 se	 gabava	 de	 ser	 bom	 poeta;	 seu	 desespero	 era	 ser	 condenado	 como	 criminoso	 de	 lesa-
majestade	e	ver	mantidos	na	prisão	uma	bela	dama	e	seus	dois	amigos	por	um	crime	que	ele	não	cometera.	Não
lhe	permitiram	falar,	já	que	a	tabuinha	falava:	era	essa	a	lei	de	Babilônia.	Levaram-no	ao	suplício	acompanhado
de	uma	multidão	de	curiosos,	nenhum	dos	quais	ousando	sentir	pena	dele,	que	se	precipitavam	para	examinar
seu	rosto	e	ver	se	morreria	resignado.	Apenas	seus	parentes	estavam	aflitos,	pois	nada	herdavam.	Três	quartas
partes	de	seus	bens	seriam	confiscadas	em	favor	do	rei,	o	restante	em	favor	do	invejoso.
Enquanto	ele	 se	preparava	para	a	morte,	 o	papagaio	do	 rei	 voou	de	 seu	balcão	e	 foi	 pousar	no	 jardim	de
Zadig	sobre	uma	moita	de	rosas.	Um	pêssego	caíra	ali,	de	uma	árvore	vizinha	agitada	pelo	vento:	caíra	sobre	um
pedaço	de	tabuinha	de	escrever	ao	qual	se	colara.	A	ave	colheu	o	pêssego	e	a	tabuinha,	e	os	levou	aos	joelhos	do
monarca.	O	rei,	curioso,	 leu	ali	palavras	que	não	faziam	sentido	e	que	pareciam	finais	de	versos.	Ele	amava	a
poesia,	e	há	sempre	recurso	com	os	príncipes	que	amam	os	versos:	a	aventura	do	seu	papagaio	o	fez	sonhar.	A
rainha,	que	lembrava	o	que	fora	escrito	num	pedaço	da	tabuinha	de	Zadig,	mandou	trazê-la.	Confrontaram-se	os
dois	pedaços	que	se	ajustavam	perfeitamente,	e	pôde-se	então	ler	os	versos	tais	como	Zadig	os	fizera:
Pelo	maior	dos	males	vi	tremer	a	terra.
O	rei	fortalecido	ao	mal	soube	vencer.
Recuperada	a	paz,	só	o	amor	faz	a	guerra:
É	o	único	inimigo	que	se	há	de	temer.
O	 rei	 imediatamente	 ordenou	 que	 trouxessem	 Zadig	 à	 sua	 presença	 e	 que	 tirassem	 da	 prisão	 seus	 dois
amigos	 e	 a	 bela	 dama.	 Zadig	 se	 ajoelhou	 com	 o	 rosto	 junto	 ao	 chão,	 aos	 pés	 do	 rei	 e	 da	 rainha:	 pediu-lhes
humildemente	perdão	por	ter	escrito	maus	versos;	falou	com	tanta	graça,	espírito	e	razão	que	o	rei	e	a	rainha
quiseram	 revê-lo.	 Ele	 voltou	 e	 agradou	 ainda	 mais.	 Deram-lhe	 todos	 os	 bens	 do	 invejoso,	 que	 o	 havia
injustamente	acusado:	mas	Zadig	os	devolveu,	e	o	invejoso	só	se	comoveu	pelo	prazer	de	não	perder	seus	bens.	A
estima	do	rei	por	Zadig	crescia	dia	após	dia.	Quis	que	ele	participasse	de	todos	os	seus	prazeres	e	o	consultava
para	todas	as	decisões.	A	partir	de	então	a	rainha	passou	a	considerá-lo	com	uma	complacência	que	podia	ser
perigosa	para	ela,	para	o	rei,	seu	augusto	esposo,	para	Zadig	e	para	o	reino.	Zadig	começava	a	acreditar	que	não
é	difícil	ser	feliz.
CAPÍTULO	V
Os	generosos
Chegou	o	momento	de	uma	grande	festa	que	acontecia	a	cada	cinco	anos.	Era	costume	em	Babilônia	declarar
solenemente,	ao	cabo	de	cinco	anos,	qual	dos	cidadãos	fizera	a	ação	mais	generosa.	Os	nobres	e	os	magos	eram
os	juízes.	O	primeiro	sátrapa,	encarregado	da	administração	da	cidade,	expunha	as	mais	belas	ações	que	haviam
se	passado	sob	seu	governo.	Votava-se:	o	 rei	pronunciava	o	 julgamento.	Para	essa	solenidade	vinha	gente	das
extremidades	 da	 terra.	 O	 vencedor	 recebia	 das	 mãos	 do	 monarca	 uma	 taça	 de	 ouro	 cravejada	 de	 pedras
preciosas	 e	 o	 rei	 lhe	dizia	 estas	 palavras:	 “Receba	 este	prêmio	da	generosidade,	 e	 possam	os	deuses	me	dar
muitos	súditos	como	você!”.
Chegado	o	dia	memorável,	o	rei	sentou-se	no	trono,	cercado	dos	nobres,	dos	magos	e	dos	representantes	de
todas	as	nações	que	compareciam	a	essa	disputa	em	que	a	glória	se	conquistava	não	pela	rapidez	dos	cavalos,
não	pela	força	do	corpo,	mas	pela	virtude.	O	primeiro	sátrapa	relatou	em	voz	alta	as	ações	que	podiam	destinar	a
seus	autores	o	prêmio	inestimável.	Não	falou	da	grandeza	de	alma	com	que	Zadig	devolvera	ao	invejoso	toda	a
sua	fortuna:	não	era	uma	ação	que	merecesse	disputar	um	prêmio.
Apresentou	primeiro	um	juiz	que,	tendo	feito	um	cidadão	perder	um	processo	considerável	por	um	equívoco
do	qual	ele	não	era	sequer	responsável,	lhe	dera	todos	os	seus	bens,	que	era	o	valor	do	que	o	outro	perdera.
Apresentou	a	seguir	um	jovem	que,	perdidamente	apaixonado	por	uma	moça	com	quem	se	casaria,	a	cedera
a	um	amigo	prestes	a	expirar	de	amor	por	ela,	pagando-lhe	ainda	por	cima	o	dote	de	casamento.
Depois	 foi	 a	 vez	 de	 um	 soldado	 que,	 na	 guerra	 da	 Hircânia,	 dera	 também	 um	 grande	 exemplo	 de
generosidade.	Soldados	inimigos	tentavam	raptar	sua	amada,	e	ele	a	defendia	contra	eles:	vieram	dizer-lhe	que
outros	 hircanianos	 raptavam	 sua	mãe	 a	 poucos	 passos	 dali;	 chorando,	 ele	 abandonou	 a	 amada	 e	 correu	 para
libertar	a	mãe;	depois	voltou	para	junto	da	amada	e	a	encontrou	pouco	antes	dela	morrer.	Quis	se	matar:	mas	a
mãe	lhe	mostrou	que	dependia	dele	para	seu	amparo	e	ele	teve	a	coragem	de	suportar	a	vida.
Os	juízes	se	inclinavam	em	favor	desse	soldado.	O	rei	tomou	a	palavra	e	disse:
–	A	ação	dele	e	a	dos	outros	são	belas,	mas	não	me	surpreendem;	ontem,	Zadig	fez	uma	que	me	surpreendeu.
Alguns	dias	atrás,	eu	havia	demitido	meu	ministro	e	favorito,	Coreb.	Queixava-me	dele	com	violência	e	todos	os
meus	 cortesãos	me	 diziam	 que	 eu	 estava	 sendo	muito	 brando:	 eles	 disputavam	 para	 falar	 o	 pior	 possível	 de
Coreb.	Perguntei	a	Zadig	o	que	pensava	e	ele	ousou	falar	bem	de	Coreb.	Confesso	que	vi,	em	nossas	histórias,
exemplos	de	quem	pagou	com	seus	bens	um	erro	cometido,	de	quem	cedeu	sua	amada,	de	quem	preferiu	a	mãe
ao	objeto	do	seu	amor;	mas	nunca	soube	de	um	cortesão	que	falasse	a	favor	de	um	ministro	caído	em	desgraça	e
contra	o	qual	seu	soberano	estivesse	encolerizado.	Dou	20	mil	moedas	de	ouro	a	cada	um	daqueles	cujas	ações
generosas	acabam	de	ser	citadas,	mas	ofereço	a	taça	a	Zadig.
–	É	somente	Vossa	Majestade	que	merece	a	taça	–	este	lhe	respondeu.	–	Foi	o	ato	mais	inusitado,	pois,	sendo
rei,	não	vos	zangastes	contra	vosso	escravo,	quando	ele	contradizia	vossa	paixão.
Todos	admiraram	o	rei	e	Zadig.	O	 juiz	que	dera	seus	bens,	o	 jovem	que	dera	sua	amada	em	casamento	ao
amigo,	o	soldado	que	preferiu	a	salvação	da	mãe	à	da	amada	receberam	os	presentes	do	monarca:	todos	tiveram
seus	 nomes	 escritos	 no	 livro	 dos	 generosos.	 Zadig	 ganhou	 a	 taça.	 O	 rei	 ganhou	 a	 reputação	 de	 um	 bom
governante,	que	não	conservou	por	muito	tempo.	Esse	dia	foi	consagrado	por	festas	mais	longas	do	que	previa	a
lei,	e	sua	memória	se	conserva	ainda	na	Ásia.	Zadig	pensou:	“Finalmente	sou	feliz!”.	Mas	ele	se	enganava.
CAPÍTULO	VI
O	ministro
O	 rei	 perdera	 seu	 primeiro-ministro.	 Ele	 escolheu	 Zadig	 para	 ocupar	 o	 cargo.	 Todas	 as	 belas	 damas	 de
Babilônia	aplaudiram	a	escolha,	pois	desde	a	fundação	do	império	nunca	houvera	um	ministro	tão	jovem.	Mas	os
cortesãos	ficaram	irritados;	o	invejoso	chegou	a	escarrar	sangue	e	seu	nariz	inchou	enormemente.	Zadig,	depois
de	agradecer	ao	rei	e	à	rainha,	foi	agradecer	também	ao	papagaio.	“Bela	ave”,	disse,	“foi	você	que	me	salvou	a
vida	e	que	me	fez	primeiro-ministro.	A	cadela	e	o	cavalo	de	Suas	Majestades	me	causaram	muito	mal,	mas	você
me	fez	o	bem.	Eis	do	que	dependem	os	destinos	dos	homens!	Mas”,	acrescentou,	“uma	felicidade	tão	estranha
talvez	logo	acabe.”	O	papagaio	respondeu:	“Sim”.	Zadig	ficou	impressionado	ao	ouvir	isso.	No	entanto,	como	era
bom	físico	e	não	acreditava	que	os	papagaios	fossem	profetas,	logo	se	tranquilizou	e	passou	a	exercer	seu	cargo
da	melhor	maneira	possível.
Ele	fez	todos	sentirem	o	poder	sagrado	das	leis,	e	não	fez	sentir	a	ninguém	o	peso	de	sua	dignidade.	Ouvia	as
vozes	dos	assessores,	e	cada	vizir	podia	ter	uma	opinião	sem	desagradar-lhe.	Quando	julgava	um	caso,	não	era
ele	que	 julgava,	era	a	 lei;	mas,	quando	esta	era	severa	demais,	ele	a	 temperava;	e,	quando	 faltavam	 leis,	 sua
equidade	as	criava	como	se	tivessememanado	de	Zoroastro.
É	dele	que	as	nações	conservam	este	grande	princípio:	mais	vale	se	arriscar	a	salvar	um	culpado	do	que	a
condenar	um	inocente.	Ele	acreditava	que	as	leis	foram	feitas	para	socorrer	os	cidadãos	e	não	só	para	intimidá-
los.	Seu	principal	talento	era	trazer	à	luz	a	verdade,	que	todos	os	homens	buscam	ocultar.	Já	nos	primeiros	dias
do	seu	mandato,	pôs	em	prática	esse	grande	talento.	Um	famoso	negociante	de	Babilônia	morrera	nas	 Índias;
fizera	herdeiros	seus	dois	filhos	em	porções	iguais,	após	ter	casado	a	irmã	deles,	e	deixara	um	presente	de	30
mil	moedas	de	ouro	àquele	dos	dois	 filhos	que	mostrasse	mais	amá-lo.	O	mais	velho	ergueu-lhe	um	túmulo,	o
mais	novo	aumentou	com	uma	parte	da	sua	herança	o	dote	da	irmã.	Todos	diziam:	“É	o	mais	velho	que	ama	mais
o	pai,	o	mais	moço	ama	mais	a	irmã;	é	ao	mais	velho	que	cabem	as	30	mil	moedas”.
Zadig	mandou	chamar	os	dois,	um	depois	do	outro.	Disse	ao	mais	velho:
–	Seu	pai	não	morreu,	ele	se	curou	de	sua	última	doença	e	está	voltando	à	Babilônia.
–	Deus	seja	louvado	–	respondeu	o	jovem.	–	Mas	seu	túmulo	me	custou	bem	caro!
Zadig	disse	a	seguir	a	mesma	coisa	ao	mais	moço:
–	 Deus	 seja	 louvado	 –	 este	 respondeu.	 –	 Vou	 devolver	 a	meu	 pai	 tudo	 o	 que	 tenho;	mas	 gostaria	 que	 ele
deixasse	com	minha	irmã	o	que	dei	a	ela.
–	Não	devolverá	nada	–	disse	Zadig	–	e	terá	as	30	mil	moedas.	É	você	que	mais	ama	seu	pai.
Uma	moça	muito	 rica	 fizera	uma	promessa	de	 casamento	a	dois	magos	e,	 após	 receber	por	 alguns	meses
instruções	de	um	e	de	outro,	engravidou.	Os	dois	queriam	desposá-la.
–	Tomarei	por	marido	–	ela	disse	–	aquele	que	me	possibilitou	dar	um	cidadão	ao	império.
–	Fui	eu	que	fiz	essa	boa	obra	–	disse	um.
–	Fui	eu	que	tive	essa	vantagem	–	disse	o	outro.
–	Pois	bem	–	ela	respondeu	–,	reconhecerei	como	pai	da	criança	aquele	de	vocês	que	puder	lhe	dar	a	melhor
educação.
Ela	deu	à	luz	um	menino.	Cada	um	dos	magos	quer	educá-lo.	O	caso	é	levado	a	Zadig,	que	manda	comparecer
os	dois	magos.
–	O	que	ensinará	a	seu	pupilo?	–	disse	ao	primeiro.
–	Vou	lhe	ensinar	–	disse	o	doutor	–	as	oito	partes	da	oração,	a	dialética,	a	astrologia,	a	demonomania,	e	o	que
são	a	substância	e	o	acidente,	o	abstrato	e	o	concreto,	as	mônadas	e	a	harmonia	preestabelecida.
–	Eu	–	disse	o	segundo	–	procurarei	fazê-lo	justo	e	digno	de	ter	amigos.
Zadig	pronunciou:
–	Quer	sejas	o	pai	ou	não,	desposarás	a	mãe	dele.
CAPÍTULO	VII
As	disputas	e	as	audiências
Era	assim	que	ele	mostrava	diariamente	a	sutileza	do	seu	gênio	e	a	bondade	da	sua	alma.	Todos	o	admiravam
e	o	amavam.	Era	tido	como	o	mais	afortunado	dos	homens,	seu	nome	se	espalhava	pelo	império	inteiro;	todas	as
mulheres	estavam	de	olho	nele;	todos	os	cidadãos	celebravam	sua	justiça;	os	sábios	o	consideravam	como	seu
oráculo;	mesmo	os	sacerdotes	reconheciam	que	ele	sabia	mais	que	o	velho	arquimago	Yebor.	Ninguém	voltaria	a
pensar	em	processá-lo	por	conta	dos	grifos;	agora	só	acreditavam	no	que	parecia	digno	de	ser	acreditado.
Havia	uma	grande	querela	em	Babilônia,	que	 já	durava	1500	anos,	e	que	dividia	o	 império	em	duas	seitas
obstinadas:	uma	afirmava	que	nunca	se	devia	entrar	no	templo	de	Mitra	a	não	ser	com	o	pé	esquerdo;	a	outra
considerava	esse	costume	abominável	e	nunca	entrava	senão	com	o	pé	direito.	Esperava-se	o	dia	da	festa	solene
do	fogo	sagrado	para	saber	que	seita	seria	favorecida	por	Zadig.	O	universo	tinha	os	olhos	sobre	seus	dois	pés	e
toda	a	cidade	estava	agitada	e	na	expectativa.	Zadig	entrou	no	templo	saltando	com	os	pés	juntos	e	provou	em
seguida,	por	um	discurso	eloquente,	que,	para	o	Deus	do	céu	e	da	terra,	que	não	tem	preferência	por	ninguém,
tanto	faz	a	perna	esquerda	quanto	a	perna	direita.
O	 invejoso	 e	 sua	 mulher	 disseram	 que	 em	 seu	 discurso	 não	 havia	 figuras	 suficientes,	 que	 ele	 não	 fizera
dançar	as	montanhas	e	as	colinas.	“Ele	é	seco	e	sem	gênio”,	disseram;	“nele	não	se	vê	o	mar	desaparecer,	nem
as	estrelas	caírem,	nem	o	sol	se	derreter	como	cera:	ele	não	possui	o	bom	estilo	oriental.”	Zadig	se	contentava
em	 ter	o	estilo	da	 razão.	Todos	concordaram	com	ele,	não	porque	estivesse	no	bom	caminho,	não	porque	era
razoável,	não	porque	era	amável,	mas	por	ser	o	primeiro-vizir.
Ele	 também	terminou	de	maneira	 feliz	a	grande	disputa	entre	magos	brancos	e	magos	pretos.	Os	brancos
afirmavam	que	era	uma	impiedade,	rezando	a	Deus,	virar-se	para	o	nascente;	os	pretos	asseguravam	que	Deus
tinha	horror	das	preces	dos	homens	que	se	viravam	para	o	poente.	Zadig	ordenou	que	as	pessoas	se	virassem
para	onde	bem	entendessem.
Assim	ele	descobriu	um	meio	de	despachar,	de	manhã,	os	assuntos	particulares	e	os	gerais;	no	resto	do	dia	se
ocupava	 com	o	 embelezamento	 de	Babilônia;	mandou	 representar	 tragédias	 que	 faziam	chorar,	 comédias	 que
faziam	rir,	coisas	há	muito	fora	de	moda	e	que	ele	fez	renascer	porque	percebia	seu	valor.	Não	pretendia	saber
mais	que	os	artistas,	recompensava-os	por	benefícios	e	distinções,	e	não	tinha	inveja	secreta	de	seus	talentos.	À
noite,	divertia	muito	o	rei	e	principalmente	a	rainha.	O	rei	dizia:	“O	grande	ministro!”.	A	rainha	dizia:	“O	amável
ministro!”,	e	ambos	acrescentavam:	“Teria	sido	uma	grande	lástima	se	o	tivessem	enforcado!”.
Jamais	um	homem	no	poder	foi	obrigado	a	dar	tantas	audiências	às	damas.	Em	sua	maioria	elas	vinham	lhe
falar	de	problemas	que	não	tinham,	para	criar	um	problema	com	ele.	A	mulher	do	invejoso	foi	das	primeiras	a	se
apresentar;	ela	 jurou	por	Mitra,	pelo	Zend-Avesta	e	pelo	 fogo	sagrado	que	havia	odiado	a	conduta	do	marido;
deu	 a	 entender	que	 os	 deuses	 o	 puniam	 recusando-lhe	 os	 preciosos	 efeitos	 daquele	 fogo	 sagrado	pelo	 qual	 o
homem	é	semelhante	aos	imortais;	e	acabou	por	deixar	cair	a	liga.	Zadig	a	recolheu	com	sua	polidez	costumeira,
mas	não	a	prendeu	ao	joelho	da	dama;	e	essa	pequena	falta,	se	porventura	é	uma	falta,	foi	a	causa	dos	maiores
infortúnios.	Zadig	não	pensou	nisso,	mas	a	mulher	do	invejoso	pensou	muito.
Outras	damas	se	apresentavam	todos	os	dias.	Os	anais	secretos	de	Babilônia	afirmam	que	ele	sucumbiu	uma
vez,	mas	que	ficou	surpreso	de	gozar	sem	volúpia,	e	de	beijar	sua	amante	com	distração.	A	única	a	quem	deu,
quase	 sem	 perceber,	 sinais	 de	 afeição	 foi	 uma	 camareira	 da	 rainha	 Astarteia.	 Essa	 terna	 babilônia	 dizia	 a	 si
mesma,	para	 se	 consolar:	 “Esse	homem	deve	estar	 com	a	 cabeça	 imensamente	ocupada	 com	problemas,	 pois
pensa	neles	mesmo	ao	fazer	amor”.	De	repente	Zadig	deixou	escapar,	num	momento	em	que	muitos	não	abrem	a
boca	 e	 outros	 só	 pronunciam	 palavras	 sagradas,	 esta	 exclamação:	 “A	 rainha!”.	 A	 babilônia	 acreditou	 que	 ele
voltava	a	si	por	um	momento	e	lhe	dizia:	“Minha	rainha”.	Mas	Zadig,	sempre	muito	distraído,	pronunciou	o	nome
Astarteia.	A	camareira,	que	nessa	feliz	circunstância	interpretava	tudo	a	seu	favor,	imaginou	que	ele	quis	dizer:
“Você	é	mais	bela	que	a	rainha	Astarteia”.	Ela	saiu	do	serralho	de	Zadig	com	belos	presentes	e	foi	contar	sua
aventura	à	invejosa,	que	era	sua	amiga	íntima.	Esta	ficou	cruelmente	ofendida	com	a	preferência.
–	Ele	nem	se	dignou	–	ela	disse	–	atar-me	a	liga,	esta	aqui,	que	nem	quero	mais	usar.
–	Olhe	só!	–	disse	a	afortunada	à	invejosa.	–	Você	usa	uma	liga	idêntica	à	da	rainha.	Mandou	fazê-la	na	mesma
costureira?
A	invejosa	nada	respondeu,	mas	ficou	matutando	e	foi	consultar	seu	marido	invejoso.
Zadig	percebeu,	nesse	meio-tempo,	que	sempre	tinha	distrações	quando	dava	audiências	e	quando	julgava;
não	sabia	a	que	atribuí-las;	era	sua	única	preocupação.
Ele	teve	um	sonho.	Pareceu-lhe	primeiro	que	estava	deitado	sobre	ervas	secas,	entre	as	quais	havia	algumas
espinhosas	 que	 o	 incomodavam,	 e	 que	 a	 seguir	 repousava	 docemente	 num	 leito	 de	 rosas,	 do	 qual	 saía	 uma
serpente	que	o	 feria	no	coração	com	sua	 língua	acerada	e	venenosa.	“Ai!”,	ele	disse.	“Estive	por	muito	 tempo
deitado	sobre	ervas	secas	e	espinhosas,	estou	agora	num	leito	de	rosas,	mas	qual	será	a	serpente?”
CAPÍTULO	VIII
O	ciúme
A	 infelicidade	 de	 Zadig	 veio	 de	 sua	 felicidade	 mesma,	 e	 principalmente	 deseu	 mérito.	 Todo	 dia	 ele	 se
encontrava	com	o	rei	e	com	a	rainha	Astarteia,	sua	augusta	esposa,	para	conversar.	O	encanto	do	que	ele	dizia
era	redobrado	por	aquela	vontade	de	agradar	que	é,	para	o	espírito,	o	que	é	o	ornamento	para	a	beleza.	Sua
juventude	e	suas	graças	causavam	sobre	Astarteia	uma	impressão	que	ela	de	início	não	percebeu.	Uma	paixão
crescia	no	seio	da	inocência.	Sem	escrúpulo	e	sem	temor,	Astarteia	se	entregava	ao	prazer	de	ver	e	de	ouvir	um
homem	caro	a	seu	esposo	e	ao	Estado;	ela	não	cessava	de	elogiá-lo	 junto	ao	rei;	 falava	dele	às	suas	damas	de
companhia,	 que	 multiplicavam	 seus	 louvores.	 Tudo	 contribuía	 para	 afundar	 no	 seu	 coração	 a	 flecha	 que	 não
sentia.	Dava	presentes	a	Zadig,	nos	quais	havia	mais	galanteria	do	que	imaginava;	acreditava	lhe	falar	apenas
como	rainha	satisfeita	com	seus	serviços,	e	às	vezes	suas	expressões	eram	de	uma	mulher	sensível.
Astarteia	era	muito	mais	bonita	do	que	aquela	Semira	que	odiava	os	caolhos,	e	do	que	aquela	outra	mulher
que	quis	cortar	o	nariz	do	seu	esposo.	A	familiaridade	de	Astarteia,	suas	palavras	ternas	com	as	quais	começava
a	 corar,	 seus	 olhares	 que	 ela	 queria	 desviar	 e	 que	 se	 fixavam	 nos	 dele	 acenderam	 no	 coração	 de	 Zadig	 uma
paixão	que	o	espantou.	Ele	resistiu;	chamou	em	seu	auxílio	a	filosofia,	que	sempre	o	socorrera;	dela	obteve	luzes,
mas	 nenhum	 alívio.	 O	 dever,	 a	 gratidão,	 a	 majestade	 soberana	 violada	 se	 apresentavam	 a	 seus	 olhos	 como
deuses	 vingadores;	 ele	 resistia	 e	 triunfava;	mas	essa	vitória,	que	era	preciso	 conquistar	a	 cada	momento,	 lhe
custava	 gemidos	 e	 lágrimas.	 Ele	 não	 ousava	 mais	 falar	 à	 rainha	 com	 aquela	 doce	 liberdade	 que	 fora	 tão
encantadora	para	os	dois;	seus	olhos	cobriam-se	de	uma	nuvem;	suas	palavras	eram	forçadas	e	inconsequentes;
ele	baixava	os	olhos	e,	quando	estes	se	viravam	sem	querer	para	Astarteia,	encontravam	os	da	rainha	úmidos	de
lágrimas	e	emitindo	raios	de	fogo.	Eles	pareciam	dizer	um	ao	outro:	“Adoramo-nos	e	tememos	nos	amar;	ambos
ardemos	em	uma	chama	que	condenamos”.
Zadig	 saía	 de	 perto	 dela	 desorientado,	 enlouquecido,	 o	 coração	 sobrecarregado	 de	 um	 fardo	 que	 ele	 não
podia	mais	aguentar.	Na	violência	de	suas	agitações,	confessou	o	segredo	a	seu	amigo	Cador	como	um	homem
que,	tendo	suportado	por	muito	tempo	uma	dor	intensa,	faz	enfim	conhecer	seu	mal	por	um	grito	que	um	acesso
agudo	lhe	arranca,	e	pelo	suor	frio	que	lhe	escorre	na	testa.
Cador	lhe	disse:
–	 Já	 percebi	 os	 sentimentos	 que	 você	 quis	 ocultar	 de	 si	 mesmo;	 as	 paixões	 têm	 sinais	 que	 não	 enganam.
Julgue,	meu	caro	Zadig,	pois	leio	em	seu	coração,	se	o	rei	não	descobrirá	um	sentimento	que	o	ofende.	O	único
defeito	do	rei	é	ser	o	mais	ciumento	dos	homens.	Resista	à	sua	paixão	com	mais	força	do	que	a	rainha	combate	a
dela,	porque	você	é	filósofo	e	porque	você	é	Zadig.	Astarteia	é	mulher:	ela	deixa	seus	olhos	falarem	com	tanto
mais	 imprudência	 quanto	 ainda	 não	 se	 crê	 culpada.	 Infelizmente,	 tranquilizada	 por	 sua	 inocência,	 ela	 se
descuida	das	aparências	necessárias,	e	o	perigo	é	maior	quanto	menos	tem	a	se	reprovar.	Se	vocês	estivessem	de
acordo,	 saberiam	enganar	 todos	os	olhos:	uma	paixão	nascente	e	 combatida	 se	manifesta;	um	amor	 satisfeito
sabe	se	ocultar.
Zadig	tremeu	à	proposta	de	trair	o	rei,	seu	benfeitor;	e	nunca	foi	mais	fiel	ao	soberano	do	que	ao	se	sentir
culpado	de	um	crime	 involuntário	em	relação	a	ele.	No	entanto	a	 rainha	pronunciava	 tantas	vezes	o	nome	de
Zadig,	ficava	com	o	rosto	tão	corado	ao	pronunciá-lo,	mostrava-se	ora	tão	animada,	ora	tão	retraída	quando	lhe
falava	em	presença	do	rei	e	caía	num	devaneio	tão	profundo	quando	Zadig	saía	que	o	rei	acabou	por	desconfiar.
Acreditou	em	tudo	o	que	via	e	imaginou	tudo	o	que	não	via.	Notou,	sobretudo,	que	as	babuchas	de	sua	mulher
eram	azuis,	e	que	as	babuchas	de	Zadig	eram	azuis;	que	as	fitas	no	cabelo	de	sua	mulher	eram	amarelas,	e	que	o
barrete	de	Zadig	era	amarelo;	eram	indícios	terríveis	para	um	soberano	suscetível.	As	suspeitas	viraram	certezas
no	seu	espírito	irritado.
Todos	os	escravos	dos	reis	e	das	rainhas	são	espiões	de	seus	corações.	Logo	compreenderam	que	Astarteia
estava	amando	e	que	Moabdar	tinha	ciúmes.	O	invejoso	tratou	de	fazer	que	a	invejosa	enviasse	ao	rei	sua	liga,
que	era	parecida	com	a	da	rainha.	Para	o	cúmulo	da	desgraça,	essa	liga	era	azul.	E	o	monarca	não	pensou	mais
senão	na	maneira	de	se	vingar.	Uma	noite	resolveu	envenenar	a	rainha	e	estrangular	Zadig	ao	raiar	do	dia.	A
ordem	 foi	 dada	 a	 um	 impiedoso	 eunuco,	 executor	 de	 suas	 vinganças.	 Achava-se	 então	 no	 quarto	 do	 rei	 um
anãozinho	 que	 era	 mudo,	 mas	 que	 não	 era	 surdo.	 Toleravam-no	 em	 toda	 parte,	 e	 ele	 testemunhava	 o	 que	 se
passava	de	mais	secreto,	como	um	animal	doméstico.	Esse	mudinho	era	muito	afeiçoado	à	rainha	e	a	Zadig.	Ele
ouviu,	com	surpresa	e	horror,	a	ordem	de	matá-los.	Mas	como	fazer	para	avisar	essa	ordem	terrível	que	seria
executada	em	poucas	horas?	Ele	não	sabia	escrever;	no	entanto	sabia	pintar	e	principalmente	desenhar	muito
bem	 figuras.	 Passou	 uma	 parte	 da	 noite	 desenhando	 o	 que	 queria	 fazer	 a	 rainha	 entender.	 Seu	 desenho
representava	o	rei	agitado	de	fúria,	dando	ordens	ao	eunuco;	um	laço	de	seda	azul	e	uma	taça	em	cima	da	mesa,
com	ligas	azuis	e	fitas	de	cabelo	amarelas;	a	rainha,	no	meio	da	cena,	expirando	nos	braços	de	suas	damas	de
companhia;	 e	 Zadig	 estrangulado	 a	 seus	 pés.	 No	 horizonte	 se	 via	 o	 sol	 nascendo	 para	 indicar	 que	 a	 horrível
execução	 aconteceria	 ao	 raiar	 da	 aurora.	 Terminado	 o	 desenho,	 ele	 correu	 até	 o	 quarto	 de	 uma	 das
acompanhantes	de	Astarteia,	a	despertou	e	a	fez	entender	que	era	preciso	levar	imediatamente	aquele	desenho
à	rainha.
No	meio	da	noite,	batem	à	porta	de	Zadig;	despertam-no,	entregam-lhe	um	bilhete	da	rainha;	ele	duvida	se
não	 é	 um	 sonho,	 abre	 a	 carta	 com	 a	 mão	 trêmula.	 Qual	 não	 foi	 sua	 surpresa,	 e	 quem	 poderia	 exprimir	 a
consternação	e	o	desespero	que	o	atingiu,	quando	leu	estas	palavras:	“Fuja	agora	mesmo	ou	 lhe	arrancarão	a
vida!	Fuja,	Zadig;	ordeno-lhe	em	nome	do	nosso	amor	e	das	minhas	fitas	amarelas.	Não	sou	culpada,	mas	sinto
que	vou	morrer	criminosa”.
Zadig	mal	teve	forças	para	falar.	Ordenou	que	mandassem	chamar	Cador	e,	sem	nada	dizer,	entregou-lhe	o
bilhete.	Cador	o	forçou	a	obedecer	e	a	partir	imediatamente	para	Mênfis.
–	Se	ousar	 ir	 ao	encontro	da	 rainha	 –	ele	disse	 –,	 apressará	 sua	morte;	 se	 falar	 com	o	 rei,	 também	a	 fará
morrer.	 Encarrego-me	 do	 destino	 dela;	 siga	 o	 seu.	 Espalharei	 o	 boato	 de	 que	 você	 viajou	 para	 as	 Índias.	 Em
breve	irei	encontrá-lo	e	lhe	direi	o	que	se	passou	em	Babilônia.
Sem	demora,	Cador	fez	trazer	dois	dos	mais	rápidos	dromedários	até	uma	porta	secreta	do	palácio;	ajudou
Zadig	a	montá-los,	pois	ele	parecia	a	ponto	de	entregar	a	alma.	Um	único	serviçal	o	acompanhou,	e	em	breve
Cador,	mergulhado	no	espanto	e	no	sofrimento,	perdeu	seu	amigo	de	vista.
Esse	ilustre	fugitivo,	ao	chegar	a	uma	colina	de	onde	se	avistava	Babilônia,	voltou	o	olhar	para	o	palácio	da
rainha	e	desmaiou;	só	recuperou	os	sentidos	para	derramar	lágrimas	e	desejar	a	morte.	Por	fim,	após	pensar	no
destino	 da	 mais	 amável	 das	 mulheres	 e	 da	 primeira	 rainha	 do	 mundo,	 refletiu	 sobre	 sua	 própria	 situação	 e
exclamou:
–	Mas	o	que	é	a	vida	humana?	Ó,	virtude,	de	que	me	serviste?	Duas	mulheres	me	enganaram	indignamente;	a
terceira,	que	não	é	culpada	e	que	é	mais	bela	do	que	as	outras,	vai	morrer!	Tudo	o	que	fiz	de	bom	foi	sempre
para	mim	uma	fonte	de	maldições,	e	só	fui	elevado	ao	cume	da	grandeza	para	cair	no	mais	horrível	precipício	do
infortúnio.	Se	eu	tivesse	sido	mau	como	tantos	outros,	seria	feliz	como	eles.
Abatido	por	essas	reflexões	funestas,	com	os	olhos	cobertos	pelo	véu	da	dor,	a	palidez	da	morte	no	rosto	e	a
alma	abismada	no	excesso	de	um	sombrio	desespero,	ele	continuou	sua	viagem	rumo	ao	Egito.
CAPÍTULO	IX
A	mulher	batida
Zadig	seguia	seu	caminho	seorientando	pelas	estrelas.	A	constelação	de	Órion	e	a	brilhante	estrela	Sírius	o
guiavam	em	direção	ao	polo	de	Canopo.	Ele	admirava	esses	vastos	globos	de	luz	que	parecem	pequenas	fagulhas
aos	nossos	olhos,	enquanto	a	Terra,	que	não	é	mais	que	um	ponto	imperceptível	na	natureza,	se	afigura	à	nossa
cupidez	como	algo	tão	grande	e	tão	nobre.	Ele	imaginou	então	os	homens	tais	como	são	de	fato,	insetos	que	se
entredevoram	 uns	 aos	 outros	 num	 pequeno	 átomo	 de	 lama.	 Essa	 imagem	 verdadeira	 pareceu	 anular	 suas
desgraças,	mostrando-lhe	o	nada	de	 seu	 ser	 e	 o	de	Babilônia.	Sua	alma	 lançava-se	ao	 infinito	 e	 contemplava,
desligada	dos	seus	sentidos,	a	ordem	imutável	do	universo.	Mas	quando	a	seguir,	de	volta	a	si	mesmo	e	a	seu
coração,	pensou	que	Astarteia	talvez	estivesse	morta	por	ele,	o	universo	desapareceu	de	seus	olhos	e	ele	só	via
na	natureza	inteira	Astarteia	morrendo	e	Zadig	infortunado.
Enquanto	 se	 entregava	 a	 esse	 fluxo	 e	 refluxo	 de	 filosofia	 sublime	 e	 dor	 arrasadora,	 avançava	 rumo	 às
fronteiras	do	Egito;	e	já	seu	fiel	serviçal	estava	no	primeiro	vilarejo,	buscando	um	alojamento.	Zadig	percorria	os
jardins	dos	arredores.	Não	longe	da	estrada	principal,	viu	uma	mulher	aos	prantos	que	clamava	ao	céu	e	à	terra
por	socorro,	e	um	homem	furioso	que	a	seguia.	Ela	já	fora	atingida	por	ele	e	abraçava	seus	joelhos.	Esse	homem
a	atacava	com	pancadas	e	recriminações.	Zadig	julgou,	pela	violência	do	egípcio	e	pelos	perdões	reiterados	que
lhe	pedia	a	dama,	que	um	era	 ciumento	e	a	outra	 infiel.	Mas,	 vendo	aquela	mulher,	de	uma	beleza	 tocante	e
mesmo	 um	 pouco	 parecida	 com	 a	 desafortunada	 Astarteia,	 ele	 se	 sentiu	 tomado	 de	 compaixão	 por	 ela	 e	 de
horror	pelo	egípcio.
–	Ajude-me	–	ela	gritou	a	Zadig	entre	soluços	–,	tire-me	das	mãos	do	mais	bárbaro	dos	homens,	salve-me	a
vida!
A	esses	gritos,	Zadig	se	interpôs	entre	ela	e	o	bárbaro.	Ele	tinha	algum	conhecimento	da	língua	egípcia:
–	Se	 tem	alguma	humanidade,	 conjuro-o	a	 respeitar	a	beleza	e	a	 fraqueza.	Como	pode	ultrajar	assim	uma
obra-prima	da	natureza	que	está	a	seus	pés	e	que	só	tem	lágrimas	como	defesa?
–	Ah,	é?	–	respondeu-lhe	o	furioso.	–	Então	a	ama	e	é	contra	você	que	vou	me	vingar!
Ao	 dizer	 essas	 palavras,	 ele	 abandona	 a	 dama,	 que	 segurava	 pelos	 cabelos,	 e	 pega	 a	 lança	 para	 atacar	 o
estrangeiro.	Este,	que	estava	calmo,	evita	com	 facilidade	o	golpe	de	um	 furioso	e	consegue	pegar	a	ponta	da
lança.	Um	quer	retirá-la,	o	outro	arrancá-la:	ela	se	parte	entre	suas	mãos.	O	egípcio	saca	a	espada,	Zadig	faz	o
mesmo.	Os	dois	entram	em	luta,	um	desferindo	golpes	precipitados,	o	outro	os	aparando	com	destreza.	A	dama,
sentada	na	 relva,	 arruma	o	penteado	e	os	observa.	O	egípcio	era	mais	 robusto	que	 seu	adversário,	Zadig	era
mais	habilidoso.	Este	lutava	como	um	homem	cuja	cabeça	conduz	o	braço,	aquele	como	um	cego	cuja	cólera	guia
os	movimentos	ao	acaso.	Zadig	consegue	desarmá-lo;	e	quando	o	egípcio,	ainda	mais	 furioso,	arremete	contra
ele,	Zadig	o	derruba	e	põe-lhe	a	espada	contra	o	peito.	Oferece	poupar-lhe	a	vida.	Mas	o	egípcio,	fora	de	si,	saca
um	punhal	e	fere	Zadig	no	momento	em	que	o	vencedor	o	perdoava.	Indignado,	Zadig	enterra-lhe	a	espada	no
peito.	O	egípcio	lança	um	grito	horrível	e	morre,	debatendo-se.	Zadig	avança	então	em	direção	à	dama	e	diz	a	ela
com	uma	voz	submissa:
–	Ele	me	obrigou	a	matá-lo.	Eu	a	vinguei,	está	livre	do	homem	mais	violento	que	já	conheci.	Que	quer	agora
de	mim,	senhora?
–	Que	você	morra,	maldito	–	ela	respondeu	–,	que	você	morra!	Matou	meu	amante.	Queria	poder	arrancar	seu
coração!
–	Mas	minha	senhora!	Tinha	um	estranho	homem	como	amante:	ele	lhe	batia	com	toda	a	força	e	quis	matar-
me	porque	atendi	a	seu	pedido	de	socorro.
–	Queria	que	ele	me	batesse	ainda	mais!	–	prosseguiu	a	dama,	aos	gritos.	–	Eu	bem	que	o	merecia,	eu	 lhe
causei	ciúmes.	Queria	que	ele	me	batesse	e	que	você	tivesse	morrido	e	não	ele!
Surpreso	e	enfurecido	como	nunca	estivera	na	vida,	Zadig	falou:
–	Senhora,	por	mais	bela	que	seja,	mereceria	que	eu	também	lhe	batesse,	tamanha	é	sua	extravagância.	Mas
não	me	darei	esse	trabalho.
Tornou	a	montar	no	camelo	e	avançou	rumo	ao	vilarejo.	Mal	tinha	dado	alguns	passos,	ele	se	volta	ao	ruído
que	faziam	quatro	cavaleiros	vindos	a	toda	brida	de	Babilônia.	Um	deles,	vendo	aquela	mulher,	exclama:
–	É	ela!	Assemelha-se	ao	retrato	que	nos	deram!
Sem	se	importarem	com	o	morto,	eles	se	apoderaram	imediatamente	da	dama.	Ela	começou	a	gritar	a	Zadig:
–	Socorra-me	outra	vez,	estrangeiro	generoso!	Peço	perdão	por	ter	me	queixado	de	você.	Socorra-me	e	serei
sua	até	o	túmulo!
Mas	Zadig	não	tinha	mais	vontade	de	lutar	por	ela.
–	Peça	a	outros!	–	respondeu.	–	Você	não	me	engana	mais.
Aliás,	 ele	 estava	 ferido,	 seu	 sangue	 corria,	 tinha	necessidade	de	 socorro.	E	 a	 visão	 dos	 quatro	 babilônios,
provavelmente	 enviados	 pelo	 rei	Moabdar,	 o	 enchia	 de	 inquietação.	 Com	 pressa,	 avançou	 até	 o	 vilarejo,	 não
imaginando	 por	 que	 quatro	 cavaleiros	 de	 Babilônia	 vinham	 se	 apoderar	 daquela	 egípcia,	 mas	 ainda	 mais
espantado	com	o	caráter	dessa	dama.
CAPÍTULO	X
A	escravidão
Ao	entrar	no	vilarejo	egípcio,	ele	se	viu	cercado	pelo	povo.	Todos	clamavam:
–	Foi	ele	que	raptou	a	bela	Missuf	e	que	acaba	de	assassinar	Cletófis!
–	Senhores	–	ele	disse	–,	Deus	me	preserve	de	 jamais	raptar	essa	bela	Missuf!	Ela	é	caprichosa	demais.	E,
quanto	a	Cletófis,	não	o	assassinei,	apenas	me	defendi	contra	ele.	Ele	queria	me	matar	porque	 lhe	pedi	muito
humildemente	 que	 perdoasse	 a	 bela	 Missuf,	 em	 quem	 batia	 impiedosamente.	 Sou	 um	 estrangeiro	 que	 vem
buscar	asilo	no	Egito;	e	não	faz	sentido	que,	vindo	pedir	a	proteção	de	vocês,	eu	tenha	começado	por	raptar	uma
mulher	e	por	assassinar	um	homem.
Os	egípcios	eram	então	justos	e	humanos.	O	povo	conduziu	Zadig	até	a	prefeitura.	Primeiro	fizeram-lhe	um
curativo	 ao	 ferimento	 e	 a	 seguir	 o	 interrogaram,	 ele	 e	 seu	 serviçal	 separadamente,	 para	 saber	 a	 verdade.
Reconheceram	que	Zadig	não	era	um	assassino;	mas	ele	era	culpado	do	sangue	de	um	homem:	a	lei	o	condenava
a	ser	escravo.	Seus	dois	camelos	foram	vendidos	em	proveito	do	vilarejo;	distribuiu-se	aos	habitantes	todo	o	ouro
que	ele	trazia;	sua	pessoa	foi	posta	à	venda	em	praça	pública,	assim	como	a	do	seu	companheiro	de	viagem.	Um
mercador	árabe,	chamado	Setoc,	o	arrebatou	em	leilão;	mas	o	serviçal,	mais	resistente	à	fadiga,	foi	vendido	por
maior	 preço	 que	 o	 mestre.	 Não	 faziam	 comparação	 entre	 os	 dois	 homens.	 Assim	 Zadig	 tornou-se	 escravo
subordinado	a	seu	serviçal:	ambos	foram	atados	por	uma	corrente	nos	pés	e	nesse	estado	seguiram	o	mercador
árabe	 até	 sua	 casa.	 Zadig,	 no	 caminho,	 consolava	 seu	 serviçal	 e	 o	 exortava	 à	 paciência;	 mas,	 segundo	 seu
costume,	fazia	reflexões	sobre	a	vida	humana.
–	Vejo	que	as	desgraças	do	meu	destino	–	disse	–	se	espalham	sobre	o	seu.	Até	agora,	tudo	me	aconteceu	de
uma	maneira	muito	estranha.	Fui	multado	por	ter	visto	uma	cadela;	quase	fui	empalado	por	causa	de	um	grifo;
fui	 enviado	 ao	 suplício	 por	 ter	 escrito	 versos	 em	 louvor	 do	 rei;	 estive	 a	 ponto	 de	 ser	 estrangulado	 porque	 a
rainha	 tinha	 fitas	 amarelas,	 e	 sou	 agora	 escravo	 com	 você	 porque	 um	 homem	 brutal	 espancava	 sua	 amante.
Vamos,	não	percamos	a	coragem;	talvez	um	dia	tudo	isso	acabe;	os	mercadores	árabes	precisam	de	escravos;	e
por	que	eu	não	o	seria	como	outro	qualquer,	se	sou	um	homem	como	outro	qualquer?	Esse	mercador	não	será
impiedoso;	ele	deve	tratar	bem	seus	escravos,	se	quiser	obter	serviços	deles.
Falou	assim,	mas	no	fundo	do	seu	coração	estava	ocupado	com	a	sorte	da	rainha	de	Babilônia.
Setoc,	o	mercador,	partiu	dois	dias	depois	para	a	Arábia	deserta	com	seus	escravos	e	seus	camelos.	Sua	tribo
vivia	nos	arredores	do	deserto	de	Horeb.	A	viagem	foi	longa	e	penosa.	No	caminho,	Setoc	dava	mais	importância
ao	serviçal	do	que	ao	mestre,	porque	o	primeiro	carregava	melhor	os	camelos;	e	todas	as	pequenas	distinções
foram	para	ele.
Um	camelo	morreu	faltando	doisdias	para	chegar	a	Horeb:	distribuiu-se	sua	carga	nas	costas	de	cada	um
dos	 servidores,	 e	 Zadig	 teve	 sua	 parte.	 Setoc	 ria	 ao	 ver	 seus	 escravos	marcharem	 curvados.	 Zadig	 tomou	 a
liberdade	 de	 lhe	 explicar	 a	 razão	 disso,	 falando-lhe	 das	 leis	 do	 equilíbrio.	 O	 mercador,	 surpreso,	 passou	 a
considerá-lo	com	outros	olhos.	Vendo	que	havia	despertado	sua	curiosidade,	Zadig	a	atiçou	mais,	ensinando-lhe
muitas	coisas	que	não	eram	alheias	ao	seu	comércio:	os	pesos	específicos	dos	metais	e	dos	gêneros	alimentícios
sob	igual	volume;	as	propriedades	de	vários	animais	úteis;	o	meio	de	tornar	úteis	aqueles	que	não	o	eram.	Enfim,
Zadig	pareceu-lhe	um	sábio,	e	Setoc	passou	a	preferi-lo	a	seu	companheiro	que	ele	tanto	estimara.	Tratou-o	bem
e	não	teve	motivos	para	se	arrepender.
Ao	chegar	à	sua	tribo,	Setoc	começou	por	pedir	de	volta	quinhentas	onças	de	prata	a	um	hebreu	a	quem	as
emprestara	 em	 presença	 de	 duas	 testemunhas,	 mas	 as	 duas	 testemunhas	 haviam	 morrido,	 e	 o	 hebreu	 se
aproveitou	 disso	 para	 ficar	 com	 o	 dinheiro	 do	 mercador,	 agradecendo	 a	 Deus	 por	 lhe	 ter	 dado	 um	meio	 de
enganar	um	árabe.	Setoc	confiou	o	problema	a	Zadig,	que	se	tornara	seu	conselheiro.
–	Em	que	lugar	–	Zadig	perguntou	–	o	senhor	emprestou	suas	quinhentas	onças	a	esse	infiel?
–	Sobre	uma	grande	pedra	–	respondeu	o	mercador	–	que	fica	junto	ao	monte	Horeb.
–	Qual	é	o	caráter	do	seu	devedor?	–	disse	Zadig.
–	Um	trapaceiro	–	falou	Setoc.
–	Eu	lhe	pergunto	se	é	um	homem	impulsivo	ou	fleumático,	imprudente	ou	prudente.
–	De	todos	os	maus	pagadores	–	disse	Setoc	–,	é	o	mais	impulsivo	que	conheço.
–	Pois	bem	–	insistiu	Zadig	–,	permita	que	eu	defenda	sua	causa	diante	do	juiz.
De	fato,	ele	citou	o	hebreu	no	tribunal	e	falou	assim	ao	juiz:
–	Almofada	do	trono	da	equidade,	venho	pedir	de	volta	a	esse	homem,	em	nome	de	meu	mestre,	quinhentas
onças	de	prata	que	ele	não	quer	devolver.
–	Há	testemunhas?	–	disse	o	juiz.
–	Não,	elas	estão	mortas;	mas	resta	uma	grande	pedra	sobre	a	qual	o	dinheiro	 foi	emprestado;	e	se	Vossa
Grandeza	consentir	em	ordenar	que	se	busque	a	pedra,	conto	que	ela	servirá	de	testemunho;	ficaremos	aqui,	o
hebreu	e	eu,	até	que	seja	trazida;	mandarei	buscá-la	às	custas	de	Setoc,	meu	mestre.
–	Concedido	–	respondeu	o	juiz,	que	logo	passou	a	despachar	outros	assuntos.
No	final	da	audiência,	ele	perguntou	a	Zadig:
–	E	sua	pedra,	ainda	não	veio?
O	hebreu	então	riu	e	falou:
–	Mesmo	se	Vossa	Grandeza	ficasse	aqui	até	amanhã	a	pedra	não	chegaria;	ela	está	a	mais	de	seis	milhas	de
distância	e	seriam	necessários	quinze	homens	para	transportá-la.
–	O	senhor	está	vendo!	–	exclamou	Zadig.	–	Eu	lhe	disse	que	essa	pedra	daria	testemunho;	se	esse	homem
sabe	onde	ela	está,	ele	confessa	então	que	foi	ali	que	recebeu	o	empréstimo.
Desconcertado,	o	hebreu	logo	teve	de	confessar	tudo.	O	juiz	ordenou	que	ele	ficaria	atado	à	pedra,	sem	beber
nem	comer,	até	devolver	as	quinhentas	onças,	que	não	tardaram	a	ser	pagas.
O	escravo	Zadig	e	a	pedra	ganharam	grande	fama	na	Arábia.
CAPÍTULO	XI
A	pira	funerária
Setoc,	encantado,	fez	de	seu	escravo	um	amigo	íntimo.	Não	podia	mais	passar	sem	ele,	como	já	acontecera
com	o	rei	de	Babilônia;	e	Zadig	agradecia	que	Setoc	não	tivesse	mulher.	Descobriu	no	mestre	uma	índole	voltada
para	o	bem,	muita	retidão	e	bom	senso.	Doía-lhe,	porém,	ver	que	ele	adorava	o	exército	celeste,	isto	é,	o	sol,	a
lua	e	as	estrelas,	segundo	o	antigo	costume	da	Arábia.	Às	vezes	tocou	nesse	assunto	com	muita	discrição.	Por	fim
lhe	disse	que	eram	corpos	como	os	outros,	que	não	mereciam	sua	homenagem	mais	do	que	uma	árvore	ou	uma
pedra.
–	 Mas	 são	 seres	 eternos	 dos	 quais	 obtemos	 todos	 os	 nossos	 benefícios	 –	 disse	 Setoc.	 –	 Eles	 animam	 a
natureza,	regulam	as	estações;	além	disso,	estão	tão	longe	de	nós	que	não	podemos	deixar	de	reverenciá-los.
–	 O	 senhor	 recebe	 mais	 benefícios	 –	 respondeu	 Zadig	 –	 das	 águas	 do	 Mar	 Vermelho,	 que	 leva	 suas
mercadorias	às	Índias.	Por	que	ele	não	seria	tão	antigo	como	as	estrelas?	E,	se	adora	o	que	está	distante	de	nós,
então	deve	adorar	a	terra	dos	gangáridas[1],	que	fica	na	extremidade	do	mundo.
–	Não	–	retrucou	Setoc	–,	as	estrelas	são	brilhantes	demais	para	que	eu	não	as	adore.
Ao	anoitecer,	Zadig	acendeu	um	grande	número	de	velas	na	tenda	onde	devia	cear	com	Setoc;	e,	assim	que
seu	patrão	chegou,	lançou-se	de	joelhos	diante	das	velas	acesas	e	lhes	disse:
–	Eternas	e	brilhantes	claridades,	sejam-me	sempre	propícias!
Tendo	proferido	essas	palavras,	pôs-se	à	mesa	sem	olhar	para	Setoc.
–	Que	está	fazendo?	–	este	perguntou,	surpreso.
–	Faço	como	o	senhor	–	respondeu	Zadig	–,	adoro	essas	velas	e	negligencio	o	mestre	delas	e	o	meu.
Setoc	compreendeu	o	sentido	profundo	desse	apólogo.	A	sabedoria	do	seu	escravo	penetrou-lhe	a	alma;	ele
não	mais	prodigalizou	incenso	às	criaturas	celestes	e	adorou	o	Ser	eterno	que	as	criou.
Havia	então	na	Arábia	um	costume	 terrível,	 originado	na	Cítia[2],	 e	que,	 tendo	 se	estabelecido	nas	 Índias
pelos	brâmanes,	ameaçava	invadir	todo	o	Oriente.	Quando	um	homem	casado	morria	e	sua	mulher	bem-amada
queria	ser	santa,	ela	se	queimava	em	público	sobre	o	corpo	do	marido.	Era	uma	festa	solene	chamada	a	pira	da
viuvez.	A	tribo	na	qual	houvesse	o	maior	número	de	mulheres	queimadas	era	a	mais	considerada.	Tendo	morrido
um	árabe	da	tribo	de	Setoc,	sua	viúva,	chamada	Almona,	que	era	muito	devota,	anunciou	o	dia	e	a	hora	em	que
se	lançaria	no	fogo	ao	som	de	tambores	e	trombetas.	Zadig	mostrou	a	Setoc	quanto	esse	costume	horrível	era
contrário	 ao	bem	do	gênero	humano;	 deixava-se	queimar	diariamente	 jovens	 viúvas	que	podiam	dar	 filhos	 ao
Estado	ou,	pelo	menos,	educar	os	delas;	e	o	fez	compreender	que	era	preciso,	se	possível,	abolir	uma	prática	tão
bárbara.	Mas	Setoc	observou:
–	Há	mais	de	mil	anos	as	mulheres	têm	o	costume	de	se	queimar.	Quem	de	nós	ousará	mudar	uma	lei	que	o
tempo	consagrou?	Há	algo	mais	respeitável	do	que	um	antigo	abuso?
–	A	razão	é	mais	antiga	–	respondeu	Zadig.	–	Fale	com	os	chefes	das	tribos,	enquanto	vou	procurar	a	viúva.
Fez-se	apresentar	a	ela;	e,	após	ter-se	insinuado	em	seu	espírito	por	louvores	sobre	sua	beleza,	após	ter-lhe
dito	quão	lastimável	era	jogar	ao	fogo	tantos	encantos,	louvou-a	ainda	mais	por	sua	constância	e	sua	coragem.
–	Por	certo	a	senhora	amava	imensamente	seu	marido	–	comentou.
–	Eu?	De	modo	nenhum	–	 respondeu	a	dama	árabe.	 –	Era	um	homem	brutal,	 ciumento,	 insuportável;	mas
estou	firmemente	decidida	a	me	lançar	nas	chamas.
–	Então	deve	haver	um	prazer	delicioso	em	ser	queimada	viva	–	disse	Zadig.
–	 Pelo	 contrário,	minha	 natureza	 se	 arrepia	 –	 disse	 a	 dama.	 –	Mas	 tenho	 de	 passar	 por	 isso.	 Sou	 devota;
minha	reputação	se	perderia	e	todos	me	desprezariam	se	eu	não	me	queimasse.
Após	mostrar	 que	 ela	 se	 queimava	 para	 os	 outros	 e	 por	 vaidade,	 Zadig	 buscou	 longamente	 convencê-la	 a
amar	um	pouco	a	vida,	conseguindo	mesmo	inspirar-lhe	alguma	benevolência	por	aquele	que	lhe	falava.
–	O	que	faria	–	ele	disse	–	se	não	houvesse	essa	vaidade	de	se	queimar?
–	Ah	–	respondeu	a	dama	–,	acho	que	lhe	pediria	para	casar	comigo.
Zadig	estava	com	o	pensamento	muito	ligado	em	Astarteia	para	levar	a	sério	essa	declaração.	Mas	na	mesma
hora	foi	falar	com	os	chefes	das	tribos,	contou-lhes	o	que	se	passara	e	os	aconselhou	a	fazer	uma	lei	segundo	a
qual	só	seria	permitido	a	uma	viúva	queimar-se	após	ter	conversado	com	um	homem	jovem,	a	sós,	durante	uma
hora	inteira.	Desde	então,	nunca	mais	uma	viúva	se	queimou	na	Arábia.	Zadig	foi	reconhecido	por	ter	destruído
num	dia	um	costume	tão	cruel	que	durava	havia	tantos	séculos.	Tornou-se	um	benfeitor	da	Arábia.
[1]	Antigo	povo	ribeirinho	do	Ganges,	na	Índia.	(N.T.)
[2]	Região	da	Eurásia	ao	norte	da	Pérsia,	historicamente	relacionada	aos	hunos.	(N.T.)
CAPÍTULO	XII
A	ceia
Setoc,	que	não	podia	mais	se	separar	desse	homem	em	quem	habitava	a	sabedoria,	o	levou	à	grande	feira	de
Bassorá,	onde	deviam	comparecer	os	maiores	negociantes	da	terra	habitável.	Para	Zadig	foi	um	grande	consolover	 tantos	 homens	 de	 diversos	 países	 reunidos	 no	 mesmo	 lugar.	 Parecia-lhe	 que	 o	 universo	 era	 uma	 grande
família	que	se	reunia	em	Bassorá.	Já	no	segundo	dia,	ele	se	viu	à	mesa	com	um	egípcio,	um	indiano	gangárida,
um	 habitante	 do	 Catai,	 um	 grego,	 um	 celta	 e	 vários	 outros	 estrangeiros	 que,	 nas	 suas	 frequentes	 viagens	 ao
golfo	 arábico,	 haviam	 aprendido	 suficientemente	 o	 árabe	 para	 se	 fazerem	 entender.	 O	 egípcio	 parecia	 muito
encolerizado:
–	Que	terra	abominável	é	Bassorá!	–	falou.	–	Recusaram-me	mil	onças	de	ouro	pelo	melhor	artigo	do	mundo.
–	Como	assim?	–	perguntou	Setoc.	–	Que	artigo	teve	recusada	tal	quantia?
–	O	corpo	da	minha	tia	–	respondeu	o	egípcio.	–	Era	a	mais	corajosa	mulher	do	Egito.	Ela	me	acompanhava
sempre.	Morreu	em	viagem.	Fiz	dela	uma	das	mais	belas	múmias	que	possuímos;	em	meu	país	eu	teria	tudo	o
que	quisesse	se	a	pusesse	à	venda.	É	muito	estranho	que	não	queiram	me	dar	aqui	apenas	mil	onças	de	ouro	por
num	artigo	tão	sólido.
Ainda	enfurecido,	ele	se	preparava	para	comer	uma	excelente	galinha	cozida,	quando	o	indiano,	pegando-lhe
a	mão,	exclamou,	desolado:
–	Mas	o	que	vai	fazer?
–	Comer	essa	galinha	–	disse	o	homem	da	múmia.
–	Oh,	não	faça	isso	–	disse	o	gangárida.	–	Pode	ser	que	a	alma	da	defunta	tenha	passado	para	o	corpo	dessa
galinha,	 e	 você	 não	 gostaria	 de	 se	 arriscar	 a	 comer	 sua	 tia.	 Cozinhar	 galinhas	 é	 ultrajar	 manifestamente	 a
natureza.
–	 Que	 está	 querendo	 dizer	 com	 galinhas	 e	 natureza?	 –	 retomou	 o	 colérico	 egípcio.	 –	 Adoramos	 um	 boi	 e
mesmo	assim	o	comemos.
–	Vocês	adoram	um	boi!	Como	podem?	–	disse	o	homem	do	Ganges.
–	Nada	é	tão	possível	–	retrucou	o	outro.	–	Há	135	mil	anos	fazemos	assim	e	ninguém	entre	nós	tem	algo	a
objetar.
–	Ah,	135	mil	anos!	–	disse	o	indiano.	–	Essa	conta	é	um	pouco	exagerada.	A	Índia	é	povoada	há	somente	80
mil	 anos	 e	 seguramente	 somos	 o	 povo	 mais	 antigo,	 e	 Brahma	 nos	 proibiu	 de	 comer	 bois	 antes	 que	 vocês
pensassem	em	colocá-los	nos	altares	e	nos	espetos.
–	Que	animal	engraçado	esse	Brahma	para	compará-lo	a	Ápis!	–	disse	o	egípcio.	–	O	que	fez	esse	seu	Brahma
de	tão	maravilhoso?
O	brâmane	respondeu:
–	Foi	ele	que	ensinou	os	homens	a	ler	e	a	escrever,	e	a	terra	inteira	deve	a	ele	o	jogo	de	xadrez.
–	 Está	 enganado	 –	 disse	 um	 caldeu	 que	 estava	 perto	 dele.	 –	 É	 ao	 peixe	 Oanes	 que	 devemos	 tão	 grandes
benefícios,	e	é	justo	prestar	homenagens	somente	a	ele.	Todo	mundo	lhe	dirá	que	era	um	ser	divino,	que	tinha
uma	cauda	dourada	e	uma	bela	cabeça	de	homem,	e	que	saía	da	água	para	vir	pregar	na	terra	três	horas	por	dia.
Ele	teve	vários	filhos	que	foram	reis,	como	todos	sabem.	Tenho	seu	retrato	em	minha	casa,	que	reverencio	como
convém.	Pode-se	comer	boi	quanto	se	quiser,	mas	seguramente	é	uma	grande	impiedade	cozinhar	peixe;	aliás,
vocês	dois	 são	de	uma	origem	muito	pouco	nobre	e	muito	 recente	para	se	comparar	comigo.	A	nação	egípcia
conta	apenas	135	mil	anos,	e	os	indianos	se	orgulham	de	apenas	80	mil,	enquanto	nós	temos	calendários	de	4	mil
séculos.	Creiam	em	mim,	renunciem	a	suas	loucuras	e	lhes	darei	um	belo	retrato	de	Oanes.
O	homem	de	Cambaluc[1],	tomando	a	palavra,	disse:
–	Respeito	muito	os	egípcios,	os	caldeus,	os	gregos,	os	celtas,	Brahma,	o	boi	Ápis,	o	belo	peixe	Oanes;	mas
talvez	o	Li	ou	o	Tien[2],	 como	quiserem	chamá-lo,	valha	o	mesmo	que	os	bois	e	os	peixes.	Nada	direi	do	meu
país;	 ele	 é	 tão	 grande	 quanto	 a	 terra	 do	 Egito,	 a	 Caldeia	 e	 as	 Índias	 juntos.	 Não	 discuto	 sobre	 antiguidade,
porque	basta	ser	feliz	e	significa	muito	pouco	ser	antigo;	mas,	se	fosse	preciso	falar	de	calendários,	eu	diria	que
toda	a	Ásia	adota	os	nossos,	e	que	tínhamos	calendários	muito	bons	antes	que	soubessem	aritmética	na	Caldeia.
–	Vocês	todos	são	grandes	ignorantes!	–	exclamou	o	grego.	–	Então	não	sabem	que	o	caos	é	o	pai	de	tudo,	e
que	a	forma	e	a	matéria	fizeram	o	mundo	do	jeito	que	ele	é?
O	grego	 falou	por	muito	 tempo,	mas	afinal	 foi	 interrompido	pelo	 celta,	 que,	 tendo	bebido	muito	 enquanto
discutiam,	 acreditou-se	 mais	 sábio	 que	 os	 demais	 e	 jurou	 que	 só	 valia	 a	 pena	 falar	 de	 Teutath	 e	 do	 visco	 do
carvalho;	que	ele	 sempre	 trazia	um	ramo	de	visco	no	bolso;	que	os	citas,	 seus	antepassados,	 foram	os	únicos
homens	 bons	 no	 mundo;	 que	 eles	 haviam,	 é	 verdade,	 às	 vezes	 comido	 homens,	 mas	 isso	 não	 impedia	 que	 se
devesse	ter	muito	respeito	por	sua	nação;	e	que,	para	terminar,	se	alguém	falasse	mal	de	Teutath,	ele	lhe	daria
uma	 lição.	Os	ânimos	 ficaram	então	exaltados,	e	Setoc	viu	o	momento	em	que	a	mesa	 ficaria	ensanguentada.
Zadig,	que	guardara	o	silêncio	durante	toda	a	discussão,	levantou-se	enfim;	dirigiu-se	primeiro	ao	celta,	por	ser	o
mais	 furioso:	 disse-lhe	 que	 tinha	 razão	 e	 lhe	 pediu	 um	 pouco	 de	 visco;	 louvou	 o	 grego	 por	 sua	 eloquência	 e
acalmou	 todos	 os	 espíritos	 exaltados.	Falou	muito	pouco	ao	homem	do	Catai,	 porque	 fora	 o	mais	 razoável	 de
todos.	A	seguir	lhes	disse:
–	Meus	amigos,	vocês	iam	brigar	por	nada,	pois	todos	são	da	mesma	opinião.
Ao	ouvir	essas	palavras,	todos	protestaram.
–	Não	é	verdade	–	ele	disse	ao	celta	–	que	você	não	adora	o	visco,	mas	aquele	que	criou	o	visco	e	o	carvalho?
–	Seguramente	–	respondeu	o	celta.
–	E	o	senhor	–	disse	Zadig	ao	egípcio	–	não	reverencia	num	certo	boi	aquele	que	criou	os	bois?
–	Sim	–	disse	o	egípcio.
–	E	o	peixe	Oanes	–	prosseguiu	–	está	abaixo	daquele	que	criou	o	mar	e	os	peixes.
–	Concordo	–	disse	o	caldeu.
–	 O	 indiano	 e	 o	 natural	 de	 Catai	 –	 ele	 acrescentou	 –	 reconhecem	 como	 vocês	 um	 primeiro	 princípio.	 Não
compreendi	muito	bem	as	coisas	admiráveis	que	o	grego	disse,	mas	estou	certo	de	que	ele	admite	também	um
Ser	superior	do	qual	a	forma	e	a	matéria	dependem.
O	grego,	que	os	outros	admiravam,	disse	que	Zadig	apanhara	muito	bem	seu	pensamento.
–	Portanto,	vocês	são	da	mesma	opinião	–	replicou	Zadig	–	e	não	há	motivo	para	disputas.
Todos	o	abraçaram.	Setoc,	após	 ter	vendido	por	bom	preço	suas	mercadorias,	 reconduziu	Zadig	de	volta	à
sua	 tribo.	 Ao	 chegar,	 Zadig	 ficou	 sabendo	 que	 haviam	 instaurado	 contra	 ele	 um	 processo	 judicial	 em	 sua
ausência,	e	que	ele	seria	queimado	em	fogo	lento.
[1]	Nome	dado	por	Marco	Polo	à	capital	do	império	mongol,	no	Catai.	(N.T.)
[2]	Palavras	chinesas	que	significam	a	luz	natural,	a	razão	(Li),	e	o	céu	ou	também	Deus	(Tien).	(N.T.)
CAPÍTULO	XIII
Os	encontros	marcados
Durante	 sua	 viagem	 a	 Bassorá,	 os	 sacerdotes	 das	 estrelas	 resolveram	 puni-lo.	 As	 pedras	 preciosas	 e	 os
ornamentos	das	jovens	viúvas	que	se	lançavam	à	fogueira	lhes	pertenciam	de	direito,	e	eles	quiseram	se	vingar
de	 Zadig	 por	 tê-los	 prejudicado.	 Acusaram-no	 então	 de	 propagar	 ideias	 falsas	 sobre	 o	 exército	 celeste;
depuseram	 contra	 ele	 e	 juraram	 tê-lo	 ouvido	 dizer	 que	 as	 estrelas	 não	 se	 deitavam	 no	 mar.	 Essa	 terrível
blasfêmia	fez	tremer	os	juízes;	eles	estiveram	a	ponto	de	rasgar	suas	vestes	ao	ouvirem	essas	palavras	ímpias,	e
o	teriam	feito,	certamente,	se	Zadig	tivesse	com	que	pagá-los.	Mas,	no	excesso	de	sua	dor,	contentaram-se	em
condená-lo	a	ser	queimado	em	fogo	lento.	Setoc,	desesperado,	empregou	seu	crédito	em	vão	para	salvar	o	amigo
e	logo	foi	obrigado	a	se	calar.	A	jovem	viúva	Almona,	que	adquirira	muito	gosto	pela	vida	e	sentia	um	dever	de
gratidão	para	com	Zadig,	resolveu	tirá-lo	da	fogueira,	cujo	abuso	ele	a	fizera	conhecer.	Ela	preparou	um	plano,
sem	falar	disso	a	ninguém.	Zadig	devia	ser	executado	no	dia	seguinte.	Almona	tinha	apenas	a	noite	para	salvá-lo:
eis	o	que	fez,	como	mulher	caridosa	e	prudente.
Ela	se	perfumou,	realçou	sua	beleza	com	os	adornos	mais	ricos	e	mais	galantes,	e	foi	pedir	uma	audiência
secreta	ao	chefe	dos	sacerdotes	das	estrelas.	Quando	estava	diante	do	venerável	ancião,	falou-lhe	nos	seguintes
termos:
–	 Primogênito	 da	Grande	Ursa,	 irmão	de	Touro,	 primo	do	Grande	Cão	 –	 eram	os	 títulos	 desse	 pontífice	 –,
venho	lhe	confiar	meus	escrúpulos.	Tenho	muito	medo	deter	cometido	um	pecado	enorme	ao	não	me	queimar	na
fogueira	 do	 meu	 caro	 marido.	 De	 fato,	 o	 que	 eu	 tinha	 a	 conservar?	 Uma	 carne	 perecível	 e	 que	 já	 começa	 a
murchar.
Ao	dizer	essas	palavras,	ela	tirou	de	suas	longas	mangas	de	seda	seus	braços	nus,	de	uma	forma	admirável	e
de	uma	brancura	deslumbrante.
–	O	senhor	está	vendo	–	ela	disse	–	o	pouco	que	isso	vale.
Em	seu	coração,	o	pontífice	achou	que	aquilo	valia	muito.	Seus	olhos	o	disseram	e	sua	boca	o	confirmou:	ele
jurou	que	nunca	vira	braços	tão	belos	em	sua	vida.
–	Ah	–	disse	a	viúva	–,	os	braços	talvez	não	sejam	tão	ruins	quanto	o	resto;	mas	o	senhor	admitirá	que	o	colo
não	é	digno	das	minhas	atenções.
E	então	mostrou	o	seio	mais	encantador	que	a	natureza	jamais	formou.	Comparado	a	ele,	um	botão	de	rosa
sobre	um	pomo	de	marfim	seria	como	a	garança	sobre	o	buxo,	e	os	cordeiros	saindo	do	lavadouro	pareceriam	de
um	amarelo	sujo.	Esse	colo,	os	negros	olhos	lânguidos	nos	quais	ardia	um	fogo	terno,	as	faces	animadas	da	mais
bela	púrpura	mesclada	ao	branco	do	 leite	mais	 puro,	 o	nariz,	 que	não	 era	 como	a	 torre	do	monte	Líbano,	 os
lábios,	que	eram	duas	molduras	de	coral	encerrando	as	mais	belas	pérolas	do	mar	da	Arábia,	tudo	isso	junto	fez
o	velho	imaginar	que	tinha	vinte	anos.	Gaguejando,	ele	fez	uma	declaração	de	amor.	Ao	vê-lo	inflamado,	Almona
lhe	pediu	que	perdoasse	Zadig.
–	Ah,	minha	bela	dama	–	ele	disse	–,	mesmo	que	eu	concedesse	o	perdão,	minha	indulgência	de	nada	serviria;
é	preciso	que	ela	seja	assinada	por	mais	três	de	meus	confrades.
–	Mesmo	assim,	assine	–	disse	Almona.
–	 De	 bom	 grado	 –	 disse	 o	 sacerdote	 –,	 com	 a	 condição	 de	 que	 seus	 favores	 sejam	 o	 preço	 da	 minha
condescendência.
–	O	senhor	me	dá	muita	honra	–	disse	Almona.	 –	Mas	convém	vir	ao	meu	quarto	depois	que	o	sol	 tiver	se
posto;	assim	que	a	brilhante	estrela	Sheat	estiver	no	horizonte,	me	encontrará	num	sofá	cor-de-rosa	e	poderá
dispor	de	mim	como	dispõe	de	sua	serva.
Ela	saiu	então	levando	consigo	a	assinatura,	deixando	o	velho	cheio	de	amor	e	de	desconfiança	nas	próprias
forças.	 Ele	 passou	 o	 resto	 do	 dia	 a	 se	 banhar;	 bebeu	 um	 licor	 composto	 de	 canela	 do	 Ceilão	 e	 preciosas
especiarias	de	Tidore	e	de	Ternate[1],	e	esperou	com	impaciência	que	a	estrela	Sheat	aparecesse.
Enquanto	isso,	a	bela	Almona	foi	encontrar	o	segundo	pontífice.	Este	lhe	assegurou	que	o	sol,	a	lua	e	todas	as
luzes	do	 firmamento	não	eram	senão	 fogos-fátuos	em	comparação	com	seus	encantos.	Ela	 lhe	pediu	o	mesmo
favor	e	ele	propôs	o	mesmo	preço	em	troca.	Feito	o	acordo,	um	encontro	foi	marcado	com	o	segundo	pontífice
quando	despontasse	a	estrela	Algenib.	Daí	ela	foi	à	casa	do	terceiro	e	à	do	quarto	sacerdote,	tomando	sempre
uma	assinatura	e	marcando	um	encontro	de	estrela	a	estrela.	Depois	pediu	aos	juízes	que	comparecessem	à	sua
casa	para	um	assunto	importante.	Eles	foram:	ela	lhes	mostrou	as	quatro	assinaturas	e	lhes	disse	a	que	preço
fora	vendido	o	perdão	de	Zadig.	Cada	um	dos	sacerdotes	chegou	à	hora	prescrita;	cada	um	ficou	espantado	de
encontrar	ali	seus	confrades,	e	mais	ainda	de	encontrar	os	juízes,	diante	dos	quais	sua	vergonha	se	estampou.
Zadig	foi	salvo.	Setoc	ficou	tão	encantado	com	a	habilidade	de	Almona	que	fez	dela	sua	mulher.
Zadig	 partiu	 após	 ter	 se	 lançado	 aos	 pés	 de	 sua	 bela	 libertadora.	 Setoc	 e	 ele	 se	 despediram	 chorando,
jurando-se	 uma	 amizade	 eterna	 e	 prometendo-se	 que	 o	 primeiro	 dos	 dois	 que	 fizesse	 uma	 grande	 fortuna
comunicaria	ao	outro.
Zadig	 se	dirigiu	para	os	 lados	da	Síria,	 sempre	pensando	na	 infeliz	Astarteia,	 e	 sempre	 refletindo	 sobre	o
destino	que	se	obstinava	em	zombar	dele	e	em	persegui-lo.
–	Ah!	–	dizia.	–	Quatrocentas	onças	de	ouro	por	ter	visto	passar	uma	cadela!	Condenado	à	decapitação	por	ter
escrito	quatro	versos	ruins	em	louvor	do	rei!	Quase	estrangulado	porque	a	rainha	tinha	babuchas	da	cor	do	meu
barrete!	Reduzido	à	escravidão	por	ter	socorrido	uma	mulher	em	quem	batiam,	e	a	ponto	de	ser	queimado	por
ter	salvo	a	vida	de	todas	as	jovens	viúvas	árabes!
[1]	Na	Indonésia.	(N.T.)
CAPÍTULO	XIV
O	bandido
Ao	passar	por	um	castelo	 fortificado	nas	 fronteiras	que	separam	a	Arábia	Pétrea	da	Síria,	árabes	armados
saíram	dali.	Ele	se	viu	cercado.	Gritaram-lhe:
–	Tudo	o	que	possui	nos	pertence,	e	sua	pessoa	pertence	ao	nosso	mestre.
Em	resposta,	Zadig	sacou	sua	espada;	seu	serviçal,	que	tinha	coragem,	fez	o	mesmo.	Eles	puseram	no	chão,
mortos,	os	primeiros	árabes	que	se	aproximaram.	O	número	dos	atacantes	aumentou:	eles	não	se	assustaram	e
resolveram	morrer	combatendo.	Dois	homens	se	defendendo	contra	uma	multidão:	tal	combate	não	podia	durar
por	muito	 tempo.	O	dono	do	castelo,	chamado	Arbogad,	vendo	de	uma	 janela	os	prodígios	de	valor	que	Zadig
mostrava,	sentiu	estima	por	ele.	Desceu	às	pressas,	foi	ele	mesmo	afastar	seus	homens	e	livrar	os	dois	viajantes.
–	 Tudo	 o	 que	 passa	 por	minhas	 terras	 é	meu	 –	 ele	 disse	 –,	 como	 também	 o	 que	 encontro	 nas	 terras	 dos
outros;	mas	você	me	parece	um	homem	tão	corajoso	que	o	isento	da	lei	comum.
Fez	Zadig	entrar	no	seu	castelo,	ordenando	a	seus	homens	que	o	tratassem	bem,	e	à	noite	Arbogad	quis	cear
com	ele.
O	senhor	do	castelo	era	um	desses	árabes	que	chamam	de	ladrões;	às	vezes	fazia	boas	ações	em	meio	a	uma
quantidade	de	outras	más;	roubava	com	uma	rapacidade	furiosa	e	dava	com	liberalidade;	era	intrépido	na	ação,
generoso	no	comércio,	devasso	à	mesa,	alegre	na	devassidão,	e	principalmente	muito	franco.	Zadig	lhe	agradou
muito;	sua	conversação,	que	se	animou,	fez	durar	a	refeição.	Por	fim	Arbogad	lhe	disse:
–	Sugiro	 que	 se	 aliste	 entre	meus	homens,	 não	poderia	 fazer	 algo	melhor.	Esse	 ofício	 não	 é	 ruim;	 um	dia
poderá	vir	a	ser	o	que	sou.
–	Posso	lhe	perguntar	–	disse	Zadig	–	há	quanto	tempo	exerce	essa	nobre	profissão?
–	Desde	minha	 tenra	 juventude	 –	 retomou	 o	 senhor.	 –	 Eu	 era	 o	 criado	 de	 um	 árabe	muito	 hábil	 e	 achava
minha	situação	insuportável.	Estava	desesperado	de	ver	que,	na	terra	que	pertence	igualmente	aos	homens,	o
destino	não	tivesse	me	reservado	uma	porção.	Confiei	minhas	queixas	a	um	velho	árabe	que	me	disse:
“–	Não	se	desespere,	meu	filho;	havia	outrora	um	grão	de	areia	que	se	lamentava	de	ser	um	átomo	ignorado
nos	desertos;	ao	cabo	de	alguns	anos,	ele	se	tornou	diamante	e	agora	é	o	mais	belo	ornamento	da	coroa	do	rei
das	Índias.
“Essas	palavras	me	impressionaram.	Eu	era	o	grão	de	areia,	resolvi	tornar-me	diamante.	Comecei	por	roubar
dois	cavalos;	 juntei	alguns	companheiros;	passei	a	roubar	pequenas	caravanas.	Assim,	 fiz	cessar	aos	poucos	a
desproporção	que	havia	 inicialmente	entre	mim	e	os	homens.	Obtive	minha	parte	nos	bens	deste	mundo	e	 fui
mesmo	bem	 indenizado.	 Passaram	 a	 ter	muita	 consideração	 por	mim:	 tornei-me	 senhor	 bandido,	 adquiri	 este
castelo	por	direito	de	conquista.	O	sátrapa	da	Síria	quis	desalojar-me,	mas	eu	já	era	muito	rico	para	ter	algo	a
temer;	dei	dinheiro	ao	sátrapa,	assim	conservei	o	castelo	e	fiz	crescer	meus	domínios;	ele	me	nomeou	inclusive
tesoureiro	dos	tributos	que	a	Arábia	Pétrea	paga	ao	rei	dos	reis.	Adquiri	o	cargo	de	coletor	de	impostos	e	não
mais	de	pagador.
“O	 grande	 Desterham	 de	 Babilônia	 enviou	 aqui,	 em	 nome	 do	 rei	Moabdar,	 um	 pequeno	 sátrapa	 para	me
estrangular.	Esse	homem	chegou	com	a	ordem	dele.	Eu	sabia	de	tudo:	mandei	estrangular	em	sua	presença	os
quatro	homens	que	ele	trouxera	consigo	para	ajudá-lo,	e	depois	lhe	perguntei	quanto	lhe	pagavam	para	a	tarefa
de	 me	 matar.	 Ele	 respondeu	 que	 seus	 honorários	 podiam	 chegar	 a	 trezentas	 moedas	 de	 ouro.	 Mostrei-lhe
claramente	que	ganharia	muito	mais	comigo.	Nomeei-o	sub-bandido:	hoje	é	um	de	meus	melhores	oficiais	e	dos
mais	ricos.	Se	acreditar	em	mim,	você	será	bem-sucedido	como	ele.	A	ocasião	de	roubar	nunca	foi	melhor	desde
que	Moabdar	morreu	e	tudo	é	confusão	em	Babilônia.”
–	Moabdar	morto!	–	disse	Zadig.	–	E	o	que	aconteceu	com	a	rainha	Astarteia?
–	Ignoro	–	respondeu	Arbogad.–	O	que	sei	é	que	Moabdar	enlouqueceu,que	foi	morto,	que	a	Babilônia	virou
um	lugar	perigoso,	que	o	 império	está	desolado,	que	ainda	há	muitos	golpes	a	dar	e	que,	de	minha	parte,	dei
alguns,	admiráveis.
–	Mas	e	a	rainha?	–	insistiu	Zadig.	–	Nada	sabe	mesmo	do	destino	dela?
–	Falaram-me	de	um	príncipe	da	Hircânia	–	ele	retomou.	–	Provavelmente	ela	é	uma	de	suas	concubinas,	se
não	 foi	morta	no	 tumulto;	mas	 tenho	mais	curiosidade	pelo	butim	a	obter	do	que	por	notícias.	Capturo	várias
mulheres	em	minhas	incursões,	não	conservo	nenhuma;	as	vendo	caro	quando	são	bonitas,	sem	procurar	saber
quem	são.	Ninguém	compra	um	título:	uma	rainha	 feia	não	encontraria	comprador.	Talvez	eu	tenha	vendido	a
rainha	Astarteia,	talvez	ela	tenha	morrido;	mas	pouco	importa,	e	penso	que	você	não	deve	se	preocupar	com	isso
mais	do	que	eu.
Enquanto	assim	falava,	ele	bebia	com	tal	animação,	confundia	a	tal	ponto	as	ideias,	que	Zadig	não	pôde	obter
nenhum	esclarecimento.
Permaneceu	imóvel,	confuso,	oprimido.	Arbogad	continuava	a	beber,	contava	histórias,	repetia	sem	parar	que
era	 o	 mais	 feliz	 dos	 homens,	 exortando	 Zadig	 a	 ser	 tão	 feliz	 como	 ele.	 Por	 fim,	 docemente	 amolecido	 pelos
vapores	do	vinho,	foi	dormir	um	sono	tranquilo.	Zadig	passou	a	noite	na	mais	violenta	agitação.
–	O	rei	enlouquecido,	morto!	–	dizia	a	si	mesmo.	–	Não	posso	deixar	de	 lamentá-lo.	O	 império	destruído,	e
esse	bandido	feliz.	Ó,	fortuna,	ó,	destino!	Um	ladrão	está	feliz	e	o	que	a	natureza	fez	de	mais	amável	talvez	tenha
perecido	de	maneira	 terrível,	 ou	vive	numa	condição	pior	do	que	a	morte.	Ó,	Astarteia,	 o	que	aconteceu	com
você?
Logo	 ao	 raiar	 do	 dia	 ele	 interrogou	 os	 homens	 que	 encontrava	 no	 castelo;	mas	 todos	 estavam	 ocupados,
ninguém	lhe	respondia.	Durante	a	noite	haviam	feito	novas	conquistas	e	partilhavam	os	despojos	entre	si.	Tudo	o
que	pôde	obter	nessa	confusão	tumultuosa	foi	a	permissão	de	partir	–	o	que	não	tardou	a	fazer,	mais	abismado
do	que	nunca	em	suas	reflexões	dolorosas.
Zadig	marchava	inquieto,	agitado,	o	espírito	inteiramente	ocupado	com	a	infeliz	Astarteia,	o	rei	de	Babilônia,
seu	 fiel	 amigo	 Cador,	 o	 feliz	 bandido	 Arbogad,	 aquela	mulher	 caprichosa	 que	 babilônios	 haviam	 raptado	 nos
confins	do	Egito,	enfim,	com	todos	os	contratempos	e	todos	os	infortúnios	pelos	quais	passara.
CAPÍTULO	XV
O	pescador
A	 algumas	 léguas	 do	 castelo	 de	 Arbogad,	 ele	 chegou	 à	 beira	 de	 um	 pequeno	 rio,	 sempre	 deplorando	 seu
destino	e	vendo-se	como	o	modelo	da	infelicidade.	Viu	um	pescador	deitado	na	margem,	mal	segurando	com	a
mão	frouxa	uma	rede	que	parecia	abandonar,	e	erguendo	os	olhos	ao	céu.
–	Sou	certamente	o	mais	 infeliz	de	todos	os	homens	–	dizia	o	pescador.	–	Fui,	na	opinião	de	todo	mundo,	o
mais	célebre	fabricante	de	queijos	em	Babilônia,	e	fiquei	arruinado.	Tinha	a	mais	linda	mulher	que	um	homem	da
minha	condição	pôde	possuir,	 e	 ela	me	 traiu.	Restou-me	uma	pequena	casa,	que	vi	 ser	 saqueada	e	destruída.
Refugiado	numa	cabana,	não	tenho	outro	recurso	senão	a	pesca,	e	não	pego	peixe	algum.	Ó,	minha	rede,	não	te
lançarei	mais	na	água,	eu	é	que	devo	me	lançar!
Ao	dizer	essas	palavras,	ele	se	levanta	e	avança,	na	atitude	de	um	homem	que	vai	se	precipitar	e	acabar	com
a	vida.
–	Veja!	–	disse	Zadig	a	si	mesmo.	–	Então	há	homens	tão	infelizes	quanto	eu!
O	 impulso	de	salvar	a	vida	do	pescador	 foi	 tão	 imediato	quanto	essa	reflexão.	Ele	corre	em	sua	direção,	o
detém,	o	interroga	com	um	ar	enternecido	e	consolador.	Dizem	que	somos	menos	infelizes	quando	não	o	somos
sozinhos;	 mas,	 segundo	 Zoroastro,	 não	 fazemos	 isso	 por	 maldade	 e	 sim	 por	 necessidade.	 Sentimo-nos	 então
arrastados	para	um	infortunado	como	para	um	semelhante.	A	alegria	de	um	homem	feliz	seria	um	insulto;	mas
dois	 infelizes	 são	 como	 dois	 pequenos	 arbustos	 que,	 se	 apoiando	 um	 no	 outro,	 se	 fortalecem	 contra	 a
tempestade.
–	Por	que	sucumbe	a	suas	desgraças?	–	disse	Zadig	ao	pescador.
–	É	que	não	vejo	outra	saída	–	este	respondeu.	–	Fui	o	homem	mais	considerado	da	aldeia	de	Derlback	perto
de	 Babilônia,	 e	 fazia,	 com	 a	 ajuda	 de	minha	mulher,	 os	melhores	 queijos	 do	 império.	 A	 rainha	 Astarteia	 e	 o
famoso	ministro	Zadig	os	apreciavam	imensamente.	Forneci	a	eles	seiscentos	queijos.	Um	dia	fui	à	cidade	para
ser	 pago;	 ao	 chegar	 à	 Babilônia,	 fiquei	 sabendo	 que	 a	 rainha	 e	 Zadig	 haviam	 desaparecido.	 Corri	 à	 casa	 do
senhor	 Zadig,	 que	 nunca	 vi;	 encontrei	 os	 soldados	 do	 grande	 Desterham	 que,	 munidos	 de	 um	 édito	 real,
pilhavam	sua	casa	legalmente	e	com	ordem.	Voei	até	as	cozinhas	da	rainha:	lá,	alguns	cozinheiros	me	disseram
que	 ela	 estava	 morta,	 outros	 que	 estava	 presa;	 mas	 todos	 me	 asseguraram	 que	 ninguém	 me	 pagaria	 pelos
queijos.	Fui	com	minha	mulher	até	a	casa	do	senhor	Orcan,	que	era	um	de	meus	fregueses:	pedimos-lhe	proteção
em	nossas	desgraças.	Ele	a	concedeu	à	minha	mulher	e	a	recusou	a	mim.	Ela	era	mais	branca	que	os	queijos
causadores	 da	minha	 desgraça;	 e	 a	 púrpura	 de	 Tiro	 não	 era	mais	 brilhante	 que	 o	 carmim	 que	 animava	 essa
brancura.	Foi	o	que	levou	Orcan	a	retê-la	e	a	me	expulsar	de	sua	casa.	Escrevi	à	minha	querida	mulher	a	carta
de	um	desesperado.	Ela	disse	ao	portador:	“Ah,	sim,	conheço	o	homem	que	me	escreveu,	já	ouvi	falar	dele:	dizem
que	fabrica	queijos	excelentes;	tragam-me	alguns	e	lhe	paguem”.	Em	minha	infelicidade,	quis	recorrer	à	justiça.
Restavam-me	seis	onças	de	ouro:	tive	de	dar	duas	onças	ao	magistrado	que	consultei,	duas	ao	advogado	que	se
encarregou	 do	meu	 caso,	 duas	 ao	 secretário	 do	 primeiro	 juiz.	 Feito	 tudo	 isso,	meu	 processo	 ainda	 não	 havia
começado,	 e	 eu	 já	 havia	 gasto	mais	 dinheiro	 do	 que	 valiam	meus	 queijos	 e	minha	mulher.	 Retornei	 à	minha
aldeia	com	a	intenção	de	vender	a	casa	para	ter	de	volta	minha	mulher.
“Minha	 casa	 valia	 sessenta	 onças	 de	 ouro;	 mas	 viram	 que	 eu	 estava	 pobre	 e	 com	 pressa	 de	 vender.	 O
primeiro	a	quem	me	dirigi	me	ofereceu	trinta	onças	por	ela;	o	segundo,	vinte;	e	o	terceiro,	dez.	Eu	estava	tão
cego	que	me	dispus	a	fechar	o	negócio.	Foi	quando	um	príncipe	da	Hircânia	veio	à	Babilônia	e	destruiu	tudo	em
sua	passagem.	Minha	casa	foi	saqueada	e	a	seguir	queimada.
“Tendo	 perdido	 meu	 dinheiro,	 minha	 mulher	 e	 minha	 casa,	 me	 retirei	 nesta	 terra	 onde	 o	 senhor	 me	 vê;
busquei	 a	 subsistência	na	profissão	de	pescador,	mas	 os	peixes	 zombam	de	mim	como	os	homens:	 não	pesco
nada,	morro	de	fome;	e	sem	o	senhor,	meu	augusto	consolador,	eu	morreria	no	rio.”
O	pescador	não	fez	esse	relato	sem	ser	interrompido,	pois	a	todo	momento	Zadig,	comovido	e	transportado,
lhe	dizia:
–	Como!	Não	sabe	nada	do	destino	da	rainha?
–	 Não,	 senhor	 –	 respondia	 o	 pescador	 –,	 mas	 sei	 que	 a	 rainha	 e	 Zadig	 não	 pagaram	 meus	 queijos,	 que
tomaram	minha	mulher	e	que	estou	desesperado.
–	Tenho	certeza	–	disse	Zadig	–	de	que	não	perderá	todo	o	seu	dinheiro.	Ouvi	falar	desse	Zadig,	é	um	homem
honesto;	e,	se	ele	voltar	à	Babilônia	como	espero,	lhe	dará	mais	do	que	o	devido;	mas,	quanto	à	sua	mulher,	que
não	é	honesta,	aconselho-o	a	não	querer	tomá-la	de	volta.	Creia	em	mim,	vá	à	Babilônia;	lá	estarei	antes	de	você,
porque	estou	a	cavalo	e	você	a	pé.	Procure	o	ilustre	Cador;	diga-lhe	que	encontrou	seu	amigo	e	me	espere	na
casa	dele.	Vá!	Talvez	não	seja	sempre	infeliz.
Zadig	olhou	então	o	céu	e	disse:
–	Ó,	poderoso	Orosmade,	que	vos	servis	de	mim	para	consolar	este	homem;	de	quem	vos	servireis	para	me
consolar?
Tendo	 falado	assim,	deu	ao	pescador	a	metade	do	dinheiro	que	 trouxera	da	Arábia.	O	pescador,	confuso	e
maravilhado,	beijou	os	pés	do	amigo	de	Cador,	dizendo:
–	Você	é	um	anjo	salvador.
Mas	Zadig	continuava	sempre	pedindo	notícias	e	derramando	lágrimas.
–	Oh,	senhor!	–	exclamou	o	pescador.	–	Seria	então	infeliz	o	senhor,	que	faz	o	bem?
–	Cem	vezes	mais	infeliz	que	você	–	respondeu	Zadig.
–	Mas	como	é	possível	–	prosseguiu	o	bom	homem	–	que	quem	dá	seja	mais	lastimável	do	que	quem	recebe?
–	É	que	tua	maior	desgraça	–	retomou	Zadig	–	era	a	necessidade,enquanto	eu	sou	infortunado	pelo	coração.
–	Teria	Orcan	lhe	roubado	a	mulher?	–	disse	o	pescador.
Essa	frase	trouxe	de	volta	ao	espírito	de	Zadig	todas	as	suas	aventuras;	ele	repetiu	a	lista	de	seus	infortúnios,
desde	a	cadela	da	rainha	até	a	chegada	no	castelo	do	bandido	Arbogad.
–	 Ah	 –	 ele	 disse	 ao	 pescador	 –,	 Orcan	merece	 ser	 punido.	Mas	 em	 geral	 homens	 como	 ele	 é	 que	 são	 os
favoritos	do	destino.	De	qualquer	modo,	vá	à	casa	do	senhor	Cador	e	me	espere	lá.
Separaram-se.	O	 pescador	 saiu	 andando	 e	 agradecendo	 seu	 destino,	 Zadig	 se	 afastou	 sempre	 acusando	 o
dele.
CAPÍTULO	XVI
O	basilisco
Ao	chegar	a	uma	bela	pradaria,	ele	viu	várias	mulheres	que	procuravam	alguma	coisa	com	muita	aplicação.
Tomou	a	liberdade	de	se	aproximar	de	uma	delas	e	de	lhe	perguntar	se	poderia	ter	a	honra	de	ajudá-las	em	suas
buscas.
–	Não	faça	isso	–	respondeu	a	síria.	–	O	que	procuramos	só	pode	ser	tocado	por	mulheres.
–	Muito	estranho	–	observou	Zadig.	–	Poderia	me	dizer	o	que	só	às	mulheres	é	permitido	tocar?
–	É	um	basilisco	–	ela	disse.
–	Um	basilisco,	senhora!	Mas,	me	diga,	por	que	razão	procuram	um	basilisco?
–	É	para	o	nosso	amo	e	senhor,	Ogul,	cujo	castelo	pode	ver	ao	longe,	na	pradaria,	à	margem	deste	rio.	Somos
suas	humildes	escravas;	o	senhor	Ogul	está	doente;	seu	médico	lhe	receitou	comer	um	basilisco	cozido	em	água
de	rosas;	e,	como	é	um	animal	muito	raro	e	que	nunca	se	deixa	pegar	a	não	ser	por	mulheres,	o	senhor	Ogul
prometeu	tomar	por	sua	bem-amada	aquela	de	nós	que	lhe	trouxer	um	basilisco:	deixe-me	procurá-lo,	por	favor,
pois	está	vendo	o	que	eu	perderia	se	minhas	companheiras	o	descobrissem	antes	de	mim.
Zadig	deixou	essa	síria	e	as	outras	procurarem	seu	basilisco	e	seguiu	caminhando	pela	pradaria.	Quando	se
aproximou	de	um	pequeno	riacho,	encontrou	ali	outra	dama	deitada	na	relva	e	que	nada	procurava.	Seu	porte
parecia	majestoso,	mas	o	rosto	estava	coberto	por	um	véu.	Ela	estava	inclinada	em	direção	ao	riacho:	profundos
suspiros	saíam	de	sua	boca.	Segurava	na	mão	uma	varinha,	com	a	qual	traçava	caracteres	numa	areia	fina	entre
a	relva	e	o	riacho.	Zadig	teve	a	curiosidade	de	ver	o	que	essa	mulher	escrevia;	aproximou-se,	viu	a	letra	Z,	depois
um	A.	Ficou	espantado.	A	seguir	apareceu	um	D:	ele	estremeceu.	Jamais	uma	surpresa	se	igualou	à	dele	quando
viu	 as	 duas	 últimas	 letras	 do	 seu	 nome.	 Ficou	 algum	 tempo	 imóvel.	 Por	 fim,	 rompeu	 o	 silêncio	 com	uma	 voz
entrecortada:
–	 Ó,	 generosa	 dama!	 Perdoe	 a	 um	 estrangeiro,	 a	 um	 infortunado,	 ousar	 lhe	 perguntar	 por	 que	 espantosa
aventura	encontro	aqui	o	nome	ZADIG	traçado	por	sua	mão	divina.
A	essa	voz,	a	essas	palavras,	a	dama	ergueu	o	véu	com	a	mão	trêmula,	olhou	Zadig,	deu	um	grito	de	emoção,
de	surpresa,	de	alegria	e,	sucumbindo	aos	movimentos	diversos	que	assaltavam	ao	mesmo	tempo	sua	alma,	caiu
desfalecida	nos	seus	braços.	Era	Astarteia!	Era	a	rainha	de	Babilônia,	era	aquela	que	Zadig	adorava	e	que	ele	se
reprovava	de	adorar,	aquela	por	cujo	destino	ele	tanto	havia	chorado	e	temido.	Por	um	momento	foi	privado	do
uso	dos	sentidos;	e,	quando	fixou	seus	olhos	nos	olhos	dela,	que	voltavam	a	se	abrir	com	um	langor	mesclado	de
confusão	e	de	ternura,	exclamou:
–	Ó,	poderes	imortais	que	presidis	ao	destino	dos	frágeis	humanos,	me	devolveis	Astarteia?	Em	que	tempo,
em	que	lugar,	em	que	estado	a	revejo?
Lançou-se	 de	 joelhos	 diante	 de	 Astarteia	 e	 colou	 a	 fronte	 à	 poeira	 de	 seus	 pés.	 A	 rainha	 de	 Babilônia	 o
levantou,	o	fez	sentar-se	junto	dela	à	beira	do	riacho.	Ela	enxugava	várias	vezes	os	olhos,	de	onde	as	lágrimas
voltavam	sempre	a	escorrer.	Recomeçava	vinte	vezes	frases	que	seus	gemidos	interrompiam,	interrogava-o	sobre
o	acaso	que	os	reunira	e	antecipava	suas	respostas	por	outras	perguntas.	Fez	o	relato	de	suas	desgraças	e	quis
saber	 as	 de	 Zadig.	 Por	 fim,	 tendo	 os	 dois	 apaziguado	 um	 pouco	 o	 tumulto	 de	 suas	 almas,	 Zadig	 lhe	 contou
resumidamente	por	que	circunstâncias	se	achava	naquela	pradaria.
–	Mas	diga,	ó,	majestosa	e	respeitável	rainha,	como	a	encontrei	neste	lugar	distante,	vestida	como	escrava	e
acompanhada	de	 outras	mulheres	 escravas	 que	 procuram	um	basilisco	 para	 cozinhá-lo	 em	água	de	 rosas	 por
receita	de	um	médico?
–	Enquanto	elas	procuram	o	basilisco	 –	disse	a	bela	Astarteia	 –,	 vou	 contar	 tudo	o	que	 sofri	 e	 tudo	o	que
perdoo	ao	céu	agora	que	o	 revejo.	Você	sabe	que	o	 rei,	meu	marido,	achou	 ruim	que	 fosse	o	mais	amável	de
todos	 os	 homens;	 e	 foi	 por	 essa	 razão	 que	 tomou	 uma	 noite	 a	 decisão	 de	 mandar	 estrangulá-lo	 e	 de	 me
envenenar.	O	céu	permitiu	que	meu	mudinho	me	avisasse	o	que	Sua	Majestade	decidira.	Assim	que	o	fiel	Cador
forçou	você	a	me	obedecer	e	a	partir,	ele	ousou	entrar	em	meus	aposentos	no	meio	da	noite	por	uma	passagem
secreta.	Tirou-me	dali	e	me	conduziu	ao	templo	de	Orosmade,	onde	o	mago,	seu	irmão,	me	encerrou	dentro	de
uma	estátua	colossal	cuja	base	toca	os	alicerces	do	templo	e	cuja	cabeça	atinge	a	cúpula.	Fiquei	ali	como	que
sepultada,	mas	servida	pelo	mago	e	sem	ser	privada	do	necessário.	Enquanto	isso,	ao	raiar	do	dia,	o	boticário	de
Sua	Majestade	entrou	no	meu	quarto	 com	uma	poção	misturada	de	meimendro,	 ópio,	 cicuta,	 eléboro	negro	e
acônito;	 e	 outro	 oficial	 foi	 ao	 seu	 quarto	 com	um	 laço	 de	 seda	 azul.	Não	 encontraram	ninguém.	 Para	melhor
enganar	o	rei,	Cador	fingiu	acusar	nós	dois.	Disse	que	você	havia	tomado	o	caminho	das	Índias	e	eu	o	de	Mênfis;
enviaram	soldados	atrás	de	você	e	de	mim.
“Os	soldados	que	me	procuravam	não	me	conheciam.	Eu	quase	nunca	havia	mostrado	meu	rosto,	exceto	a
você,	 em	 presença	 e	 por	 ordem	 do	meu	 esposo.	 Eles	 foram	 ao	meu	 encalço	 baseados	 na	 descrição	 que	 lhes
deram	da	minha	pessoa.	Uma	mulher	parecida	comigo,	e	que	 talvez	 tivesse	mais	encantos,	chamou	a	atenção
deles	na	fronteira	do	Egito.	Estava	em	lágrimas,	errante.	Eles	não	duvidaram	que	essa	mulher	fosse	a	rainha	de
Babilônia	 e	 a	 levaram	a	Moabdar.	De	 início,	 o	 engano	causou	violenta	 cólera	no	 rei;	mas	depois,	 examinando
melhor	essa	mulher,	achou-a	muito	bela	e	se	consolou.	Chamava-se	Missuf.	Disseram-me	que	esse	nome	significa
em	 língua	 egípcia	 a	 bela	 caprichosa.	 Ela	 o	 era,	 de	 fato;	 mas,	 além	 de	 caprichosa,	 era	 também	 habilidosa.
Agradou	a	Moabdar	e	o	subjugou	a	ponto	de	fazer-se	declarar	sua	mulher.	Então	seu	caráter	se	manifestou	por
completo:	ela	se	entregou	sem	temor	a	todas	as	 loucuras	de	sua	imaginação.	Quis	obrigar	o	chefe	dos	magos,
que	era	velho	e	doente,	a	dançar	diante	dela.	Ordenou	a	seu	cozinheiro	que	lhe	preparasse	uma	torta.	Por	mais
que	este	dissesse	que	não	era	confeiteiro,	foi	obrigado	a	fazer	a	torta;	e	demitiram-no	porque	ficou	queimada.
Ela	deu	o	cargo	de	cozinheiro	a	seu	anão	e	o	de	chanceler	a	um	pajem.	Passou	assim	a	governar	Babilônia.	Todos
lamentavam	 a	 minha	 falta.	 O	 rei,	 que	 fora	 bastante	 honesto	 até	 o	 momento	 em	 que	 quis	 me	 envenenar	 e
estrangular	você,	parecia	ter	afogado	suas	virtudes	no	amor	prodigioso	que	sentia	pela	bela	caprichosa.	Ele	veio
ao	templo	no	grande	dia	do	fogo	sagrado.	Vi-o	implorar	aos	deuses	por	Missuf,	ao	pé	da	estátua	onde	eu	estava
encerrada.	Elevei	a	voz	e	gritei-lhe:	“Os	deuses	recusam	as	súplicas	de	um	rei	que	virou	tirano,	que	quis	matar
uma	mulher	razoável	para	desposar	uma	extravagante”.	Moabdar	ficou	tão	confuso	com	essas	palavras	que	sua
mente	desvairou.	O	 oráculo	 que	 eu	pronunciara	 e	 a	 tirania	 de	Missuf	 foram	 suficientes	 para	 fazê-lo	 perder	 o
juízo.	Em	poucos	dias	ele	enlouqueceu.
“Sua	loucura,	que	pareceu	um	castigo	do	céu,	foi	o	sinal	da	revolta.	O	povo	se	sublevou,	correu	às	armas.	A
Babilônia,	 por	 tanto	 tempo	mergulhada	 em	 frouxa	 ociosidade,	 tornou-se	 o	 palco	 de	 uma	 guerra	 civil	 terrível.
Tiraram-me	do	vão	da	minha	estátua	e	puseram-me	à	frente	de	um	partido.	Cador	correu	a	Mênfis	para	trazer
você	de	volta	à	Babilônia.	O	príncipe	da	Hircânia,	ao	tomar	conhecimento	dessas	funestas	notícias,	veio	com	seu
exército	 formar	 um	 terceiropartido	 na	Caldeia.	 Atacou	 o	 rei,	 que	 o	 enfrentou	 com	 sua	 extravagante	 egípcia.
Moabdar	morreu	perfurado	 de	 golpes,	 e	Missuf	 caiu	 nas	mãos	 do	 vencedor.	Quis	 a	 desgraça	 que	 eu	 também
fosse	pega	pelos	hircanianos,	que	me	levaram	à	presença	do	príncipe	no	mesmo	momento	em	que	lhe	levavam
Missuf.	Certamente	você	ficará	lisonjeado	ao	saber	que	o	príncipe	me	achou	mais	bela	que	a	egípcia;	mas	não
gostará	de	saber	que	ele	me	destinou	ao	serralho,	dizendo	com	firmeza	que,	tão	logo	terminada	uma	expedição
militar	que	executaria,	viria	ao	meu	encontro.	Imagine	minha	dor.	Meus	laços	com	Moabdar	estavam	rompidos,
eu	podia	pertencer	a	Zadig	e	caía	nos	grilhões	desse	bárbaro.	Respondi	com	o	orgulho	que	minha	posição	e	meus
sentimentos	me	 davam.	 Sempre	 ouvi	 dizer	 que	 o	 céu	 concede	 às	 pessoas	 da	minha	 condição	 um	 caráter	 de
grandeza	que,	com	uma	palavra	e	um	olhar,	impõe	o	mais	profundo	respeito	aos	temerários	que	ousam	infringi-
lo.	Falei	como	rainha,	mas	fui	tratada	como	criada.	Sem	sequer	dignar-se	dirigir-me	a	palavra,	o	hircaniano	disse
a	 seu	 eunuco	 negro	 que	 eu	 era	 uma	 impertinente,	mas	 que	me	 achava	 bonita.	Ordenou-lhe	 cuidar	 de	mim	 e
colocar-me	no	regime	das	favoritas,	a	fim	de	melhorar-me	a	pele	e	tornar-me	mais	digna	de	seus	favores	para	o
dia	em	que	consentisse	honrar-me.	Eu	disse	que	me	mataria:	rindo,	ele	replicou	que	não	acreditava,	que	estava
acostumado	a	essas	cenas,	e	me	deixou	como	um	homem	que	acaba	de	pôr	um	papagaio	na	gaiola.	Que	situação
para	a	primeira	rainha	do	universo	e,	direi	mais,	para	um	coração	que	pertencia	a	Zadig!”
A	 essas	 palavras,	 ele	 se	 lançou	 a	 seus	 joelhos	 e	 os	 banhou	 de	 lágrimas.	 Astarteia	 o	 ergueu	 ternamente	 e
continuou	assim:
–	Eu	me	via	nas	mãos	de	um	bárbaro,	e	rival	de	uma	louca	com	quem	estava	encerrada.	Ela	me	contou	sua
aventura	 no	 Egito.	 Julguei,	 pelos	 traços	 com	 que	 o	 descreveu,	 pelo	 dromedário	 no	 qual	 estava	montado,	 por
todas	as	circunstâncias,	que	fora	Zadig	que	combatera	por	ela.	Não	duvidei	que	você	estivesse	em	Mênfis;	tomei
a	decisão	de	ir	para	lá.
“–	Bela	Missuf	–	eu	disse	a	ela	–,	você	é	muito	mais	atraente	que	eu,	saberá	divertir	melhor	que	eu	o	príncipe
da	Hircânia.	Facilite	os	meios	para	que	eu	me	salve;	reinará	sozinha;	me	fará	feliz	ao	se	desembaraçar	de	uma
rival.
“Missuf	me	ajudou	a	preparar	minha	fuga.	Parti	então	secretamente	com	uma	escrava	egípcia.
“Já	 estava	 perto	 da	 Arábia	 quando	 um	 famoso	 ladrão,	 chamado	 Arbogad,	 me	 raptou	 e	 me	 vendeu	 a
mercadores	que	me	trouxeram	a	este	castelo,	onde	mora	o	senhor	Ogul.	Ele	me	comprou	sem	saber	quem	eu
era.	É	um	homem	voluptuoso	que	gosta	de	comer	bem	e	que	acredita	que	Deus	o	pôs	no	mundo	para	estar	à
mesa.	Excessivamente	gordo,	está	sempre	a	ponto	de	passar	mal.	Seu	médico,	que	goza	de	pouco	crédito	junto	a
ele	quando	digere	bem,	o	governa	despoticamente	quando	comeu	demais.	Ele	o	convenceu	de	que	 se	curaria
com	um	basilisco	cozido	em	água	de	rosas.	O	senhor	Ogul	prometeu	sua	mão	àquela	de	suas	escravas	que	lhe
trouxesse	um	basilisco.	Está	 vendo	que	as	deixo	 correrem	atrás	dessa	honra,	 e	 nunca	 tive	menos	 vontade	de
encontrar	esse	basilisco	depois	que	o	céu	me	permitiu	rever	você.”
Então	Astarteia	e	Zadig	se	disseram	tudo	o	que	sentimentos	longamente	retidos,	tudo	o	que	suas	desgraças	e
seus	amores	podiam	inspirar	a	corações	tão	nobres	e	apaixonados;	e	os	gênios	que	presidem	ao	amor	levaram
suas	palavras	à	esfera	de	Vênus.
As	mulheres	voltaram	à	casa	de	Ogul	sem	nada	terem	encontrado.	Zadig	fez-se	apresentar	a	ele	e	lhe	falou
nestes	termos:
–	Que	a	saúde	imortal	desça	do	céu	para	cuidar	de	seus	dias!	Sou	médico,	vim	vê-lo	ao	saber	de	sua	doença	e
lhe	trouxe	um	basilisco	cozido	em	água	de	rosas.	Não	que	eu	pretenda	desposá-lo:	peço-lhe	apenas	a	liberdade
de	uma	jovem	escrava	de	Babilônia	que	o	senhor	comprou	há	alguns	dias;	e	consinto	em	ser	escravo	no	 lugar
dela	se	eu	não	tiver	a	felicidade	de	curar	o	magnífico	senhor	Ogul.
A	 proposta	 foi	 aceita.	 Astarteia	 partiu	 para	 Babilônia	 com	 o	 serviçal	 de	 Zadig,	 prometendo	 enviar-lhe
constantemente	mensagens	para	 informá-lo	de	 tudo	o	que	se	passasse.	A	despedida	 foi	 tão	 terna	como	 fora	o
reencontro.	O	momento	em	que	as	pessoas	se	reencontram,	e	aquele	em	que	se	separam,	são	os	dois	maiores
momentos	da	vida,	 como	diz	o	grande	 livro	do	Zend.	Zadig	amava	a	 rainha	 tanto	quanto	o	 jurava,	 e	a	 rainha
amava	Zadig	mais	do	que	lhe	dizia	amar.
Enquanto	isso,	Zadig	falou	assim	a	Ogul:
–	Senhor,	meu	basilisco	não	se	come,	toda	a	sua	virtude	deve	entrar	em	seus	poros.	Coloquei-o	num	pequeno
odre	 inflado	e	coberto	de	uma	pele	 fina;	o	senhor	deve	arremessar	esse	odre	com	toda	a	 força	e	o	devolverei
várias	vezes;	em	poucos	dias	de	regime,	verá	o	que	pode	minha	arte.
No	primeiro	dia,	Ogul	ficou	sem	fôlego	e	achou	que	morreria	de	cansaço.	No	segundo,	ficou	menos	cansado	e
dormiu	melhor.	Em	oito	dias	recuperou	a	força,	a	saúde,	a	leveza	e	a	alegria	de	seus	melhores	anos.
–	 O	 senhor	 jogou	 bola	 e	 se	 manteve	 sóbrio	 –	 disse-lhe	 Zadig.	 –	 Saiba	 que	 não	 existe	 basilisco	 algum	 na
natureza,	 que	 a	 sobriedade	 e	 o	 exercício	 sempre	 nos	 deixam	 saudáveis,	 e	 que	 a	 arte	 de	 fazer	 coexistir	 a
intemperança	e	a	saúde	é	uma	arte	tão	quimérica	quanto	a	pedra	filosofal,	a	astrologia	judiciária	e	a	teologia	dos
magos.
O	primeiro	médico	de	Ogul,	percebendo	quanto	esse	homem	era	perigoso	para	a	medicina,	 se	uniu	com	o
boticário	para	fazer	Zadig	procurar	basiliscos	no	outro	mundo.	Assim,	após	ter	sido	sempre	punido	por	ter	feito	o
bem,	 ele	 estava	prestes	 a	 perecer	 por	 ter	 curado	um	 senhor	 glutão.	Convidaram-no	 a	 um	excelente	 jantar.	O
plano	era	envenená-lo	quando	fosse	servido	o	segundo	prato.	Mas	Zadig	recebeu	uma	mensagem	de	Astarteia
quando	 serviram	 o	 primeiro.	 Ele	 deixou	 a	mesa	 e	 partiu.	 Quando	 somos	 amados	 por	 uma	 bela	mulher,	 diz	 o
grande	Zoroastro,	sempre	damos	um	jeito	de	nos	safar	neste	mundo.
CAPÍTULO	XVII
Os	combates
A	rainha	fora	recebida	em	Babilônia	com	o	entusiasmo	que	o	povo	sempre	sente	por	uma	bela	princesa	que
foi	 infeliz.	A	Babilônia	parecia	então	estar	mais	 tranquila.	O	príncipe	da	Hircânia	 fora	morto	em	combate.	Os
babilônios,	vencedores,	declararam	que	Astarteia	desposaria	quem	eles	escolhessem	como	soberano.	Ninguém
queria	que	o	cargo	mais	importante	do	mundo,	que	seria	o	do	marido	de	Astarteia	e	rei	de	Babilônia,	dependesse
de	intrigas	e	cabalas.	Juraram	reconhecer	como	rei	o	mais	valente	e	o	mais	sábio.	Uma	grande	pista	de	torneio,
com	 anfiteatros	 magnificamente	 ornados,	 foi	 montada	 a	 poucas	 léguas	 da	 cidade.	 Os	 combatentes	 deviam
comparecer	ali	 completamente	armados.	Cada	um	 tinha,	atrás	dos	anfiteatros,	um	alojamento	 separado,	onde
não	devia	ser	visto	nem	reconhecido	por	ninguém.	Haveria	quatro	disputas	com	 lanças.	Os	que	conseguissem
vencer	 quatro	 cavaleiros	 combateriam	 a	 seguir	 entre	 si,	 e	 o	 último	 a	 permanecer	 vitorioso	 seria	 proclamado
vencedor	 do	 torneio.	 Ele	 voltaria	 então	 quatro	 dias	 depois	 com	 as	mesmas	 armas,	 para	 explicar	 os	 enigmas
propostos	pelos	magos.	Se	não	explicasse	os	enigmas,	não	seria	rei,	e	o	torneio	de	lanças	teria	de	recomeçar	até
se	encontrar	um	homem	vencedor	nesses	dois	combates:	pois	se	queria	absolutamente	que	o	rei	 fosse	o	mais
valente	e	o	mais	sábio.	A	rainha,	nesse	meio-tempo,	devia	ser	cuidadosamente	guardada;	permitiam-lhe	apenas
assistir	aos	jogos	coberta	por	um	véu;	mas	não	admitiam	que	falasse	com	nenhum	dos	pretendentes,	a	fim	de	não
haver	favor	nem	injustiça.
Eis	o	que	Astarteia	fez	saber	a	seu	amado,	esperando	que	ele	mostrasse	por	ela	mais	valor	e	mais	espírito	do
que	ninguém.	Ele	partiu	e	rogou	a	Vênus	fortalecer	sua	coragem	e	iluminar	seu	espírito.	Chegou	às	margens	do
Eufrates	na	véspera	do	grande	dia.	Inscreveu	sua	divisa	entre	as	dos	combatentes,	escondendo	o	rosto	e	o	nome,
como	a	 lei	ordenava,	e	 foi	 repousar	no	alojamento	que	 lhe	coube	por	sorteio.	Seu	amigo	Cador,que	voltara	a
Babilônia	 após	 tê-lo	 procurado	 inutilmente	 no	 Egito,	 mandou	 entregar-lhe	 no	 alojamento	 uma	 armadura
completa	que	a	rainha	lhe	enviava,	juntamente	com	o	mais	belo	cavalo	da	Pérsia,	também	enviado	por	ela.	Zadig
reconheceu	Astarteia	nesses	presentes:	sua	coragem	e	seu	amor	ganharam	novas	forças	e	novas	esperanças.
No	dia	seguinte,	tendo	a	rainha	se	instalado	sob	um	dossel	de	pedrarias,	e	estando	os	anfiteatros	repletos	de
damas	e	de	todas	as	autoridades	de	Babilônia,	os	combatentes	apareceram	na	pista.	Cada	um	veio	colocar	sua
divisa	 aos	 pés	 do	 grande	 mago.	 Fizeram	 o	 sorteio	 da	 apresentação:	 Zadig	 seria	 o	 último.	 O	 primeiro	 a	 se
apresentar	foi	um	senhor	muito	rico,	chamado	Itobad,	vaidoso,	pouco	corajoso,	canhestro	e	sem	espírito.	Seus
domésticos	o	haviam	convencido	de	que	um	homem	como	ele	devia	ser	rei,	e	ele	lhes	respondera:	“Um	homem
como	eu	deve	reinar”.	Assim,	o	armaram	como	um	rei.	Vestia	uma	armadura	de	ouro	esmaltada	de	verde,	um
penacho	verde,	uma	lança	ornada	de	fitas	verdes.	Todos	logo	perceberam,	pela	maneira	como	Itobad	conduzia	o
cavalo,	que	não	era	a	um	homem	como	ele	que	o	céu	reservava	o	cetro	de	Babilônia.	O	primeiro	cavaleiro	que
investiu	contra	ele	o	 tirou	do	estribo,	o	segundo	o	derrubou	do	cavalo,	com	as	duas	pernas	no	ar	e	os	braços
estendidos.	Itobad	se	recompôs,	mas	tão	sem	graça	que	o	anfiteatro	inteiro	se	pôs	a	rir.	O	terceiro	nem	sequer
usou	a	lança;	numa	rápida	manobra,	pegou-lhe	a	perna	direita,	o	fez	dar	meia	volta	e	cair	na	areia:	os	escudeiros
dos	jogos	acorreram,	rindo,	e	o	recolocaram	na	sela.	O	quarto	adversário	pegou-lhe	a	perna	esquerda	e	o	fez	cair
do	 outro	 lado.	 Foi	 levado	 sob	 vaias	 a	 seu	 alojamento,	 onde	 devia	 passar	 a	 noite,	 conforme	 a	 lei;	 e	 ele	 dizia,
andando	com	dificuldade:	“Que	aventura	para	um	homem	como	eu!”.
Os	outros	cavaleiros	cumpriram	melhor	seu	dever.	Alguns	derrubaram	dois	adversários,	alguns	chegaram	a
derrubar	 três.	 Somente	 o	 príncipe	 Otame	 conseguiu	 vencer	 quatro.	 Enfim	 chegou	 a	 vez	 de	 Zadig	 combater:
também	 ele	 derrubou	 quatro	 cavaleiros,	 com	 toda	 a	 graça	 possível.	 Restava	 decidir	 quem	 seria	 o	 vencedor,
Otame	ou	Zadig.	O	primeiro	tinha	armas	azuis	e	douradas,	com	um	penacho	da	mesma	cor;	as	de	Zadig	eram
brancas.	A	torcida	se	dividia	entre	o	cavaleiro	azul	e	o	cavaleiro	branco.	A	rainha,	cujo	coração	palpitava,	fazia
preces	ao	céu	pela	cor	branca.
Os	dois	campeões	fizeram	passes	e	voltas	com	tanta	agilidade,	deram-se	tão	belos	golpes	de	lança,	estavam
tão	firmes	em	seus	estribos,	que	todos,	com	exceção	da	rainha,	desejavam	que	houvesse	dois	reis	em	Babilônia.
Por	fim,	estando	os	cavalos	cansados	e	as	lanças	partidas,	Zadig	empregou	esta	artimanha:	passou	por	trás	do
príncipe	azul,	lançou-se	na	garupa	do	seu	cavalo,	pegou-o	pelo	meio	do	corpo	e	o	derrubou,	ocupando	a	sela	em
seu	 lugar	 e	 cavalgando	em	 torno	de	Otame	estendido	no	 chão.	Todo	o	anfiteatro	gritou:	 “Vitória	do	 cavaleiro
branco!”.
Indignado,	Otame	se	levanta,	saca	a	espada;	Zadig	salta	do	cavalo	com	o	sabre	na	mão.	Agora,	na	arena,	os
dois	travam	um	novo	combate	em	que	a	força	e	a	agilidade	triunfam	alternadamente.	As	plumas	do	capacete,	os
pregos	dos	braçais,	as	malhas	da	armadura	voam	longe	sob	uma	série	de	golpes	precipitados.	Eles	golpeiam	com
a	ponta	e	o	talho	da	arma,	à	direita	e	à	esquerda,	na	cabeça,	no	peito;	recuam,	avançam,	medem-se,	juntam-se,
enroscam-se	 como	 serpentes,	 atacam-se	 como	 leões;	 a	 todo	 momento	 saltam	 fagulhas	 dos	 golpes	 que	 eles
desferem.	 Por	 fim,	 Zadig,	 recobrando	 o	 espírito,	 para,	 dá	 uma	 finta,	 derruba	 Otame	 e	 o	 desarma.	 Otame
exclama:
–	Ó,	cavaleiro	branco,	você	é	que	deve	reinar	em	Babilônia!
A	rainha	chegou	ao	auge	da	alegria.	Reconduziram	o	cavaleiro	azul	e	o	cavaleiro	branco	a	seus	alojamentos,
bem	como	todos	os	outros,	segundo	estava	previsto	na	lei.	Serviçais	mudos	vieram	trazer-lhes	comida.	Pode-se
imaginar	que	o	mudinho	da	rainha	foi	quem	veio	servir	Zadig.	Depois	os	deixaram	dormir	sozinhos	até	a	manhã
seguinte,	quando	o	vencedor	devia	levar	sua	divisa	ao	grande	mago,	para	conferi-la	e	fazer-se	reconhecer.
Embora	apaixonado,	Zadig	dormiu,	de	tão	exausto	que	estava.	Mas	Itobad,	que	estava	no	alojamento	ao	lado,
não	dormiu.	Ele	se	levantou	durante	a	noite,	pegou	as	armas	brancas	de	Zadig	com	sua	divisa	e	pôs	no	lugar	sua
armadura	 verde.	 Ao	 amanhecer,	 foi	 orgulhosamente	 ao	 grande	 mago	 declarar	 que	 um	 homem	 como	 ele	 era
vencedor.	Ninguém	esperava	por	isso;	mas	ele	foi	proclamado	enquanto	Zadig	ainda	dormia.	Astarteia,	surpresa
e	 com	 desespero	 no	 coração,	 retornou	 a	 Babilônia.	 Todo	 o	 anfiteatro	 já	 estava	 quase	 vazio	 quando	 Zadig
despertou.	Ele	procurou	 suas	 armas	 e	 só	 encontrou	a	 armadura	 verde.	Foi	 obrigado	a	 cobrir-se	 com	ela,	 não
tendo	outra	coisa	por	perto.	Espantado	e	indignado,	vestiu-a	com	furor	e	saiu	nesse	traje.
Os	que	estavam	ainda	no	anfiteatro	e	na	pista	o	receberam	com	vaias.	Cercaram-no,	insultaram-no;	ele	nunca
sofrera	mortificações	tão	humilhantes.	Perdendo	a	paciência,	afastou	a	golpes	de	sabre	a	populaça	que	ousava
ultrajá-lo.	Mas	ele	não	sabia	o	que	fazer:	não	podia	procurar	a	rainha;	não	podia	reclamar	a	armadura	branca
que	ela	lhe	enviara,	pois	isso	a	comprometeria.	Assim,	enquanto	ela	mergulhava	na	dor,	ele	sentia	apenas	fúria	e
inquietação.	 Caminhou	 pelas	 margens	 do	 Eufrates,	 convencido	 de	 que	 sua	 estrela	 o	 destinava	 a	 ser
irremediavelmente	 infeliz,	 repassando	 no	 espírito	 todas	 as	 suas	 desgraças,	 desde	 a	 aventura	 da	 mulher	 que
odiava	os	caolhos	até	a	da	sua	armadura.
–	Eis	o	que	acontece	–	pensou	–	por	ter	despertado	tarde	demais;	se	eu	tivesse	dormido	menos,	seria	rei	de
Babilônia,	possuiria	Astarteia.	A	ciência,	o	caráter	e	a	coragem	nunca	serviram	senão	para	o	meu	infortúnio.
Por	 pouco	 não	murmurou	 contra	 a	 Providência,	 e	 foi	 tentado	 a	 acreditar	 que	 tudo	 era	 governado	 por	 um
destino	cruel	que	oprimia	os	bons	e	fazia	prosperar	os	cavaleiros	verdes.	Um	de	seus	desgostos	era	vestir	essa
armadura	verde	que	lhe	atraíra	tantas	vaias.	Como	um	mercador	passasse,	ele	a	vendeu	a	preço	vil,	comprando
do	mercador	uma	túnica	e	um	gorro.	Nesse	traje,	seguiu	costeando	o	Eufrates,	cheio	de	desespero	e	acusando
em	segredo	a	Providência,	que	não	cessava	de	persegui-lo.
CAPÍTULO	XVIII
O	eremita
Caminhando,	encontrou	um	eremita	cuja	barba	branca	e	venerável	descia	até	a	cintura.	Segurava	na	mão	um
livro,	que	lia	atentamente.	Zadig	parou	e	lhe	fez	uma	profunda	reverência.	O	eremita	o	saudou	de	maneira	tão
nobre	e	tão	doce	que	Zadig	teve	a	curiosidade	de	conversar	com	ele.	Perguntou-lhe	que	livro	estava	lendo:
–	É	o	livro	dos	destinos	–	disse	o	eremita.	–	Quer	ler	alguma	coisa?
Pôs	 o	 livro	 nas	mãos	 de	Zadig	 que,	 embora	 instruído	 em	 várias	 línguas,	 não	 conseguiu	 decifrar	 um	único
caractere.	Isso	aumentou	ainda	mais	sua	curiosidade.
–	Você	me	parece	muito	triste	–	disse-lhe	o	bom	velho.
–	Ah,	tenho	motivos	de	sobra!	–	disse	Zadig.
–	Se	permitir	que	o	acompanhe	–	retornou	o	velho	–,	talvez	eu	possa	lhe	ser	útil:	tenho	às	vezes	espalhado
sentimentos	de	consolação	na	alma	dos	infelizes.
Zadig	sentiu	respeito	pelo	aspecto,	pela	barba	e	pelo	livro	do	eremita.	Viu	luzes	superiores	em	suas	palavras.
O	eremita	 falava	do	destino,	 da	 justiça,	 da	moral,	 do	 soberano	bem,	 da	 fraqueza	humana,	 das	 virtudes	 e	 dos
vícios,	com	uma	eloquência	tão	viva	e	tão	tocante	que	Zadig	se	sentiu	atraído	a	ele	por	um	invencível	encanto.
Rogou-lhe	com	insistência	a	não	abandoná-lo	até	retornarem	à	Babilônia.
–	 Também	 lhe	peço	 essa	graça	 –	 disse	 o	 velho.	 –	 Jure-me	por	Orosmade	que	não	 se	 separará	de	mim	nos
próximos	dias,	não	importa	o	que	eu	faça.
Zadig	jurou,	e	eles	partiram	juntos.
Os	dois	 viajantes	 chegaram	à	noite	num	castelo	 soberbo.	O	eremita	pediu	hospitalidade	para	ele	e	para	o
jovem	que	o	acompanhava.	O	porteiro,	que	poderia	ser	tomado	por	um	grande	senhor,	os	 introduziu	com	uma
espécie	debondade	desdenhosa.	Foram	apresentados	ao	criado-mor,	que	lhes	mostrou	os	aposentos	magníficos
do	mestre.	 Foram	admitidos	 na	 extremidade	 de	 sua	mesa,	 sem	que	 o	 senhor	 do	 castelo	 os	 honrasse	 com	um
olhar;	mas	foram	servidos	como	os	outros,	com	delicadeza	e	profusão.	A	seguir,	os	fizeram	se	lavar	numa	bacia
de	ouro	guarnecida	de	esmeraldas	e	rubis,	e	os	levaram	para	dormir	num	belo	quarto.	Na	manhã	seguinte,	um
criado	entregou	a	cada	um	deles	uma	moeda	de	ouro,	após	o	que	foram	despedidos.
–	 O	 dono	 da	 casa	 –	 disse	 Zadig	 no	 caminho	 –	 me	 parece	 ser	 um	 homem	 generoso,	 embora	 um	 pouco
arrogante.	Ele	pratica	com	nobreza	a	hospitalidade.
Ao	dizer	essas	palavras,	notou	que	uma	espécie	de	bolsa	larga	que	o	eremita	usava	parecia	cheia	e	esticada:
viu	ali	a	bacia	de	ouro	guarnecida	de	pedras	preciosas,	que	este	havia	roubado.	De	início	não	ousou	dizer	nada,
mas	sentiu	uma	estranha	surpresa.
Por	 volta	do	meio-dia,	 o	 eremita	 se	apresentou	à	porta	de	uma	casa	muito	pequena	onde	morava	um	 rico
avarento;	pediu	a	hospitalidade	por	algumas	horas.	Um	velho	criado	malvestido	o	recebeu	num	tom	grosseiro,	e
fez	 o	 eremita	 e	 Zadig	 entrarem	 na	 estrebaria,	 onde	 lhes	 deu	 algumas	 olivas	 podres,	 pão	 velho	 e	 cerveja
estragada.	O	eremita	bebeu	e	 comeu	com	um	ar	 tão	 contente	 como	na	 véspera;	depois,	 dirigindo-se	ao	 velho
criado	 que	 observava	 os	 dois	 para	 ver	 se	 não	 roubariam	 nada	 e	 que	 os	 apressava	 a	 partir,	 deu-lhe	 as	 duas
moedas	de	ouro	que	recebera	de	manhã	e	agradeceu	sua	atenção.
–	Peço-lhe	–	acrescentou	–	que	me	leve	até	seu	mestre.
O	criado,	surpreso,	apresentou	os	dois	viajantes:
–	Magnífico	senhor	–	disse	o	eremita	–,	não	posso	senão	agradecer	muito	humildemente	pela	maneira	nobre
como	nos	recebeu:	queira	aceitar	esta	bacia	de	ouro	como	uma	pequena	prova	de	minha	gratidão.
O	avarento	quase	caiu	de	costas.	Mas	o	eremita	não	lhe	deu	tempo	de	recuperar-se	do	seu	espanto:	partiu	o
mais	depressa	possível	com	seu	jovem	viajante.
–	Meu	pai	–	disse-lhe	Zadig	–,	o	que	significa	tudo	isso	que	vejo?	O	senhor	não	me	parece	se	assemelhar	em
nada	aos	outros	homens:	roubou	uma	bacia	de	ouro	guarnecida	de	pedras	preciosas	de	um	senhor	que	o	recebeu
magnificamente	e	a	deu	a	um	avarento	que	o	tratou	com	indignidade.
–	Meu	filho	–	respondeu	o	velho	–,	aquele	homem	magnífico,	que	só	recebe	estrangeiros	por	vaidade	e	para
fazer	admirar	suas	riquezas,	passará	a	ser	mais	comedido;	e	este	avarento	aprenderá	a	praticar	a	hospitalidade:
não	se	espante	com	nada	e	me	acompanhe.
Zadig	não	sabia	ainda	se	lidava	com	o	mais	louco	ou	o	mais	sábios	de	todos	os	homens;	mas	o	eremita	falava
com	tanta	autoridade	que	Zadig,	aliás	comprometido	por	seu	juramento,	não	pôde	deixar	de	acompanhá-lo.
Chegaram	 ao	 anoitecer	 numa	 casa	 agradavelmente	 construída,	 mas	 simples,	 onde	 nada	 indicava
prodigalidade	nem	avareza.	O	dono	era	um	 filósofo	 retirado	do	mundo,	que	cultivava	em	paz	a	 sabedoria	e	a
virtude	sem	se	aborrecer.	Construíra	com	gosto	esse	retiro	no	qual	recebia	os	estrangeiros	com	nobreza,	sem	a
menor	ostentação.	Ele	mesmo	recebeu	os	dois	viajantes,	que	primeiro	fez	repousar	num	quarto	cômodo.	Algum
tempo	depois,	ele	mesmo	também	veio	convidá-los	para	uma	refeição	sadia	e	bem	escolhida,	durante	a	qual	falou
com	discrição	 das	 últimas	 revoluções	 em	Babilônia.	 Parecia	 sinceramente	 afeiçoado	 à	 rainha	 e	 lamentou	 que
Zadig	não	tivesse	aparecido	no	torneio	para	disputar	a	coroa.
–	Mas	os	homens	–	acrescentou	–	não	merecem	ter	um	rei	como	Zadig.
Este	corou	e	sentiu	redobrar	suas	dores.	Durante	a	conversa,	eles	concordaram	que	as	coisas	deste	mundo
nem	 sempre	 eram	 do	 agrado	 dos	 mais	 sábios.	 O	 eremita	 insistiu	 que	 ninguém	 conhece	 os	 caminhos	 da
Providência,	e	que	os	homens	cometiam	um	erro	ao	julgar	um	todo	do	qual	só	percebiam	uma	pequena	parte.
Falaram	das	paixões.
–	Ah,	como	são	funestas!	–	disse	Zadig.
–	São	os	ventos	que	inflam	as	velas	do	barco	–	corrigiu	o	eremita.	–	Às	vezes	elas	o	submergem,	mas	sem	elas
o	barco	não	poderia	navegar.	A	bile	nos	faz	coléricos	e	doentes,	mas	sem	a	bile	o	homem	não	poderia	viver.	Tudo
é	perigoso	neste	mundo,	e	tudo	é	necessário.
Falaram	do	prazer,	e	o	eremita	provou	que	é	um	presente	da	Divindade.
–	Pois	o	homem	–	disse	–	não	pode	se	dar	nem	sensação	nem	ideias,	ele	recebe	tudo;	a	dor	e	o	prazer	lhe	vêm
de	fora,	como	seu	ser.
Zadig	se	admirava	de	como	um	homem	que	fizera	coisas	tão	extravagantes	podia	raciocinar	tão	bem.	Por	fim,
após	 uma	 conversa	 tão	 instrutiva	 e	 agradável,	 o	 anfitrião	 reconduziu	 os	 dois	 viajantes	 a	 seus	 aposentos,
abençoando	 o	 céu	 por	 ter	 lhe	 enviado	 dois	 homens	 tão	 sábios	 e	 virtuosos.	 Ofereceu-lhes	 dinheiro	 de	 uma
maneira	 tão	nobre	e	natural	 que	não	podia	desagradar.	Mas	o	eremita	 recusou	e	disse	que	 se	despedia	dele,
esperando	 partir	 para	 a	 Babilônia	 antes	 do	 amanhecer.	 Eles	 se	 separaram	 ternamente.	 Zadig,	 em	 particular,
sentia-se	cheio	de	estima	e	simpatia	por	um	homem	tão	amável.
Quando	o	eremita	e	Zadig	chegaram	a	seus	aposentos,	eles	fizeram	um	longo	elogio	ao	seu	anfitrião.	Ao	raiar
a	aurora,	o	velho	despertou	seu	companheiro.
–	 Precisamos	 partir	 –	 ele	 disse.	 –	 Mas,	 enquanto	 todos	 ainda	 dormem,	 quero	 deixar	 a	 esse	 homem	 um
testemunho	da	minha	estima	e	da	minha	afeição.
Após	 dizer	 essas	 palavras,	 pegou	 um	 archote	 e	 pôs	 fogo	 à	 casa.	 Zadig,	 apavorado,	 lançou	 gritos	 e	 quis
impedi-lo	de	cometer	uma	ação	tão	terrível.	Mas	o	eremita	o	arrastou	por	uma	força	superior.	A	casa	estava	em
chamas.	Já	bastante	longe	com	seu	companheiro,	ele	a	olhou	arder	e	falou	com	tranquilidade:
–	Graças	a	Deus!	–	disse.	–	Eis	a	casa	do	meu	anfitrião	totalmente	destruída.	Que	homem	feliz!
Ao	ouvir	isso,	Zadig	não	sabia	se	dava	uma	gargalhada,	se	dizia	injúrias	ao	reverendo	velho,	se	batia	nele	ou
se	 fugia;	 mas	 não	 fez	 nada	 disso	 e,	 sempre	 subjugado	 pela	 autoridade	 do	 eremita,	 o	 acompanhou	 contra	 a
vontade	até	a	última	pousada.
Era	a	casa	de	uma	viúva	caridosa	e	virtuosa	que	tinha	um	sobrinho	de	catorze	anos,	rapaz	cheio	de	encantos
e	 sua	 única	 esperança.	 Ela	 fez	 o	melhor	 que	 pôde	 para	 honrá-los	 em	 sua	 casa.	No	 dia	 seguinte,	 ordenou	 ao
sobrinho	que	acompanhasse	os	viajantes	até	uma	ponte	que,	estando	avariada	havia	algum	tempo,	 se	 tornara
uma	passagem	perigosa.	Solícito,	o	rapaz	marchou	adiante	deles.	Quando	chegaram	à	ponte,	o	eremita	disse	ao
rapaz:
–	Venha	cá,	preciso	provar	minha	gratidão	à	sua	tia.
Então	o	pegou	pelos	cabelos	e	o	atirou	no	rio.	O	rapaz	caiu,	reapareceu	por	um	momento	na	água	e	se	afogou
na	correnteza.
–	Ó,	monstro,	o	mais	celerado	de	todos	os	homens!	–	exclamou	Zadig.
–	Você	havia	me	prometido	mais	paciência	 –	 disse	 o	 eremita,	 interrompendo-o.	 –	Saiba	que,	 sob	 as	 ruínas
daquela	casa	onde	a	Providência	ateou	fogo,	o	dono	encontrou	um	tesouro	imenso;	saiba	que	esse	jovem	a	quem
a	Providência	torceu	o	pescoço	teria	assassinado	sua	tia	dentro	de	um	ano,	e	você	dentro	de	dois	anos.
–	Quem	lhe	disse	isso,	bárbaro?	–	bradou	Zadig.	–	E,	mesmo	que	tivesse	lido	esse	acontecimento	no	seu	livro
dos	destinos,	é	lícito	afogar	um	rapaz	que	não	lhe	fez	mal	algum?
Enquanto	 assim	 falava,	 ele	 viu	 que	 o	 velho	 não	 tinha	 mais	 barba,	 que	 seu	 rosto	 adquiria	 os	 traços	 da
juventude.	Sua	roupa	de	eremita	desapareceu;	quatro	belas	asas	cobriam	um	corpo	majestoso	e	resplandecente
de	luz.
–	Ó,	enviado	do	céu,	ó,	anjo	divino!	 –	exclamou	Zadig,	prosternando-se.	 –	Então	desceste	do	empíreo	para
ensinar	um	fraco	mortal	a	submeter-se	às	ordens	eternas?
–	Os	homens	–	disse	o	anjo	 Jesrad	–	 julgam	tudo	sem	nada	conhecer;	você,	de	 todos	os	homens,	era	quem
mais	merecia	ser	esclarecido.
Zadig	lhe	pediu	a	permissão	de	falar.
–	Desconfio	de	mim	mesmo	 –	disse	 –,	mas	ouso	pedir	que	me	esclareça	uma	dúvida:	não	 seria	melhor	 ter
corrigido	esse	rapaz	e	tê-lo	tornado	virtuoso	em	vez	de	afogá-lo?
Jesrad	respondeu:
–	Se	ele	fosse	virtuoso,	e	se	tivesse	vivido,seu	destino	era	ser	assassinado	com	a	mulher	que	desposaria	e	o
filho	que	eles	teriam.
–	Mas	como?	 –	disse	Zadig.	 –	Então	é	necessário	que	haja	 crimes	e	desgraças?	E	que	as	desgraças	caiam
sobre	homens	de	bem?
–	Os	maus	–	respondeu	Jesrad	–	são	sempre	infelizes:	eles	servem	para	testar	um	pequeno	número	de	justos
espalhados	pela	terra,	e	não	há	mal	de	que	não	nasça	um	bem.
–	Mas	–	disse	Zadig	–	se	houvesse	apenas	o	bem	e	não	o	mal?
–	 Então	 –	 retomou	 Jesrad	 –	 esta	 terra	 seria	 outra	 terra,	 o	 encadeamento	 dos	 fatos	 teria	 outra	 ordem	 de
sabedoria	e	essa	outra	ordem,	que	seria	perfeita,	só	pode	existir	na	morada	eterna	do	Ser	supremo,	de	quem	o
mal	não	pode	se	aproximar.	Ele	criou	milhões	de	mundos,	nenhum	dos	quais	podendo	se	assemelhar	ao	outro.
Essa	 imensa	 variedade	 é	um	atributo	do	 seu	poder	 imenso.	Não	há	duas	 folhas	de	 árvore	na	 terra,	 nem	dois
globos	nos	campos	infinitos	do	céu,	que	sejam	iguais,	e	tudo	o	que	você	vê	no	pequeno	átomo	onde	nasceu	devia
estar	 no	 seu	 lugar	 e	 no	 seu	 tempo	 fixo,	 segundo	 as	 ordens	 imutáveis	 daquele	 que	 tudo	 abarca.	 Os	 homens
pensam	que	esse	rapaz	que	acabou	de	morrer	caiu	na	água	por	acaso,	que	foi	pelo	mesmo	acaso	que	a	casa	se
queimou,	mas	não	existe	acaso:	 tudo	é	prova,	ou	punição,	ou	recompensa,	ou	previdência.	Lembre-se	daquele
pescador	que	se	 julgava	o	mais	 infeliz	de	todos	os	homens.	Orosmade	enviou	você	para	mudar	o	destino	dele.
Fraco	mortal!	Cessa	de	discutir	contra	o	que	é	preciso	adorar.
–	Mas...	–	disse	Zadig.
E,	 enquanto	 dizia	mas,	 o	 anjo	 já	 levantava	 voo	 em	 direção	 à	 décima	 esfera.	 Zadig,	 de	 joelhos,	 adorou	 a
Providência	e	se	submeteu.	O	anjo	lhe	gritou	das	alturas:
–	Segue	teu	caminho	rumo	à	Babilônia.
CAPÍTULO	XIX
Os	enigmas
Zadig,	atônito	e	como	um	homem	perto	de	quem	caíra	um	raio,	caminhava	ao	acaso.	Ele	entrou	em	Babilônia
no	dia	em	que	os	participantes	do	torneio	já	estavam	reunidos	no	grande	vestíbulo	do	palácio	para	explicar	os
enigmas	 e	 para	 responder	 às	 perguntas	 do	 grande	 mago.	 Todos	 os	 cavaleiros	 haviam	 chegado,	 exceto	 o	 de
armadura	verde.	Assim	que	Zadig	apareceu	na	cidade,	o	povo	se	reuniu	em	torno	dele;	os	olhos	não	se	fartavam
de	vê-lo,	as	bocas	de	abençoá-lo,	os	corações	de	desejar-lhe	o	império.	O	invejoso	o	viu	passar,	estremeceu	e	se
desviou.	O	povo	levou	Zadig	até	o	lugar	da	assembleia.	A	rainha,	a	quem	comunicaram	sua	chegada,	foi	tomada
por	uma	agitação	de	temor	e	de	esperança;	a	inquietude	a	devorava:	ela	não	podia	compreender	nem	por	que
Zadig	estava	sem	armas,	nem	como	Itobad	vestia	a	armadura	branca.	Um	murmúrio	confuso	se	elevou	à	vista	de
Zadig.	Todos	estavam	surpresos	e	encantados	de	revê-lo;	mas	somente	aos	cavaleiros	que	haviam	combatido	era
permitido	participar	da	assembleia.
–	Combati	como	os	outros	–	ele	disse.	–	Mas	outro	traz	aqui	minhas	armas;	e,	enquanto	espero	a	honra	de
provar	o	que	digo,	peço	a	permissão	de	me	apresentar	para	explicar	os	enigmas.
A	proposta	 foi	votada.	Sua	reputação	de	probidade	ainda	estava	 tão	 fortemente	marcada	nos	espíritos	que
não	hesitaram	em	aceitá-la.
O	grande	mago	propôs	primeiro	esta	questão:
–	Qual	é,	de	 todas	as	coisas	do	mundo,	a	mais	 longa	e	a	mais	curta,	a	mais	 rápida	e	a	mais	 lenta,	a	mais
divisível	e	a	mais	extensa,	a	mais	negligenciada	e	a	que	mais	se	 lamenta	perder,	sem	a	qual	nada	se	 faz,	que
devora	tudo	o	que	é	pequeno	e	vivifica	tudo	o	que	é	grande?
Cabia	a	Itobad	falar.	Ele	respondeu	que	um	homem	como	ele	nada	entendia	de	enigmas,	e	que	lhe	bastava	ter
vencido	no	combate.	Uns	disseram	que	a	palavra	do	enigma	era	a	 fortuna,	outros	a	 terra,	outros	a	 luz.	Zadig
disse	que	era	o	tempo:
–	Nada	é	mais	longo	–	explicou	–,	pois	ele	é	a	medida	da	eternidade;	nada	é	mais	curto,	pois	sempre	falta	a
nossos	projetos;	nada	é	mais	lento	para	quem	espera,	nada	é	mais	rápido	para	quem	goza;	estende-se	quase	ao
infinito	em	grandeza,	divide-se	quase	ao	infinito	em	pequenez;	todos	os	homens	o	negligenciam,	todos	lamentam
perdê-lo;	nada	se	faz	sem	o	tempo;	ele	faz	esquecer	tudo	o	que	é	indigno	da	posteridade	e	imortaliza	as	coisas
grandes.
A	assembleia	concordou	que	Zadig	tinha	razão.
Perguntaram	a	seguir:
–	Qual	é	a	coisa	que	se	recebe	sem	agradecer,	da	qual	se	usufrui	sem	saber	como,	que	se	dá	aos	outros	sem
saber	que	se	dá	e	que	se	perde	sem	perceber?
Todos	 disseram	 sua	 palavra.	 Zadig	 foi	 o	 único	 a	 adivinhar	 que	 era	 a	 vida.	 Ele	 explicou	 todos	 os	 outros
enigmas	 com	 a	 mesma	 facilidade.	 Itobad	 dizia	 sempre	 que	 nada	 era	 mais	 fácil,	 e	 que	 teria	 resolvido	 tudo
facilmente	se	quisesse	dar-se	esse	 trabalho.	Foram	propostas	questões	sobre	a	 justiça,	sobre	o	soberano	bem,
sobre	a	arte	de	reinar.	As	respostas	de	Zadig	foram	julgadas	as	mais	sólidas.
–	É	uma	pena	–	diziam	–	que	um	espírito	tão	bom	seja	tão	mau	cavaleiro.
–	 Ilustres	 senhores	 –	 disse	Zadig	 –,	 tive	 a	honra	de	 vencer	no	 torneio.	É	 a	mim	que	pertence	 a	 armadura
branca.	 O	 senhor	 Itobad	 apoderou-se	 dela	 enquanto	 eu	 dormia:	 aparentemente	 julgou	 que	 ela	 lhe	 assentaria
melhor	que	a	armadura	verde.	Estou	pronto	a	lhe	provar	diante	dos	senhores,	com	minha	túnica	e	minha	espada,
contra	essa	bela	armadura	branca	que	ele	tomou	de	mim,	que	fui	eu	que	tive	a	honra	de	vencer	o	bravo	Otame.
Itobad	aceitou	o	desafio	com	a	maior	confiança.	Não	duvidava	que,	estando	armado	de	capacete,	couraça	e
braçadeira,	 venceria	 facilmente	 um	 campeão	 vestido	 com	 uma	 túnica	 e	 um	 gorro.	 Zadig	 sacou	 sua	 espada,
saudando	a	rainha,	que	o	olhava	cheia	de	alegria	e	temor.	Itobad	sacou	a	dele,	não	saudando	ninguém.	Avançou
contra	 Zadig	 como	 um	 homem	 que	 nada	 tem	 a	 temer,	 pronto	 a	 lhe	 rachar	 a	 cabeça.	 Zadig	 aparou	 o	 golpe,
opondo	o	que	chamam	a	força	da	espada	à	fraqueza	do	adversário,	de	modo	que	a	espada	de	Itobad	se	partiu.
Pegando	então	o	 inimigo	pelo	corpo,	Zadig	o	derrubou	no	chão;	e,	encostando	a	ponta	da	espada	num	vão	da
couraça,	falou:
–	Retira	a	armadura	ou	te	mato.
Itobad,	sempre	surpreso	com	as	desgraças	que	aconteciam	a	um	homem	como	ele,	consentiu	a	Zadig,	que
calmamente	lhe	tirou	seu	magnífico	capacete,	sua	soberba	couraça,	suas	brilhantes	proteções	das	pernas	e	dos
braços,	vestiu-se	com	eles,	e	assim	equipado	foi	se	lançar	aos	joelhos	de	Astarteia.	Cador	provou	com	facilidade
que	 a	 armadura	 pertencia	 a	 Zadig.	 Ele	 foi	 reconhecido	 rei	 por	 consentimento	 unânime,	 principalmente	 por
Astarteia,	 que	 saboreava,	 depois	 de	 tantas	 adversidades,	 a	 doçura	de	 ver	 seu	digno	 amante,	 reconhecido	 aos
olhos	do	universo,	ser	seu	esposo.	Itobad	foi	fazer-se	chamar	senhor	em	sua	casa.	Zadig	tornou-se	rei	e	foi	feliz.
Ele	tinha	presente	no	espírito	o	que	lhe	dissera	o	anjo	Jesrad.	Lembrou-se	mesmo	do	grão	de	areia	transformado
em	 diamante.	 A	 rainha	 e	 ele	 adoraram	 a	 Providência.	 Zadig	 deixou	 a	 bela	 caprichosa	Missuf	 correr	 mundo.
Mandou	chamar	o	bandido	Arbogad,	a	quem	concedeu	um	grau	de	honra	em	seu	exército,	com	a	promessa	de
elevá-lo	às	primeiras	dignidades	se	ele	 se	comportasse	como	verdadeiro	guerreiro,	e	de	mandá-lo	enforcar	 se
agisse	como	bandido.
Setoc	 foi	 chamado	 da	 distante	 Arábia,	 com	 a	 bela	 Almona,	 para	 dirigir	 o	 comércio	 de	 Babilônia.	 Cador
recebeu	o	cargo	e	a	merecida	estima	por	seus	serviços;	foi	o	amigo	do	rei,	e	o	rei	foi	então	o	único	monarca	da
terra	 que	 teve	 um	 amigo.	 O	 mudinho	 não	 foi	 esquecido.	 Foi	 dada	 uma	 bela	 casa	 ao	 pescador.	 Orcan	 foi
condenado	a	 lhe	pagar	um	bom	dinheiro	e	a	 lhe	devolver	a	mulher;	mas	o	pescador,	com	sabedoria,	só	quis	o
dinheiro.
A	bela	Semira	não	se	consolava	de	ter	achado	que	Zadig	fosse	caolho,	e	Azora	não	parava	de	chorar	por	ter-
lhe	querido	cortar	o	nariz.	Ele	suavizou	suas	dores	com	presentes.	O	invejoso	morreu	de	raiva	e	de	vergonha.	O
império	 gozou	 de	 paz,	 de	 glória	 e	 de	 abundância.	 Foi	 o	mais	 belo	 período	 da	 terra,	 que	 era	 governada	 pela
justiça	e	pelo	amor.	Todos	abençoavam	Zadig,	e	Zadig	abençoava	o	céu.
APÊNDICEA	dança
Para	resolver	questões	de	comércio,	Setoc	devia	ir	à	ilha	de	Serendib;	mas	o	primeiro	mês	de	seu	casamento
que	é,	como	se	sabe,	a	lua	de	mel,	não	lhe	permitia	nem	deixar	sua	mulher,	nem	acreditar	que	pudesse	jamais
deixá-la.	Pediu	a	seu	amigo	Zadig	para	fazer	a	viagem	por	ele.
–	Ai!	–	disse	Zadig.	–	Terei	de	colocar	um	espaço	ainda	mais	vasto	entre	a	bela	Astarteia	e	mim?	Mas	preciso
servir	meus	benfeitores.
Assim	falou,	chorou	e	partiu.
Na	ilha	de	Serendib,	não	demorou	muito	para	que	fosse	visto	como	um	homem	extraordinário.	Tornou-se	o
árbitro	 de	 todas	 as	 disputas	 entre	 os	 negociantes,	 o	 amigo	 dos	 sábios,	 o	 conselheiro	 dos	 poucos	 que	 pedem
conselho.	O	rei	quis	vê-lo	e	ouvi-lo.	Logo	percebeu	tudo	o	que	Zadig	valia;	confiou	em	sua	sabedoria	e	fez	dele
um	amigo.	A	familiaridade	e	a	estima	do	rei	fizeram	Zadig	tremer.	Dia	e	noite	ele	lembrava	as	desgraças	que	as
bondades	de	Moabdar	lhe	trouxeram.
–	Se	agrado	ao	rei	–	pensou	–	não	estarei	perdido?
Mas	 não	 podia	 se	 furtar	 às	 amabilidades	 de	 Sua	 Majestade:	 pois	 é	 preciso	 dizer	 que	 Nabussan,	 rei	 de
Serendib,	filho	de	Nussanab,	filho	de	Nabassun,	filho	de	Sanbusna,	era	um	dos	melhores	governantes	da	Ásia;	e
que,	quando	se	falava	com	ele,	era	difícil	não	amá-lo.
Esse	 bom	 príncipe	 era	 constantemente	 louvado,	 enganado	 e	 roubado:	 disputavam	 para	 saquear	 seus
tesouros.	O	coletor-geral	de	impostos	da	ilha	de	Serendib	dava	o	exemplo,	fielmente	seguido	pelos	outros.	O	rei
sabia	 disso:	 mudara	 o	 tesoureiro	 várias	 vezes,	 mas	 não	 pudera	 mudar	 a	 moda	 estabelecida	 de	 dividir	 os
rendimentos	 do	 rei	 em	 duas	 metades	 desiguais,	 a	 menor	 cabendo	 sempre	 a	 Sua	 Majestade	 e	 a	 maior	 aos
administradores.
O	rei	Nabussan	confiou	seu	desgosto	ao	sábio	Zadig.
–	Você,	que	sabe	tantas	coisas	–	disse	–,	não	saberia	o	meio	de	me	fazer	encontrar	um	tesoureiro	que	não	me
roube?
–	Com	toda	a	certeza	–	 respondeu	Zadig	–,	conheço	um	meio	 infalível	de	 lhe	dar	um	homem	que	 tenha	as
mãos	limpas.
Encantado,	o	rei	lhe	perguntou,	abraçando-o,	como	devia	proceder.
–	Basta	fazer	dançar	–	disse	Zadig	–	todos	os	que	se	apresentarem	para	a	dignidade	de	tesoureiro,	e	o	que
dançar	com	mais	leveza	será	infalivelmente	o	homem	mais	honesto.
–	Está	zombando	de	mim	–	disse	o	rei.	–	Seria	uma	forma	engraçada	de	escolher	o	responsável	por	minhas
finanças.	Afirma	que	quem	dançar	melhor	será	o	financista	mais	íntegro	e	o	mais	hábil?
–	Não	digo	que	será	o	mais	hábil	–	retrucou	Zadig	–,	mas	asseguro	que	será	indubitavelmente	o	mais	honesto.
Zadig	 falava	 com	 tanta	 confiança	 que	 o	 rei	 acreditou	 que	 ele	 tivesse	 algum	 segredo	 sobrenatural	 para
conhecer	os	homens	de	finanças.
–	Não	gosto	do	sobrenatural	–	disse	Zadig	–,	os	homens	e	os	livros	de	prodígios	sempre	me	desagradaram.	Se
Vossa	Majestade	me	deixar	fazer	o	teste	que	proponho,	ficará	evidente	que	meu	segredo	é	a	coisa	mais	simples	e
mais	fácil.
Nabussan,	rei	de	Serendib,	ficou	mais	espantado	de	ouvir	que	o	segredo	era	simples	do	que	se	o	tivessem	lhe
apresentado	como	um	milagre.
–	Pois	bem	–	disse	–,	faça	como	quiser.
–	Deixe	comigo	–	respondeu	Zadig	–	e	ganhará	com	essa	prova	mais	do	que	imagina.
No	mesmo	dia	ele	fez	publicar,	em	nome	do	rei,	que	todos	os	pretendentes	ao	cargo	de	coletor	de	impostos
de	Sua	Graciosa	Majestade	Nabussan,	filho	de	Nussanab,	deviam	comparecer,	em	traje	de	seda	leve,	na	primeira
lua	de	crocodilo,	à	antecâmara	do	rei.	Compareceram	64.	Fizeram	vir	violinos	a	uma	sala	vizinha;	tudo	estava
preparado	para	a	dança.	Mas	a	porta	dessa	sala	estava	fechada,	e	para	entrar	era	preciso	passar	por	uma	galeria
bastante	escura.	Um	bedel	veio	buscar	e	introduzir	cada	candidato,	um	após	o	outro,	por	essa	passagem	na	qual
ele	era	deixado	a	sós	por	uns	minutos.	O	rei,	que	sabia	do	plano,	expusera	seus	tesouros	nessa	galeria.	Quando
todos	 os	 pretendentes	 chegaram	 ao	 salão,	 Sua	 Majestade	 ordenou	 que	 dançassem.	 Nunca	 se	 dançou	 mais
pesadamente	 e	 com	 menos	 graça;	 todos	 tinham	 a	 cabeça	 abaixada,	 as	 costas	 curvadas,	 as	 mãos	 coladas	 nos
flancos.
–	Que	patifes!	–	dizia	em	voz	baixa	Zadig.
Somente	um	deles	dava	passos	com	agilidade,	a	 cabeça	erguida,	o	olhar	 seguro,	braços	estendidos,	 corpo
ereto	e	jarretes	firmes.
–	Ah!	Eis	o	homem	honesto,	o	homem	de	bem!	–	disse	Zadig.
O	rei	abraçou	esse	bom	dançarino,	declarou-o	tesoureiro,	e	todos	os	outros	foram	punidos	e	desonrados	com
a	maior	justiça	do	mundo;	pois	cada	um,	enquanto	estivera	na	galeria,	enchera	os	bolsos	e	mal	conseguia	andar.
O	 rei	 lamentou,	 pela	 natureza	 humana,	 que	 em	 64	 dançarinos	 houvesse	 63	 trapaceiros.	 A	 galeria	 escura	 foi
chamada	 o	 corredor	 da	 tentação.	 Na	 Pérsia,	 teriam	 empalado	 esses	 63	 senhores;	 noutros	 países,	 teriam
convocado	um	tribunal	de	justiça	cujos	custos	consumiriam	o	triplo	do	dinheiro	roubado,	e	que	nada	reporia	aos
cofres	do	soberano;	noutro	reino,	os	acusados	seriam	plenamente	justificados	e	o	que	dançou	com	leveza	cairia
em	 desgraça.	 Em	 Serendib,	 eles	 foram	 condenados	 apenas	 a	 aumentar	 o	 tesouro	 público,	 pois	 Nabussan	 era
muito	indulgente.
E	 também	muito	grato;	deu	a	Zadig	uma	quantia	em	dinheiro	 superior	àquelas	que	os	 tesoureiros	haviam
roubado	de	seu	rei	e	soberano.	Zadig	serviu-se	dela	para	enviar	um	mensageiro	a	Babilônia,	que	devia	informá-lo
do	destino	de	Astarteia.	Sua	voz	tremeu	ao	dar	essa	ordem,	o	sangue	refluiu	ao	coração,	os	olhos	se	cobriram	de
trevas,	a	alma	esteve	a	ponto	de	abandoná-lo.	O	mensageiro	partiu,	Zadig	o	viu	embarcar.	Ele	voltou	ao	palácio
do	rei;	não	vendo	ninguém,	acreditando	estar	sozinho	em	seu	quarto,	pronunciou	a	palavra	“amor”.
–	Ah,	o	amor	–	disse	o	rei.	–	É	precisamente	do	que	se	trata;	você	adivinhou	o	que	me	faz	sofrer.	Que	grande
homem	 é	 você!	 Espero	 que	 me	 ensine	 a	 conhecer	 uma	 mulher	 a	 toda	 prova,	 como	 me	 fez	 encontrar	 um
tesoureiro	desinteressado.
Voltando	a	si,	Zadig	prometeu	servi-lo	em	amor	como	em	finanças,	embora	a	coisa	parecesse	bem	mais	difícil.
Os	olhos	azuis
–	O	corpo	e	o	coração	–	disse	o	rei	a	Zadig.
A	essas	palavras,	este	não	pôde	deixar	de	interromper	Sua	Majestade.
–	Como	me	 alegra	 não	 ter	 dito	o	 espírito	 e	 o	 coração!	 Pois	 só	 se	 ouvem	 essas	 palavras	 nas	 conversas	 de
Babilônia;	só	se	fala	de	livros	que	tratam	do	coração	e	do	espírito,	escritos	por	homens	que	não	têm	nenhum	dos
dois;	mas	perdoe,	Majestade,	prossiga.
Nabussan	continuou	assim:
–	Penso	que	o	corpo	e	o	coração	estão	destinados	a	amar;	o	primeiro	desses	dois	poderes	tem	todo	o	direito
de	 ser	 satisfeito.	 Tenho	 aqui	 cem	 mulheres	 a	 meu	 dispor,	 todas	 belas,	 complacentes,	 atraentes,	 voluptuosas
mesmo,	ou	fingindo	o	serem	comigo.	Mas	meu	coração	está	longe	de	ser	feliz.	Sinto	que	acariciam	muito	o	rei	de
Serendib	 e	 pouco	 se	 importam	 com	 Nabussan.	 Não	 que	 eu	 julgue	 minhas	 mulheres	 infiéis;	 mas	 gostaria	 de
encontrar	uma	alma	que	 fosse	minha;	por	 tal	 tesouro,	daria	as	cem	beldades	que	possuo;	veja	se,	dessas	cem
sultanas,	pode	encontrar-me	uma	que	eu	tenha	a	certeza	de	que	me	ama.
Zadig	lhe	respondeu	como	fizera	em	relação	aos	homens	de	finanças.
–	Deixe	comigo,	Majestade;	mas	permita	primeiro	que	eu	disponha	do	que	expôs	na	galeria	da	tentação;	eu
lhe	prestarei	contas	e	nada	perderá.
O	 rei	 o	 autorizou	a	 ser	mestre	absoluto.	Ele	 escolheu	em	Serendib	33	corcundas	dos	mais	 feios	que	pôde
encontrar,	33	pajens	dos	mais	belos,	e	33	bonzos	dos	mais	eloquentes	e	dos	mais	robustos.	Deu	a	todos	eles	a
liberdade	de	entrar	nas	celas	das	sultanas;	cada	corcunda	dispunha	de	4	mil	moedas	de	ouro	para	dar;	e	já	no
primeiro	dia	os	corcundas	ficaram	felizes.	Os	pajens,	que	nada	tinham	a	dar	senão	a	si	mesmos,	só	triunfaram	ao
cabo	de	dois	ou	três	dias.	Os	bonzos	tiveram	um	pouco	mais	de	dificuldade;	mas	por	fim	33	devotas	se	renderam
a	eles.	O	rei,	por	gelosias	que	davam	vista	a	todas	as	celas,	acompanhou	essas	provas	e	ficou	maravilhado.	De
suas	 cem	 mulheres,	 99	 sucumbiram	 a	 seus	 olhos.	 Sórestou	 uma	 muito	 jovem,	 muito	 pura,	 de	 quem	 Sua
Majestade	 jamais	 se	 aproximara.	 Enviaram	 a	 ela	 um,	 dois,	 três	 corcundas,	 que	 lhe	 ofereceram	 até	 20	 mil
moedas;	ela	permaneceu	incorruptível	e	não	pôde	deixar	de	rir	desses	corcundas	que	imaginavam	que	o	dinheiro
os	faria	mais	bonitos.	Apresentaram-lhe	os	dois	mais	belos	pajens;	ela	disse	que	achava	o	rei	ainda	mais	belo.
Exposta	ao	mais	eloquente	dos	bonzos,	e	depois	ao	mais	intrépido,	achou	o	primeiro	um	tagarela	e	não	se	dignou
sequer	a	supor	mérito	no	segundo.
–	O	coração	é	tudo	–	ela	disse.	–	Nunca	cederei	ao	ouro	de	um	corcunda,	nem	às	graças	de	um	homem	jovem,
nem	às	seduções	de	um	bonzo:	amarei	apenas	Nabussan,	filho	de	Nussanab,	e	esperarei	que	ele	decida	me	amar.
O	rei	sentiu-se	tomado	de	alegria,	de	espanto	e	de	ternura.	Retomou	todo	o	dinheiro	que	fizera	o	sucesso	dos
corcundas	e	o	deu	de	presente	à	bela	Falide	–	era	o	nome	dessa	moça.	Deu-lhe	seu	coração,	ela	bem	o	merecia.
Nunca	 a	 flor	 da	 juventude	 foi	 tão	 viçosa,	 nunca	 os	 charmes	da	beleza	 foram	 tão	 encantadores.	A	 verdade	da
história	não	deve	omitir	que	ela	não	 fazia	direito	 a	 reverência,	mas	dançava	como	as	 fadas,	 cantava	 como	as
sereias	e	falava	como	as	Graças:	era	cheia	de	talentos	e	virtudes.
Nabussan,	amado,	a	adorou.	Mas	ela	tinha	olhos	azuis,	e	essa	foi	a	origem	das	maiores	desgraças.	Havia	uma
antiga	lei	que	proibia	aos	reis	amarem	uma	dessas	mulheres	que	os	gregos	chamaram	depois	boopis.[1]	O	chefe
dos	bonzos	estabelecera	essa	lei	havia	mais	de	5	mil	anos;	foi	para	se	apropriar	da	amante	do	primeiro	rei	da
ilha	de	Serendib	que	esse	primeiro	bonzo	fizera	introduzir	o	anátema	dos	olhos	azuis	na	constituição	do	Estado.
Todas	 as	 autoridades	 do	 império	 censuraram	Nabussan.	Disseram	publicamente	 que	 os	 últimos	 dias	 do	 reino
haviam	 chegado,	 que	 a	 abominação	 atingia	 o	 auge,	 que	 toda	 a	 natureza	 estava	 ameaçada	 por	 um	 sinistro
acontecimento;	e	tudo	porque	Nabussan,	filho	de	Nussanab,	amava	dois	grandes	olhos	azuis.	Os	corcundas,	os
homens	de	finanças,	os	bonzos	e	as	morenas	encheram	o	reino	com	suas	queixas.
Os	 povos	 selvagens	 que	 habitavam	 o	 norte	 de	 Serendib	 se	 aproveitaram	 desse	 descontentamento	 geral.
Invadiram	 as	 terras	 do	 bom	 Nabussan.	 Ele	 pediu	 ajuda	 aos	 súditos:	 os	 bonzos,	 que	 possuíam	 a	 metade	 dos
rendimentos	do	Estado,	se	limitaram	a	erguer	as	mãos	ao	céu	em	vez	de	colocá-las	em	seus	cofres	para	ajudar	o
rei.	Fizeram	belas	preces	com	música	e	deixaram	o	Estado	à	mercê	dos	bárbaros.
–	Ó,	meu	caro	Zadig,	pode	me	tirar	novamente	desta	horrível	situação?	–	exclamou	dolorosamente	Nabussan.
–	Com	muito	 gosto	 –	 respondeu	Zadig.	 –	 Terá	dos	bonzos	 o	 dinheiro	que	quiser.	Abandone	 as	 terras	 onde
estão	situados	os	castelos	deles	e	defenda	apenas	as	suas.
Nabussan	fez	 isso:	os	bonzos	vieram	se	lançar	aos	pés	do	rei,	 implorando	ajuda.	O	rei	 lhes	respondeu	com
uma	bela	canção,	cuja	letra	eram	preces	ao	céu	pela	conservação	de	suas	terras.	Os	bonzos	deram	finalmente	o
dinheiro,	 e	 o	 rei	 terminou	 com	êxito	 a	 guerra.	Mas	Zadig,	 por	 seus	 conselhos	 sábios	 e	 acertados,	 e	 por	 seus
grandes	 serviços,	 atraíra	 a	 irreconciliável	 inimizade	 dos	 homens	 mais	 poderosos	 do	 Estado;	 os	 bonzos	 e	 as
morenas	juraram	vingar-se;	os	homens	de	finanças	e	os	corcundas	não	o	perdoaram;	fizeram-no	suspeito	ao	bom
Nabussan.	Geralmente	os	serviços	prestados	ficam	na	antecâmara	e	as	suspeitas	entram	no	gabinete,	segundo	a
sentença	de	Zoroastro.	A	 cada	dia	 eram	novas	 acusações;	 a	 primeira	 é	 rechaçada,	 a	 segunda	 toca	 de	 leve,	 a
terceira	fere,	a	quarta	mata.
Intimidado,	 Zadig,	 que	 já	 resolvera	 os	 negócios	 de	 seu	 amigo	 Setoc	 e	 lhe	 fizera	 obter	 seu	 dinheiro,	 não
pensou	 senão	 em	 partir	 da	 ilha,	 e	 resolveu	 ir	 ele	 mesmo	 buscar	 notícias	 de	 Astarteia.	 “Pois”,	 pensou,	 “se
permaneço	 em	Serendib,	 os	 bonzos	me	 farão	 empalar.	Mas	 para	 onde	 ir?	No	 Egito	 serei	 escravo,	 na	 Arábia,
provavelmente	 queimado,	 e	 em	 Babilônia,	 estrangulado.	 Mas	 preciso	 saber	 o	 que	 aconteceu	 com	 Astarteia:
partamos,	e	vejamos	o	que	me	reserva	meu	triste	destino.”
Aqui	 termina	 o	 manuscrito	 encontrado	 da	 história	 de	 Zadig.	 Esses	 dois	 capítulos	 devem	 certamente	 ser
inseridos	após	o	décimo	segundo,	e	antes	da	chegada	de	Zadig	na	Síria:	sabe-se	que	ele	passou	por	muitas
outras	aventuras	que	foram	fielmente	escritas.	Roga-se	aos	senhores	intérpretes	das	línguas	orientais	que	as
comuniquem,	se	porventura	chegarem	até	eles.
[1]	 Segundo	 nota	 da	 edição	 francesa,	 Voltaire,	 helenista	 incerto,	 parece	 confundir	 dois	 epítetos	 homéricos:	 boopis	 (“de	 olhos
grandes,	olhos	de	vaca”)	e	glaucopis	(“de	olhos	verde-azulados”).	(N.T.)
Voltaire
(1694-1778)
Nascido	em	Paris,	a	21	de	novembro	de	1694,	François-Marie	Arouet	foi	o	quinto	filho	de	um	tabelião.	Após	a
morte	da	mãe,	o	 jovem	foi	matriculado	para	estudar	com	os	jesuítas.	A	partir	de	1712,	passou	a	frequentar	os
salões	 literários	 e	 recusou-se	 a	 seguir	 a	 carreira	 jurídica	 que	 seu	 pai	 queria	 impor-lhe:	 o	 que	 desejava	 era
escrever	e	foi	então	que	redigiu	alguns	dísticos	desabonatórios	ao	Regente,	cujo	resultado	foi	seu	afastamento
de	Paris	e	a	posterior	prisão	por	um	ano	na	Bastilha.	Depois	disso,	 tornou-se	 famoso	por	Édipo,	tragédia	cuja
encenação	alcançou	grande	sucesso	em	1718.	Foi	nesse	mesmo	ano	que	decidiu	trocar	de	nome	para	Voltaire.
Ele	passou	a	ser	o	favorito	da	alta	sociedade,	e	a	jovem	rainha	Marie	Leszczyńska	abriu-lhe	as	portas	da	Corte
Real.	 Porém,	 após	um	novo	 episódio,	 acabou	preso	na	Bastilha	 e	 exilado	na	 Inglaterra,	 onde	permaneceu	até
retornar	 a	 Paris	 e	 recomeçar	 a	 escrever	 comédias	 e	 tragédias,	 influenciadas	 por	 Shakespeare.	 Foi	 então	 que
conheceu	Émilie	du	Châtelet,	uma	jovem	liberada,	filósofa	e	geômetra,	com	quem	permaneceu	por	quinze	anos.
Entre	1733	e	1734,	publicou	as	Cartas	sobre	os	 ingleses	ou	Cartas	 filosóficas,	que	provocaram	um	imenso
escândalo.	 O	 Parlement	 francês	 condenou	 essa	 obra	 como	 sendo	 “adequada	 a	 inspirar	 a	 libertinagem	 mais
perigosa	para	a	religião	e	para	a	ordem	da	sociedade	civil”.	Voltaire	fugiu	novamente	e	acabou	se	refugiando	na
casa	de	Madame	du	Châtelet,	em	Cirey,	quando	se	viu	força	a	exilar-se	na	Holanda	devido	à	publicação	de	um
poema	cheio	de	verve,	O	Mundano.
Um	 de	 seus	 antigos	 companheiros	 foi	 então	 nomeado	ministro,	 e,	 beneficiando-se	 igualmente	 da	 amizade
com	 o	 duque	 de	 Richelieu,	 Voltaire	 pôde	 retornar	 à	 corte.	 Escreveu	 a	 peça	A	 Princesa	 de	 Navarra	 para	 ser
apresentada	durante	 as	 comemorações	do	 casamento	do	Delfim,	 o	 herdeiro	do	 trono,	 e,	 recuperando	 a	graça
real,	 foi	nomeado	historiador	do	rei	em	1745,	antes	de	 ingressar	na	Academia	no	ano	seguinte.	Mas	sua	pena
não	podia	ser	controlada,	e	a	primeira	versão	de	Zadig,	surgida	sob	o	título	de	Memnon,	o	obrigou	novamente	a
abandonar	a	corte.
Após	 a	 morte	 de	 Madame	 du	 Châtelet,	 se	 instalou	 em	 Berlim,	 onde	 completou	 O	 século	 de	 Luís	 XIV	 e
escreveu	Micrômegas,	 até	 ser	 forçado	 a	 deixar	 a	 Prússia.	 Proibido	 de	 estabelecer-se	 em	Paris,	 instalou-se	 na
Suíça,	com	sua	sobrinha	e	amante,	Madame	Denis.	Em	1758,	comprou	o	castelo	de	Ferney,	em	que	recebeu	uma
sucessão	de	artistas	e	escritores.	Seu	Poema	sobre	o	desastre	de	Lisboa	fez	explodir	um	antagonismo	com	Jean-
Jacques	 Rousseau.	 Redigiu	 novamente	 contos,	 como	 Cândido,	 em	 1759,	 cujos	 breves	 capítulos	 satíricos
alcançaram	grande	sucesso.	Em	1762,	convencido	da	inocência	de	Jean	Calas,	esforçou-se	para	que	o	processo
fosse	 revisado	 e	 Calas,	 inocentado	 da	 morte	 do	 filho.	 Foi	 então	 que	 redigiu	 o	 Tratado	 sobre	 a	 tolerância.
Interessou-se	 a	 seguir	 por	 outros	 casos	 e	 empregou	 sua	 pena	 a	 serviço	 da	 justiça.	 Após	 a	morte	 de	 Luís	 XV,
retornou	triunfalmente	a	Paris	em	1778,	mas	a	viagem	e	as	honras	recebidas	o	esgotaram,	vindo	a	morrer	em	30
de	maio	do	mesmo	ano.Seu	corpo	foi	mais	tarde	enterrado	no	Panteão,	em	1791,	com	o	seguinte	epitáfio:	“Ele
combateu	 tanto	os	ateus	quanto	os	 fanáticos.	 Inspirou	a	 tolerância	e	defendeu	os	direitos	do	homem	contra	a
servidão	do	feudalismo.	Poeta,	historiador	e	filósofo,	engrandeceu	o	espírito	humano	e	ensinou-o	a	ser	livre.”
Texto	de	acordo	com	a	nova	ortografia.
Título	original:	Zadig	ou	la	destinée
Tradução:	Paulo	Neves
Capa:	Ivan	Pinheiro	Machado
Preparação:	Patrícia	Yurgel
Revisão:	Lia	Cremonese
CIP-Brasil.	Catalogação	na	fonte
Sindicato	Nacional	dos	Editores	de	Livros,	RJ.
V899z
Voltaire,	1694-1778
Zadig	ou	o	destino	/	Voltaire;	tradução	Paulo	Neves.	–	Porto	Alegre,	RS:	L&PM,	2014.	
(Coleção	L&PM	POCKET,	v.	1147)
Tradução	de:	Zadig	ou	la	destinée
ISBN	978.85.254.3111-0
1.	Ficção	francesa.	I.	Neves,	Paulo.	II.	Título.	III.	Série.
13-07925	CDD:	843
CDU:	821.133.1-3
©	da	tradução,	L&PM	Editores,	2013
Todos	os	direitos	desta	edição	reservados	a	L&PM	Editores
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Pedidos	&	Depto.	Comercial:	vendas@lpm.com.br
Fale	conosco:	info@lpm.com.br
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Table	of	Contents
Aprovação
Capítulo	I	-	O	caolho
Capítulo	II	-	O	nariz
Capítulo	III	-	O	cachorro	e	o	cavalo
Capítulo	IV	-	O	invejoso
Capítulo	V	-	Os	generosos
Capítulo	VI	-	O	ministro
Capítulo	VII	-	As	disputas	e	as	audiências
Capítulo	VIII	-	O	ciúme
Capítulo	IX	-	A	mulher	batida
Capítulo	X	-	A	escravidão
Capítulo	XI	-	A	pira	funerária
Capítulo	XII	-	A	ceia
Capítulo	XIII	-	Os	encontros	marcados
Capítulo	XIV	-	O	bandido
Capítulo	XV	-	O	pescador
Capítulo	XVI	-	O	basilisco
Capítulo	XVII	-	Os	combates
Capítulo	XVIII	-	O	eremita
Capítulo	XIX	-	Os	enigmas
Apêndice	-	A	dança
Os	olhos	azuis
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