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CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
FILOSOFIA GERAL PROBLEMA 
METAFÍSICOS 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
GUARULHOS - SP 
 
 
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SUMÁRIO 
 
1 QUAL A ORIGEM DA FILOSOFIA? ........................................................................ 3 
1.1 Origem da palavra Filosofia...............................................................................4 
1.2 Quem foram os pensadores que se destacaram na origem da Filosofia?...........4 
2 O NASCIMENTO DA METAFÍSICA ........................................................................ 5 
2.1 Da cosmologia à metafísica................................................................................6 
2.2 Metafísica ou ontologia.......................................................................................7 
2.3 Platão e o mundo das essências.........................................................................9 
3 A METAFÍSICA DE ARISTÓTELES ...................................................................... 18 
3.1 Diferença entre Aristóteles e seus predecessores............................................18 
3.2 A metafísica aristotélica....................................................................................20 
3.3 Os principais conceitos da metafísica aristotélica.............................................22 
4 A ATITUDE CIENTÍFICA ...................................................................................... 27 
4.1 Características do senso comum......................................................................29 
4.2 A atitude científica.............................................................................................31 
4.3 A ciência na História - As três principais concepções de ciência......................35 
4.4 Diferenças entre a ciência antiga e a moderna................................................38 
4.5 As mudanças científicas..................................................................................42 
4.6 Desmentindo a evolução e o progresso científicos.......................................... 44 
4.7 Rupturas epistemológicas e revoluções científicas.........................................45 
4.8 Falsificação X revolução..................................................................................47 
4.9 Classificação das ciências...............................................................................49 
5 AS CIÊNCIAS HUMANAS......................................................................................51 
5.1 O humano como objeto de investigação..........................................................53 
5.2 Fenomenologia, estruturalismo e marxismo.....................................................55 
 
 
3 
 
5.3 A contribuição da fenomenologia....................................................................56 
5.4 A contribuição do estruturalismo.......................................................................57 
5.5 A contribuição do marxismo.............................................................................58 
5.6 Os campos de estudo das ciências humanas...................................................60 
6 A METAFÍSICA DO SER: UM ESTUDO FILOSÓFICO PARA A VIDA ................. 64 
7 RAZÕES DO AGIR E NORMATIVIDADE EM HEIDEGGER ................................ 71 
7.1 Uma análise acerca da ética evolucionista tradicional.....................................83 
7.2 Algumas críticas ao darwinismo social (ética evolucionista tradicional)............87 
7.3 Os limites do princípio de seleção natural na teoria evolutiva moderna...........91 
7.4 O melhoramento moral como antropotécnica: um substituto ao humanismo?..95 
7.5 Uma leitura da antropotécnica, a partir de Peter Sloterdijk...............................96 
8 A necessidade de biomelhoramentos morais segundo Persson e Savulescu ...... 99 
8.1 O biomelhoramento moral, como antropotécnica, é capaz de superar o 
humanismo?.........................................................................................................106 
9 INDIVIDUAÇÃO DO SI: UMA LEITURA MARIONIANA DE LEVINAS ................ 110 
9.1Individuaçãodo Si............................................................................................112 
REFERÊNCIA ......................................................................................................... 115 
 
 
 
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1 QUAL A ORIGEM DA FILOSOFIA? 
 
A Filosofia nasceu na Grécia Antiga, no mesmo período em que surgiram as 
cidades-estado. Segundo os registros, essa foi a primeira vez em que os homens 
começaram a tentar explicar o mundo à sua volta de uma forma lógica e racional. 
Até esse momento, se pensarmos nas civilizações anteriores, vamos ver uma 
grande diferença: a maioria dos povos tentava explicar os acontecimentos e até 
fenômenos naturais por meio de mitos. Os sacerdotes e religiosos concentravam o 
conhecimento e usavam suas crenças para satisfazer as curiosidades básicas do ser 
humano. 
 
Fonte: unisantos.br 
Na Grécia, os acontecimentos tomaram um rumo diferente. Embora a mitologia 
grega seja extremamente rica e preveja a atuação de uma série de divindades, os 
filósofos — que eram considerados enviados dos deuses — começaram a 
sistematizar o pensamento humano e exercitar a lógica. 
Além disso, os filósofos apresentavam outra diferença fundamental em relação 
aos sacerdotes religiosos. Eles não se viam como detentores ou donos da verdade. 
Consideravam-se apenas amigos do saber, dispostos a desvendar esses mistérios 
junto com as pessoas comuns. 
Foi desta forma — levantando questionamentos e criticando o pensamento 
mítico predominante — que surgiu a Filosofia. 
https://www.stoodi.com.br/materias/historia/antiguidade-classica-grecia/periodo-arcaico-atenas-localizacao-economia-e-sociedade/
https://www.stoodi.com.br/resumos/historia/antiguidade-classica-grecia/
https://www.stoodi.com.br/exercicios/filosofia/
 
 
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1.1 Origem da palavra Filosofia 
 
A palavra Filosofia também vem do grego, e é formada pela junção de dois 
termos: philos (amigo) + sophia (sabedoria). Portanto, o filósofo é um amigo ou 
amante do conhecimento, alguém que busca compreender o mundo à sua volta, bem 
como seu universo interior. 
 
1.2 Quem foram os pensadores que se destacaram na origem da Filosofia? 
 
Alguns dos principais pensadores da época relacionada ao início da Filosofia 
são bastante conhecidos. 
 
Sócrates: É considerado o pai da Filosofia ocidental. Viveu entre cerca de 469 
e 399 a.C. e era conhecido como um homem sábio que morava em 
Atenas. Sócrates tinha a convicção de que nada sabia — o que foi considerado um 
sinal extremo de sabedoria e reconhecimento das próprias limitações, o que o levou 
à busca da verdade. 
Teve uma contribuição muito importante nos campos da epistemologia e lógica. 
Usava o método socrático, em que se faz uma série de perguntas para promover uma 
compreensão profunda do assunto em discussão. Não deixou nenhuma obra escrita 
e seus ensinos chegaram até nós pelos relatos de Platão, seu aluno. 
 
Platão: Discípulo de Sócrates, Platão viveu em Atenas entre os anos de 428 e 
348 a.c. (aproximadamente). Era filósofo e matemático, escreveu muitos diálogos 
filosóficos e fundou uma instituição de educação superior em Atenas, a Academia. 
Seu pensamento teve importância não só na Grécia, mas influenciou a filosofia 
de toda a Idade Média. Seus escritos se tornaram uma referência para os amigos do 
conhecimento. 
 
Aristóteles: Fechando a tríade dos principais pensadores da origem da 
Filosofia está Aristóteles. Ele foi aluno de Platão e viveu entre 384 e 322 a.C. Em seus 
escritos, ele tratou de muitas áreas do conhecimento: Física, Metafísica, Lógica, 
Política e Ética, entre outras. 
Era muito interessado também por outros temas como Música, Biologia, 
https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-socrates/
https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-platao/https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-aristoteles/
 
 
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Zoologia e até mesmo poesia e drama (artes cênicas). Foi contratado para ser tutor 
de um garoto de 13 anos que duas décadas depois tornou-se Alexandre, O Grande: 
o maior e mais conhecido conquistador do mundo antigo. 
 
2 O NASCIMENTO DA METAFÍSICA 
 
A maneira como tratamos o conhecimento até este momento poderia sugerir 
que a Filosofia teria começado indagando como nossa razão pode conhecer a 
realidade. Mas não foi assim que tudo começou. Iniciar pelo sujeito do conhecimento 
é algo novo na Filosofia, algo que aconteceu a partir do século XVII, com o que 
chamamos de racionalismo clássico, cujo ponto de partida era a indagação: Pode 
nosso pensamento alcançar a realidade? 
Até o século XVII, porém, não era essa a indagação filosófica principal. 
 
 
Fonte: definicion.xyz 
Desde os gregos, partia-se da afirmação da existência da realidade e de que 
ela poderia ser conhecida verdadeiramente pela razão ou pelo pensamento. A 
pergunta filosófica era: O que é a realidade? Por isso, costuma-se dizer que a Filosofia 
nasceu como um realismo e desse realismo surgiu a metafísica. Veremos, mais 
adiante, como os problemas metafísicos acabaram fazendo a Filosofia mudar sua 
pergunta (passando a indagar: “Como podemos conhecer a realidade?”) e dar à teoria 
https://www.stoodi.com.br/materias/historia/antiguidade-classica-grecia/periodo-helenistico-filipe-ii-e-alexandre-o-grande/
 
 
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do conhecimento, ou ao estudo do sujeito do conhecimento, o lugar predominante que 
já examinamos. 
 
2.1 Da cosmologia à metafísica 
 
A Filosofia nasce da admiração e do espanto, dizem Platão e Aristóteles. 
Admiração: Por que o mundo existe? Espanto: Por que o mundo é tal como é? 
Desde seu nascimento, a Filosofia perguntou: O que existe? Por que existe? O 
que é isso que existe? Como é isso que existe? Por que e como surge, muda e 
desaparece? Por que a Natureza ou o mundo se mantêm ordenados e constantes, 
apesar da mudança contínua de todas as coisas? 
 
 
Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com 
Essas perguntas – ou esse espanto ou admiração diante do mundo – levaram 
os primeiros filósofos a buscar uma explicação racional para a origem de um mundo 
ordenado, o cosmos. Por esse motivo, a Filosofia nasce como cosmologia. A busca 
do princípio que causa e ordena tudo quanto existe na Natureza (minerais, vegetais, 
animais, humanos, astros, qualidades como úmido, seco, quente, frio) e tudo quanto 
nela acontece (dia e noite, estações do ano, nascimento, transformação e morte, 
crescimento e diminuição, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, etc.) foi a busca 
 
 
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de uma força natural perene e imortal, subjacente às mudanças, denominada pelos 
primeiros filósofos com o nome de physis. A cosmologia era uma explicação racional 
sobre a physis do Universo e, portanto, uma física. 
Como, então, surgiu a metafísica? Como surgiu um saber que suplantou a 
cosmologia ou física dos primeiros filósofos? Como e por que a metafísica acabou se 
tornando o centro e a disciplina mais importante da Filosofia? 
 
2.2 Metafísica ou ontologia 
 
A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, 
por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, 
durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e perdidas. 
 
Fonte: significados.com.br 
Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos 
indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os 
tratados sobre a física ou sobre a Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: 
depois de, após, acima de. 
Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a 
expressão ta meta ta physika significa literalmente: aqueles [escritos] que estão 
[catalogados] após os [escritos] da física. 
Ora, tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio 
 
 
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Aristóteles, quando este definira o assunto de que tratavam: são os escritos da 
Filosofia Primeira, cujo tema é o estudo do “ser enquanto ser”. Desse modo, o que 
Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica. 
No século XVII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra 
correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra 
ontologia. 
A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de 
dois substantivos gregos, ta onta (os bens e as coisas realmente possuídas por 
alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas duas palavras, por sua 
vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. 
O particípio presente desse verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, 
entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on (ente) levaram a um 
substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que 
parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, 
dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente. 
Por que Thomasius julgou a palavra ontologia mais adequada do que a palavra 
metafísica? Para responder a essa pergunta devemos retornar ao que escreveu 
Aristóteles, quando propôs a Filosofia Primeira. 
Ao definir a Filosofia Primeira, Aristóteles afirmou que ela estuda o ser das 
coisas, a ousia. A palavra ousia é o feminino do particípio presente do verbo ser, isto 
é, do verbo einai. Em português, ousia é traduzido por essência, porque é traduzida 
da palavra latina essentia. 
Em latim o verbo ser se diz esse e a palavra essentia foi inventada pelos 
filósofos para traduzir ousia. Assim, a Filosofia Primeira é o estudo ou o conhecimento 
da essência das coisas ou do ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são 
em si mesmas, apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam 
sofrer. 
Thomasius considerou que Aristóteles definira a Filosofia Primeira como o 
estudo do ser das coisas, como o que há de íntimo, perene e verdadeiro nos entes. 
Não estuda esta ou aquela coisa, este ou aquele ente, mas busca aquilo que faz de 
um ente ou de uma coisa, um ser. Busca a essência de um ente ou de uma coisa. Por 
isso, por ser o estudo da ousia e porque a ousia oferece o ser real e verdadeiro de um 
ente, oferece o on íntimo e perene, a Filosofia Primeira deveria ser designada com a 
 
 
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palavra ontologia. Nesse caso, a palavra metafísica seria apenas a indicação do lugar 
ocupado nas estantes pelos livros aristotélicos de Filosofia Primeira, localizados 
depois dos tratados sobre a física ou a Natureza. 
A palavra ontologia diria qual é o assunto da Filosofia Primeira, enquanto a 
palavra metafísica diria apenas qual é o lugar dos livros da Filosofia Primeira no 
catálogo das obras de Aristóteles. 
Por que, então, a tradição filosófica consagrou a palavra metafísica, em lugar 
de ontologia? Porque Aristóteles, ao definir a Filosofia Primeira, também afirmou que 
ela estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todos os seres ou de todas 
as essências, estudo que deve vir antes de todos os outros, porque é a condição de 
todos eles. 
Que quer dizer “vir antes”? Para Aristóteles, significa estar acima dos demais, 
estar além do que vem depois, ser superior ao que vem depois, ser a condição da 
existência e do conhecimento do que vem depois. Ora, a palavra meta quer dizer isso 
mesmo: o que está além de, o que está acima de, o que vem depois, mas no sentido 
de ser superior ou de ser a condição de alguma coisa. Se assim é, então a palavra 
metafísica não quer dizer apenas o lugar onde se encontram os escritos posteriores 
aos tratados de física, não indica um mero lugar num catálogo de obras, mas significa 
o estudo de alguma coisa que está acima e além das coisas físicas ou naturais e que 
é a condição da existênciae do conhecimento delas. 
Por isso, a tradição consagrou a palavra metafísica, mais do que a palavra 
ontologia. Metafísica, nesse caso, quer dizer: aquilo que é condição e fundamento de 
tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido. 
 
2.3 Platão e o mundo das essências 
 
Também ao estudarmos a lógica, vimos que Platão dedicou a sua obra à 
resolução do impasse filosófico criado pelo antagonismo entre o pensamento de 
Heráclito de Éfeso e o de Parmênides de Eléia. 
Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material 
e sensível, mundo das imagens e das opiniões. A matéria, diz Platão, é, por essência 
e por natureza, algo imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas, 
mudando sem cessar, passando de um estado a outro, contrário ou oposto. O mundo 
material ou de nossa experiência sensível é mutável e contraditório e, por isso, dele 
 
 
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só nos chegam as aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões 
contrárias e contraditórias. 
 
 
Fonte: youtube.com 
Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que a Filosofia 
deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com o mundo verdadeiro, invisível 
aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, 
imutável, idêntico a si mesmo, eterno, imperecível, puramente inteligível. 
Eis por que a ontologia platônica introduz uma divisão no mundo, afirmando a 
existência de dois mundos inteiramente diferentes e separados: o mundo sensível da 
mudança, da aparência, do devir dos contrários, e o mundo inteligível da identidade, 
da permanência, da verdade, conhecido pelo intelecto puro, sem qualquer 
interferência dos sentidos e das opiniões. O primeiro é o mundo das coisas. O 
segundo, o mundo das ideias ou das essências verdadeiras. O mundo das ideias ou 
das essências é o mundo do Ser; o mundo sensível das coisas ou aparências é o 
mundo do Não-Ser. O mundo sensível é uma sombra, uma cópia deformada ou 
imperfeita do mundo inteligível das ideias ou essências. 
Notamos, aqui, uma diferença entre a ontologia de Parmênides e a de Platão. 
Para o primeiro, o mundo sensível das aparências é o Não-Ser em sentido forte, isto 
é, não existe, não é, não tem realidade nenhuma, é o nada. Para Platão, porém, o 
 
 
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Não-Ser não é o puro nada. Ele é alguma coisa. O que ele é? Ele é o outro (alienus) 
do Ser, o que é diferente do Ser, o que é inferior ao Ser, o que nos engana e nos ilude, 
a causa dos erros. Em lugar de ser um puro nada, o Não-Ser é um falso ser, uma 
sombra do Ser verdadeiro, aquilo que Platão chama de pseudo-Ser. O Não-Ser é 
sensível. 
Há ainda uma outra diferença importante entre a ontologia de Parmênides e a 
de Platão. O primeiro afirmava que o Ser, além de imutável, eterno e idêntico a si 
mesmo, era único ou uno. Havia o Ser. Qual o problema dessa afirmação 
parmenideana? 
Se, do lado do devir heraclitiano, havia uma multiplicidade infinita de seres 
contrários uns aos outros e contrários a si mesmos (pois cada um se tornava contrário 
a si próprio - o dia tornando-se noite, o seco tornando-se úmido, etc.), multiplicidade 
contraditória que não poderia ser pensada nem dita, visto que o pensamento exige a 
identidade do pensado, no entanto, do lado da identidade una-única de Parmênides, 
que restava para a Filosofia? Só lhe restava pensar e dizer três frases: O Ser é. O 
Não-Ser não é. O Ser é uno, idêntico, eterno e imutável. 
Em suma, a Filosofia começava e terminava nessas três frases, nada mais 
podendo pensar ou dizer. Parmênides paralisava a Filosofia. Se esta quisesse 
prosseguir como investigação da verdade e se tivesse mais objetos a conhecer, era 
preciso quebrar a unidade-unicidade do Ser de Parmênides. Foi o que fez Platão. Que 
disse ele? 
Em primeiro lugar, seguindo Sócrates e os sofistas, Platão distinguiu dois 
sentidos para a palavra Ser: o sentido forte, em que Ser significa realidade ou 
existência (o Ser é), e o sentido mais fraco, em que Ser é o verbo ser como verbo de 
ligação, isto é, o verbo que permite ligar um sujeito a um predicado (por exemplo: O 
homem é mortal). Distinguiu, assim, dois sentidos para o verbo ser: o sentido 
existencial e o sentido predicativo. Por exemplo: “O homem é” (existe) e “O homem é 
mortal”. 
Em segundo lugar, afirmou que, no sentido forte de Ser, existem múltiplos seres 
e não um só, mas cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides 
(identidade, unidade, eternidade, imutabilidade). Esses seres são as ideias ou formas 
imateriais, que constituem o mundo verdadeiro, o mundo inteligível. 
São seres reais as idéias do bem, do belo, do justo, do homem, dos astros, do 
 
 
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amor, do animal, do vegetal, etc. 
Em terceiro lugar, afirmou que, no sentido mais fraco do verbo de ligação ou da 
predicação, cada ideia é um sujeito real, que possui um conjunto de predicados reais 
ou de propriedades essenciais e que a fazem ser o que ela é em si mesma. Uma idéia 
é (existe) e uma idéia é uma essência ou conjunto de qualidades essenciais que a 
fazem ser o que ela é necessariamente (possui predicados verdadeiros). Por exemplo, 
a justiça é (há a idéia de justiça) e há seres humanos que são justos (possuem o 
predicado da justiça como parte de sua essência). 
Dessa maneira, cada idéia, em si mesma, é una, idêntica a si mesma, eterna e 
imutável – uma idéia é. Ao mesmo tempo, cada idéia difere de todas as outras pelo 
conjunto de qualidades ou propriedades internas e necessárias pelas quais ela é uma 
essência determinada, diferente das demais (a idéia de homem é diferente da idéia 
de planeta, que é diferente da idéia de beleza, que é diferente da idéia de coragem, 
etc.). 
A tarefa da Filosofia é dupla: 
 
1. deve conhecer que idéias existem, isto é, que idéias são; 
2. deve conhecer quais são as qualidades ou propriedades essenciais de uma 
idéia, isto é, o que uma idéia é, sua essência. 
 
As idéias ou formas imateriais (ou essências inteligíveis), diz Platão, são seres 
perfeitos e, por sua perfeição, tornam-se modelos inteligíveis ou paradigmas 
inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais tentam imitar imperfeitamente. 
O sensível é, pois, uma imitação imperfeita do inteligível: as coisas sensíveis são 
imagens das idéias, são não-seres tentando inutilmente imitar a perfeição dos seres 
inteligíveis. 
Cabe à Filosofia passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos, 
abandonando as imagens ou aparências pelas essências, e as opiniões pelas idéias. 
O pensamento deve passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à 
identidade racional das coisas inteligíveis, à identidade das idéias que são a realidade, 
o ser, o to on. 
Como passamos das coisas sensíveis, das cópias, imagens ou opiniões às 
idéias ou essências? Pela dialética (que estudamos na unidade dedicada à lógica). 
 
 
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Tomemos alguns exemplos para melhor compreendermos o que é a ontologia 
platônica. 
Numa obra, o diálogo Laques, Platão coloca seu mestre Sócrates conversando 
com alguns atenienses. São pais de família preocupados com a educação de seus 
filhos. Os gregos, como sabemos, valorizavam muito o jovem de corpo belo, educado 
pela ginástica e pela dança para tornar-se um guerreiro corajoso. A coragem era, 
assim, extremamente valorizada. 
Os pais com quem conversa Sócrates estão a caminho de uma aula de 
esgrima, num curso dado por um professor muito famoso. Indagam, então, se o 
aprendizado da esgrima será benéfico para seus filhos quando forem à guerra. Uns 
acham que sim, outros dizem que não. Há, pois, duas opiniões contrárias ou 
contraditórias na conversa. Apelam para Sócrates dizendo-lhe: “Como você é um 
sábio, venha ajudar-nos em nossa polêmica e diga-nos se a esgrima é ou não benéfica 
para formar a coragem de nossos filhos”. 
 
 
Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com 
Sócrates intervém, afirmando: “Só podereiajudá-los a decidir sobre esse 
assunto se primeiro discutirmos uma outra coisa e não a esgrima”. “O que devemos 
discutir primeiro?”, indagam os pais. Responde Sócrates: “O que é a coragem, uma 
vez que vocês desejam filhos corajosos. Enquanto não soubermos o que é a essência 
da coragem não saberemos qual educação é benéfica para ela. Precisamos conhecer 
 
 
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a idéia da coragem para saber, em nosso mundo, quando e como existem pessoas 
corajosas e atos corajosos. Para saber o que são as coisas que percebemos, 
precisamos, primeiro, saber o que são as coisas em si mesmas, isto é, precisamos 
pensar suas idéias ou essências ”. 
Os pais se põem novamente a discutir. Cada um dá exemplos de atos que julga 
corajosos. E, novamente, suas opiniões são contrárias. Diz Sócrates: “Vocês não me 
entenderam. Não pedi para darem exemplos de coragem, nem opiniões sobre atos 
corajosos. Eu lhes pedi que me dissessem o que é, em si mesma, a coragem. Qual é 
a essência da coragem que nos permite dizer, diante de uma ação particular, que tal 
ação é ou não corajosa? Qual é o ser da coragem?” 
A discussão recomeça e, agora, cada um dos participantes da conversa oferece 
uma definição da coragem. Diz um: “A coragem é não fugir na guerra”. Retruca 
Sócrates: “Mas, e os espartanos, tidos como dos mais corajosos, e que inventaram 
uma tática de recuar, fugir, levando o inimigo para seu campo e ali podendo derrotá-
lo? Fogem. Não são corajosos?”. Diz outro: “A coragem é não temer o perigo”. “Ora”, 
contrapõe Sócrates, “e as histórias maravilhosas que conhecemos de capitães de 
navio que salvaram os passageiros de grandes tempestades, justamente escolhendo 
não zarpar quando os ventos eram desfavoráveis e, portanto, fugindo do perigo? Não 
são corajosos?”. 
E, finalmente, outro pai dá a sua definição: “A coragem é saber o que se deve 
e o que não se deve temer”. “Será?”, indaga Sócrates. “Se assim for, teremos que 
dizer que os comerciantes espertos, que sabem quando um negócio é temerário e não 
o fazem, são corajosos?” “Creio”, diz Sócrates, “que ainda não me fiz entender. Vocês 
estão oferecendo opiniões sobre a coragem e imagens da coragem, mas não estão 
buscando a essência da coragem. Não conseguiram ainda chegar, pelo pensamento, 
à idéia da coragem; estão falando da aparência da coragem. Estão falando da 
coragem sensível e não estão pensando a coragem inteligível.” 
O diálogo é interrompido nesse ponto, quando Sócrates sugere aos 
interlocutores que, talvez, ainda não tenham conseguido chegar à idéia da coragem 
porque não procuraram uma outra idéia que deve vir antes da coragem. Que idéia? 
“Todos, aqui”, diz Sócrates, “julgam a coragem um valor positivo e, portanto, uma 
virtude. Nesse caso, antes de saber o que é a coragem, temos que conhecer uma 
outra idéia da qual a idéia de coragem depende: a idéia de virtude. Sem conhecer a 
 
 
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essência da virtude, sem conhecer o ser da virtude, não sabemos qual é a essência 
da coragem”. Ao se despedir, Sócrates promete voltar a conversar com os pais para 
com eles buscar a essência ou a idéia da virtude. 
Em todos os seus diálogos, Platão procede da mesma maneira. O diálogo 
começa com os interlocutores julgando que sabem do que falam. Sócrates (que, nos 
diálogos, representa Platão), leva-os a descobrir que não sabem o que imaginavam 
saber, mostrando-lhes que possuem imagens e opiniões contraditórias sobre aquilo 
de que falam. 
Possuem a aparência do que discutem, mas não a essência e por isso se 
enganam o tempo todo, contradizendo-se uns aos outros. O diálogo, isto é, a dialética 
ou filosofia, é o caminho que nos conduz das sensações, das percepções, das 
imagens e das opiniões à contemplação intelectual do ser real das coisas, à idéia 
verdadeira, que existe em si mesma no mundo das puras idéias ou no mundo 
inteligível. 
Num outro diálogo, o Banquete, será buscada a idéia ou a essência do amor. 
Numa festa, oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia, 
conversam cinco amigos e Sócrates. Um deles afirma que todos os deuses recebem 
hinos e poemas de louvor, mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o amor. 
Propõe-se, então, que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor. 
Para um deles, o amor é o mais bondoso dos deuses, porque nos leva ao 
sacrifício pelo ser amado, inspira-nos devotamento e o desejo de fazer o bem. 
Para o seguinte, é preciso distinguir dois tipos de amor: o amor sexual e grosseiro e o 
amor espiritual entre as almas, pois o primeiro é breve e logo acaba, enquanto o 
segundo é eterno. Já o terceiro afirma que os que o antecederam limitaram muito o 
amor, tomando-o apenas como uma relação entre duas pessoas. O amor, diz ele, é o 
que ordena, organiza e orienta o mundo, pois é ele que faz os semelhantes se 
aproximarem e os diferentes se afastarem. O amor é uma força cósmica de ordem e 
harmonia do universo. 
O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito. No 
princípio, os humanos eram de três tipos: havia o homem duplo, a mulher dupla e o 
homem-mulher, isto é, o andrógino. Tinham um só corpo, com duas cabeças, quatro 
braços e quatro pernas. Como se julgavam seres completos, decidiram habitar no céu. 
Zeus, rei dos deuses, enfureceu-se, tomou de uma espada e os cortou pela metade. 
 
 
16 
 
Decaídos, separados e desesperados, os humanos teriam desaparecido se 
Eros não lhes tivesse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida. 
Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo, enquanto 
os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto. Amar é encontrar a nossa 
metade e o amor é esse encontro. 
 
 
 
Finalmente, o poeta, anfitrião da festa, toma a palavra dizendo: Todos os que 
me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas nenhum louvou 
o amor por ele mesmo. É o que farei. O amor, Eros, é o mais belo, o melhor dos 
deuses. O mais belo, porque sempre jovem e sutil, porque penetra imperceptivelmente 
nas almas; o melhor, porque odeia a violência e a desfaz onde existir; inspira os 
artistas e poetas, trazendo a beleza ao mundo. 
Resta Sócrates. “Não poderei falar”, diz ele. “Não tenho talento para fazer 
discursos tão belos.” Os outros, porém, não se conformam e o obrigam a falar. “Está 
bem”, retruca ele. “Mas falarei do meu jeito.” 
Com essa pequena frase, Platão mudará todo o tom do diálogo, pois, “falar do 
meu jeito” significa: Não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do 
amor, não vou emitir mais uma opinião sobre o amor, mas vou buscar a essência do 
amor, o ser do amor, vou investigar a idéia do amor. 
Sócrates também começa com um mito. Quando a deusa Afrodite nasceu, 
 
 
17 
 
houve uma grande festa para os deuses, mas esqueceram-se de convidar a deusa 
Penúria (Pênia). Miserável e faminta, Penúria esperou o final da festa, esgueirou-se 
pelos jardins e comeu os restos, enquanto os demais deuses dormiam. Num canto do 
jardim, viu Engenho Astuto (Poros) e desejou conceber um filho dele, deitandose ao 
seu lado. Desse ato sexual nasceu Eros, o amor. Como sua mãe, Eros está sempre 
carente, faminto, miserável; como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes 
engenhosos para conseguir o que quer. 
Qual o sentido do mito? Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia, 
desejo de saciar a fome e a sede, desejo de preenchimento, desejo de completarse e 
de encontrar a plenitude. Amar é desejar o amado como o que nos completa, nos 
sacia e satisfaz, nos dá plenitude. Amar é desejar fundir-se na plenitude do amado e 
ser um só com ele. 
O que pode completar e dar plenitude a um ser carente? O que é em si mesmo 
completo e pleno, isto é, o que é perfeito. O amor é desejo de perfeição. 
O que é a perfeição? A harmonia, a proporção, a integridade ou inteireza da 
forma. Desejamos as formas perfeitas. O que é uma forma perfeita? A forma perfeita 
é a formaacabada, plena, inteiramente realizada, sem falhas, sem faltas, sem 
defeitos, sem necessidade de transformar-se, isto é, sem necessidade de mudar de 
forma. A forma perfeita é o que chamamos de beleza. O amor é desejo de beleza. 
Onde está a beleza nas coisas corporais? Nos corpos belos, cuja união 
engendra uma beleza: a imortalidade dos pais através dos filhos. Onde está a beleza 
nas coisas incorporais? Nas almas belas, cuja beleza está na perfeição de seus 
pensamentos e ações, isto é, na inteligência. 
Que amamos quando amamos corpos belos? O que há de imperecível naquilo 
que, por natureza, é perecível, isto é, amamos a posteridade ou a descendência. Que 
amamos quando amamos almas belas? O que há de imperecível na inteligência, isto 
é, as idéias. O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo 
imperecível, mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e 
por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito. 
Se o amor é desejo de identificar-se com o amado, de fundir-se nele tornando-
se como ele, então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é 
plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor. Amar o perecível é tornar-se 
perecível também. Amar o mutável é tornar-se mutável também. O perecível e o 
 
 
18 
 
mutável são sombras, cópias imperfeitas do ser verdadeiro, imperecível e imutável. 
As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível. 
Abandonando-as pela verdadeira beleza, amamos não esta ou aquela coisa bela, mas 
a idéia ou a essência da beleza, o belo em si mesmo, único, real. 
As almas belas são belas porque nelas há a presença, ainda que invisível à 
primeira vista, de algo imperecível: o intelecto, parte imortal de nossa alma. Que ama 
o intelecto? Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que, 
ao ser amado, torna perfeito e belo quem o ama. O que é um intelecto 
verdadeiramente belo e perfeito? O que ama a beleza perfeita. Onde se encontra a tal 
beleza? Nas idéias. 
O que é a essência ou a idéia do amor? O amor é o desejo da perfeição 
imperecível das formas belas, daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, 
daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente 
pela inteligência. Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas idéias, o amor é o 
desejo de saber: philo sophia, amor da sabedoria. Pelo amor, o intelecto humano 
participa do inteligível, toma parte no mundo das idéias ou das essências, conhecendo 
o ser verdadeiro. 
A ontologia é, assim, a própria Filosofia e o conhecimento do Ser, isto é, das 
idéias, é a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao 
pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do sensível ao inteligível – tarefa 
da Filosofia – é passar da aparência ao real, do Não-Ser ao Ser. 
 
3 A METAFÍSICA DE ARISTÓTELES 
 
3.1 Diferença entre Aristóteles e seus predecessores 
 
Embora a ontologia ou metafísica tenha começado com Parmênides e Platão, 
costuma-se atribuir seu nascimento a Aristóteles por três motivos principais: 
 
1. diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles não julga o mundo 
das coisas sensíveis, ou a Natureza, um mundo aparente e ilusório. Pelo contrário, é 
um mundo real e verdadeiro cuja essência é, justamente, a multiplicidade de seres e 
a mudança incessante. 
 
 
19 
 
 
Fonte: blogdoenem.com.br 
Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir como ilusões ou sombras do 
verdadeiro Ser, Aristóteles afirma que o ser da Natureza existe, é real, que seu modo 
próprio de existir é a mudança e que esta não é uma contradição impensável. É 
possível uma ciência teorética verdadeira sobre a Natureza e a mudança: a física. 
Mas é preciso, primeiro, demonstrar que o objeto da física é um ser real e verdadeiro 
e isso é tarefa da Filosofia Primeira ou da metafísica. 
2. diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles considera que a 
essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não 
está no mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde as coisas físicas ou 
naturais existem e onde vivemos. As essências, diz Aristóteles, estão nas próprias 
coisas, nos próprios homens, nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecêlas ali 
mesmo onde existem e acontecem. 
Como conhecê-las? Partindo da sensação até alcançar a intelecção. A 
essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo pensamento, que capta as 
propriedades internas desse ser ou dessa ação, sem as quais ele ou ela não seriam 
o que são. A metafísica não precisa abandonar este mundo, mas, ao contrário, é o 
conhecimento da essência do que existe em nosso mundo. O que distingue a 
ontologia ou metafísica dos outros saberes (isto é, das ciências e das técnicas) é o 
fato de que nela as verdades primeiras ou os princípios universais e toda e qualquer 
 
 
20 
 
realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por intuição 
intelectual, sem passar pela sensação, pela imaginação e pela memória. 
3. ao se dedicar à Filosofia Primeira ou metafísica, a Filosofia descobre que há 
diferentes tipos ou modalidades de essências ou de ousiai. 
Existe a essência dos seres físicos ou naturais (minerais, vegetais, animais, 
humanos), cujo modo de ser se caracteriza por nascer, viver, mudar, reproduzirse e 
desaparecer – são seres em devir e que existem no devir. 
Existe a essência dos seres matemáticos, que não existem em si mesmos, mas 
existem como formas das coisas naturais, podendo, porém, ser separados delas pelo 
pensamento e ter suas essências conhecidas; são seres que, por essência, não 
nascem, não mudam, não se transformam nem perecem, não estando em devir nem 
no devir. 
Existe a essência dos seres humanos, que compartilham com as coisas físicas 
o surgir, o mudar e o desaparecer, compartilhando com as plantas e os animais a 
capacidade para se reproduzir, mas distinguindo-se de todos os outros seres por 
serem essencialmente racionais, dotados de vontade e de linguagem. Pela razão, 
conhecem; pela vontade, agem; pela experiência, criam técnicas e artes. E, 
finalmente, existe a essência de um ser eterno, imutável, imperecível, sempre idêntico 
a si mesmo, perfeito, imaterial, conhecido apenas pelo intelecto, que o conhece como 
separado de nosso mundo, superior a tudo que existe, e que é o ser por excelência: 
o ser divino. 
Se há tão diferentes tipos de essências, se para cada uma delas há uma ciência 
(física, biologia, meteorologia, astronomia, psicologia, matemática, ética, política, 
etc.), deve haver uma ciência geral, mais ampla, mais universal, anterior a todas 
essas, cujo objeto não seja essa ou aquela modalidade de essência, mas a essência 
em geral. Trata-se de uma ciência teorética que investiga o que é a essência e aquilo 
que faz com que haja essências particulares e diferenciadas. 
Essa ciência mais alta, mais ampla, mais universal, que se ocupa com a 
essência, que estuda por que há essências e como são as essências investigadas 
pelas demais ciências, é a Filosofia Primeira, escreve Aristóteles no primeiro livro da 
Metafísica. 
 
3.2 A metafísica aristotélica 
 
 
 
21 
 
Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros 
princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga “o Ser enquanto Ser”. 
 
Fonte: guiadafilosofia.com.br 
Ao definir a ontologia ou metafísica como estudo do “Ser enquanto Ser”, 
Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar 
essências físicas, matemáticas, astronômicas, humanas, técnicas, etc., pois cabe às 
diferentes ciências estudá-las enquanto diferentes entre si. À metafísica cabem três 
estudos: 
 
1. O do ser divino, a realidade primeira e suprema da qual todo o restante 
procura aproximar-se, imitando sua perfeição imutável. As coisas se transformam, diz 
Aristóteles,porque desejam encontrar sua essência total e perfeita, imutável como a 
essência divina. É pela mudança incessante que buscam imitar o que não muda 
nunca. Por isso, o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo que, 
sem agir diretamente sobre as coisas, ficando à distância delas, as atrai, é desejado 
por elas. Tal desejo as faz mudar para um dia, não mais mudar (esse desejo, diz 
Aristóteles, explica por que há o devir e por que o devir é eterno, pois as coisas 
naturais nunca poderão alcançar o que desejam, isto é, a perfeição imutável). 
Observamos, assim, que Aristóteles, como Platão, também afirma que a 
Natureza ou o mundo físico ou humano imitam a perfeição do imutável; porém, 
diferentemente de Platão, para Aristóteles essa imitação não é uma cópia deformada, 
 
 
22 
 
uma imagem ou sombra do Ser verdadeiro, mas o modo de existir ou de ser das coisas 
naturais e humanas. 
A mudança ou o devir são a maneira pela qual a Natureza, ao seu modo, se 
aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino. O ser divino chama-se 
Primeiro Motor porque é o princípio que move toda a realidade, e chama-se Primeiro 
Motor Imóvel porque não se move e não é movido por nenhum outro ente, pois, como 
já vimos, movervi significa mudar, sofrer alterações qualitativas e quantitativas, nascer 
é perecer, e o ser divino, perfeito, não muda nunca; 
2. O dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências 
existentes; 
3. O das propriedades ou atributos gerais de todos os seres, sejam eles quais 
forem, graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser 
particular existente. A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser, 
aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou sem o qual deixará de ser o que é. À 
essência, entendida sob essa perspectiva universal, Aristóteles dá o nome de 
substância: o substrato ou o suporte permanente de qualidades ou atributos 
necessários de um ser. A metafísica estuda a substância em geral. 
 
3.3 Os principais conceitos da metafísica aristotélica 
 
De maneira muito breve e simplificada, os principais conceitos da metafísica 
aristotélica (e que se tornarão as bases de toda a metafísica ocidental) podem ser 
assim resumidos: 
 
Primeiros princípios: são os três princípios que estudamos na lógica, isto é, 
identidade, não-contradição e terceiro excluído. Os princípios lógicos são ontológicos 
porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado; 
os primeiros princípios garantem, simultaneamente, a realidade e a racionalidade das 
coisas; 
Causas primeiras: são aquelas que explicam o que a essência é e também a 
origem e o motivo da existência de uma essência. Causa (para os gregos) significa 
não só o porquê de alguma coisa, mas também o o que e o como uma coisa é o que 
ela é. As causas primeiras nos dizem o que é, como é, por que é e para que é uma 
essência. São quatro as causas primeiras: 
 
 
23 
 
 
1. Causa material, isto é, aquilo de que uma essência é feita, sua matéria (por 
exemplo, água, fogo, ar, terra); 
2. Causa formal, isto é, aquilo que explica a forma que uma essência possui 
(por exemplo, o rio ou o mar são formas da água; mesa é a forma assumida pela 
matéria madeira com a ação do carpinteiro; margarida é a forma que a matéria vegetal 
possui na essência de uma flor determinada, etc.); 
3. Causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que explica como uma matéria 
recebeu uma forma para constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a causa 
eficiente que faz a matéria do espermatozóide e do óvulo receber a forma de um novo 
animal ou de uma criança; o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber 
a forma da mesa; o fogo é a causa eficiente que faz os corpos frios tornarem-se 
quentes, etc.); e 
4. A causa final, isto é, a causa que dá o motivo, a razão ou finalidade para 
alguma coisa existir e ser tal como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final 
da política, a felicidade é a causa final da ação ética; a flor é a causa final da semente 
transformar-se em árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos 
seres naturais, etc.). 
 
Matéria: é o elemento de que as coisas da Natureza, os animais, os homens, 
os artefatos são feitos; sua principal característica é possuir virtualidades ou conter 
em si mesma possibilidades de transformação, isto é, de mudança; 
Forma: é o que individualiza e determina uma matéria, fazendo existir as coisas 
ou os seres particulares; sua principal característica é ser aquilo que uma essência é 
num determinado momento, pois a forma é o que atualiza as virtualidades contidas na 
matéria; 
Potência: é o que está contido numa matéria e pode vir a existir, se for 
atualizado por alguma causa; por exemplo, a criança é um adulto em potência ou um 
adulto em potencial; a semente é a árvore em potência ou em potencial; 
ato: é a atualidade de uma matéria, isto é, sua forma num dado instante do 
tempo; o ato é a forma que atualizou uma potência contida na matéria. Por exemplo, 
a árvore é o ato da semente, o adulto é o ato da criança, a mesa é o ato da madeira, 
etc. Potência e matéria são idênticos, assim como forma e ato são idênticos. A matéria 
 
 
24 
 
ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma, isto é, da atividade 
que cria os seres determinados; 
Essência: é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma, 
unidade que lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser 
necessariamente aquilo que ela é. Assim, por exemplo, um ser humano é por essência 
ou essencialmente um animal mortal racional dotado de vontade, gerado por outros 
semelhantes a ele e capaz de gerar outros semelhantes a ele, etc.; 
 
Fonte: photosgratuite.eu 
Acidente: é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar 
de ter sem perder seu ser próprio. Por exemplo, um ser humano é racional ou mortal 
por essência, mas é baixo ou alto, gordo ou magro, negro ou branco, por acidente. A 
humanidade é a essência essencial (animal, mortal, racional, voluntário), enquanto o 
acidente é o que, existindo ou não existindo, nunca afeta o ser da essência (magro, 
gordo, alto, baixo, negro, branco). A essência é o universal; o acidente, o particular; 
Substância ou sujeito: é o substrato ou o suporte onde se realizam a 
matériapotência, a forma-ato, onde estão os atributos essenciais e acidentais, sobre 
o qual agem as quatro causas (material, formal, eficiente e final) e que obedece aos 
três princípios lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro excluído); em 
suma, é o Ser. Aristóteles usa o conceito de substância em dois sentidos: num 
primeiro sentido, substância é o sujeito individual (Sócrates, esta mesa, esta flor, 
 
 
25 
 
Maria, Pedro, este cão, etc.); num segundo sentido, a substância é o gênero ou a 
espécie a que o sujeito individual pertence (homem, grego; animal, bípede; vegetal, 
erva; mineral, ferro; etc.). No primeiro sentido, a substância é um ser individual 
existente; no segundo é o conjunto das características gerais que os sujeitos de um 
gênero e de uma espécie possuem. Aristóteles fala em substância primeira para 
referir-se aos seres ou sujeitos individuais realmente existentes, com sua essência e 
seus acidentes (por exemplo, Sócrates); e em substância segunda para referir-se 
aos sujeitos universais, isto é, gêneros e espécies que não existem em si e por si 
mesmos, mas só existem encarnados nos indivíduos, podendo, porém, ser 
conhecidos pelo pensamento. Assim, por exemplo, o gênero “animal ” e as espécies 
“vertebrado”, “mamífero” e “humano” não existem em si mesmos, mas existem em 
Sócrates ou através de Sócrates. O gênero é um universal formado por um conjunto 
de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos 
seres de uma mesma espécie. A espécie tambémé um universal formado por um 
conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum 
nos indivíduos semelhantes. Assim, o gênero é formado por um conjunto de espécies 
semelhantes e as espécies, por um conjunto de indivíduos semelhantes. Os indivíduos 
ou substâncias primeiras são seres realmente existentes; os gêneros e as espécies 
ou substâncias segundas são universalidades que o pensamento conhece através dos 
indivíduos; 
Predicados: são as oito categorias que vimos no estudo da lógica e que 
também são ontológicas, porque se referem à estrutura e ao modo de ser da 
substância ou da essência. Em outras palavras, os predicados atribuídos a uma 
substância ou essência são constitutivos de seu ser e de seu modo de ser, pois toda 
realidade pode ser conhecida porque possui qualidades (mortal, imortal, finito, infinito, 
bom, mau, etc.), quantidades (um, muitos, alguns, pouco, muito, grande, pequeno), 
relaciona-se com outros (igual, diferente, semelhante, maior, menor, superior, inferior), 
está em algum lugar (aqui, ali, perto, longe, no alto, embaixo, em frente, atrás, etc.), 
está no tempo (antes, depois, agora, ontem, hoje, amanhã, de dia, de noite, sempre, 
nunca), realiza ações ou faz alguma coisa (anda, pensa, dorme, corta, cai, prende, 
cresce, nasce, morre, germina, frutifica, floresce, etc.) e sofre ações de outros seres 
(é cortado, é preso, é morto, é quebrado, é arrancado, é puxado, é atraído, é levado, 
é curado, é envenenado, etc.). 
 
 
26 
 
 
As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais, isto é, podem 
ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser, ou podem ser algo 
que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso, sem afetar sua natureza. 
Tomemos um exemplo. Se eu disser “Sócrates é homem”, necessariamente 
terei que lhe dar os seguintes predicados: mortal, racional, finito, animal, pensa, sente, 
anda, reproduz, fala, adoece, é semelhante a outros atenienses, é menor do que uma 
montanha e maior do que um gato, ama, odeia. Acidentalmente, ele poderá ter outros 
predicados: é feio, é baixo, é diferente da maioria dos atenienses, é casado, conversou 
com Laques, esteve no banquete de Agáton, esculpiu três estátuas, foi forçado a 
envenenar-se pelo tribunal de Atenas. 
Se nosso exemplo, porém, fosse uma substância genérica ou específica, todos 
os predicados teriam de ser essenciais, pois o acidente é o que acontece somente 
para o indivíduo existente e o gênero e a espécie são universais que só existem no 
pensamento e encarnados nas essências individuais. 
Com esse conjunto de conceitos forma-se o quadro da ontologia ou metafísica 
aristotélica como explicação geral, universal e necessária do Ser, isto é, da realidade. 
Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos posteriores, que problematizarão 
alguns de seus aspectos, estabelecerão novos conceitos, suprimirão alguns outros, 
desenvolvendo o que conhecemos como metafísica ocidental. 
A metafísica aristotélica inaugura, portanto, o estudo da estrutura geral de todos 
os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um ser 
e que possa ser conhecido pelo pensamento. Afirma que a realidade no seu todo é 
inteligível ou conhecível e apresenta-se como conhecimento teorético da realidade 
sob todos os seus aspectos gerais ou universais, devendo preceder as investigações 
que cada ciência realiza sobre um tipo determinado de ser. 
A metafísica investiga: 
 
 Aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres: os três 
princípios lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro 
excluído) e as quatro causas (material, formal, eficiente e final); 
 Aquilo que faz um ser ser necessariamente o que ele é: matéria, 
potência, forma e ato; 
 
 
27 
 
 Aquilo que faz um ser ser necessariamente como ele é: essência e 
predicados ou categorias; 
 Aquilo que faz um ser existir como algo determinado: a substância 
individual (substância primeira) e a substância como gênero ou espécie 
(substância segunda). É isto estudar “o Ser enquanto Ser”. 
 
4 A ATITUDE CIENTÍFICA 
 
O Sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos 
um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste? 
O Sol se move em torno da Terra, que permanece imóvel. Quem duvidará 
disso, se diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o 
seu começo e o crepúsculo, seu fim? 
 
Fonte: olhosideral.blogspot.com 
As cores existem em si mesmas. Quem duvidará disso, se passamos a vida 
vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o 
alaranjado da laranja e da tangerina? 
Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. 
Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são 
religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos 
 
 
28 
 
os animais, num só dia? 
A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a 
sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem 
a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no 
passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da 
sociedade? 
A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos 
climas, da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, 
se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, 
os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos 
que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Caim, o filho 
desobediente de Noé. 
Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa 
sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se 
em crença religiosa, em doutrina inquestionável. 
A astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra 
e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica 
demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas 
pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que 
os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões 
de anos, a partir de modificações de microrganismos extremamente simples. 
Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, 
mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima – data do 
século XV – e própria da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas 
sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que 
não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas 
determinadas. 
Sociólogos e antropólogos mostram que a ideia de raça também é recente – 
data do século XVIII -, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação 
para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir 
do século XIV, com as viagens de Marco Polo, e do século XV, com as grandes 
navegações e as descobertas de continentes ultramarinos. 
Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o 
 
 
29 
 
conhecimento científico. Como e por que ela existe? 
 
4.1 Características do senso comum 
 
 
Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com 
Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa 
sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias: 
 
 São subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de 
grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, 
dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu 
for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneira, a qualidade da 
madeira; se estiver passeandosob o Sol, a sombra para descansar; se 
for bóia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for 
hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, 
estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei 
vender; 
 São qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou 
pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas 
ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, 
coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes, etc.; 
 
 
30 
 
 São heterogêneos, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, 
porque os percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo 
que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes; 
sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada, etc.; 
 São individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, 
cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um 
ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o 
mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura, etc.; 
 Mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião 
ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos 
animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das 
mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, das bebidas, dos 
remédios, etc.; 
 Em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de 
causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há 
fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”; “dize-me com quem andas e te direi 
quem és”; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher 
menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura 
é bom para a pressão; mulher assanhada quem ser estuprada; menino 
de rua é delinqüente, etc.; 
 Não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância, 
repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o 
espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, 
maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, 
a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o 
“nunca visto”; 
 Pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação 
científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas 
lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da 
ciência como magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes 
mostram os laboratórios científicos repletos de objetos 
incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde 
saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas 
 
 
31 
 
ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia 
aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como 
o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como 
se fossem espantosa obra de magia, assim como exibem magos 
ocultistas como se fossem cientistas; 
 Costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e 
de medo diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as 
pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos 
voadores no espaço; 
 
Por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e 
angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas 
cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam-
se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos 
cerca e todos os acontecimentos. 
 
Fonte: pt.slideshare.net 
4.2 A atitude científica 
 
O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? 
Antes de qualquer coisa, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de 
nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por 
isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas 
 
 
32 
 
e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas. 
Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico 
opõe se ponto por ponto às características do senso comum: 
 
 É objetivo, isto é, procura as estrutur as universais e necessárias das 
coisas investigadas; 
 É quantitativo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação 
e avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, 
as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão 
ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as 
diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas 
sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e 
de ângulos de visão, etc.; 
 É homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos 
fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. 
Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de 
uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de 
atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da 
manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em 
posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do movimento 
da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de 
sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.; 
 É generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como 
diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de 
medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por 
exemplo, a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz 
a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras 
variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do 
que a variedade empírica dos compostos; 
 São diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por 
semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde 
que obedeçam a estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo 
que usamos no capítulo sobre a linguagem, quando mostramos que a 
 
 
33 
 
palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese 
e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito 
diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes; 
 Só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou 
estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou 
diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas 
o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra 
– é por isso que, nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, 
todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; 
um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque, 
dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma 
determinada maneira, etc.; 
 Surpreende-se com a regularidade, a constância, a freqüência, a 
repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, 
o extraordinário ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, 
normal, freqüente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora 
excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar 
explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, 
opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico; 
 Distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia 
secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por 
meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força 
capaz de ligar-se a psiquismos superiores (planetários, astrais, 
angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e 
nas pessoas. A atitude científica, ao contrário, opera um 
desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele 
não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem 
ser conhecidas e quetais conhecimentos podem ser transmitidos a 
todos; 
 Afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e 
das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros; 
 
Procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação 
 
 
34 
 
das teorias em doutrinas, e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta 
de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a 
mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral 
sobre o mundo. 
Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa 
experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica. 
Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas 
com base em métodos que permitem e garantem: 
 
 Separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno; 
 Construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, 
verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas 
elaborações; 
 Demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, 
graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a 
demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos 
resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos 
como efeitos dos já estudados; 
 
Relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação 
racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto 
científico, isto é, em fato explicado por uma teoria; 
Formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos 
fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que 
expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, 
identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado. 
Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes 
ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, 
experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições 
de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de 
conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e 
guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas investigações, e 
permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré-
 
 
35 
 
requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência. 
A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada 
em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em 
pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias 
sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é 
conhecimento que resulta de um trabalho racional. 
 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
O que é uma teoria científica? 
É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados 
em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever 
do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis 
necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos 
aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e 
submetidos às mesmas leis; e, vice-versa, permite compreender por que fatos 
aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. 
 
4.3 A ciência na História - As três principais concepções de ciência. 
 
Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais 
de cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o 
empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural 
 
 
36 
 
do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da ideia de razão 
como conhecimento aproximativo. 
A concepção racionalista – que se estende dos gregos até o final do século 
XVII – afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo 
como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de 
seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência é a 
unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza 
e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de 
causalidade que regem o objeto investigado. 
O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e 
verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta 
é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas 
para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o 
conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O 
objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura matemática, 
ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está escrito em caracteres 
matemáticos”. 
A concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do 
século XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em 
observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem 
completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de 
funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de 
modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar 
conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre 
houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles 
dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. 
Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, 
embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria 
científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, 
tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A 
concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e 
disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era 
hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava 
 
 
37 
 
observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas 
propriedades, seus efeitos posteriores e previsões. 
A concepção construtivista – iniciada no século passado – considera a ciência 
uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação 
da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos – um, vindo do 
racionalismo, e outro, vindo do empirismo – e a eles acrescenta um terceiro, vindo da 
idéia de conhecimento aproximativo e corrigível. 
 
 
Fonte: profemorais.blogspot.com 
Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e 
lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto 
científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e 
modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque 
considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental 
feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em 
si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, 
explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade 
absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, 
abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu 
ideal de cientificidade: 
 
 
 
38 
 
1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios 
que orientam a teoria; 
2. que os modelosdos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam 
construídos com base na observação e na experimentação; 
3. que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, 
mas também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a. 
 
4.4 Diferenças entre a ciência antiga e a moderna 
 
Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal 
racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa 
que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas. 
Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre 
antigos e modernos. Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz 
Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e 
opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo 
lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, 
quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, 
os seres naturais submetidos à mudança. 
O mundo, escreve Aristóteles, divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja 
diferença é dada pelo tipo de substância, de matéria e de forma dos seres de cada 
uma delas. A região celeste, formada de Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os 
astros, tem como substância o éter, matéria sutil e diáfana, forma universal que não 
sofre mudanças qualitativas nem quantitativas, mas apenas a mudança ou movimento 
local, realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos, o circular. A segunda 
região é a sublunar ou terrestre - nosso mundo -, constituída por quatro substâncias 
ou elementos – terra, água, ar e fogo -, de cujas combinações surgem todos os seres. 
São substâncias fortemente materiais e, portanto (como vimos no estudo da 
metafísica aristotélica), fortemente potenciais ou virtuais, transformando-se sem 
cessar. A região sublunar é o mundo das mudanças de forma, ou da passagem 
contínua de uma forma a outra, para atualizar o que está em potência na matéria. 
Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem 
se deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da 
qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos 
 
 
39 
 
materiais existe combinado com os outros num corpo. 
Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por 
Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo, 
procuram atualizar suas potências materiais, atualizando-se em formas diferentes. 
Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das 
outras. 
No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais 
onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados 
(nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e 
por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais 
predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento 
local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos quais predomina o 
elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento 
local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais predomina 
o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local 
natural é boiar nas águas. 
Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos 
violentos, isto é, àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu 
lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um 
movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a 
terra e seu movimento natural seja a queda. 
Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características 
marcantes da ciência antiga: 
 
 É uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, 
pesado, líquido, sólido, etc.); 
 É uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, 
longe, perto, celeste, sublunar); 
 É uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança 
(perfeição imóvel, imperfeição móvel); 
 É uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo 
sua matéria e sua forma, ou segundo sua substância; 
 Como consequência das características anteriores, é uma ciência que 
 
 
40 
 
concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os 
seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição, 
hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos superiores. 
 
Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi 
elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças: 
 
 Para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, 
portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, 
frente, atrás, longe, perto. É um espaço onde todos os pontos são 
reversíveis ou equivalentes, de modo que não há “lugares naturais” 
qualitativamente diferenciados; 
 Os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser 
purificados de todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, 
peso, matéria, forma, líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto 
é, de todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente 
subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas gerais, válidas 
para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante 
o tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois todos se 
comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a distinção 
entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos 
terrestres obedecem às mesmas leis universais da física; 
 A física estuda o movimento não como alteração qualitativa e 
quantitativa dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a 
massa, o volume e a velocidade dos corpos. O movimento e o repouso 
são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e 
todos eles obedecem às mesmas leis – aquelas que Galileu formulou 
com base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento 
indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo 
ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com 
base no princípio universal da gravitação (a toda ação corresponde uma 
reação que lhe é igual e contrária). Não há diferença entre movimento 
natural e movimento violento, pois todo e qualquer movimento obedece 
 
 
41 
 
às mesmas leis; 
 A Natureza é um complexo de corpos formados por proporções 
diferentes de movimento e de repouso, articulados por relações de 
causa e efeito, sem finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para 
os seres humanos dotados de razão e vontade. Os corpos não se 
movem, portanto, em busca de perfeição, mas porque a causa eficiente 
do movimento os faz moverem-se. A física é uma mecânica universal. 
 
A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou 
mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor 
universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar 
obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para todos 
os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridade-
superioridade. 
Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A 
primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem 
jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado 
a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. 
Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, 
a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento.Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: 
a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação 
de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza”. A ciência 
moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para 
apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação 
da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza. Numa 
sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar 
a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência 
será inseparável da técnica. 
Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a 
técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto 
de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber 
teórico que se aplica praticamente. 
 
 
42 
 
Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar 
horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto 
tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as 
leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a percepção 
empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção 
não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio 
e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o 
conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto 
é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso 
interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se 
inseparável da tecnologia. 
 
4.5 As mudanças científicas 
 
Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere 
à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de 
cientificidade baseado na ideia de que a ciência é uma representação da realidade tal 
como ela é em si mesma, a um ideal de cientificidade baseado na ideia de que o objeto 
científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma aproximação 
sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. 
A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga – teorética, 
qualitativa – à ciência moderna – tecnológica, quantitativa. Por que houve tais 
mudanças no pensamento científico? 
Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e 
progride. Evolução e progresso são duas ideias muito recentes – datam dos séculos 
XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da bandeira brasileira 
para perceber como as pessoas acham natural falar em “Ordem e Progresso”. 
As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é 
uma linha reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar 
a metafísica). O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos, fases, 
períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo 
que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo 
e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e 
humanos). 
 
 
43 
 
 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação 
ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados seriam 
superiores aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana seria superior à 
aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton. 
Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir 
significa: ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior. 
Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de 
momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o 
presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer 
quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que um 
acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior. 
Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que 
a biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente 
ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o 
futuro já está contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais 
é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente. 
Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países 
desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, 
digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. 
 
 
44 
 
Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade 
– que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda não foi, mas deverá ser 
alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões desenvolvido 
e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e 
agressivas: países adiantados e países atrasados, isto é, países evoluídos e não 
evoluídos, países com progresso e sem progresso. 
Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal, 
acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com 
relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. 
Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos 
conhecimentos humanos. 
 
4.6 Desmentindo a evolução e o progresso científicos 
 
A Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um 
desmentido às ideias de evolução e progresso. Isso não quer dizer que a Filosofia das 
Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica, pois essas duas noções são 
idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de 
caminhar causal e continuamente para frente, caminhar-se-ia causal e continuamente 
para trás). O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações 
científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuas. 
Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria 
euclidiana (que opera com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou 
topológica (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas 
etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas 
geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações 
completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois 
são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas. 
Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não 
estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante 
de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, 
experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a ideia 
de Natureza é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são diferentes; 
em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente. 
 
 
45 
 
Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada 
pela bioquímica (baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código 
genético), também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e 
descontinuidade. Assim, por exemplo, o modelo explicativo que orientava o trabalho 
de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes 
– o espermatozoide e o óvulo -, enquanto o modelo que orienta a genética 
contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação. 
Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada 
nos estudosde filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com 
a linguística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem, 
estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas 
as ciências. 
Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as 
teorias científicas como consequência não de uma forma mais evoluída, mais 
progressiva ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras 
de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar 
tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológicas 
para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico. 
 
4.7 Rupturas epistemológicas e revoluções científicas 
 
Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno 
empregando teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. 
Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos 
existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão 
buscando. Encontram, diz Bachelard, um “obstáculo epistemológico”. 
Para superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas 
precisam ter a coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos 
métodos e tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à 
elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo 
de conhecimentos existentes. 
Uma nova concepção científica emerge, levando tanto a incorporar nela os 
conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los inteiramente. O filósofo da ciência Khun 
designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias 
 
 
46 
 
com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolução copernicana, 
que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica. 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
Segundo Khun, um campo científico é criado quando métodos, tecnologias, 
formas de observação e experimentação, conceitos e demonstrações formam um todo 
sistemático, uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos. A teoria 
se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico. Em tempos 
normais, um cientista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado, usa 
o modelo ou o paradigma científico existente. 
Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os 
paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo, 
sendo necessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja 
necessidade não era sentida pelos investigadores. 
A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas 
por saltos ou revoluções. 
Assim, quando a ideia de próton-elétron-nêutron entra na física, a de vírus entra 
na biologia, a de enzima entra na química ou a de fonema entra na linguística, os 
paradigmas existentes são incapazes de alcançar, compreender e explicar esses 
objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos. 
Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos 
principais: 
 
 
47 
 
1. Do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, 
já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. 
Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de 
que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho. 
Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e, 
portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma vivência 
subjetiva; 
2. Do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e 
da evolução, do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos 
das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de micro-ondas, 
telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos 
descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, 
pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença 
temporal. Do lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença ideológica. 
Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde 
a Antiguidade, conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para 
combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o 
vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem 
objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação, de 
comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a esperança de vida 
(remédios, cirurgias, etc.). 
Do ponto de vista dos resultados práticos, sentimos que estamos em melhores 
condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso. Do ponto de 
vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de progresso não possui 
fundamento, como explicamos acima. 
 
4.8 Falsificação X revolução 
 
Vimos que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e 
fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecnologias e 
novas teorias. 
 
 
 
48 
 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a 
reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito 
filosófico-científico da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante muitos 
séculos como a correspondência exata entre uma ideia ou um conceito e a realidade. 
Vimos também que, no século passado, foi proposta uma teoria da verdade como 
coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia quando 
uma ideia não correspondia à coisa que deveria representar. Na nova concepção, o 
falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de contradições entre seus 
princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos. 
Popper afirma que as mudanças científicas são uma consequência da 
concepção da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria científica 
seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada. 
Uma teoria científica é boa, diz Popper, quanto mais estiver aberta a fatos 
novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava. 
Assim, o valor de uma teoria não se mede por sua verdade, mas pela possibilidade 
de ser falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e 
garantiria a ideia de progresso científico, pois é a mesma teoria que vai sendo 
corrigida por fatos novos que a falsificam. 
A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Khun, demonstrou o absurdo 
da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que uma 
 
 
49 
 
teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em 
que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a ela 
mudanças totais. 
Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, 
essas mudanças não foram feitas no sentido de “melhorar” ou “aprimorar” uma teoria 
existente, mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico 
não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas de provocar o surgimento de uma nova 
teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista, seja a verdade 
entendida como correspondência entre ideia e coisa, seja entendida como coerência 
interna das ideias. 
 
4.9 Classificação das ciências 
 
Ciência, no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que 
examinamos até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de 
realização do ideal de cientificidade, segundo os diferentes fatos investigados e os 
diferentes métodos e tecnologias empregados. 
A primeira classificação sistemática dasciências de que temos notícia foi a de 
Aristóteles, à qual já nos referimos no início deste livro. O filósofo grego empregou 
três critérios para classificar os saberes: 
 
 Critério da ausência ou presença da ação humana nos seres 
investigados, levando à distinção entre as ciências teoréticas 
(conhecimento dos seres que existem e agem independentemente da 
ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo quanto existe 
como efeito das ações humanas); 
 Critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou 
movimento dos seres investigados, levando à distinção entre metafísica 
(estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou 
ciências da Natureza (estudo dos seres constituídos por matéria e forma 
e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos 
seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo 
nos seres naturais e conhecidos por abstração); 
 Critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que 
 
 
50 
 
estudam a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio 
agente como fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a 
ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente). 
 
Com pequenas variações, essa classificação foi mantida até o século XVII, 
quando, então, os conhecimentos se separaram em filosóficos, científicos e técnicos. 
A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas (é 
um saber diferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das 
inúmeras classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por 
filósofos franceses e alemães do século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de 
objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de resultado obtido. Desses critérios 
e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou aquela que 
se costuma usar até hoje: 
 
 Ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, 
álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); 
 Ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, 
geografia física, paleontologia, etc.); ? ciências humanas ou sociais 
(psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, 
lingüística, psicanálise, arqueologia, história, etc.); 
 Ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de 
tecnologias para intervir na Natureza, na vida humana e nas sociedades, 
como por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, 
informática, etc.). 
 
Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova 
delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a física 
subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica, zoologia, 
fisiologia, genética, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, 
do desenvolvimento, psicologia clínica, psicologia social, etc. E assim 
sucessivamente, para cada uma das ciências. Por sua vez, os próprios ramos de cada 
ciência subdividem-se em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus 
objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas. 
 
 
51 
 
 
5 AS CIÊNCIAS HUMANAS 
 
Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da 
atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se 
àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação de tais 
ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é bastante recente: o 
homem como objeto científico é uma ideia surgida apenas no século XIX. Até então, 
tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia. 
 
 
Fonte: ceticismo.net 
Em segundo lugar, porque surgiram depois que as ciências matemáticas e 
naturais estavam constituídas e já haviam definido a ideia de cientificidade, de 
métodos e conhecimentos científicos, de modo que as ciências humanas foram 
levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o 
homem como uma coisa natural matematizável e experimentável. Em outras palavras, 
par a ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências 
humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas 
propostos pelas ciências da Natureza. 
Em terceiro lugar, por terem surgido no período em que prevalecia a concepção 
 
 
52 
 
empirista e determinista da ciência, também procuraram tratar o objeto humano 
usando os modelos hipotético-indutivos e experimentais de estilo empirista, e 
buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, 
entretanto, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, 
das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências 
humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus 
resultados tornaram-se muito contestáveis e pouco científicos. 
Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de 
ciências que tivessem o homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à 
possibilidade das ciências humanas? 
 
 A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos 
que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de 
experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a 
consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou 
uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da 
história? 
 A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos 
fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente 
subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais 
para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana? 
Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez, 
como é o caso do acontecimento histórico? 
 A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em 
elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por 
seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos 
acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma 
sociedade, um acontecimento histórico? 
 A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo 
princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, 
vontade e liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre 
várias opções possíveis. Como dar uma explicação científica necessária 
àquilo que, por essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade? 
 
 
53 
 
 A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que 
foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as 
qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de 
todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o 
subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como 
transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, 
a subjetividade? 
 
5.1 O humano como objeto de investigação 
 
Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres 
humanos são diferentes das coisas naturais é antiga. Sob esse ponto de vista, 
podemos dizer que, do século XV ao início do século XX, a investigação do humano 
realizou-se de três maneiras diferentes: 
 
1. Período do humanismo: inicia-se no século XV com a idéia renascentista da 
dignidade do homem como centro do Universo, prossegue nos séculos XVI e XVII 
com o estudo do homem como agente moral, político e técnico-artístico, destinado a 
dominar e controlar a Natureza e a sociedade, chegando ao século XVIII, quando 
surge a idéia de civilização, isto é, do homem como razão que se aperfeiçoa e 
progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do 
desenvolvimento das artes, das técnicas e dos ofícios. O humanismo não separa 
homeme Natureza, mas considera o homem um ser natural diferente dos demais, 
manifestando essa diferença como ser racional e livre, agente ético, político, técnico 
e artístico. 
2. Período do positivismo: inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para 
quem a humanidade atravessa três etapas progressivas, indo da superstição religiosa 
à metafísica e à teologia, para chegar, finalmente, à ciência positiva, ponto final do 
progresso humano. Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o 
estudo científico da sociedade: assim como há uma física da Natureza, deve haver 
uma física do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos usando 
procedimentos, métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza. 
A concepção positivista não termina no século XIX com Comte, mas será uma 
das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século 
 
 
54 
 
XX. Assim, por exemplo, a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o 
psiquismo enquanto consciência, mas enquanto comportamento observável que 
pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais. A sociologia 
positivista (iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile 
Durkheim) estuda a sociedade como fato, afirmando que o fato social deve ser tratado 
como uma coisa, à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados 
pelas ciências naturais. Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos, obtidos 
por via da análise; as relações causais entre os indivíduos, recompostas por via da 
síntese, constituem as instituições sociais (família, trabalho, religião, Estado, etc.) 
3. Período do historicismo: desenvolvido no final do século XIX e início do 
século XX por Dilthey, filósofo e historiador alemão. Essa concepção, herdeira do 
idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), insiste na diferença profunda entre 
homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas, chamadas por Dilthey de 
ciências do espírito ou da cultura. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor 
e de sentido, de significação e finalidade e devem ser estudados com essas 
características que os distinguem dos fatos naturais. As ciências do espírito ou da 
cultura não podem e não devem usar o método da observação-experimentação, mas 
devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, 
encontrando a causalidade histórica que os governa. 
O fato humano é histórico ou temporal: surge no tempo e se transforma no 
tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos, religiosos, 
econômicos, técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais, o mesmo 
sentido e seguem os mesmos valores, devendo ser compreendidos, simultaneamente, 
como particularidades históricas ou “visões de mundo” específicas ou autônomas e 
como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade, isto é, de um 
processo causal universal, que é o progresso. 
O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por 
seus adeptos: o relativismo (numa época em que as ciências humanas buscavam a 
universalidade de seus conceitos e métodos) e a subordinação a uma filosofia da 
História (numa época em que as ciências humanas pretendiam separar-se da 
Filosofia). 
 
 
 
 
55 
 
 
 
Fonte: yoloseduco.com 
Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para uma determinada 
época e cultura, não podendo ser universalizadas. Filosofia da História: os indivíduos 
humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo 
científico subordinar-se a uma teoria geral da História que considere cada formação 
sociocultural seja como “visão de mundo” particular, seja como etapa de um processo 
histórico universal. 
Para escapar dessas conseqüências, o sociólogo alemão Max Weber propôs 
que as ciências humanas – no caso, a sociologia e a economia – trabalhassem seus 
objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos. O tipo ideal, como o nome 
indica, oferece construções conceituais puras, que permitem compreender e 
interpretar fatos particulares observáve is. Assim, por exemplo, o Estado se apresenta 
como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais (dominação 
carismática, dominação pessoal burocrática, etc.), cabendo ao cientista verificar sob 
qual tipo encontra-se o caso particular investigado. 
 
5.2 Fenomenologia, estruturalismo e marxismo 
 
A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se 
a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 
 
 
56 
 
50 do século passado, provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução 
científica no campo das humanidades. 
 
5.3 A contribuição da fenomenologia 
 
Como vimos em vários momentos deste livro, a fenomenologia introduziu a 
noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar 
internamente uma realidade de outras, encontrando seu sentido, sua forma, suas 
propriedades e sua origem. 
Dessa maneira, a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a 
diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência “Natureza” e a esfera ou região 
da essência “homem”. A seguir, permitiu que a esfera ou região “homem” fosse 
internamente diferenciada em essências diversas: o psíquico, o social, o histórico, o 
cultural. Com essa diferenciação, garantia às ciências humanas a validade de seus 
projetos e campos científicos de investigação: psicologia, sociologia, história, 
antropologia, linguística, economia. 
Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica? Dois 
exemplos podem ajudar-nos a compreendê-la. 
Recusando a perspectiva metafísica, que se referia ao psíquico em termos de 
alma e de interioridade, a psicologia volta-se para o estudo dos fatos psíquicos 
diretamente observáveis. Ao radicalizar essa concepção, a psicologia positivista fazia 
do psiquismo uma soma de elementos físico-químicos, anatômicos e fisiológicos, de 
sorte que não havia, propriamente falando, um objeto científico denominado “o 
psíquico”, mas efeitos psíquicos de causas não-psíquicas (físicas, químicas, 
fisiológicas, anatômicas). Por isso, a psicologia considerava-se uma ciência natural 
próxima da biologia, tendo como objeto o comportamento como um fato externo, 
observável e experimental. 
Ao contrário, a psicologia como ciência humana do psiquismo tornou-se 
possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados 
à consciência (sensação, percepção, motricidade, linguagem, etc.) puderam ser 
definidos como dotados de significação objetiva própria. 
Recusando a perspectiva da filosofia da História, que considerava as 
sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal, a 
sociologia volta-se para o estudo dos fatos sociais observáveis. Inspirando-se nas 
 
 
57 
 
ciências naturais, a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações 
individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social, de sorte 
que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita, mas 
um efeito de ações psicológicas dos indivíduos. Somente a definição do social como 
algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações 
individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita. 
Em resumo, antes da fenomenologia, cada uma das ciências humanas desfazia 
seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo, estudava as 
relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação 
e lei de seu objeto de investigação. A fenomenologia garantiu às ciências humanas a 
existência e a especificidade de seus objetos. 
 
 
Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com 
5.4 A contribuição do estruturalismo 
 
O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos 
específicospara o estudo de seus objetos, livrando-as das explicações mecânicas de 
causa e efeito, sem que por isso tivessem que abandonar a ideia de lei científica. 
A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a 
forma de estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando a 
estes sentidos pela posição e pela função que ocupam no todo. As estruturas são 
 
 
58 
 
totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que 
comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas 
possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma 
das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é 
um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma 
totalidade dotada de sentido. 
Já vimos a noção de estrutura quando, nos capítulos dedicados à teoria do 
conhecimento, nos referimos à teoria da percepção, formulada pela psicologia da 
Gestalt ou da forma, bem como quando nos referimos à teoria da linguagem, 
elaborada pela linguística contemporânea. 
Após a psicologia e a linguística, a primeira das ciências humanas a se 
transformar profundamente, graças à ideia de estrutura e ao método estrutural, foi a 
antropologia social. Esta pôde mostrar que, ao contrário do que pensava a 
antropologia positivista, as chamadas “sociedades primitivas” não são uma etapa 
atrasada da evolução da história social da humanidade, mas uma forma objetiva de 
organizar as relações sociais de modo diferente do nosso, constituindo estruturas 
culturais. 
O antropólogo Claude Lévi-Strauss, por exemplo, mostrou que as estruturas 
dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência, que 
permite a troca e a circulação de certos seres, de maneira a constituir o todo da 
sociedade, organizando todas as relações sociais: a troca ou circulação das mulheres 
(estrutura do parentesco como sistema social de alianças), a troca ou circulação de 
objetos especiais (estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz) e troca 
e circulação da palavra (estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e 
político). O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza 
e se relaciona com os outros define a estrutura geral e específica de uma sociedade 
“primitiva”, que pode, assim, ser compreendida e explicada cientificamente. 
 
5.5 A contribuição do marxismo 
 
O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições 
sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos, 
mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem 
realizar-se. Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários 
 
 
59 
 
são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais 
relações são as de trabalho, dando origem às primeiras instituições sociais: família 
(divisão sexual do trabalho), pastoreio e agricultura (divisão social do trabalho), troca 
e comércio (distribuição social dos produtos do trabalho). 
Assim, as primeiras instituições sociais são econômicas. Para mantê-las, o 
grupo social cria ideias e sentimentos, valores e símbolos aceitos por todos e que 
justificam ou legitimam as instituições assim criadas. Também para conservá-las, o 
grupo social cria instituições de poder que sustentem (pela força, pelas armas ou pelas 
leis) as relações sociais e as ideias-valores-símbolos produzidos. 
 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
Dessa maneira, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as 
articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana; 
entre o plano econômico e o das instituições sociais e políticas; entre todas elas e o 
conjunto de ideias e de práticas que uma sociedade produz. 
Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que as 
mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns 
indivíduos ou grupos de indivíduos, mas de lentos processos sociais, econômicos e 
políticos, baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e 
 
 
60 
 
pelas relações de trabalho. A materialidade da existência econômica comanda as 
outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem 
todas elas. 
Enfim, o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia, à ciência 
política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e 
resultado de contradições sociais, de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados 
pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela 
minoria de uma sociedade. 
Em resumo, a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos 
das ciências humanas; o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis 
dos fatos humanos, sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das 
ciências naturais; o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são 
historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam 
conhecidos, garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis. 
Com essas contribuições, que foram incorporadas de maneiras muito 
diferenciadas pelas várias ciências humanas, os obstáculos epistemológicos foram 
ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de 
sentido e significação, são históricos, possuem leis próprias, são diferentes dos 
fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente. 
 
5.6 Os campos de estudo das ciências humanas 
 
Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de 
investigação, podemos distribuí-las da seguinte maneira: 
 
Psicologia 
 Estudo das estruturas, do desenvolvimento das operações da mente 
humana (consciência, vontade, percepção, linguagem, memória, 
imaginação, emoções); 
 Estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos 
humanos e animais; 
 Estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em 
sociedade; 
 Estudo das perturbações (patologias) da mente humana e dos 
 
 
61 
 
comportamentos humanos e animais. 
 
Sociologia 
 
 Estudo das estruturas sociais: origem e forma das sociedades, tipos de 
organizações sociais, econômicas e políticas; 
 Estudo das relações sociais e de suas transformações; 
 Estudo das instituições sociais (origem, forma, sentido). 
 
Economia 
 
 Estudo das condições materiais (naturais e sociais) de produção e 
reprodução da riqueza, de suas formas de distribuição, circulação e 
consumo; 
 Estudo das estruturas produtivas – relações de produção e forças 
produtivas – segundo o critério da divisão social do trabalho, da forma 
da propriedade, das regras do mercado e dos ciclos econômicos; 
 Estudo da origem, do desenvolvimento, das crises, das transformações 
e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção. 
 
Antropologia 
 
 Estudo das estruturas ou formas culturais em sua singularidade ou 
particularidade, isto é, como diferentes entre si por seus princípios 
internos de funcionamento e transformação. A cultura é entendida como 
modo de vida global de uma sociedade, incluindo: religião, formas de 
poder, formas de parentesco, formas de comunicação, organização da 
vida econômica, artes, técnicas, costumes, crenças, formas de 
pensamento e de comportamento, etc.; 
 Estudo das comunidades ditas “primitivas”, isto é, tanto das que 
desconhecem a divisão social em classes e recusam organizar-se sob a 
forma do mercado e do poder estatal, quanto daquelas que já iniciaram 
o processo de divisão social e política. 
 
 
62 
 
 
História 
 
 Estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus 
aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais; 
 Estudo das transformações das sociedades e comunidades como 
resultado e expressão de conflitos, lutas, contradiçõesinternas às 
formações sociais; 
 Estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o 
impacto de acontecimentos políticos (revoluções, guerras civis, 
conquistas territoriais), econômicos (crises, inovações técnicas, 
descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou 
procedimentos de produção, mudanças na divisão social do trabalho), 
sociais (movimentos sociais, movimentos populares, mudanças na 
estrutura e organização da família, da educação, da moralidade social, 
etc.) e culturais (mudanças científicas, tecnológicas, artísticas, 
filosóficas, éticas, religiosas, etc.); 
 Estudo dos acontecimentos que, em cada caso, determinaram ou 
determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em 
seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais; 
 Estudo dos diferentes suportes da memória coletiva (documentos, 
monumentos, pinturas, fotografias, filmes, moedas, lápides funerárias, 
testemunhos e relatos orais e escritos, etc.). 
 
Linguística 
 
 Estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de 
princípios internos de funcionamento e transformação; 
 Estudo das relações entre língua (a estrutura) e fala ou palavra (o 
uso da língua pelos falantes); 
 Estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de 
signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação. 
 
 
 
63 
 
Psicanálise 
 
 Estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas 
relações com o consciente; 
 Estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas 
expressões conscientes (neuroses e psicoses). 
 
 Devemos observar que: 
 
 Cada uma das ciências humanas subdivide-se em vários ramos, 
definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos. 
Assim, podemos falar em psicologia social, clínica, do desenvolvimento, 
da aprendizagem, da criança, do adolescente, etc. Ou em sociologia 
política, do trabalho, rural, urbana, econômica, etc. Também podemos 
falar em história econômica, política, oral, social, etc. Ou levar em 
consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela 
etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia, assim como a lingüística 
trabalha com a fonologia, a fonética, a gramática, a semântica, a sintaxe, 
etc.; 
 Embora com campos e métodos específicos, as ciências humanas 
tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando 
trabalham interdisciplinarmente, de modo a abranger os múltiplos 
aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados; 
 Os desenvolvimentos da lingüística, da antropologia e da psicanálise 
suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina 
científica: a semiologia, que estuda os diferentes sistemas de signos e 
símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de 
comunicação. O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de 
que signos e símbolos são ações e práticas sócio-históricas, isto é, estão 
referidos às relações sociais e às suas condições históricas, cada 
sociedade e cada cultura constituindo-se como um sistema que integra 
e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos (linguagem, arte, 
religião, instituições sociais e políticas, costumes, etc.). 
 
 
64 
 
 
Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse 
capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica. 
Esse método é a semiótica, tomada como metodologia própria às ciências humanas 
e capaz de unificá-las1. 
 
Fonte: slideshare.net 
6 A METAFÍSICA DO SER: UM ESTUDO FILOSÓFICO PARA A VIDA 
 
A cada amanhecer e anoitecer, existe algo que está dentro de cada indivíduo, 
algo que o faz existir no aqui e agora, algo que não se vê, mas que faz evidência. Este 
estudo de base filosófica é uma pequena síntese do conhecimento sobre uma força 
que move tudo sem ser movida, que faz vida, o Ser transcendente, o Ser como 
princípio universal de tudo o quanto existe ou é real. 
Há sempre uma forma de vida. Algo que ordena, sem ser ordenado, uma 
inteligência que não nasce, mas, faz tudo nascer. O objetivo do trabalho é indagar-se: 
o que é o Ser? De que modo ele é? Qual a relação que há entre o Ser com as diversas 
individuações do universo? Como percebê-lo sendo nós humanos? Cada humano o 
tem? E como tocá-lo? De que modo a Ontopsicologia explica o Ser? 
 
1 Texto adaptado: www.home.ufam.edu.br 
 
 
 
65 
 
 
“A vida deve ser estudada e indagada lá onde aparece suprema, mais 
elevada segunda nossa experiência, vale dizer no homem. É inútil buscar a 
vida dentro de um fóssil, ou dentro de uma planta. Indaguemos, em vez disso, 
os horizontes do ser psíquico do homem, que nos dirá muito mais” 
(MENEGHETTI, 2004, p. 18). 
 
Justifica-se este tema pela relevância que ele tem como forma de entendimento 
para a identidade do ser humano. É fato que, recebem-se informações junto as quais 
se esquece de ver a vida como um todo, buscam-se soluções através de fatos físicos, 
matéricos, do modo como a tecnologia resolve os problemas através do externo. 
Desta forma, indaga-se no decorrer do estudo se, o homem, não compreendendo o 
que é o Ser, pode ser modificado da sua forma originária, se ele reconhece a sua 
natureza. 
Como resultado, busca-se entender o Ser, também como forma de encontrar a 
natureza original do homem, é um resolver interno, resgatar o conhecimento próprio, 
o conhecimento organísmico. Busca-se a evidência oferecida pela natureza, que 
sustenta o conhecer do ser humano. Por fim, a verdade só é verdadeira se o sujeito é 
verdadeiro, como já dizia o filósofo Sócrates na Antiguidade Clássica: “Conhece a ti 
mesmo”. 
 
 
Fonte: pt.slideshare.net 
A vida é um fato a ser entendido, observado, instigado. Esta se resplandece a 
 
 
66 
 
cada momento, no aqui, no agora. Entender a vida é entender o que se é, para que 
se vive, o que se vê e principalmente o que se faz, pois com ela não basta acreditar, 
é preciso agir. Viver é uma alegria, o saber viver é uma festa para a alma, é saber 
buscar o que é vivo para dentro de si. “Vida: o lugar da força. Semovência autônoma 
a um intrínseco fim no particular e no total” (MENEGHETTI, 2012, p. 269). 
Compreender de fato o que é a vida, o que é o projeto da natureza de cada ser 
humano é uma tarefa de responsabilidade e também de magnitude. O filósofo 
Heráclito já dizia: “Máxima virtude é ser sábios e a sabedoria consiste em dizer e fazer 
coisas verdadeiras, compreendendo-as segundo a sua natureza” (CAROTENUTO, 
2009, p. 15). 
Buda, também tem uma passagem muito interessante sobre o que para ele 
significava a vida: 
 
Conta-se que certa vez Buda, interpelado sobre a vida, serviu-se deste fato 
para explicar. Fez trazer a si um elefante, e depois, colocou ao seu redor dez 
ou quinze homens cegos e convidou-os a tocar o animal, permanecendo 
parados onde se encontravam. Disso resultou que os cegos definiam de 
acordo com as partes que tocavam. A vida não pode ser conhecida por inteiro 
enquanto cada existente tende a ressaltar o seu ponto de observação, não 
conseguindo superar o fato de que espaçotempo são unidades de medida 
convencionadas à nossa ótica, ao nosso modo de caminhar, mas não são 
absolutas. Não temos objetividade de existência enquanto pretendemos nos 
relacionar ao absoluto com medidas relativas ao nosso ponto de observação. 
O nosso nada é um nada de relação, jamais é um nada absoluto. Em si e por 
si existe somente o ser. O nada é a projeção dos limites da individuação no 
âmbito da existência (MENEGHETTI, 2004, p. 22). 
 
Conhecer a vida por inteiro, é abraçar o real, que realidade? Aquela que cada 
um possui. Esta é uma força, um instinto. De que lugar ele vem? Para que lugar vai? 
Como conhecer o real sem apenas definir com as pequenas partes que conhecemos 
segundo nossa lógica? Segundo nosso modo, as nossas medidas, aquilo que 
chamamos de tempo? Duns Scotus, filósofomedieval, descreve sobre abraçar o real, 
a possibilidade que a psique humana tem de assumi-lo e compreendê-lo. 
 
Considera a noção unívoca de ente como objeto primeiro do intelecto: é a 
noção que define a extensão das possibilidades cognoscitivas humanas. De 
fato, como conceito de ente é aplicável univocamente a tudo o que é, assim 
o nosso intelecto pode atingir naturalmente qualquer ente. Portanto, também 
na atual condição, o homem pode assumir, graças ao conceito unívoco de 
ente, um ponto de vista que consente abraçar a totalidade do real 
(CAROTENUTO, 2009, p.53-54). 
 
 
 
67 
 
Se ente, é tudo aquilo que é, há uma força que move, e que já é. Há uma 
intelectualidade que faz tudo se mover em completa harmonia. Uma harmonia que o 
ser humano pode e deve buscar para a sua vida. Meneghetti (2004), descreve que 
seria impossível a vida existir por apenas uma força da Terra sozinha: 
 
“A vida não poderia existir por força intrínseca da Terra sozinha. Nós somos 
os resultados e as reflexões de todo um conjunto cósmico: esta vida, neste 
planeta, é determinada por um particular sincronismo interplanetário e 
interestrelar. Como um certo números de átomos proporcionais entre si, 
efetua uma molécula específica, assim as relações energéticas de variáveis 
cósmicas efetuam um modo de vida que chamamos existência terrestre” 
(MENEGHETTI, 2004, p. 24). 
 
Partindo deste pretexto, pode-se afirmar que existe um Ser, um princípio que 
move tudo sem ser movido, faz gerar a vida, enquanto ele é vida. Anaxágoras falou 
desta força, deste Deus, conceituando-o como nùs (transliteração da língua grega ao 
português): 
 
“Ele é a única realidade absoluta e ilimitada e a ele competem duas funções 
– além daquela de princípio vital e cosmogônico que põe em movimento a 
massa indistinta das sementes – conhecer e governar todas as coisas, 
enquanto se o conhecimento é possível por contraste, a nùs sendo diversa 
de cada coisa pode conhece-las todas (CAROTENUTO, 2009, p.16). 
 
Esta força conhece todas as coisas e faz todas as coisas diferenciarem-se, não 
há uma igual a outra. Cada vida já tem um projeto feito para si, já nasceu para ser 
aquela concepção. Assim, também se estende ao ser humano, um assunto muito 
questionável ao longo da história: a relação do homem com o Ser. Que força é esta, 
verdadeira amiga do homem? Que mestre é este que está dentro de cada ser 
humano? Já somos escolhidos antes de estar no ventre? Somos chamados? 
 
Mas o nosso existir em referência ao transcendente, ao Ser, a Deus, que valor 
tem? Nós não somos diretamente escolhidos pelo Em Si avulso da história; 
todavia, a partir do momento em que a história nos determina, nós vivemos 
com a mesma importância do Ser em si. Através da história passa a 
identidade do Em Si; o ser atua-se, fenomeniza-se exatamente no aqui e 
agora dos nossos ascendentes, da nossa situação espaço-tempo. A partir do 
momento em que eu aconteço, necessariamente sou amado, sou desejado, 
necessariamente sou chamado desde sempre (MENEGHETTI, 2004, p. 29). 
 
Como o humano entende que há um Ser que o chamou para a história, lhe deu 
um projeto de vida? Meneghetti (2010), acrescenta que enquanto se vive é necessária 
 
 
68 
 
uma passagem metafísica: “Todavia, enquanto se vive, resta uma oportunidade e é a 
passagem ao metafísico: de qualquer posição que se encontre, o sujeito pode se 
deparar, como próprio encontro secreto naquele além que é sempre aqui. É uma 
consolação mística” (MENEGHETTI, 2010, p. 278). Por metafísica conceitua: “A 
“metafísica”, propriamente é a racionalidade elementar que se refere ao ser. A 
ontologia pura é metafísica. O termo “metafísica” usa-se, propriamente, apenas para 
os modelos mentais em relação ao ser (MENEGHETTI, 2014, p. 13). 
 
Fonte: sbcoaching.com.br 
Também descreve a importância de compreender o que é a ontologia: “Para 
compreender profundamente a experiência da psicologia é preciso ter uma formação, 
uma experiência filosófica de ontologia. (...) é a ciência, o discurso sobre o ser. 
Ontologia é a descrição e compreensão do ser, dos seus modos, relações e das 
próprias fenomenologias (MENEGHETTI, 2010, p. 272). 
 
A tentativa da Ontopsicologia é elucidação do ser em referência, isto é, um 
favorecer a experiência consciente do ser enquanto está referindo-se, um 
mostrar ótica fora da alteração verbalística, um tornar o ôntico ontológico. Tal 
tentativa não pertence, por ordem fatal, a alguns predestinados, mas é direito 
e dever de todos. Jesus dizia: “sois como deuses, o reino de Deus está dentro 
de vós, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai”. A experiência que me 
conheço me faz sentir comum; o que eu sou é de todos (MENEGHETTI, 2003, 
p. 197). 
 
O que é tornar o ôntico ontológico? Por ôntico entende-se: “genitivo do 
 
 
69 
 
particípio presente do verbo ser. Participado pelo ser em si. O que constitui o princípio 
para qualquer possibilidade ou fato de existir. Atualidade da causa primeira de um 
processo. O princípio pelo qual é, ou não é” (MENEGHETTI, 2012, p. 188). Em forma 
simples, Ser o que se “é” por natureza, compreender a si, e assim, compreender o 
ser, suas fenomenologias. “Ninguém pode entender a vida em si enquanto a sua 
consciência estiver fora do contato com o Em Si ôntico, única presença do originário 
metafísico. Qualquer homem que chega a conscientizar o próprio Em Si ôntico 
conhece a voz do Pai e, daqui, sabe toda revelação” (MENEGHETTI, 2003, p. 196). 
 
Trata-se de uma realidade simples, quotidiana, contínua, total: é ou não é. 
Qualquer coisa que se correlacione a esta cópula – “é”- a este ente, ou seja, 
dado primordial da racionalidade e da experiência humana, que não é 
constituído pelos sentidos, pela matéria, ou pelo sujeito, mas pelo “é”: ou é, 
ou não é. Se não é, opera-se uma negação. Essa sumidade metafísica, 
portanto, é quotidiana, é algo com o qual o sujeito faz o jogo e o jogador. 
Qualquer modo, ou é fundamentado no ser, ou não tem sentido” 
(MENEGHETTI, 2014, p. 23). 
 
Também se torna válido o discurso sobre o que é o Ser para Meneghetti (2012). 
Este o conceitua do seguinte modo (2012, p. 244): 
 
Ser: Princípio universal do quanto existe ou é real. O ser é o primeiro simples 
geral que consente a lógica apriórica entre ser e não ser. Em Ontopsicologia, 
distinguemse três modos de ser: 
a) Metafísico ou Ser transcendente, ou Ser como Deus; 
b) Comum, ou ser como participação universal de todas as coisas; 
c) Individual, ou ser como participação de mim existente aqui e agora. O Em 
Si ôntico é mediador dessas três realidades: com base no Ser transcendente, 
o Em Si ôntico tem a relação com o primeiro princípio; com base no ser 
comum, o Em Si ôntico tem a relação com o cosmo, com o universo, com a 
vida; com base no ser individual, o Em Si ôntico tem a relação com o homem 
enquanto ecceidade histórica, pela qual assinala a própria irrepetibilidade 
(MENEGHETTI, 2012, p. 244). 
 
Ou seja, na prática, cada pessoa como ser humano, com seu Em Si ôntico, seu 
projeto de natureza faz relação com o Ser de modo metafísico, depois, através do Em 
Si ôntico, faz relação com a vida, com o que encontra no universo, existe uma unidade 
de ação universal, é a operatividade da intelectualidade do ser, é a psique. E, também 
através do Em Si ôntico, cada pessoa é exclusiva aqui (ecceidade), tem uma 
experiência máxima daquela presença que a identifica, faz a sua participação do aqui 
agora daquilo que é. 
O ser se diferencia conforme as individuações (pedra, ser humano, flor, 
pinheiro, carvalho, água, etc.): do genérico ser, começam infinitas estradas 
de variáveis que fazem a dialética existencial dos cosmos. Cada um é 
diferente: a pedra não é homem, o homem não é a árvore e assim por diante. 
 
 
70 
 
O que é que os faz variar? É o projeto. O ser, quando acontece, acontece 
com um projeto, com uma informação. O Em Si ôntico é a especificidade 
como o ser se presencia, se individuaaqui, agora e assim. É a identidade 
informacional do sujeito em dialética existencial: é o projeto e o projetante 
(MENEGHETTI, 2010, p. 274). 
 
Para Vidor (2015), “para entender o ser não se deve partir da consciência, mas 
do fato existencial é o corpo em todas as variações dele, o sonho, as emoções, 
sentimentos. Infinidades de variações do corpo como antenas. E dar atenção ao 
íntimo da mente que se chama intelecto”. Se partimos do que está em nossa 
consciência, esta pode estar embaçada, e esquecemos que somos a realidade do 
Ser. Quando não se chega a esta percepção, vive-se com outro em si mesmo, 
acreditam-se em tantas outras convicções, culturas, religiões, o que a família, amigos 
dizem. E, se esquece que há um projeto que é só seu, irrepetível. 
 
Tudo é, todos os homens são, e cada um se diferencia no interior do ser. A 
individuação é um dos infinitos modos de participação do ser, é ecceidade do 
ser, é aquele indivíduo específico. Dois sujeitos, “A” e “B”, mesmo tendo em 
comum a participação ao ser, são distintos. Disso se deduz que o ser é 
transcendente, enquanto está em tudo, mas contemporaneamente, em cada 
um é irrepetível: “A” é somente “A”, aqui, assim, agora, como. Não existe 
identidade, realidade sem o ser: essa nasce de modo em que o ser se faz 
ecceico aqui. Dos diversos “aqui” nasce a infinita dialética da sociedade, ou 
seja, do indivíduo no tempo, no espaço, entro os outros (MENEGHETTI, 
2010, p. 273). 
 
Outro ponto a ser destacado, é que fomos ensinados a compreender aquilo que 
se vê, algo que faz matéria, racionalidade. Como se a psique não devesse ser 
estudada, como se não se deve utilizar esta inteligência com aquilo que somos. 
Acaba-se deixando “escapar” informações que a vida traz, mostra, aquilo que é a 
realidade de cada um. 
 
Devemos concordar que estamos cindidos no nosso modelo de realidade; 
estamos habituados que o real existe na medida em que toco externamente 
aqui e que o mesmo altera a realidade corpórea. As coisas estando assim, 
explica-se a desconfiança que sentem todos aqueles que afrontam a 
investigação do profundo do homem: este profundo que convém denominar 
psíquico (MENEGHETTI, 2005, p. 19). 
A atividade psíquica é o agir do Ser, ele age através dela evadindo o tempo e 
o espaço que nós humanos condicionamos. Esta, age de modo ordenado. “A 
realidade psíquica, sendo o fundamento das outras realidades sensoriais, possui 
velocidades, possui relações desconhecidas aos nossos sentidos; é superior, funda 
todos os outros sentidos. A psique, pelo seu extremo grau de amplitude, pode 
intercambiar os tempos, os lugares. A realidade psíquica tem a possibilidade de 
 
 
71 
 
transferir-se sem ser necessitada pela progressão” (MENEGHETTI, 2005, p. 21). “A 
atividade psíquica pura não é tanto energia, mas é o processo de formalização” 
(MENEGHETTI, 2012, p. 27). 
Compreendendo as passagens do Ser, através do Em Si ôntico, do projeto de 
natureza de cada pessoa, chega-se ao nexo ontológico. Para Vidor (2015), “se o 
momento reflexivo-psicológico é igual ao real que sou, é igual a ação ôntica, o saber 
segue e é conforme a lógica do ser. O único ponto firme que o homem tem é o próprio 
Em Si ôntico. Ele é a raiz ou núcleo que informa o saber coincidente ao próprio ser. O 
nexo ontológico é o critério que fundamenta a veracidade de todas as ciências” 
(VIDOR, Apostila Filosofia e Lógica, Bacharelado em Ontopsicologia, 2015, s/p). Ser 
fiel naquilo que verdadeiramente sou. Neste sentido encontramos na obra de Antonio 
Meneghetti (2004): 
A fidelidade ao meu ato de existir determina a plenitude sempre em 
crescimento, porque onde eu existo, me amo, me reconheço, determino 
novamente o sentido nascente acrescente. Através de mim, acontece 
qualquer forma de milagre, qualquer forma de sucesso (MENEGHETTI, 2004, 
p. 30). 
 
 
Esta é a proposta de ser. “Limpar” a consciência, e ser uno ao todo. O eu só é 
real quando age a lógica do próprio Em Si ôntico. O Ser está em todas as coisas. 
Começou tudo através de uma intenção. Uma energia que independe da matéria, é 
atividade psíquica. Por fim, o homem é um ente inteligente, que enquanto há vida, 
sempre está direcionado à intenção de realizar um projeto, o seu projeto2. 
 
O meu é um discurso filosófico e psicológico, e não entendo subverter as 
pedagogias sociais existentes e muito menos fundar um partido ou uma nova 
religião, mas diminuir a solidão dos que chegam além e pedir-lhes que não 
se paralisem. A consciência ôntica é um sacerdócio solitário sem 
paternalismos protetores. (...) O homem verdadeiro é no estilo de um 
sacerdócio solitário que honra o Em Si eterno na oferta da existência comum 
sem um “imprimatur” de paternidade exterior... (MENEGHETTI, 2003, p. 197). 
 
7 RAZÕES DO AGIR E NORMATIVIDADE EM HEIDEGGER 
 
A atribuição de razões para o agir e a normatividade são temas que têm 
encontrado relevante espaço na reflexão filosófica contemporânea. As motivações 
quem levam o homem a agir nem sempre são claras, e por isso necessitam de uma 
 
2 Texto adaptado: www.saberhumano.emnuvens.com.br 
 
 
72 
 
investigação que não leve em conta apenas os aspectos objetivos da ação, mas o 
contexto no qual a ação e a decisão acerca do agir se desenvolvem. Além disso, 
podemos afirmar que são muito diversos os modos a partir dos quais podemos 
abordá-los, visto que tratam-se de temas bastante amplos no âmbito filosófico. 
Poderíamos, por exemplo, tratá-los sob uma perspectiva histórica, percorrendo o 
caminho através do qual os temas foram compreendidos ao longo da história da 
filosofia, ou poderíamos confrontar teorias, posicionando-nos favoravelmente a uma 
ou a outra. 
 
 
Fonte: todamateria.com.br 
No presente texto, contudo, apresentaremos uma tentativa de abordar a 
atribuição de razões para o agir e a normatividade sob a perspectiva da filosofia 
heideggeriana. Embora Heidegger não tenha tratado de maneira específica de tais 
temas, é possível justificar, especialmente a partir dos textos do período de Ser e 
tempo, um tipo de normatividade adequada à singularidade que caracteriza a 
existência do Dasein. Assim, ao invés de nos voltarmos para a definição de normas 
objetivas, ou da determinação de razões absolutas para o agir em geral, o foco do 
presente trabalho se volta para o questionamento acerca da própria possibilidade da 
normatividade e da atribuição de razões. O como assume importância fundamental, 
pois se refere às condições de possibilidade, para que normas e razões se imponham 
 
 
73 
 
sobre o modo pelo qual o Dasein age e se relaciona com o mundo. 
Neste contexto, o presente trabalho tem como objetivo principal indicar, a partir 
da análise desenvolvida por Steven Crowell em alguns dos seus textos principais, 
elementos que nos permitem interpretar a normatividade que decorre da condição 
existencial do Dasein, e assim compreendermos o modo pelo qual lhe é possível 
atribuir razões para o agir. Buscaremos, nesta perspectiva, sustentar que tanto a 
normatividade quanto a atribuição de razões possuem um fundamento ontológico, o 
qual se coloca em manifesto na resposta que o Dasein dá à exigência que se impõe 
a si mesmo em seu ter-que-ser. Uma vez que a atribuição de razões e a normatividade 
são tradicionalmente abordadas no âmbito das ontologias regionais – esfera ôntica –
, a leitura feita por Crowell se mostra relevante, na medida em que se propõe a 
demonstrar que há um fundamento ontológico, tanto em relação ao tipo de 
normatividade, que decorre da ontologia fundamental quanto na atribuição de razões 
para o Dasein em seu modo de agir. 
Logo no início de Ser e tempo, deparamo-nos com uma crítica feita à tradição 
metafísica, pelo fato desta tentar interpretar o modo de ser do ser humano, a partir de 
conceitos inadequados ao tipo de ente que ele é. Heidegger, no entanto, segue outro 
caminho. Através da analítica existencial,o filósofo alemão nos apresenta uma 
descrição das estruturas existenciais do Dasein, sem recorrer ao esquema categorial 
de propriedades. (REIS, 2014, p. 16). Como consequência, Heidegger nos apresenta 
uma nova concepção do ser humano, a qual busca superar a objetificação decorrente 
do esquema sujeito-objeto da modernidade. 
Neste aspecto, Heidegger critica frontalmente toda conceituação do ser 
humano construída sobre uma essência predeterminada, visto que tais concepções já 
pressupõem uma interpretação do ente, sem levantarem a questão da verdade do ser. 
No fundo, toda definição de ser humano, que assuma uma natureza específica 
previamente definida como fundamento permanece metafísica e, por isso, não 
alcança a compreensão do homem em seu ser. E é justamente com o intuito de 
romper com a tradição metafísica, e poder apresentar uma concepção do ser humano 
em sua relação necessária com o ser, que Heidegger, em Ser e tempo, afirma que “a 
essência do Dasein consiste em sua existência”. (HEIDEGGER, 2006, p. 42). 
Ao reservar o termo existência exclusivamente para o Dasein, Heidegger 
chama a atenção para o fato de que o modo de ser do Dasein é diferente do modo de 
 
 
74 
 
ser dos entes intramundanos. Evidentemente, ao dizer que somente o Dasein existe, 
e que os demais entes são, Heidegger não está negando a existência destes. O 
objetivo heideggeriano é evidenciar que o Dasein, concebido enquanto existência, é 
o único ente que compreende o ser. Ou, dito de outra forma, os entes somente são 
porque o Dasein possui desde sempre a compreensão do ser. 
 
 
Fonte: youtube.com 
Desse modo, o termo existência possui grande importância no pensamento de 
Heidegger. Por um lado, existência significa a capacidade de autodefinição e 
autodeterminação, que só o Dasein possui. Mas além disso, e este é um ponto 
fundamental no presente trabalho, ‘existir’ (Existenz) é ser de tal forma que o ser 
mesmo seja (ou signifique) uma tarefa ou uma questão – em jogo – não apenas agora 
e depois, mas em todos os lugares e sempre”. (CROWELL, 2012, p. 34). Ou seja, o 
Dasein tem em sua essência uma incompletude que o acompanha como constitutiva 
do seu ser. E uma vez que sua essência consiste na existência, é sua tarefa constante 
a autointerpretação e a definição sobre o que fazer de si mesmo. 
O Dasein é, neste contexto, possibilidade de ser, conforme explicita Heidegger 
na seguinte passagem: 
 
O Dasein não é um ente subsistente (Vorhandenes) que ainda possui como 
acréscimo poder ser algo, mas é primariamente ser possível. O Dasein é 
sempre o que pode ser e no modo da sua possibilidade. […]. O ser-possível, 
que o Dasein sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica, vazia, 
 
 
75 
 
como da contingência de algo subsistente com o qual pode “passar” isso ou 
aquilo. Como categoria modal da subsistência, a possibilidade designa o que 
ainda não é efetivo e que nunca será necessário. Caracteriza o somente 
possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior à efetividade e à 
necessidade. Em contrapartida, a possibilidade enquanto existencial é a mais 
originária e última determinidade ontológica positiva do Dasein. 
(HEIDEGGER, 2006, p. 143- 144). 
 
 
Consequentemente, não encontramos em Ser e tempo uma definição de ser 
humano como um o que, cuja essência consista em uma propriedade objetiva comum 
a todos os homens, mas uma descrição do modo de ser do ente que é o Dasein, 
revelado no como da sua existência. Este como, por sua vez, só pode ser explicado 
pela noção existencial de possibilidade. Desse modo, ao afirmarmos que: (a) o Dasein 
é um ente que tem o seu ser como uma questão para si mesmo, e (b) a sua essência 
consiste na sua existência, o que queremos dizer é que o Dasein está desde sempre 
lançado diante de si, com a tarefa de decidir o que fazer de si mesmo. A resposta à 
pergunta sobre o seu ser, contudo, não é encontrada no mundo, nem na razão, mas 
se dá no próprio existir. 
No ensaio Sobre a essência do fundamento, Heidegger é enfático em ressaltar 
que, na proposição “O ser-aí existe em-vista-de-si-mesmo”, não reside um isolamento 
solipsista do Dasein, nem se trata de uma afirmação egoístico-ôntica de cada homem 
fático. Tal proposição também não pode ser refutada pela alegação de que muitos 
homens se sacrificam pelos outros, e que em geral os homens vivem em comunidade. 
Ao contrário, “a proposição dá a condição de possibilidade para que o homem ‘se’ 
comporte, quer ‘egoística’, quer ‘altruisticamente’.” (HEIDEGGER, 1973a, p. 313). O 
objetivo de Heidegger – amplamente tratado em Ser e tempo – é evidenciar as 
condições do que torna o Dasein si mesmo. Determinar a mesmidade do Dasein 
mostrase uma tarefa fundamental, uma vez que somente através dela pode um 
eumesmo relacionar-se com um tu-mesmo. 
Importa ainda notar que a decisão sobre o que fazer de si mesmo não consiste 
em uma simples escolha contingente, em que poderíamos escolher de um certo modo, 
assim como poderíamos escolher de modo diverso. Isso porque na decisão há um 
comprometimento do Dasein consigo mesmo, visto que seu ser está nela implicado. 
A questão, contudo, se refere ao fato de que, colocado diante de si mesmo, o Dasein 
pode querer escolher a si mesmo ou não. Quando escolhe a si mesmo, Heidegger 
afirma que o Dasein assumiu o modo de ser autêntico, pois reconheceu a exigência a 
 
 
76 
 
ele imposta e se tornou responsável pelo seu ser. Por outro lado, quando exime-se de 
decidir, o Dasein assume o modo de ser inautêntico, fugindo da responsabilidade de 
decidir sobre o que fazer de si mesmo. A este respeito, Crowell sustenta que é 
somente através do modo de ser da autenticidade que o Dasein realmente se 
compromete com as normas e exercita a capacidade de conformar sua conduta a elas, 
fazendo-se a si mesmo responsável. (CROWELL, 2013, p. 147). 
 
 
Fonte: icogn.wordpress.com 
Observe-se ainda que, na perspectiva heideggeriana, os entes não trazem em 
si um sentido já definido, independentemente de sua relação com o Dasein. Do 
mesmo modo que o ser humano não possui uma essência prévia determinada, o 
mundo não carrega consigo um significado pronto e acabado. Isso ocorre porque o 
mundo, para Heidegger, não consiste na mera soma dos entes, como um conjunto de 
entes com os quais nos deparamos no curso de nossa vida. É o Dasein que, na 
realidade, atribui sentido aos entes, não de forma arbitrária, nem como produto da 
subjetividade, mas como resultado da relação prática que mantém com os próprios 
entes. O mundo, nesta perspectiva, deve ser concebido como uma rede de sentidos 
que o Dasein atribui aos entes, que decorrem diretamente da sua compreensão do 
ser. 
Poderíamos concluir, neste contexto, que o mundo é sempre particular, produto 
 
 
77 
 
do solipsismo, e por isso seria impossível tanto a vida em sociedade quanto a própria 
ética. Esta, contudo, seria uma interpretação inadequada não só de Ser e tempo, mas 
do pensamento heideggeriano como um todo. Heidegger é claro no § 27 de Ser e 
tempo, ao elucidar que o modo de ser que o Dasein cotidiano assume imediata e 
regularmente é regido pela compreensão de mundo estabelecida pelo impessoal. Isso 
significa que, primariamente, o sentido que o Dasein possui do mundo é um sentido 
previamente estabelecido, que no fundo constitui um contexto de sentido 
compartilhado, que torna possível as relações sociais. 
Ocorre, porém, que as possibilidades do Dasein não estão limitadas aos 
contextos de sentido previamente definidos pelo impessoal. E, na medida em que o 
Dasein dá-se conta de que suas possibilidades de ser não estão restritas aos sentidos 
estabelecidos pelo impessoal, abre-se a possibilidade de atribuir novos sentidos aos 
entes, e assim lançar-se em modos próprios de ser. Este lançar-se em modos próprios 
de ser revela a autocompreensão do Dasein, o qual Heidegger chama de projeto 
(Entwurf), e que Crowell define comoidentidade prática. (CROWELL, 2012, p. 37). O 
projeto exige, nessa medida, o modo de ser autêntico, o que torna o Dasein 
responsável pela decisão sobre o seu próprio ser. 
Conforme explicita Crowell, o projeto descerra o mundo “como um espaço 
significativo em que as coisas aparecem como as coisas que elas são”. (CROWELL, 
2012, p. 38). Em nosso lidar cotidiano, as coisas só aparecem para nós como 
utensílios (Zuhanden), porque estamos em relações ordenadas uns com os outros 
(relações “com-vistas-a”). Um martelo, por exemplo, aparece a nós como um utensílio 
“com-vistas-a” pregar pregos, assim como os pregos nos aparecem como utensílios 
que utilizamos para pregar tábuas. Esta instrumentalidade, contudo, não é suficiente 
para explicar nossa relação com os utensílios; o “trabalho” a ser feito precisa ser 
também considerado. Se minha tarefa é construir uma casa para pássaros, uma 
marreta aparece como um utensílio inadequado; no entanto, se minha tarefa é destruir 
uma casa de pássaros, a mesma marreta será o utensílio a ser utilizado. 
Através do exemplo acima, o que se pretende justificar é que o mundo não traz 
em si o sentido dos entes, nem dita as normas para o agir. Ele não me diz se o meu 
segurar a marreta é para construir uma casa de pássaros – mesmo que se trate de 
utensílio inadequado – ou para destruí-la. O que merece ser destacado é que o “com-
vistas-a” sempre se refere a um “emvirtude-de”, que, segundo Heidegger, sempre 
 
 
78 
 
pertence ao ser do Dasein, para o qual, sendo, o seu próprio ser é sempre uma 
questão. (HEIDEGGER, 2006, p. 84). Construir uma casa de pássaros ou destruí-la 
são ambas possibilidades. Mas saber se quem está segurando a marreta irá construir 
ou destruir uma casa de pássaros é uma questão que não pode ser respondida por 
critérios objetivos ou estritamente racionais. 
Com tais considerações, não se quer afirmar que não deliberamos sobre 
nossas condutas, mas que agir intencionalmente não implica que tenhamos 
previamente deliberado sobre a intencionalidade da ação. (CROWELL, 2013, p. 262). 
Muito pelo contrário, a maioria das ações que praticamos diariamente não são 
previamente deliberadas, mas nem por isso temos motivos para afirmar que não 
tivemos razões para praticá-las. Isso ocorre porque o “emvirtude-de” que acompanha 
a compreensão de mundo do Dasein pertence à mesma estrutura da ação. Para 
Heidegger, assim como para Husserl, “as razões que consideramos quando 
deliberamos estão fundadas em nossas experiências perceptivas, afetivas e volitivas, 
ainda que Heidegger negue que a intencionalidade destas experiências tenha sua 
sede originária nos atos de consciência”. (CROWELL, 2013, p. 275-276). A diferença 
é que, para Heidegger, é a capacidade de ser autêntico que lhe permite dar razões, e 
não sua capacidade de deliberar. 
Isso não significa que não possa haver um espaço de deliberação prévio ao 
agir, mas apenas que o modo pelo qual o Dasein se relaciona com os entes não ocorre 
através de um processo de deliberação. A relação que o Dasein tem com o mundo e 
consigo mesmo, no fundo, é uma relação prática e não epistêmica. Conforme destaca 
Tugendhat, Heidegger foi o primeiro a compreender que a relação que o Dasein tem 
consigo mesmo não é uma relação de um “eu” que precisa ser conhecido através de 
uma atividade reflexiva, mas uma relação empírica, em que o agente toma uma 
posição frente à sua própria existência. Ao passo que os outros podem se relacionar 
com nossa existência teoricamente, cada ser humano precisa decidir sobre o seu ser 
de forma prática. Nosso ser “é dado a nós como algo que nós devemos ser, e que é 
uma questão para nós; a este respeito, a relação de si mesmo com o ser que é assim 
experienciado só pode ser prática, ou seja, uma relação volitiva e afetiva”. 
(TUGENDHAT, 1986, p. 157). 
A afirmação de Crowell de que “as razões que consideramos quando 
deliberamos estão fundadas em nossas experiências perceptivas, afetivas e volitivas”, 
 
 
79 
 
referida acima, se justifica pelo fato de o ser do Dasein estar submetido à estrutura do 
cuidado (Sorge). Sua estrutura triádica revela um Dasein projetado em um poder-ser 
(compreensão), lançado em sua faticidade (sentimento de situação) e já-sempre-
junto-aos-entes (decaída). E mais do que isso, todas elas evidenciam a relação 
prática, e não reflexiva, a partir da qual se dá a construção de sentido do mundo e de 
si mesmo. 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
A fim de exemplificar sua interpretação acerca do modo pelo qual atribuímos 
razões às nossas ações, Crowell traz um exemplo. O existir de um escritor, em-
virtude-de ser um escritor, o provê com padrões de sucesso ou de fracasso à luz dos 
quais ele pode deliberar sobre o que fazer. Se ele percebe que o prazo final se 
aproxima, ele toma isto como uma razão para trabalhar em seu capítulo; se ele não 
se sente satisfeito com o segundo parágrafo, ele toma isto como uma razão para 
melhorá-lo; ele considera suas opções para melhorá-lo, e ele “prefere praticamente” 
adicionar uma nota de rodapé para estender o texto com exemplos, e então isto se 
torna uma razão para fazer o primeiro. (CROWELL, 2013, p. 276). 
Observamos, no exemplo apresentado por Crowell, que as razões para o 
escritor trabalhar no capítulo e melhorá-lo têm sua origem primária no fato de que ele 
quer ser um bom escritor. E, na medida em que sua resposta à questão sobre “o que 
fazer de si mesmo” é “ser um bom escritor”, certas normas lhe são impostas como 
resultado da sua decisão. “Trabalhar no capítulo”, por exemplo, é uma norma que se 
 
 
80 
 
aplica a quem quer ser um escritor, mas não a quem quer ser um carpinteiro, assim 
como a “aproximação do prazo final” é uma razão para trabalhar no capítulo. O sentido 
do ser um escritor está em jogo em suas ações, e é porque o Dasein age em virtude 
do que projeta ser, que as normas apropriadas lhe são impostas como orientadoras 
do que ele deve fazer. 
Neste contexto, o projeto ganha uma dupla importância. Ao mesmo tempo em 
que o projeto revela a compreensão de mundo do Dasein – visto que o projeto revela 
o em-virtude-de da compreensão dos entes –, ele de certa forma estabelece o 
contexto no qual emergem as normas que se impõem. Assim como “trabalhar no 
capítulo para terminá-lo no prazo” é uma norma que se impõe somente a quem se 
projeta como um bom escritor, levar o filho a um jogo, ao invés de sair para tomar uma 
cerveja com os amigos, é uma norma que se impõe a quem projeta ser um bom pai. 
Neste último caso, embora as duas possibilidades possam ser vistas como 
inclinações, o projeto torna a primeira inclinação a razão, tratando-a como 
normativamente melhor do que a segunda. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
Ao estabelecer uma certa hierarquia entre as inclinações, o Dasein exercita 
duas diferentes habilidades-para-ser. No caso do pai que prefere levar o filho a um 
jogo, ao invés de sair para tomar uma cerveja com os amigos, ele está exercitando: 
(a) a habilidade para ser um bom pai, e (b) a habilidade para ser si mesmo, assumindo-
se como fundamento. Conforme explica Crowell, “a habilidade do Dasein de ser 
 
 
81 
 
explicitamente orientado rumo ao que é ‘melhor’, nesse sentido, dá-se, porque o ponto 
de vista da primeira pessoa é ontologicamente irredutível no que diz respeito ao 
entendimento do ser”. (CROWELL, 2012, p. 45). 
O que está em jogo é perceber que o fundamento primordial do agir não é 
encontrado junto aos entes. Ao decidir sobre seu ser, e com isso assumir para si a 
tarefa de existir, o Dasein torna-se o fundamento de si mesmo, o fundamento do seu 
poder-ser. (HEIDEGGER, 2006, p. 284). E é justamente porque o Dasein é um tipo de 
ente que pode existir como fundamento de si mesmo, que ele pode compreender-se 
em termos normativos, e tomar aspectos do mundo – como percepções e afetos –, 
como razões legitimantes. Conforme explicaCrowell, 
 
não é porque minhas experiências tenham uma estrutura racional que eu 
posso agir responsavelmente (racionalmente) ao conformar minhas práticas 
à razão inerente a elas; mas é porque eu posso ser responsável que eu posso 
tratar minhas experiências perceptivas e afetivas como potenciais razões 
justificantes; isto é, como coisas que falam a favor ou contra minhas crenças 
e intenções, como posições que respondem a normas. (CROWELL, 2013, p. 
277). 
 
Nesta perspectiva, a atribuição de razões possuiria um fundamento ontológico. 
Enquanto permanecer no âmbito ôntico, a pretensão de universalização de condutas, 
com base em razões, deixa de perceber uma dimensão prévia que se coloca como 
condição para a própria atribuição de razões, a saber, a compreensão prévia do ser. 
Na esfera ôntica, o fato é que sempre podemos incluir novas circunstâncias à situação 
fática, o que implicaria a possibilidade de incluirmos sempre novas razões para 
agirmos de um modo ou de outro. Uma ação, que poderia se mostrar adequada em 
determinada situação, pode se transformar em uma ação inadequada pela adição de 
novas razões. O problema é que, nas situações concretas de nossa vida, dificilmente 
estamos cientes de todas as razões que podem estar implicadas nas decisões sobre 
o nosso agir. 
Se compreendermos, contudo, os pressupostos ontológicos para a 
possibilidade de atribuição de razões, poderemos então alcançar a singularidade 
existencial, em que as ações são praticadas. E neste ponto a filosofia heideggeriana 
poderia nos ajudar a compreender o como, que acompanha não só a imposição das 
normas reguladoras da ação, mas a própria possibilidade da atribuição de razões. A 
este respeito, dois aspectos de uma questão prévia não devem ser deixados de lado: 
(a) o horizonte de compreensão do agente; e (b) o que o agente decide fazer de si 
 
 
82 
 
mesmo. Do mesmo modo, as normas dependem do projeto lançado, seu conteúdo é 
igualmente dependente da compreensão de mundo do Dasein que se projeta. 
Se, por um lado, as normas possuem um caráter universalizável, visto que 
podemos avaliar a conduta do outro e o contexto no qual as ações são praticadas, por 
outro, contudo, a atribuição de razões é particular, e depende do caráter singular da 
existência. O modo pelo qual atribuímos razões para o agir, de qualquer modo, não 
deve ser descrito como um simples exercício racional, nem como decorrência de uma 
hierarquia de valores preestabelecida. A desvinculação da atribuição de razões dos 
contextos particulares, a partir das quais as decisões acerca do modo de agir são 
tomadas, demonstram-se insuficientes para dar conta do que está em jogo no agir 
humano. 
 
 
Fonte: desistirnunca.com.br 
Segundo Heidegger, a prática não envolve apenas uma orientação para uma 
meta, mas um compromisso consigo mesmo enquanto possibilidade de ser. Há, a este 
respeito, uma conexão necessária entre vontade e razão, visto que o agir é um 
comprometer-se com normas de ser e de fazer, o que por sua vez significa tratar o 
dado da minha situação com razões. (CROWELL, 2013, p. 277). Podemos dizer, 
portanto, que é somente porque o ser do Dasein está em jogo ao projetar-se um bom 
escritor (ser um escritor), que ele se compromete com certas normas e com certas 
razões. 
 
 
83 
 
Assim, se admitirmos que da ontologia fundamental decorre um certo tipo de 
normatividade que governa a ação do Dasein, precisaremos também admitir que a 
atribuição de razões possui um fundamento ontológico. E, na medida em que o Dasein 
se torna o fundamento, isto é, responsável pelo seu ser, ele passa a compreender-se 
em termos normativos, e assim tornar aspectos do mundo razões para a concretização 
do projeto lançado3. 
 
7.1 Uma análise acerca da ética evolucionista tradicional 
 
O ponto comum de diferentes éticas evolucionistas tradicionais é o 
embasamento em uma visão progressista acerca da teoria da evolução. Defendemos 
uma teoria da evolução não progressista, assim como delimitamos a atuação da 
seleção natural. 
 
 
Fonte: razaoemquestao.blogspot.com 
A expressão ética evolucionista tradicional é bastante difundida como 
“darwinismo social”. Darwinismo social é uma nomenclatura genérica que é dada a 
diferentes teorias acerca da sociedade, que aplicam essencialmente dois conceitos 
biológicos: a sobrevivência do mais apto e a seleção natural. Tais conceitos biológicos 
são aplicados à sociologia e à política. 
 
3 Texto adaptado: www.ucs.br 
 
 
84 
 
Atualmente, ainda há um acirrado debate acerca do real posicionamento de 
Charles Darwin, em relação ao darwinismo social. Em relação ao debate, os principais 
questionamentos estão relacionados ao que estaria realmente abarcado no 
posicionamento de Darwin, e que é chamado de darwinismo social. A partir de uma 
leitura sistematizada da Origem das espécies, a aplicação das hipóteses de 
sobrevivência do mais apto e a seleção natural parecem estar longe daquelas 
aplicadas pelos ditos darwinistas sociais. Porém, segundo Ruse (1979), se fizermos 
uma análise da obra A descendência do homem, podemos ter diversas razões para 
acreditar em um posicionamento bastante próximo aos darwinistas sociais. A citação 
abaixo (A descendência do homem) deixa clara a possível posição comum entre 
Darwin e os darwinistas sociais, pela aplicação da seleção natural e da sobrevivência 
do mais apto às sociedades humanas. 
 
Num futuro não muito distante, se medido em séculos, as raças civilizadas de 
homem quase certamente eliminarão e substituirão as raças selvagens 
através do mundo. Ao mesmo tempo, os grandes símios antropomórficos [...] 
serão sem dúvida exterminados. A lacuna entre o homem e os seus parentes 
mais próximos será então mais profunda; ela ficará entre o homem em estágio 
mais civilizado, podemos esperar, do que o caucasiano e algum símio tão 
inferior quanto um babuíno, em lugar de se situar como agora entre o negro 
ou o aborígene australiano e o gorila. (DARWIN, 1871, p.168). 
 
 
Não foi Charles Darwin que promoveu e articulou a ética evolucionista; quem o 
fez foi Herbert Spencer autor contemporâneo de Darwin. Devido à contribuição direta 
de Herbert Spencer (1852, 1857, 1892), esse será essencialmente o pensamento 
exposto acerca do darwinismo social ora exposto. 
Inicialmente, os teóricos considerados tradicionais acerca da ética 
evolucionista, tendo como protagonista Herbert Spencer, utilizam teorias que 
compõem a natureza do processo evolutivo, para fundamentar suas próprias teorias. 
A partir da obra Origem das espécies, de Charles Darwin, foi constatado que os 
organismos em sua totalidade são produtos de um longo, lento e gradual processo 
evolutivo. Esse processo ocorre em função da seleção natural advindo como o efeito 
da luta pela existência. O termo evolução não aparece em nenhuma das edições da 
Origem, pois essencialmente Darwin, em sua obra magna, pretendia defender uma 
forma natural, referente ao surgimento de novas espécies na natureza. 
Justamente pelo advento do pensamento evolucionista, através das hipóteses 
 
 
85 
 
defendidas por Darwin, os defensores da ética evolucionista tradicional sustentam que 
o mundo orgânico está sujeito à luta pela existência que irá culminar na seleção 
natural. Partindo do pressuposto de que os humanos (Homo sapiens sapiens) não 
passam de resultado de um longo processo evolutivo, que ocorre no mundo orgânico, 
é natural que ocorra entre os indivíduos de nossa espécie uma luta pela existência, 
que culmina na seleção natural. Os darwinistas sociais defendem que as ações que 
se vinculam à luta pela existência e à seleção natural são, em certo sentido, justas e 
legítimas. 
Se os indivíduos forem colocados sob uma perspectiva normativa, os 
pensadores acerca da ética evolucionista tradicional defenderiam a posição de que 
tais indivíduos deveriam aceitar e possivelmente favorecera luta pela existência e 
pela própria sobrevivência. Daí decorreria a seleção dos indivíduos. Houve diversas 
discussões acerca da verdadeira forma como a luta pela existência ocorre entre os 
seres humanos. Porém, os pesquisadores que possuíam a mesma opinião que 
Herbert Spencer pensavam que tal luta se resumiria a uma forma bastante simplória 
de economia sociopolítica que seria então denominada laissez-faire. Spencer 
relaciona Darwin ao laissezfaire da seguinte forma: para ele traz à tona a importância 
da reprodução que irá operar por meio da seleção sexual, favorecendo a seleção 
natural, através da competição. Nesse sentido, o individualista dará maior importância 
ao dinheiro, operando por meio da busca pelo lucro, auxiliando a seleção natural e, 
consequentemente, impulsionando na escala mais ampla a produção daquilo que é 
mais ambicionado, e consequentemente, mensurado pelo valor de troca. Nesse tipo 
de economia, o Estado deveria intervir minimamente, afastando-se e 
despreocupando-se com as possíveis consequências sociais. 
A partir do cenário inicial acerca do darwinismo social, ocorreram diversas 
variações. O debate acerca da luta pela existência ganha um papel central nas 
discussões. A luta pela existência seria algo produzido exclusivamente no interior das 
sociedades ou poderia ser algo que ocorre de forma mais frequente entre as distintas 
sociedades? Se partirmos do pressuposto de que a luta pela existência é um 
fenômeno gerado dentro das sociedades, portanto aparentemente uma economia 
laissez-faire, sugerida por Herbert Spencer, parece ser coerente. Entretanto, se 
partirmos do pressuposto de que a luta pela existência é algo que ocorre 
frequentemente entre sociedades distintas, é possível afirmar que temos que avivar 
 
 
86 
 
certas formas de altruísmo e bons sentimentos entre os indivíduos que compõem uma 
sociedade, pois isso favorecerá o acúmulo de energia para uma possível luta entre 
grupos, não justificando assim uma economia do tipo laissez-faire. Tal argumento 
poderia ser utilizado para justificar algum tipo de socialismo. Apesar de concordar com 
a nossa tendência ao altruísmo e aos bons sentimentos, os seres humanos possuem 
uma alta variabilidade genética, que culmina em uma alta variabilidade 
comportamental, sendo necessária a possibilidade de escolha. Assim, um regime do 
tipo totalitário, que predeterminaria as funções dos indivíduos na sociedade, parece ir 
contra a natureza humana. 
 
Fonte: coladaweb.com 
Um autor contemporâneo que parece defender uma ética evolucionista, porém 
muito mais intimamente relacionada com a sociobiologia, é o pesquisador entomólogo 
e sociobiólogo Edward Wilson. Wilson (1984, 2002) sustenta a biophilia que consiste 
na capacidade inata que os seres humanos possuem de amar as outras espécies, 
quando temos a possibilidade de nos aproximarmos e de as conhecermos. O ser 
humano vive de forma simbiótica (inter-relação obrigatória) com a natureza; a 
natureza ganha o papel de companheira obrigatória. 
 
A espécie humana é como o gigante mitológico Anteu, que extraía força do 
contato com a mãe, Géia, a deusa Terra, e a usava para derrotar os 
adversários. Hércules, depois de descobrir seu segredo, levantou Anteu no 
mar e o manteve nesta posição até que perdesse as forças, terminando por 
esmagá-lo. “Os humanos também são prejudicados com a separação da 
 
 
87 
 
Terra, mas nosso sofrimento é autoimposto, e com uma agravante: também 
enfraquece a Terra. (WILSON, 2002, p. 169). 
 
Somos criaturas com estrutura biológica, e isso não nos permite viver em um 
ambiente estritamente artificial, porém o ser humano parece devastar essa natureza 
mesmo necessitando da mesma para poder sobreviver. Wilson (2002) defende a tese 
de que para sobrevivermos, como espécie, necessitamos da natureza e por isso 
devemos preservar o meio ambiente, pois sua degradação pode acarretar o nosso 
próprio fim. Para que possamos auxiliar na evolução do ser humano, temos de 
preservar o meio ambiente, e as ações morais têm por obrigação serem dirigidas para 
tal fim. 
 
7.2 Algumas críticas ao darwinismo social (ética evolucionista tradicional) 
 
Na exposição realizada na primeira parte do artigo, acerca da ética 
evolucionista, foi considerado essencialmente o nível normativo, que é caracterizado 
conforme o que deve ser feito. Os três pontos defendidos foram: 
 
a) laissez-faire; 
b) a coesão dentro da sociedade (não justificação da laissez-faire); 
c) a preservação do meio ambiente. 
 
Estes três pontos partem de uma conclusão comum, que é a de que devemos 
agir da maneira estabelecida, pois exclusivamente dessa forma temos a possibilidade 
de propiciar o bem-estar e a consequente garantia da perpetuação da espécie Homo 
sapiens. Tal conclusão parece responder a: Por que devemos fazer o que devemos 
fazer, porém qual seria a justificação de beneficiarmos o ser humano? A partir da 
análise teórica da ética evolucionista a resposta se dá simplesmente pelo fato de que 
devemos beneficiar a nossa própria espécie, pois o ser humano é um simples produto 
de longo processo evolutivo. Sendo assim, é bom para a nossa espécie nos 
autobeneficiarmos. 
Os teóricos evolucionistas tradicionais geralmente são criticados, devido às 
divergentes regras particulares desenvolvidas em suas teorias. Thomas H. Huxley 
(1901) afirma que a economia do tipo laissez-faire traz à tona apenas as 
características menos atrativas da natureza humana, como a cupidez e o egoísmo, 
 
 
88 
 
distanciando-se do bem moral ou social. As normas apresentadas nos pontos b e c 
podem também ser criticadas. Podemos nos opor à asserção b, que poderia levar a 
um controle total do estado sobre as pessoas; porém, parece complicado opormo-nos 
aos princípios conservacionistas de Wilson. Para que seja possível criticar a ética 
evolucionista tradicional, no que concerne aos seus fundamentos, é necessário mais 
do que exprimir de forma simplista uma opinião acerca das conclusões normativas 
que, supostamente, alicerçam os fundamentos. 
A crítica de George Edward Moore, acerca da ética evolutiva tradicional, é mais 
elaborada. Moore (1903) corrobora que o darwinismo social (ética evolucionista 
tradicional) realiza uma espécie de salto ilusório, pois parte-se do que é o mundo 
(enunciado de fatos), para como o mundo deveria ser (enunciados da moral). Moore 
(1903) compartilha com David Hume (2009) (precursor da argumentação que segue), 
que não é possível resultar enunciados de obrigação, a partir de uma singela 
descrição da realidade empírica. Moore e os pensadores que compartilham sua tese 
concluem da seguinte forma: ainda que seja factível a compreensão, em larga escala, 
das teses defendidas pelos teóricos da ética evolucionista tradicional, tais teses em 
nenhum momento propõem algum tipo de fundamento metaético, que justifique suas 
teses normativas. 
 
 
Fonte: veja.abril.com.br 
As objeções filosóficas acerca da ética evolucionista tradicional, 
 
 
89 
 
aparentemente, não afetam os defensores de tal área. Aparentemente, há uma 
concordância, que, em situações usuais, porventura seja inaceitável que ocorra a 
passagem de um enunciado de fato para um enunciado de obrigação. Porém, eles 
defendem que há uma ocasião particular onde a transição é justificada, isso ocorre no 
caso da evolução. Isso fica claro na tentativa de transpassar a forma como a Terra 
evoluiu para como a Terra deve evoluir. Tal asserção é admissível, podendo tornar-
se, em alguns aspectos, obrigatória. Nesse caso há possivelmente um repto entre a 
dicotomia dever ser e ser. Este se refere a uma exceção reconhecida à regra. 
Há aspectos na fundamentação da ética evolucionista tradicional, que são 
realmente críticos. Tanto Spencer quanto Wilson compartilham uma visão acerca do 
processo evolutivo. Ambos pensam que o processo evolutivo não é um mero percurso 
aleatório, que ocorre muito lentamentee que não possui uma finalidade. Esses 
autores compreendem o processo evolutivo como sendo algo direcionado e com 
alguma finalidade. Nesse sentido, a visão sobre evolução de Spencer e Wilson é 
teleológica.4 A evolução é progressiva, indo de mônade (substantivo simples) ou do 
amorfo até o ser humano considerado o ser altamente organizado. O movimento que 
a evolução segue é ascendente; consequentemente direcional, indo das formas mais 
simples às formas mais complexas, sendo que a segunda possui maior valor. Spencer, 
como é possível verificar na citação abaixo, era notavelmente defensor de um 
processo evolutivo progressista. 
 
Assim, propomo-nos demonstrar, em primeiro lugar, que esta lei do progresso 
orgânico é a lei de todo o progresso; quer se trate das transformações da 
Terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento 
das instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, 
da ciência, da arte, dá-se sempre a mesma evolução do simples para o 
complexo, mediante sucessivas diferenciações. (SPENCER, 1939, p. 5). 
 
Dos autores contemporâneos, Edward Wilson é abertamente progressista, no 
que concerne ao processo evolutivo. É possível observar tal posicionamento, de forma 
fatual, no livro A diversidade da vida, em que o autor defende que, embora haja 
diversos caminhos para a ocorrência do processo evolutivo, é possível observar que 
a evolução é direcionada às formas mais ascendentes. 
 
Durante os últimos milhares de milhões de anos, o conjunto dos animais 
evoluiu num sentido ascendente em tamanho corporal, alimentação e técnica 
defensiva, complexidade cerebral e de comportamento, organização social e 
 
 
90 
 
precisão de controle ambiental – em cada caso, para mais longe do estado 
não vivo do que seus antecedentes mais simples. (WILSON, 1997, p. 192). 
 
A visão teleológica acerca do processo evolutivo, que é realizada por esses 
defensores tradicionais de uma ética evolucionista, confere valor ao processo 
evolutivo. Quanto mais a espécie está elevada na cadeia evolutiva, maior é a 
acumulação de características e o consequente aumento no nível de valor. No topo 
desse processo evolutivo, está o ser humano. Nós somos a espécie que possui o 
maior valor. Por esse motivo, a partir dessa percepção acerca da evolução, surgem 
as teses sobre o que é mundo, que possuímos o dever moral de preservar a natureza, 
o dever de favorecer de forma ativa o processo evolutivo e os possíveis produtos 
desse processo. Particularmente, o ser humano tem o dever de oferecer condições 
propícias para o bem-estar e a perpetuação da espécie humana, a fim de que a 
mesma não seja extinta. E tal conclusão decorre tanto da preservação ambiental, 
como do laissez-faire, quanto um possível socialismo. Essas teses de cunho 
normativo vêm em decorrência imediata da natureza evolutiva, compreendida por 
esses autores. 
 
Fonte: jovem-jurista.blogspot.com 
A interpretação acerca do processo evolutivo realizada por tais autores é de 
cunho teleológico. É bastante comum esse tipo de interpretação, que também foi 
realizada pelo próprio Darwin. A principal função do princípio de seleção natural é 
explicar de que forma novas espécies surgem na natureza, refutando assim o 
 
 
91 
 
Criacionismo como doutrina, segundo a qual cada espécie é fruto de um ato particular 
de criação. Para Darwin, as espécies não são produzidas cada uma por um ser 
externo, mas surgem na própria natureza, segundo suas leis e condições. E é a 
natureza que dá o cunho teleológico à hipótese de Darwin. Porém, a interpretação 
moderna acerca da teoria da evolução não possui cunho teleológico, e é nesse ponto 
que se encontra a maior falha na interpretação dos teóricos clássicos da ética 
evolutiva. 
 
7.3 Os limites do princípio de seleção natural na teoria evolutiva moderna 
 
A biologia moderna é centralizada pela teoria neodarwiniana da evolução pelo 
princípio de seleção natural. O processo evolutivo é considerado um tipo de fenômeno 
extremamente complexo que envolve diversos processos, sendo que o mecanismo 
de seleção natural é o processo central. O aspecto de mais fácil compreensão acerca 
da teoria evolutiva estabelece que os indivíduos que geram uma prole efetivamente 
sejam maior do que a dos outros indivíduos do grupo; nas gerações seguintes, estarão 
melhor representados genética e eficazmente. Nesse sentido, os indivíduos das 
gerações futuras serão mais semelhantes geneticamente aos indivíduos que 
obtiverem maior sucesso reprodutivo. Esse processo de sucesso reprodutivo 
diferencial é denominado seleção natural. Segundo Futuyma (1997), a seleção não é 
nada além do que a sobrevivência diferencial de entidades biológicas. 
Podemos conceber a seleção natural como um mecanismo que irá determinar 
a forma e a frequência de indivíduos em cada uma das gerações. A seleção 
estabilizadora5 manterá os sistemas biológicos, assim como direciona os sistemas 
para novos rumos, ou seja, para a mudança evolutiva. A seleção natural é a hipótese 
central da teoria da evolução; porém, ela não opera de forma isolada. Para que seja 
possível a compreensão da teoria da evolução, é necessário que sejam incorporados 
diversos processos biológicos distintos. Tais processos irão direcionar e restringir a 
ação da seleção natural, no contexto em que está ocorrendo. 
A seleção somente poderá operar através das variações encontradas nas 
populações.6 Charles Darwin, na Origem, traz dois capítulos para elucidar as 
variações que ocorrem dentro de uma mesma espécie, e procura explicar como as 
espécies surgem naturalmente, sem a necessidade de um criador supranatural. Os 
capítulos que tratam essencialmente acerca da variação são originalmente intitulados 
 
 
92 
 
Variation in Nature e Variationunderdomestication. A maior variação entre indivíduos 
de uma mesma espécie, em meio cultivado, serve como ponto de partida para que 
Darwin argumente em favor da complexidade das leis de variabilidade. Essas leis são 
capazes de colocar o uso e desuso não mais como único e principal agente gerador 
de mudanças dos indivíduos. Isto é, não é somente o meio pressionando o indivíduo 
que o levará a apresentar variações. A seleção natural é o processo pelo qual as 
variedades sobrevivem e se reproduzem, tendo maior sucesso reprodutivo do que 
outras. Se a tendência se mantiver, as formas com maior sucesso reprodutivo tendem 
a se tornar a forma dominante na população. É a seleção que irá definir qual é a 
extensão e a frequência de variação que será encontrada, em distintos sistemas 
biológicos. 
A seleção só executará sua função quando existir variação e houver um sentido 
adaptativo. A atuação, a direção e a velocidade seletiva estarão limitadas pela 
natureza e pela extensão da variação ocorrente dentro de uma população. Para que 
seja possível compreender a reprodução diferencial, é necessário o reconhecimento 
da amplitude de variação da forma existente; esta amplitude está relacionada tanto à 
forma comportamental quanto à forma morfológica. 
Há uma ocorrência de diversas variações; entretanto, não é qualquer tipo de 
variação que compõe a matéria-prima do processo evolutivo, porque um outro tipo de 
restrição é a base genética da vida. A seleção irá operar sobre o fenótipo,7 ou seja, 
através da real manifestação morfológica, bioquímica, fisiológica e comportamental. 
Através da aptidão8 do fenótipo, é possível determinar o sucesso reprodutivo e de 
perpetuação da espécie. A seleção só poderá atuar, se houver um meio das 
características fenotípicas serem herdadas, ou seja, transmitidas à prole, nas 
sucessivas gerações. Se não houvesse a possibilidade de transmissão fenotípica, 
esse atributo não teria consequência evolutiva. 
A transmissão de genes nos eucariotos ocorre de duas formas: verticalmente 
ou horizontalmente. A transmissão vertical consiste na incorporação do gene, em um 
gameta haploideque é transmitido dos pais para a prole. A transmissão horizontal 
consiste em um processo onde um organismo transfere para outra parte do seu 
material genético para um indivíduo que não é seu descendente. A descoberta da 
transmissão horizontal afeta diretamente a organização do que chamamos árvore da 
vida. O pesquisador Doolittle (2000), a partir de pesquisas realizadas acerca da 
 
 
93 
 
transmissão horizontal, indica que há a possibilidade de existência de um aglomerado 
diverso de células primitivas que coevoluíram. Tais células possuíam um número 
reduzido de genes e, através da transmissão horizontal, elas trocavam material 
genético. Esse pode ser o processo que originou as formas de vida que conhecemos 
atualmente. Os seres vivos podem se beneficiar ou sofrer, em função do 
comportamento reprodutivo dos outros indivíduos. A limitação da transmissão dos 
genes entre as gerações atua diretamente como um limitador da seleção natural. 
 
 
Fonte: estudopratico.com.br 
Os genes novos podem surgir em uma população, como resultado de um 
processo de mutação.9 As mutações são responsáveis por manter e aumentar a 
variabilidade genética. Nesse sentido, as mutações são outra restrição à seleção 
natural. A mutação é uma incorreção no processo de replicação de um gene, durante 
a meiose. A presença da mutação pode incorporar uma nova variante (novo fenótipo), 
que competirá com aqueles existentes nos conjuntos de genes. Se levarmos em conta 
a ocorrência de outras fontes de variabilidade, como o fluxo gênico, a recombinação, 
a migração e a deriva genética, carecendo de mutação, a seleção natural pode agir 
apenas mantendo a estrutura ou as formas já existentes, ou quando isto já não for 
mais viável, possivelmente levar a população à extinção. A análise acerca dos 
processos evolutivos deve sempre considerar a natureza e a velocidade da mutação. 
Pois a mutação é a fonte de variação para a atuação da seleção natural. O processo 
 
 
94 
 
de mutação ocorre de forma aleatória, porém uma mutação depende diretamente do 
loco do alelo de onde ela está modificando. Nesse sentido, uma mutação que ocorra 
nos seres humanos pode aumentar a capacidade de aprendizado pela natureza do 
loco. Porém, uma mutação que ocorra no loco de uma Drosophilla não irá fazê-la 
desenvolver a capacidade de pintar, pois a mutação é limitada pela estrutura do DNA 
da espécie em questão. Um dos principais motivos de o processo evolutivo ocorrer de 
forma gradual, justamente são as próprias limitações naturais impostas à mutação. 
As possíveis consequências que uma mutação pode causar não ocorrem 
necessariamente de forma simultânea ou instantânea. Uma mutação que seja capaz 
de aumentar, por exemplo, a capacidade de aprendizagem, pode causar algum tipo 
de efeito imediato. Todavia, o impacto total dessa mutação poderá não ocorrer durante 
várias gerações, podendo ser dependente de tipos especiais de informações que 
serão aprendidas. 
A competição é um fator que irá afetar a ação da seleção natural. Há uma 
diferença significativa do conceito (strugle for existence/competição), definido por 
Malthus, que se limitava a explicar a sobrevivência do indivíduo, através da relação 
com a produtividade de alimento do ambiente. Darwin amplia este conceito, no sentido 
de que o mesmo ganha novas atribuições, estando relacionado com o surgimento de 
novas características, que possibilitam a perpetuação das espécies. Com seu 
significado darwiniano, strugle for existence distancia-se bastante do seu significado 
malthusiano. Para Darwin, a “luta pela existência” é um fator que auxilia no resultado 
positivo do surgimento de novas espécies, como formas novas e aperfeiçoadas em 
relação às parentais. Para Malthus, a “luta pela existência” não seria meio de 
aperfeiçoamento, mas um mero agente natural determinístico sobre a relação 
ambiente-vida e entre homens, na sociedade, conducente à miséria e à degradação 
moral. A competição será uma pré-condição da seleção natural. Quando houver um 
contexto em que os recursos estarão limitados, as variantes, que possuírem melhor 
adaptação para adquiri-los, obterão vantagem reprodutiva e consequentemente 
seletiva. 
Somente será possível à seleção natural atuar sobre uma determinada 
característica, se ela tiver algum efeito sobre o sucesso reprodutivo dos indivíduos. A 
seleção natural não atua, se não existir a interação entre a natureza do fenótipo, e as 
distinções no sucesso reprodutivo. As diferenças ocorrentes no fenótipo que não 
 
 
95 
 
possuam efeito significativo sobre as capacidades de sobrevivência dos indivíduos 
não desempenham um papel importante no processo evolutivo. Porém, uma variação 
fenotípica, que não tenha um efeito significativo sobre as capacidades de 
sobrevivência, pode ter, conforme as variações ocorrentes no hábitat e nos recursos 
necessários para a sobrevivência, ou mesmo a sobreposição de nichos.19 O cerne 
da teoria evolutiva resume o princípio de seleção natural, ou seja, o sucesso 
diferencial dos seres vivos. Porém, como a seleção natural atua no mundo biológico 
e físico, sendo colocados sobre ela limites. As restrições como herança genética, 
variabilidade genética, competição, mutações darão à evolução biológica um caráter 
observável e específico. Essas restrições podem ser vistas como aspectos 
epifenomenais da evolução. Nesse sentido, que a abordagem evolutiva estará 
centralizada na compreensão acerca da seleção natural, visando às possíveis 
consequências sobre a matéria viva e o contexto no qual ela está atuando. 
 
7.4 O melhoramento moral como antropotécnica: um substituto ao 
humanismo? 
 
O filósofo alemão Peter Sloterdijk trata da questão do pós-humanismo, a partir 
da visão de uma antropotécnica. Buscamos verificar se tal abordagem possui alguma 
identidade com as ideias trabalhadas pelos filósofos eticistas, o sueco Ingmar Persson 
e o australiano Julian Savulescu quanto à sua perspectiva de melhoramento moral.1 
É importante ressaltar que, apesar de tratarem de questões em parte semelhantes, os 
citados pesquisadores possuem abordagens distintas. 
 
Fonte: fronteiras.com 
 
 
96 
 
Estes últimos seguem a analítica, com influência anglo-saxã (especialmente 
dos filósofos contemporâneos de Oxford), enquanto o outro possui uma abordagem 
hermenêutica, com base na tradição continental mais recente (em especial Heidegger 
e Nietzsche). 
Diante destes autores, passamos a analisar suas reflexões quanto à questão 
do uso da tecnologia e a influência desta no comportamento humano. A abordagem 
de Sloterdijk se faz pela antropotécnica, concebendo como uma sucessora da 
antropologia humanista, visto que esta última não dá conta da tarefa de inibir a 
bestialidade do comportamento humano. Outrossim, Savulescu e Persson 
compreendem que, no momento atual, a espécie humana está em uma situação de 
gravidade global. Portanto, faz-se necessário o uso de bio melhoramentos morais para 
auxiliá-la a tomar decisões mais éticas, visando impedir que a situação chegue a um 
nível irreversível para a vida no planeta. Preliminarmente, podemos notar uma 
intersecção nas ideias de ambos; contudo, precisamos compreender melhor cada 
uma destas abordagens, antes de tirarmos quaisquer conclusões. 
Inicialmente, abordamos o pensamento do filósofo Sloterdijk, a partir de seu 
livro Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o 
humanismo, buscando clarificar os conceitos trabalhados pelo autor. Em um segundo 
momento, enfocamos a questão do bio melhoramento moral trabalhado pelos eticistas 
Persson e Savulescu em seu livro Inadequado para o futuro: a necessidade de 
melhoramentos morais. E, finalmente, na terceira parte analisamos uma possível 
intersecção entre as abordagens, indicando possíveis convergências. 
 
7.5 Uma leitura da antropotécnica, a partir de Peter Sloterdijk 
 
Sloterdijk trata da antropotécnica comouma superação da antropologia 
filosófica do humanismo, na função de domesticação dos humanos. Nas palavras do 
filósofo, “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre tem um ‘contra que’, 
uma vez que constitui o empenho para retirar os seres humanos da barbárie” 
(SLOTERDIJK, 2000), enquanto os que não fossem submetidos a tal domesticação 
humanista permaneceriam na barbárie, pois “o tema latente do humanismo é, portanto 
o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as boas leituras conduzem 
à domesticação”. 
Em Regras pra o parque humano..., Sloterdijk parte de uma abordagem das 
 
 
97 
 
origens deste humanismo,que remonta aos filósofos gregos. Inicialmente trata o 
Humanismo como um meio de manter amizades a distância, seja ela espacial, seja 
temporal (intergeracional), por meio da escrita. 
Para o autor, a filosofia não apenas trata do amor à sabedoria, mas também 
busca compelir outros a este amor, o que leva os leitores da filosofia a participarem 
de uma espécie de círculo de amigos e, justamente neste ponto, começa a sua 
abordagem do humanismo, como meio de domesticação. Sloterdijk cita que, dentro 
desta fantasia de seita ou clube, “saber ler significava de fato algo como a participação 
em uma elite cercada de mistérios” e que “os humanizados não são mais que a seita 
dos alfabetizados e, como em muitas outras seitas, também nesta despontam projetos 
expansionistas e universalistas”. Porém, o projeto humanista só foi tomar corpo 
característico da atualidade, nos séculos XIX e XX, através dos Estados nacionais 
burgueses conforme cita: 
 
[…] O padrão da sociedade literária ampliou-se para norma da sociedade 
política. Dali em diante os povos se organizaram como membros plenamente 
alfabetizados de associações compulsórias de amizade, que se filiavam, em 
cada território nacional, a um cânon obrigatório de leitura. […] Pois o que são 
as nações modernas se não eficazes ficções de públicos leitores que teriam 
se transformado, pelos mesmos escritos em uma associação concordante de 
amigos? (2000, p. 12). 
 
Assim, a alfabetização tornou-se uma norma, e as então consideradas “boas 
leituras” faziam parte de uma espécie de pedagogia nacional, mas mesmo no passado 
era notável tal função. Este Humanismo possui um caráter inibidor da bestialidade 
humana, uma forma racional de resposta aos estímulos desinibidores, tal como era 
notável na Roma antiga onde havia de um lado a leitura filosófica humanizadora e, de 
outro, os anfiteatros e combates de gladiadores. Neste escopo, o que tornava humano 
era renunciar às influências desinibidoras e escolher pelas inibidoras, buscando o 
desenvolvimento da própria natureza. (2000). 
Como pode-se notar, Sloterdijk entende os seres humanos como sujeitos 
influenciáveis, os quais, ao optarem pelo caminho da humanidade, tornar-seiam de 
fato humanos. Nesta perspectiva faz uma citação de Zaratustra de Nietzsche: “A 
virtude é para eles aquilo que torna modesto e domesticado: com ela fazem do lobo 
um cão, e dos próprios homens os melhores animais domésticos para os homens”. 
(NIETZSCHE apud SLOTERDIJK, 2000). Traz esta perspectiva de influências 
domesticadoras de um humanismo sobre os outros homens. A visão de Zaratustra, 
 
 
98 
 
ao adentrar a cidade onde tudo parecia menor, mostra uma domesticação que se dava 
através de uma combinação de ética e genética, para criarem-se a si mesmos 
menores, submetendo-se em uma seleção direcionada para produzir uma 
sociabilidade semelhante à de animais domésticos (SLOTERDIJK, 2000), e os 
responsáveis por deterem tal monopólio de criação eram aqueles que se 
apresentavam como amigos dos homens, a saber os padres e professores. (2000). 
 
 
Fonte: youtube.com 
Para Sloterdijk, podemos notar desde o diálogo “O Político”, de Platão, 
características deste Humanismo domesticador. O filósofo alemão comenta que os 
discursos falam sobre uma comunidade humana que, ao mesmo tempo, é um parque 
zoológico e um parque temático, e o que poderia parecer um pensamento sobre 
política é, na verdade, uma reflexão sobre regras para a administração de parques 
humanos. (2000). A administração de uma comunidade e de um zoológico diferem na 
questão das espécies domesticadas, e que os próprios humanos são capazes de 
autorregulamentarem-se. Para Sloterdijk, Platão desenvolve os preâmbulos de 
antropotécnica política, através de “uma neocriação sistemática de exemplares 
humanos mais próximos dos protótipos ideais”, quando desenvolve seu diálogo entre 
o jovem Sócrates e o Estrangeiro, que efetuam as divisões dos animais que andam 
sobre a Terra dos aquáticos, dos que possuem chifres os dos sem tal característica, 
 
 
99 
 
até chegar ao ponto da genuína arte da política, que se dá ao cuidado voluntariamente 
oferecido sobre os rebanhos dos seres que os aceitam. (2000). Mas o principal foco 
deste pensamento reside no controle dos criadores sobre a reprodução, citado na 
analogia do tecelão, conforme Sloterdijk: 
 
A razão pela qual o senhor platônico é um senhor reside apenas em um 
conhecimento régio da arte da criação; em uma perícia, portanto, das mais 
raras e refletidas. Emerge aqui o fantasma de uma reinado de peritos, cujo 
fundamento de direito baseia-se no conhecimento de como as pessoas 
devem ser classificadas e combinadas, sem jamais causar dano à sua 
natureza de agentes voluntários. Pois a antropotécnica régia exige do 
estadista que ele saiba como entrelaçar de maneira mais efetiva as 
características mais favoráveis à comunidade de pessoas voluntariamente 
dóceis, de forma que sob sua direção o parque humano alcance a melhor 
homeostase possível. 2000, p. 54). 
 
Assim, a busca por este parque humano homeostático se daria a partir de um 
senhor “super-humanista”. Conforme descrito por Sloterdijk, “a tarefa desse super-
humanista [über-humanisten] não é nada menos que o planejamento das 
características de uma elite, que deve ser especificamente criada em benefício do 
todo”. (2000). Daí se demonstra a existência de um humanismo que foi se 
desenvolvendo ao longo da História humana. Contudo, em meados do século XX, este 
humanismo começou a enfrentar um novo empecilho: 
 
Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo 
em 1918 (radiodifusão), e depois em 1945 (televisão) e mais ainda pela atual 
revolução da internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi 
retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem 
esforço são decididamente, pós-humanistas. Quem considera demasiado 
dramático o prefixo “pós-” nas formulações poderia substituí-lo pelo advérbio 
“marginalmente” – de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que 
os meios literários, epistolares e humanistas servem às grandes sociedades 
modernas para a produção de sínteses políticas e culturais. (2000, p. 14). 
 
Assim este humanismo inibidor vem perdendo espaço para mecanismos que 
muitas vezes são desinibidores; as pessoas leem menos as cartas dos velhos amigos 
que as domesticariam e optam por meios pós-humanistas, como as recentes mídias 
que, muitas vezes, trazem influências desinibidoras. Neste cenário, o humanismo 
literário se esmaece e buscam-se outras antropotécnicas capazes de domesticar o 
ser humano com influências inibidoras. 
 
8 A NECESSIDADE DE BIOMELHORAMENTOS MORAIS SEGUNDO PERSSON 
E SAVULESCU 
 
 
100 
 
 
Os eticistas Ingmar Persson e Julian Savulescu também partem de uma 
perspectiva de que, no século XX, a situação dos humanos, enquanto espécie, 
encontrava-se em estado diverso daquele do passado. Sua argumentação parte da 
premissa de que as condições de vida humanas modificaram-se drasticamente com o 
avanço da ciência e tecnologia. Contudo, a estrutura psicológica moral dos humanos 
fundamentalmente mantém-se a mesma de milhares de anos atrás. (PERSSON; 
SAVULESCU, 2017). Assim, os humanos vivem em grandes sociedades com milhões 
de pessoas,em um planeta habitado por bilhões de outros seres de sua mesma 
espécie, mas interligados através de sua tecnologia. Os autores argumentam que, 
“neste momento a natureza dos seres humanos não é equipada com uma psicologia 
moral que capacite a lidar com os problemas morais gerados por essas novas 
condições de vida”. (2017). Este ponto contém principalmente duas questões em nível 
global: a possibilidade de gerarmos o Dano Último e os problemas ambientais; bem 
como suas decorrências sociais. 
Os esticistas citam que, desde meados do século XX, os humanos adquiriram 
a capacidade de causar o Dano Último, que impossibilitar para sempre a existência 
de uma vida valiosa neste planeta (2017), o que é um argumento cogente diante da 
destruição causada a partir do uso de bombas atômicas, no final da Segunda Guerra 
Mundial, bem como da possibilidade do uso de armas biológicas e o risco de 
pandemias globais. 
O risco é tamanho, que não apenas poderia encerrar bilhões de vidas no 
Planeta, como impedir que novas surjam, devido à radiação e o contágio de doenças 
infecciosas decorrentes da explosão de uma bomba ou da propagação inicial de uma 
doença contagiosa. Tal cenário não é implausível, conforme citado pelos autores, “é 
psicologicamente mais difícil e mais revoltante, por exemplo, assassinar 10 pessoas 
com um machado do que matar 10 mil pessoas ou mais por intermédio de um 
bombardeio por avião” (2017), e isso se dá devido a uma espécie de deficiência moral 
que os humanos possuem, quando elevamos os traços morais a um grande número 
de pessoas. 
Persson e Savulescu partem do pressuposto de que os humanos possuem uma 
série de características morais que são problemáticas em nossa sociedade 
globalizada, superpopulosa e que faz uso de uma ampla tecnologia científica. O 
 
 
101 
 
primeiro ponto se refere à propensão dos humanos a prejudicarem uns aos outros 
enquanto competem entre si por recursos naturais escassos (2017), e isso decorre 
não somente de intencionalidade, mas de possibilidades factuais, pois é muito mais 
fácil gerar dano intenso a um maior número de pessoas do que promover benefícios 
proporcionais ao mesmo número de pessoas. Mesmo dispondo de recursos para 
gerar benefícios às pessoas, é muito mais prático gerar dano com tais ferramentas. 
Segundo os autores “isso se dá por haver mais maneiras de atrapalhar um sistema 
que esteja funcionando bem, a exemplo de um organismo biológico ou a interação de 
organismos, como em um ecossistema, do que aprimorá-lo de maneira similar”. 
(2017). 
 
Fonte: laparola.com.br 
Outra característica é a responsabilidade baseada na causalidade. O senso 
comum nos passa a impressão de que somos mais responsáveis por consequências 
das ações que praticamos do que por coisas que deixamos acontecer ao omitirmo-
nos de preveni-las (2017). Ocorre que, ao nos omitirmos de uma determinada conduta, 
estamos permitindo que ela ocorra sem evitá-la, mesmo podendo, nossa 
responsabilidade é menor do que se tivéssemos provocado o ato considerado. 
Contudo temos alguma responsabilidade. Outro ponto desta questão é que nossa 
responsabilidade parece diluir-se quando causamos efeitos em conjunto com outros 
agentes. Quando pisamos em um gramado contribuindo para a sua deterioração, 
nossa responsabilidade parece ser menor do que se o tivéssemos destruído sozinhos 
 
 
102 
 
(2017). Essa característica é especialmente relevante aos problemas ambientais que 
serão comentados posteriormente. 
Uma terceira característica destacada pelos autores é a de que os humanos 
possuem um viés em relação ao futuro próximo. Segundo ambos, este viés 
 
se manifesta quando nos sentimos aliviados se algo desagradável que iria 
acontecer conosco no futuro próximo é adiado; e, desapontados, se algo 
agradável reservado para nós no futuro próximo é adiado, enquanto o mesmo 
adiamento de coisas desagradáveis e agradáveis em um futuro mais distante 
não nos afeta. (2017, p. 51). 
 
Este ponto é citado pelos autores, tendo em vista que parece ser a explicação 
de por que termos uma fraqueza de vontade ao optarmos por um bem menor imediato, 
em detrimento de um bem maior posterior. Tal escolha nos parece irracional e 
normalmente nos gera arrependimentos ao analisarmos de forma retrospectiva. 
Contudo, este viés tem um valor de sobrevivência aos seres vivos, que não têm 
capacidade de fazer estimativas confiáveis em relação aos eventos futuros, o que de 
certo modo era a realidade humana, durante a maior parte de sua História (2017). 
Contudo, Persson e Savulescu destacam “que precisamos ser cuidadosos ao 
distinguir entre o que é a explicação evolutiva ou a razão de por que temos um certo 
traço e qual é a nossa razão ou motivo quando agimos e reagimos em conformidade 
com este traço” (2017), o que é especialmente relevante prevendo a possibilidade de 
modificarmos tal comportamento. 
Uma característica que também é destacada pelos autores é a de que somos 
mais propensos a compreender melhor a dor de um único indivíduo, mas dificilmente 
compreendemos tão bem a dor na mesma intensidade de um grande número de 
pessoas. Trata-se de uma insensibilidade numérica, pois se um número maior de 
pessoas precisam de ajuda, a quantidade de ajuda que estamos dispostos a dar a 
cada uma diminui (2017). 
A característica do “altruísmo de parentesco” também é relevante dentre as que 
afetam nosso comportamento moral. Apesar do nome, tendemos a agir de forma 
altruísta não só a nossos parentes, mas também a pessoas com as quais convivemos 
diariamente, e de forma menos altruísta com pessoas que não conhecemos. Dentro 
deste traço também há implicação em algumas emoções humanas, como a raiva ou 
agressão ao punir quem não devolve favores, e culpa ou remorso quando é nós que 
estamos nesta posição (2017). Para pequenos grupos a situação de troca de favores 
 
 
103 
 
parece ser mais harmônica, enquanto que uma cooperação sincrônica com inúmeros 
agentes é difícil de ser notada pelos participantes se alguém quebrou o pactuado e, 
semelhante à característica baseada na causalidade, em um número maior de 
agentes, o tamanho da contribuição individual tende a diminuir. Isso leva ao 
entendimento de que “quando o número de cooperadores sincrônicos é menor, os 
níveis de altruísmo e confiança provavelmente serão maiores” (2017). Os autores 
destacam que este altruísmo de parentesco não afeta somente pessoas ligadas a nós 
diretamente, mas também a estranhos que são semelhantes a nós (2017). 
 
 
Fonte: prismacientifico.wordpress.com 
Ao decorrerem por análises racionais das explicações evolutivas destes traços 
morais, eles chegam ao seguinte quadro da moralidade comum e da psicologia 
moralmente relevante: 
 
Nós somos primordialmente responsáveis pelo que causamos, na proporção 
da nossa contribuição causal. O que nos é mais importante moralmente é não 
causar a outrem danos que impliquem relações a direitos. Além disso, somos 
psicologicamente míopes, com uma disposição a nos importar mais com o 
que acontece conosco e com alguns indivíduos que nos estão próximos e que 
nos são caros no futuro próximo. Nós somos capazes de sentir empatia e de 
simpatizar principalmente com indivíduos isolados. Não conseguimos ter 
esses dois sentimentos por coletivos, nem alinhá-los, proporcionalmente, ao 
número de componentes das coletividades. Por estarmos equipados com um 
conjunto de respostas de comportamentos de retribuição, nosso altruísmo 
provinciano nos permite que nos engajemos em cooperação consecutiva e 
recíproca, ao lado da cooperação sincrônica, a qual, por si só, não pressupõe 
altruísmo e confiança enquanto os participantes forem poucos o bastante 
 
 
104 
 
para serem capazes de vigiar uns aos outros constantemente. Todavia, essa 
vigilância não é possível em sociedades modernas com milhões de cidadãos; 
nessa circunstância, indivíduos aproveitadores e antissociais, que 
necessariamenteexistirão em sociedades maiores, tomando como base a 
patente probabilidade de que existirão, irão encontrar ampla oportunidade 
para desviar a atenção e, desse modo, prosperar. (2017, p. 67). 
 
Além da análise da psicologia moral humana, os autores também refletem 
sobre como este aparato psicológico se dá em democracias liberais e nações 
autoritárias. Os referidos eticistas optaram por definir de maneira demonstrativa o que 
seria uma democracia liberal a saber, países como: os da União Europeia, os Estados 
Unidos, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão, etc. (2017), e em um 
contraponto, como os autoritários, citam exemplos da história recente da China. As 
democracias liberais têm como características a busca de isonomia na aplicação da 
legislação, direitos iguais na aquisição de propriedade – e portanto economia de 
mercado, além de liberdade de expressão, imprensa, associação e religião, tal como 
a descrita por pensadores como John Rawls (2017). A abordagem traz a questão da 
dificuldade das democracias liberais lidarem com os problemas contemporâneos 
globais, em especial as armas de destruição em massa e as mudanças climáticas 
antropogênicas. 
Justamente por defenderem tais liberdades, as democracias possuem 
dificuldades em restringir algumas ações danosas de seus cidadãos, e os governantes 
que tentam acabam sofrendo com a impopularidade, inclusive ameaçando seus 
mandatos. Os autores comentam que, para lidar com a ameaça do terrorismo, as 
democracias liberais tenderão a se tornar menos liberais, pois, com o avanço da 
tecnologia e cada vez mais ao alcance da população em geral o risco de um grupo 
terrorista se apropriar de uma arma capaz de gerar o dano último é imenso, ou ainda 
de estes mesmos grupos terroristas forjarem ações visando a enganar um Estado 
nuclear, fazendo com que este ataque outro Estado nuclear, provocando assim a 
retaliação deste (2017). Tal cenário é plausível e foi assim exemplificado pelo 
historiador israelense Yuval Noah Harari: 
 
Terroristas são como uma mosca tentando destruir uma loja de porcelanas. 
A mosca é tão fraca que não é capaz de deslocar uma única xícara de chá. 
Então ela encontra um touro, e entra em sua orelha e começa a zunir. O touro 
fica louco de medo e de raiva – e destrói a loja de porcelanas. Foi isso que 
aconteceu no Oriente Médio na última década. (HARARI, 2016, p. 28). 
 
As democracias liberais são multiculturais, e ao aceitar a diversidade cultural 
 
 
105 
 
permitem que surjam grupos dentro delas que defendem ideias frontalmente opostas 
a esta mesma democracia liberal. Segundo Persson e Savulescu, estes subgrupos 
capazes de restaurar a violência, para promover ideologias, podem utilizar a 
tecnologia para proporcionar-lhes armas cada vez mais poderosas à sua causa. 
(PERSSON; SAVULESCU, 2017). Aqui localizamos um ponto de encontro explícito 
entre a proposta dos eticistas e do filósofo alemão anteriormente comentado. Em uma 
passagem, Sloterdijk cita: 
 
Basta que tenhamos a noção de que as próximas grandes etapas do gênero 
humano serão períodos de decisão política quanto à espécie. Nelas se 
revelará se a humanidade ou suas elites culturais conseguirão pelo menos 
encaminhar procedimentos efetivos de autodomesticação. Na própria cultura 
contemporânea trava-se uma luta titânica entre os impulsos domesticadores 
e os bestializadores, e seus respectivos meios de comunicação. Seria 
surpreendente a obtenção de sucessos mais significativos no campo da 
domesticação, diante de um processo de civilização em que uma onda 
desinibidora sem precedentes avança de forma aparentemente irrefreável. 
Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma 
genética das características da espécie – se uma antropotecnologia futura 
avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero 
humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao 
nascimento opcional e à seleção pré-natal – nestas perguntas, ainda que de 
maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte 
evolutivo. (SLOTERDIJK, 2000, p. 46-47). 
 
 
Nesta passagem de Sloterdijk, nota-se tanto a questão dos impulsos 
desinibidores que provocam violência, quanto à perspectiva da manipulação 
genética.4 Persson e Savulescu são mais incisivos e, diante da inaptidão dos métodos 
tradicionais de moralização, sugestionam a alternativa do biomelhoramento moral: 
 
Nós poderíamos nos tornar moralmente mais motivados, moralmente 
melhorados, por meio de uma aplicação mais completa dos métodos 
tradicionais de educação moral. Porém, como já apontado, esses métodos 
parecem ter tido um sucesso muito modesto durante o último par de milênios. 
Nós sugerimos, então, que deveríamos investigar se nosso crescente 
conhecimento de biologia, especialmente genética e neurobiologia, poderia 
fornecer técnicas suplementares de melhoramento moral, tais como drogas 
farmacêuticas ou modificações genéticas. (PERSSON; SAVULESCU, 2017, 
p. 26). 
 
No século XXI, a humanidade passa por um panorama sem igual em sua 
História, e os métodos clássicos, conforme apontado pelos três autores, não 
conseguem sozinhos suprir esta demanda. A partir desta premissa, analisaremos o 
biomelhoramento moral como uma alternativa ao humanismo literário, na função de 
 
 
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contenção das influências bestializadoras e um meio de evitar um desastre global. 
 
8.1 O bio melhoramento moral, como antropotécnica, é capaz de superar o 
humanismo? 
 
Após uma análise dos problemas enfrentados pela humanidade do início do 
século XXI, Persson e Savulescu propõem a alternativa do bio melhoramento moral, 
não como a solução exaustiva de todos os problemas, mas como mais uma 
possibilidade no rol que os humanos têm à sua disposição. O principal problema é que 
dispomos de pouco tempo, pois com o aumento da violência e disseminação de 
grupos extremistas, capazes de fazer uso de alguma arma de destruição em massa 
que gere o Dano Último e a constante degradação ambiental, que provoca uma 
mudança climática antropogênica, pode-se chegar a um nível que impeça qualquer 
reversão ao momento anterior. Os referidos autores citam que, devido àquelas 
características citadas anteriormente, em especial nossa insensibilidade ao sofrimento 
de grandes grupos de pessoas, frágil senso de responsabilidade por omissões e 
contribuições coletivas, é necessário questionarmo-nos até que ponto o 
melhoramento moral pode ser atingido, a partir de métodos tradicionais de educação 
moral (2017). 
 
 
Fonte: obviousmag.org 
Esta distância entre os métodos tradicionais de educação moral e tecnologia 
 
 
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fica evidente ao compararmos o que desenvolvemos moralmente ao longo da História 
humana e o rápido progresso da tecnologia nos últimos anos. Os autores abordam a 
tese trabalhada por Steven Pinker,5 que argumenta sobre poderes de razão 
melhorados nos levariam a ter melhores engajamentos morais. Contudo, a confrontam 
sob a perspectiva de que apenas uma razão aprimorada não é o suficiente para que 
os humanos ajam moralmente bem, pois é indispensável melhorarmos também uma 
maior solidariedade e senso de justiça para lidarmos com a mudança climática 
antropogênica, levando em consideração gerações futuras e animais não humanos 
(2017). Portanto, os autores partem da ideia de que, ao melhorarmos o altruísmo 
humano e o senso de justiça, melhoraríamos nossas ações. Sua tese do bio 
melhoramento moral é fundamentada na premissa de que tais traços possuem uma 
origem biológica, diante dos dados identificados na análise do comportamento de 
animais não humanos, como os chimpanzés estudados pelo primatologista holandês 
Frans de Waal e em estudos do comportamento de gêmeos idênticos humanos, em 
comparação com gêmeos não idênticos do economista Bjorn Wallace. 
Persson e Savulescu não descartam a tradição clássica do ensino moral do 
humanismo; eles buscam justamente uma maneirade torná-la mais eficiente. A sua 
análise lembra a ideia de acrasia tratada por Aristóteles, e o exemplo citado por eles 
inclusive lembra um incontinente,6 conforme comentam: 
 
Educação ou instrução sobre o que é moralmente bom não é suficiente para 
o melhoramento moral porque ser moralmente bom envolve não apenas 
saber o que é bom, mas também ser tão fortemente motivado para fazê-lo, 
que isso prevalece sobre tendências e impulsos egoístas, nepotistas, 
xenofóbicos, etc. Uma comparação instrutiva poderia ser quando pessoas 
que, mesmo sabendo muito bem que não devem fumar ou comer alimentos 
doces e gordurosos porque são prejudiciais à sua saúde, ainda assim o fazem 
devido à falta de força de vontade. (2017, p. 170). 
 
A tese é de que mesmo sabendo o que é agir moralmente bem, as pessoas 
não o praticam por impulsos que não conseguem controlar. Retomando Aristóteles, 
com o biomelhoramento moral seria possível tornar um incontinente no mínimo em 
um continente, o que também pode ser vislumbrado ao analisarmos outras virtudes e 
vícios. Persson e Savulescu entendem que os humanos conseguem passar uma 
grande quantidade de conhecimento teórico de uma geração à outra. Contudo, o 
desenvolvimento moral ao longo de uma vida é em grande parte perdido, sempre que 
os agentes morrem (2017). 
Em um âmbito prático, Persson e Savulescu citam experimentos com agentes 
 
 
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químicos que alteram o comportamento humano. Os autores trazem como exemplos 
o uso de Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRSs) e dos níveis de 
oxitocina e como isso afeta a cooperação em grupos (visando justamente à questão 
do altruísmo e do senso de justiça). 
Uma objeção comum ao uso de tais substâncias para modificar o 
comportamento humano é de que tal ato prejudica a liberdade dos agentes. Esta 
crítica é abordada pelo eticista Thomas Douglas, em seu artigo “Aprimoramento 
moral”, em que cita que mesmo nesta circunstância não há problema algum se o 
sujeito optou de forma autoconsciente passar pelo melhoramento moral, sabendo de 
suas consequências, bem como esta suposta diminuição de liberdade na realidade 
diminui o impulso do “eu bruto” e fortalece o “eu verdadeiro”. (DOUGLAS, 2012, p. 29-
30). Nesta perspectiva, o indivíduo não moralmente melhorado está mais sujeito a 
impulsos; ao decidir por melhoramento, poderá ter acesso ao seu eu verdadeiro, uma 
autonomia em seu sentido de ser, capaz de impor-se uma norma. Persson e 
Savulescu possuem uma argumentação semelhante: 
 
Sob nosso ponto de vista, aqueles que passarem pelo biomelhoramento 
moral agirão pelos mesmos motivos pelos quais agem atualmente aqueles 
dentre nós que são mais morais, e a noção de que é “impossível” que eles 
façam o que percebem como imoral será a mesma para os melhorados 
moralmente e para a pessoa virtuosa comum: algo que é psicológica e 
motivacionalmente fora de questão que eles escolham.[...] É um erro acreditar 
que pessoas que são moralmente boas por natureza sempre tentam fazer o 
que julgam ser o certo são necessariamente menos livres e menos 
responsáveis do que aqueles dentre nós que falham nisso com frequência. 
Assim como as pessoas moralmente virtuosas não fazem compulsivamente 
o que acreditam ser correto, da mesma forma, os melhorados moralmente 
não irão fazer compulsivamente o que eles acreditam ser correto. 
(PERSSON; SAVULESCU, 2017, p. 164-165). 
 
 
Portanto, não há uma limitação de liberdade, mas ao contrário, há um aumento 
desta. A pessoa melhorada alcançaria um nível moral mais elevado, a ponto de poder 
optar por agir virtuosamente, sem, contudo, agir de forma rígida e necessária. 
Estas perspectivas vêm de encontro ao trabalhado por Sloterdijk, em relação à 
autodomesticação do ser humano. O indivíduo poderá optar por abandonar as 
tendências desinibidoras bestiais e seguir por um caminho humanizante, através das 
escolhas por mídias inibidoras, conforme descreve: 
 
Mas o que se diz com isso é que a humanidade consiste em escolher, para o 
 
 
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desenvolvimento da própria natureza, as mídias domesticadoras, e renunciar 
às desinibidoras. O sentido dessa escolha de meios consiste em desabituar-
se da própria bestialidade em potencial, e pôr distância entre si e a escalada 
desumanizadora dos urros do teatro. (SLOTERDIJK, 2000, p. 19). 
 
 
Ao optarmos por meios inibidores e abri mão dos desinibidores, tornamo-nos 
humanos. Enquanto for uma ação autodeterminada, a opção pelo bio melhoramento 
moral pode ser uma antropotécnica a ser utilizada como um substituto ao humanismo 
literário. 
 
Fonte: slideplayer.com.br 
A aproximação entre o pensamento do filósofo Sloterdijk e dos eticistas 
Persson e Savulescu mostrou-se possível. Mesmo que Sloterdijk não defenda o bio 
melhoramento moral, sua tese prevê espaço para tal antropotécnica, e ainda que 
Persson e Savulescu façam uma abordagem distinta da hermenêutica, os temas se 
cruzam em suas conclusões. É importante ressaltar que nenhum dos autores se opõe 
ao humanismo como possibilidade moralizante, contudo reconhecem que os métodos 
tradicionais não estão sendo capazes de conter os ímpetos humanos, em uma 
sociedade globalizada de bilhões de pessoas. Assim, o espaço para as 
antropotécnicas está disponível. 
A hipótese inicial foi demonstrada como plausível; contudo, surgem novas 
 
 
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questões a partir disso. Ao abrirmos a possibilidade de modificarmos nossas reações 
naturais de forma dirigida a questões morais, em que ponto se torna moralmente 
discutível tal mudança? Nesse sentido existe a possibilidade clara de modificarmos o 
que consideramos como moral, e com esta mesma tecnologia modificar drasticamente 
a natureza humana. O biomelhoramento moral e o melhoramento humano em geral 
permanecem como questões em aberto e que necessitam ser profundamente 
trabalhadas diante da velocidade como a tecnologia aprimora-se a cada dia, 
ampliando cada vez mais a possibilidade de modificação dos humanos por eles 
mesmos4. 
 
9 INDIVIDUAÇÃO DO SI: UMA LEITURA MARIONIANA DE LEVINAS 
 
A discussão que circunda a filosofia pós-moderna consiste na urgência de se 
repensar e de se redefinir o conceito moderno de subjetividade. Tal fato é acentuado 
quando nos deparamos com a decadência das dimensões filosóficas que sustentavam 
uma forma de pensar a subjetividade, principalmente a do conatus espinosano, do 
cogito cartesiano, do sujeito universal kantiano ou, ainda, da consciência intencional 
husserliana e do Dasein heideggeriano. Parece-nos que as perguntas: O que é o eu 
puro ou o que define o sujeito transcendental ainda se apresentam como questões 
plausíveis para o debate filosófico contemporâneo, pois estamos ainda distantes de 
chegar a um consenso teórico diante dessas interrogações. Para além da falta de 
consenso ainda temos os horrores da Primeira e Segunda Guerra Mundial, mais as 
barbáries que vivenciamos em nosso século, que parecem conclamar uma nova 
abordagem daquilo que tornaria o eu, elemesmo (soi-même). 
O eu, enquanto estrutura universal da subjetividade, revela-se como um 
elemento insuficiente para a determinação de sua individualidade, porquanto tal 
expressão designa uma subjetividade geral, ou seja, um eu compreendido como uma 
entidade abstrata, que realiza atos singulares de consciência, comuns a qualquer eu. 
Jean-Luc Marion, filósofo contemporâneo de nacionalidade francesa, investiga essa 
temática parecendo, em certa medida, apropriar-se do pensamento fenomenológico 
exposto por Emmanuel Levinas. 
A partir disso, almejamos neste artigo apresentar, de forma introdutória, alguns 
 
4 Texto extraído: www.ucs.br 
 
 
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aspectos centrais da leitura de Marion do pensamento de Levinas sobre a 
individuação do si, pautados, especialmente, no artigo marioniano intitulado D’autrui 
á l’individu3 (2000). Logo, não está em nosso horizonte de investigação, nesse 
instante,fazer uma análise mais detalhada da relação teórica e/ou epistemológica 
existente entre esses autores, mas, somente, introduzir alguns tópicos que parecem 
ecoar, posteriormente, no projeto filosófico de Marion. 
Retroagimos as obras de Levinas a partir das indicações realizadas por Marion 
em seu artigo, consequentemente, as que se destacaram foram: Totalidade e infinito4 
(1971); Outramente que ser ou mais além da essência5 (1974); e O tempo e o outro6 
(1980). O estudo de tais livros se revela fundamental, dentre outros motivos, pela 
abordagem que apresentam da individuação do si. Buscando romper com o primado 
do mesmo ou do anonimato do ser, temos, em Levinas, uma abordagem filosófica que 
apresenta a alteridade como ponto principal da individuação do si. Nesse aspecto, a 
filosofia da egologia (Descartes), da intencionalidade (Husserl) e da ontologia 
(Heidegger) são convidadas a dividir e, em partes, ceder seu espaço para a filosofia 
do acusativo (Levinas) e do dativo (Marion). 
Quando optamos por reconhecer uma relação de alteridade entre o eu e o 
outrem, ultrapassando a subordinação do diferente, do singular ao mesmo, deparamo-
nos, de maneira especial, com o pensamento levinasiano e marioniano. No contato 
inicial com esses autores, somos convidados a repensar algumas questões centrais 
que envolvem a individuação do si, tais como: a) Qual proposta de individuação do si 
que emerge quando abandonamos o imperativo universal – “tu não matarás”?; b) Para 
que o si consiga relacionar-se com o outro, em sua alteridade, esse outro não teria 
que se apresentar para além ou para aquém do mandamento moral?; c) Seria possível 
ordenar ao si que ame seu próximo, sem recorrer a lei universal apresentada por 
Levinas? 
Romper com a filosofia do mesmo enfatizada na tradição europeia ou no modo 
de filosofar ocidental, onde o mesmo antecede ao outro, onde o princípio da egoidade 
do eu fecha-se numa atividade solitária de um eu pensante sem abertura para a 
heteronomia, torna-se o objetivo daqueles que buscam pensar a filosofia para além 
dos paradigmas modernos estabelecidos. Voltar-se para o estudo do eu encarnado 
(Gabriel Marcel; Michel Henry, entre outros) também se mostra como um outro 
caminho possível para pensar a relação do eu com a diferença, com o irredutível. O 
 
 
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outro apresenta-se como excesso, inadequação da estrutura intencional ou ontológica 
do eu, não permitindo sua dominação, sua significação. O eu não pode conter o outro, 
pois o outro está para além do eu. 
 
9.1 Individuação do Si 
 
Marion interessa-se, inicialmente, pela leitura apresentada por Levinas, na obra 
O tempo e o outro, da individualização do si através da finitude e do encontro com o 
outro. Almejando romper com o primado do mesmo, Levinas delineia um caminho 
distinto do cogito ou do conatus – pensamentos filosóficos que revelam um eu 
anônimo e impessoal – para pensar o eu. A constituição do si se dá através do instante 
da presença, do aqui e do agora. 
 
 
Fonte: paramais.com.br 
O sofrimento, que atravessa o si no instante presente, revelar-se-ia como a 
impossibilidade do si de se separar do instante da existência, ou seja, uma 
“impossibilidade de recuo” do momento atual. O si, ao perceber-se sofrente, tornar-
se-ia enraizado naquela situação, sendo forçado a retirar-se do seu anonimato, 
defrontando-se com a “impossibilidade de fugir do existir”.8 A existência clama por sua 
presença, por seu engajamento no mundo. Consequentemente, seria no sofrimento 
que o si apareceria, revelando-se enquanto aquele que sofre. A diacronia, o momento 
 
 
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presente da existência, não permitiria uma tematização da vivência, um depois. 
Marion esclarece isso ao dizer que “no sofrimento, o existir perde sua objetividade e 
sua indiferença às pessoas – ele se torna o meu, insubstituível, inesquivável, 
individuante [...]” 
O sofrimento do si apresentaria uma individuação originada na/da existência. 
Contudo, o sofrimento que tornaria possível a individuação poderia ser evitada, tratada 
ou até mesmo findada na morte? Para Marion sim, a individuação oportunizada no 
sofrimento seria imperfeita ou, ainda, a sua perfeição descumpriria a individuação, 
pois, quando o sofrimento atinge seu ápice, acaba por levar o sujeito à morte. De outra 
forma, podemos dizer que o si, para manter-se si, teria que permanecer na condição 
de sofrente. 
No entanto, seria somente a individuação do si enquanto sofrente que 
encontraríamos na diacronia? A relação face a face, que ocorre no momento presente, 
seria suficiente para individuar o si sem reduzir o outro a um fenômeno da consciência 
do mesmo? Para Levinas, na relação face a face, o outro não aparece enquanto um 
mero existente entre outros existentes; todavia, seria retirado de seu anonimato e 
assumido como outrem na sua existência. 
Outrem, na relação face a face, tornar-se-ia acessível ao eu, não reduzido, 
revelando-se em partes. Revelar-se significa apresentar-se ao outro, aparecer 
enquanto mistério, isto é, um aparecer incompleto, impossibilitado de totalidade. 
Outrem, ao não se revelar por completo, guardaria em si a possibilidade de 
surpreender todo aquele que tenta objetivá-lo ou reduzi-lo a um mero significado da 
consciência. Para Levinas, a relação entre o eu e outrem é permeada por um enigma, 
em que a distância é também proximidade, uma vez que “a relação com outrem é 
ausência do outro”12 ou, ainda, ausência do outro que permite precisamente a sua 
presença como outro. Ausência que não é ausência e presença que não é presença, 
relação enigmática ou paradoxal, que permitiria o encontro entre os diferentes sem a 
redução ao mesmo. 
 
Esta situação onde o acontecimento chega a um sujeito que não o assume, 
que não pode nada poder a seu respeito, [sc. como no caso do sofrimento e 
da morte], mas onde, entretanto, ele está em face dele [sc. ao contrário da 
morte] de um certo modo é a relação com outrem, o faceà-face com outrem, 
o encontro de um rosto que, ao mesmo tempo, dá e rouba outrem. 
 
Deparamo-nos, assim, com uma forma de relação entre o eu e outrem que não 
 
 
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violaria o mistério do outro, a possibilidade de manter-se desconhecido, como também 
não o reduziria à leitura de um eu enquanto alter ego – um outro eu. O outro é aqui 
entendido como aquilo que “eu não sou”. O outro, quando assumido na relação face 
a face, é um mistério inalienável ao mesmo. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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REFERÊNCIA 
 
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