Text Material Preview
CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI FILOSOFIA GERAL PROBLEMA METAFÍSICOS GUARULHOS - SP 2 SUMÁRIO 1 QUAL A ORIGEM DA FILOSOFIA? ........................................................................ 3 1.1 Origem da palavra Filosofia...............................................................................4 1.2 Quem foram os pensadores que se destacaram na origem da Filosofia?...........4 2 O NASCIMENTO DA METAFÍSICA ........................................................................ 5 2.1 Da cosmologia à metafísica................................................................................6 2.2 Metafísica ou ontologia.......................................................................................7 2.3 Platão e o mundo das essências.........................................................................9 3 A METAFÍSICA DE ARISTÓTELES ...................................................................... 18 3.1 Diferença entre Aristóteles e seus predecessores............................................18 3.2 A metafísica aristotélica....................................................................................20 3.3 Os principais conceitos da metafísica aristotélica.............................................22 4 A ATITUDE CIENTÍFICA ...................................................................................... 27 4.1 Características do senso comum......................................................................29 4.2 A atitude científica.............................................................................................31 4.3 A ciência na História - As três principais concepções de ciência......................35 4.4 Diferenças entre a ciência antiga e a moderna................................................38 4.5 As mudanças científicas..................................................................................42 4.6 Desmentindo a evolução e o progresso científicos.......................................... 44 4.7 Rupturas epistemológicas e revoluções científicas.........................................45 4.8 Falsificação X revolução..................................................................................47 4.9 Classificação das ciências...............................................................................49 5 AS CIÊNCIAS HUMANAS......................................................................................51 5.1 O humano como objeto de investigação..........................................................53 5.2 Fenomenologia, estruturalismo e marxismo.....................................................55 3 5.3 A contribuição da fenomenologia....................................................................56 5.4 A contribuição do estruturalismo.......................................................................57 5.5 A contribuição do marxismo.............................................................................58 5.6 Os campos de estudo das ciências humanas...................................................60 6 A METAFÍSICA DO SER: UM ESTUDO FILOSÓFICO PARA A VIDA ................. 64 7 RAZÕES DO AGIR E NORMATIVIDADE EM HEIDEGGER ................................ 71 7.1 Uma análise acerca da ética evolucionista tradicional.....................................83 7.2 Algumas críticas ao darwinismo social (ética evolucionista tradicional)............87 7.3 Os limites do princípio de seleção natural na teoria evolutiva moderna...........91 7.4 O melhoramento moral como antropotécnica: um substituto ao humanismo?..95 7.5 Uma leitura da antropotécnica, a partir de Peter Sloterdijk...............................96 8 A necessidade de biomelhoramentos morais segundo Persson e Savulescu ...... 99 8.1 O biomelhoramento moral, como antropotécnica, é capaz de superar o humanismo?.........................................................................................................106 9 INDIVIDUAÇÃO DO SI: UMA LEITURA MARIONIANA DE LEVINAS ................ 110 9.1Individuaçãodo Si............................................................................................112 REFERÊNCIA ......................................................................................................... 115 3 1 QUAL A ORIGEM DA FILOSOFIA? A Filosofia nasceu na Grécia Antiga, no mesmo período em que surgiram as cidades-estado. Segundo os registros, essa foi a primeira vez em que os homens começaram a tentar explicar o mundo à sua volta de uma forma lógica e racional. Até esse momento, se pensarmos nas civilizações anteriores, vamos ver uma grande diferença: a maioria dos povos tentava explicar os acontecimentos e até fenômenos naturais por meio de mitos. Os sacerdotes e religiosos concentravam o conhecimento e usavam suas crenças para satisfazer as curiosidades básicas do ser humano. Fonte: unisantos.br Na Grécia, os acontecimentos tomaram um rumo diferente. Embora a mitologia grega seja extremamente rica e preveja a atuação de uma série de divindades, os filósofos — que eram considerados enviados dos deuses — começaram a sistematizar o pensamento humano e exercitar a lógica. Além disso, os filósofos apresentavam outra diferença fundamental em relação aos sacerdotes religiosos. Eles não se viam como detentores ou donos da verdade. Consideravam-se apenas amigos do saber, dispostos a desvendar esses mistérios junto com as pessoas comuns. Foi desta forma — levantando questionamentos e criticando o pensamento mítico predominante — que surgiu a Filosofia. https://www.stoodi.com.br/materias/historia/antiguidade-classica-grecia/periodo-arcaico-atenas-localizacao-economia-e-sociedade/ https://www.stoodi.com.br/resumos/historia/antiguidade-classica-grecia/ https://www.stoodi.com.br/exercicios/filosofia/ 4 1.1 Origem da palavra Filosofia A palavra Filosofia também vem do grego, e é formada pela junção de dois termos: philos (amigo) + sophia (sabedoria). Portanto, o filósofo é um amigo ou amante do conhecimento, alguém que busca compreender o mundo à sua volta, bem como seu universo interior. 1.2 Quem foram os pensadores que se destacaram na origem da Filosofia? Alguns dos principais pensadores da época relacionada ao início da Filosofia são bastante conhecidos. Sócrates: É considerado o pai da Filosofia ocidental. Viveu entre cerca de 469 e 399 a.C. e era conhecido como um homem sábio que morava em Atenas. Sócrates tinha a convicção de que nada sabia — o que foi considerado um sinal extremo de sabedoria e reconhecimento das próprias limitações, o que o levou à busca da verdade. Teve uma contribuição muito importante nos campos da epistemologia e lógica. Usava o método socrático, em que se faz uma série de perguntas para promover uma compreensão profunda do assunto em discussão. Não deixou nenhuma obra escrita e seus ensinos chegaram até nós pelos relatos de Platão, seu aluno. Platão: Discípulo de Sócrates, Platão viveu em Atenas entre os anos de 428 e 348 a.c. (aproximadamente). Era filósofo e matemático, escreveu muitos diálogos filosóficos e fundou uma instituição de educação superior em Atenas, a Academia. Seu pensamento teve importância não só na Grécia, mas influenciou a filosofia de toda a Idade Média. Seus escritos se tornaram uma referência para os amigos do conhecimento. Aristóteles: Fechando a tríade dos principais pensadores da origem da Filosofia está Aristóteles. Ele foi aluno de Platão e viveu entre 384 e 322 a.C. Em seus escritos, ele tratou de muitas áreas do conhecimento: Física, Metafísica, Lógica, Política e Ética, entre outras. Era muito interessado também por outros temas como Música, Biologia, https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-socrates/ https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-platao/https://www.stoodi.com.br/materias/filosofia/socraticos-aristoteles/ 5 Zoologia e até mesmo poesia e drama (artes cênicas). Foi contratado para ser tutor de um garoto de 13 anos que duas décadas depois tornou-se Alexandre, O Grande: o maior e mais conhecido conquistador do mundo antigo. 2 O NASCIMENTO DA METAFÍSICA A maneira como tratamos o conhecimento até este momento poderia sugerir que a Filosofia teria começado indagando como nossa razão pode conhecer a realidade. Mas não foi assim que tudo começou. Iniciar pelo sujeito do conhecimento é algo novo na Filosofia, algo que aconteceu a partir do século XVII, com o que chamamos de racionalismo clássico, cujo ponto de partida era a indagação: Pode nosso pensamento alcançar a realidade? Até o século XVII, porém, não era essa a indagação filosófica principal. Fonte: definicion.xyz Desde os gregos, partia-se da afirmação da existência da realidade e de que ela poderia ser conhecida verdadeiramente pela razão ou pelo pensamento. A pergunta filosófica era: O que é a realidade? Por isso, costuma-se dizer que a Filosofia nasceu como um realismo e desse realismo surgiu a metafísica. Veremos, mais adiante, como os problemas metafísicos acabaram fazendo a Filosofia mudar sua pergunta (passando a indagar: “Como podemos conhecer a realidade?”) e dar à teoria https://www.stoodi.com.br/materias/historia/antiguidade-classica-grecia/periodo-helenistico-filipe-ii-e-alexandre-o-grande/ 6 do conhecimento, ou ao estudo do sujeito do conhecimento, o lugar predominante que já examinamos. 2.1 Da cosmologia à metafísica A Filosofia nasce da admiração e do espanto, dizem Platão e Aristóteles. Admiração: Por que o mundo existe? Espanto: Por que o mundo é tal como é? Desde seu nascimento, a Filosofia perguntou: O que existe? Por que existe? O que é isso que existe? Como é isso que existe? Por que e como surge, muda e desaparece? Por que a Natureza ou o mundo se mantêm ordenados e constantes, apesar da mudança contínua de todas as coisas? Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com Essas perguntas – ou esse espanto ou admiração diante do mundo – levaram os primeiros filósofos a buscar uma explicação racional para a origem de um mundo ordenado, o cosmos. Por esse motivo, a Filosofia nasce como cosmologia. A busca do princípio que causa e ordena tudo quanto existe na Natureza (minerais, vegetais, animais, humanos, astros, qualidades como úmido, seco, quente, frio) e tudo quanto nela acontece (dia e noite, estações do ano, nascimento, transformação e morte, crescimento e diminuição, saúde e doença, bem e mal, belo e feio, etc.) foi a busca 7 de uma força natural perene e imortal, subjacente às mudanças, denominada pelos primeiros filósofos com o nome de physis. A cosmologia era uma explicação racional sobre a physis do Universo e, portanto, uma física. Como, então, surgiu a metafísica? Como surgiu um saber que suplantou a cosmologia ou física dos primeiros filósofos? Como e por que a metafísica acabou se tornando o centro e a disciplina mais importante da Filosofia? 2.2 Metafísica ou ontologia A palavra metafísica foi empregada pela primeira vez por Andrônico de Rodes, por volta do ano 50 a.C., quando recolheu e classificou as obras de Aristóteles que, durante muitos séculos, haviam ficado dispersas e perdidas. Fonte: significados.com.br Com essa palavra – ta meta ta physika -, o organizador dos textos aristotélicos indicava um conjunto de escritos que, em sua classificação, localizavam-se após os tratados sobre a física ou sobre a Natureza, pois a palavra grega meta quer dizer: depois de, após, acima de. Ta: aqueles; meta: após, depois; ta physika: aqueles da física. Assim, a expressão ta meta ta physika significa literalmente: aqueles [escritos] que estão [catalogados] após os [escritos] da física. Ora, tais escritos haviam recebido uma designação por parte do próprio 8 Aristóteles, quando este definira o assunto de que tratavam: são os escritos da Filosofia Primeira, cujo tema é o estudo do “ser enquanto ser”. Desse modo, o que Aristóteles chamou de Filosofia Primeira passou a ser designado como metafísica. No século XVII, o filósofo alemão Jacobus Thomasius considerou que a palavra correta para designar os estudos da metafísica ou Filosofia Primeira seria a palavra ontologia. A palavra ontologia é composta de duas outras: onto e logia. Onto deriva-se de dois substantivos gregos, ta onta (os bens e as coisas realmente possuídas por alguém) e ta eonta (as coisas realmente existentes). Essas duas palavras, por sua vez, derivam-se do verbo ser, que, em grego, se diz einai. O particípio presente desse verbo se diz on (sendo, ente) e ontos (sendo, entes). Dessa maneira, as palavras onta e eonta (as coisas) e on (ente) levaram a um substantivo: to on, que significa o Ser. O Ser é o que é realmente e se opõe ao que parece ser, à aparência. Assim, ontologia significa: estudo ou conhecimento do Ser, dos entes ou das coisas tais como são em si mesmas, real e verdadeiramente. Por que Thomasius julgou a palavra ontologia mais adequada do que a palavra metafísica? Para responder a essa pergunta devemos retornar ao que escreveu Aristóteles, quando propôs a Filosofia Primeira. Ao definir a Filosofia Primeira, Aristóteles afirmou que ela estuda o ser das coisas, a ousia. A palavra ousia é o feminino do particípio presente do verbo ser, isto é, do verbo einai. Em português, ousia é traduzido por essência, porque é traduzida da palavra latina essentia. Em latim o verbo ser se diz esse e a palavra essentia foi inventada pelos filósofos para traduzir ousia. Assim, a Filosofia Primeira é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas ou do ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são em si mesmas, apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer. Thomasius considerou que Aristóteles definira a Filosofia Primeira como o estudo do ser das coisas, como o que há de íntimo, perene e verdadeiro nos entes. Não estuda esta ou aquela coisa, este ou aquele ente, mas busca aquilo que faz de um ente ou de uma coisa, um ser. Busca a essência de um ente ou de uma coisa. Por isso, por ser o estudo da ousia e porque a ousia oferece o ser real e verdadeiro de um ente, oferece o on íntimo e perene, a Filosofia Primeira deveria ser designada com a 9 palavra ontologia. Nesse caso, a palavra metafísica seria apenas a indicação do lugar ocupado nas estantes pelos livros aristotélicos de Filosofia Primeira, localizados depois dos tratados sobre a física ou a Natureza. A palavra ontologia diria qual é o assunto da Filosofia Primeira, enquanto a palavra metafísica diria apenas qual é o lugar dos livros da Filosofia Primeira no catálogo das obras de Aristóteles. Por que, então, a tradição filosófica consagrou a palavra metafísica, em lugar de ontologia? Porque Aristóteles, ao definir a Filosofia Primeira, também afirmou que ela estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todos os seres ou de todas as essências, estudo que deve vir antes de todos os outros, porque é a condição de todos eles. Que quer dizer “vir antes”? Para Aristóteles, significa estar acima dos demais, estar além do que vem depois, ser superior ao que vem depois, ser a condição da existência e do conhecimento do que vem depois. Ora, a palavra meta quer dizer isso mesmo: o que está além de, o que está acima de, o que vem depois, mas no sentido de ser superior ou de ser a condição de alguma coisa. Se assim é, então a palavra metafísica não quer dizer apenas o lugar onde se encontram os escritos posteriores aos tratados de física, não indica um mero lugar num catálogo de obras, mas significa o estudo de alguma coisa que está acima e além das coisas físicas ou naturais e que é a condição da existênciae do conhecimento delas. Por isso, a tradição consagrou a palavra metafísica, mais do que a palavra ontologia. Metafísica, nesse caso, quer dizer: aquilo que é condição e fundamento de tudo o que existe e de tudo o que puder ser conhecido. 2.3 Platão e o mundo das essências Também ao estudarmos a lógica, vimos que Platão dedicou a sua obra à resolução do impasse filosófico criado pelo antagonismo entre o pensamento de Heráclito de Éfeso e o de Parmênides de Eléia. Platão considerou que Heráclito tinha razão no que se refere ao mundo material e sensível, mundo das imagens e das opiniões. A matéria, diz Platão, é, por essência e por natureza, algo imperfeito, que não consegue manter a identidade das coisas, mudando sem cessar, passando de um estado a outro, contrário ou oposto. O mundo material ou de nossa experiência sensível é mutável e contraditório e, por isso, dele 10 só nos chegam as aparências das coisas e sobre ele só podemos ter opiniões contrárias e contraditórias. Fonte: youtube.com Por esse motivo, diz Platão, Parmênides está certo ao exigir que a Filosofia deva abandonar esse mundo sensível e ocupar-se com o mundo verdadeiro, invisível aos sentidos e visível apenas ao puro pensamento. O verdadeiro é o Ser, uno, imutável, idêntico a si mesmo, eterno, imperecível, puramente inteligível. Eis por que a ontologia platônica introduz uma divisão no mundo, afirmando a existência de dois mundos inteiramente diferentes e separados: o mundo sensível da mudança, da aparência, do devir dos contrários, e o mundo inteligível da identidade, da permanência, da verdade, conhecido pelo intelecto puro, sem qualquer interferência dos sentidos e das opiniões. O primeiro é o mundo das coisas. O segundo, o mundo das ideias ou das essências verdadeiras. O mundo das ideias ou das essências é o mundo do Ser; o mundo sensível das coisas ou aparências é o mundo do Não-Ser. O mundo sensível é uma sombra, uma cópia deformada ou imperfeita do mundo inteligível das ideias ou essências. Notamos, aqui, uma diferença entre a ontologia de Parmênides e a de Platão. Para o primeiro, o mundo sensível das aparências é o Não-Ser em sentido forte, isto é, não existe, não é, não tem realidade nenhuma, é o nada. Para Platão, porém, o 11 Não-Ser não é o puro nada. Ele é alguma coisa. O que ele é? Ele é o outro (alienus) do Ser, o que é diferente do Ser, o que é inferior ao Ser, o que nos engana e nos ilude, a causa dos erros. Em lugar de ser um puro nada, o Não-Ser é um falso ser, uma sombra do Ser verdadeiro, aquilo que Platão chama de pseudo-Ser. O Não-Ser é sensível. Há ainda uma outra diferença importante entre a ontologia de Parmênides e a de Platão. O primeiro afirmava que o Ser, além de imutável, eterno e idêntico a si mesmo, era único ou uno. Havia o Ser. Qual o problema dessa afirmação parmenideana? Se, do lado do devir heraclitiano, havia uma multiplicidade infinita de seres contrários uns aos outros e contrários a si mesmos (pois cada um se tornava contrário a si próprio - o dia tornando-se noite, o seco tornando-se úmido, etc.), multiplicidade contraditória que não poderia ser pensada nem dita, visto que o pensamento exige a identidade do pensado, no entanto, do lado da identidade una-única de Parmênides, que restava para a Filosofia? Só lhe restava pensar e dizer três frases: O Ser é. O Não-Ser não é. O Ser é uno, idêntico, eterno e imutável. Em suma, a Filosofia começava e terminava nessas três frases, nada mais podendo pensar ou dizer. Parmênides paralisava a Filosofia. Se esta quisesse prosseguir como investigação da verdade e se tivesse mais objetos a conhecer, era preciso quebrar a unidade-unicidade do Ser de Parmênides. Foi o que fez Platão. Que disse ele? Em primeiro lugar, seguindo Sócrates e os sofistas, Platão distinguiu dois sentidos para a palavra Ser: o sentido forte, em que Ser significa realidade ou existência (o Ser é), e o sentido mais fraco, em que Ser é o verbo ser como verbo de ligação, isto é, o verbo que permite ligar um sujeito a um predicado (por exemplo: O homem é mortal). Distinguiu, assim, dois sentidos para o verbo ser: o sentido existencial e o sentido predicativo. Por exemplo: “O homem é” (existe) e “O homem é mortal”. Em segundo lugar, afirmou que, no sentido forte de Ser, existem múltiplos seres e não um só, mas cada um deles possui os atributos do Ser de Parmênides (identidade, unidade, eternidade, imutabilidade). Esses seres são as ideias ou formas imateriais, que constituem o mundo verdadeiro, o mundo inteligível. São seres reais as idéias do bem, do belo, do justo, do homem, dos astros, do 12 amor, do animal, do vegetal, etc. Em terceiro lugar, afirmou que, no sentido mais fraco do verbo de ligação ou da predicação, cada ideia é um sujeito real, que possui um conjunto de predicados reais ou de propriedades essenciais e que a fazem ser o que ela é em si mesma. Uma idéia é (existe) e uma idéia é uma essência ou conjunto de qualidades essenciais que a fazem ser o que ela é necessariamente (possui predicados verdadeiros). Por exemplo, a justiça é (há a idéia de justiça) e há seres humanos que são justos (possuem o predicado da justiça como parte de sua essência). Dessa maneira, cada idéia, em si mesma, é una, idêntica a si mesma, eterna e imutável – uma idéia é. Ao mesmo tempo, cada idéia difere de todas as outras pelo conjunto de qualidades ou propriedades internas e necessárias pelas quais ela é uma essência determinada, diferente das demais (a idéia de homem é diferente da idéia de planeta, que é diferente da idéia de beleza, que é diferente da idéia de coragem, etc.). A tarefa da Filosofia é dupla: 1. deve conhecer que idéias existem, isto é, que idéias são; 2. deve conhecer quais são as qualidades ou propriedades essenciais de uma idéia, isto é, o que uma idéia é, sua essência. As idéias ou formas imateriais (ou essências inteligíveis), diz Platão, são seres perfeitos e, por sua perfeição, tornam-se modelos inteligíveis ou paradigmas inteligíveis perfeitos que as coisas sensíveis materiais tentam imitar imperfeitamente. O sensível é, pois, uma imitação imperfeita do inteligível: as coisas sensíveis são imagens das idéias, são não-seres tentando inutilmente imitar a perfeição dos seres inteligíveis. Cabe à Filosofia passar das cópias imperfeitas aos modelos perfeitos, abandonando as imagens ou aparências pelas essências, e as opiniões pelas idéias. O pensamento deve passar da instabilidade contraditória das coisas sensíveis à identidade racional das coisas inteligíveis, à identidade das idéias que são a realidade, o ser, o to on. Como passamos das coisas sensíveis, das cópias, imagens ou opiniões às idéias ou essências? Pela dialética (que estudamos na unidade dedicada à lógica). 13 Tomemos alguns exemplos para melhor compreendermos o que é a ontologia platônica. Numa obra, o diálogo Laques, Platão coloca seu mestre Sócrates conversando com alguns atenienses. São pais de família preocupados com a educação de seus filhos. Os gregos, como sabemos, valorizavam muito o jovem de corpo belo, educado pela ginástica e pela dança para tornar-se um guerreiro corajoso. A coragem era, assim, extremamente valorizada. Os pais com quem conversa Sócrates estão a caminho de uma aula de esgrima, num curso dado por um professor muito famoso. Indagam, então, se o aprendizado da esgrima será benéfico para seus filhos quando forem à guerra. Uns acham que sim, outros dizem que não. Há, pois, duas opiniões contrárias ou contraditórias na conversa. Apelam para Sócrates dizendo-lhe: “Como você é um sábio, venha ajudar-nos em nossa polêmica e diga-nos se a esgrima é ou não benéfica para formar a coragem de nossos filhos”. Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com Sócrates intervém, afirmando: “Só podereiajudá-los a decidir sobre esse assunto se primeiro discutirmos uma outra coisa e não a esgrima”. “O que devemos discutir primeiro?”, indagam os pais. Responde Sócrates: “O que é a coragem, uma vez que vocês desejam filhos corajosos. Enquanto não soubermos o que é a essência da coragem não saberemos qual educação é benéfica para ela. Precisamos conhecer 14 a idéia da coragem para saber, em nosso mundo, quando e como existem pessoas corajosas e atos corajosos. Para saber o que são as coisas que percebemos, precisamos, primeiro, saber o que são as coisas em si mesmas, isto é, precisamos pensar suas idéias ou essências ”. Os pais se põem novamente a discutir. Cada um dá exemplos de atos que julga corajosos. E, novamente, suas opiniões são contrárias. Diz Sócrates: “Vocês não me entenderam. Não pedi para darem exemplos de coragem, nem opiniões sobre atos corajosos. Eu lhes pedi que me dissessem o que é, em si mesma, a coragem. Qual é a essência da coragem que nos permite dizer, diante de uma ação particular, que tal ação é ou não corajosa? Qual é o ser da coragem?” A discussão recomeça e, agora, cada um dos participantes da conversa oferece uma definição da coragem. Diz um: “A coragem é não fugir na guerra”. Retruca Sócrates: “Mas, e os espartanos, tidos como dos mais corajosos, e que inventaram uma tática de recuar, fugir, levando o inimigo para seu campo e ali podendo derrotá- lo? Fogem. Não são corajosos?”. Diz outro: “A coragem é não temer o perigo”. “Ora”, contrapõe Sócrates, “e as histórias maravilhosas que conhecemos de capitães de navio que salvaram os passageiros de grandes tempestades, justamente escolhendo não zarpar quando os ventos eram desfavoráveis e, portanto, fugindo do perigo? Não são corajosos?”. E, finalmente, outro pai dá a sua definição: “A coragem é saber o que se deve e o que não se deve temer”. “Será?”, indaga Sócrates. “Se assim for, teremos que dizer que os comerciantes espertos, que sabem quando um negócio é temerário e não o fazem, são corajosos?” “Creio”, diz Sócrates, “que ainda não me fiz entender. Vocês estão oferecendo opiniões sobre a coragem e imagens da coragem, mas não estão buscando a essência da coragem. Não conseguiram ainda chegar, pelo pensamento, à idéia da coragem; estão falando da aparência da coragem. Estão falando da coragem sensível e não estão pensando a coragem inteligível.” O diálogo é interrompido nesse ponto, quando Sócrates sugere aos interlocutores que, talvez, ainda não tenham conseguido chegar à idéia da coragem porque não procuraram uma outra idéia que deve vir antes da coragem. Que idéia? “Todos, aqui”, diz Sócrates, “julgam a coragem um valor positivo e, portanto, uma virtude. Nesse caso, antes de saber o que é a coragem, temos que conhecer uma outra idéia da qual a idéia de coragem depende: a idéia de virtude. Sem conhecer a 15 essência da virtude, sem conhecer o ser da virtude, não sabemos qual é a essência da coragem”. Ao se despedir, Sócrates promete voltar a conversar com os pais para com eles buscar a essência ou a idéia da virtude. Em todos os seus diálogos, Platão procede da mesma maneira. O diálogo começa com os interlocutores julgando que sabem do que falam. Sócrates (que, nos diálogos, representa Platão), leva-os a descobrir que não sabem o que imaginavam saber, mostrando-lhes que possuem imagens e opiniões contraditórias sobre aquilo de que falam. Possuem a aparência do que discutem, mas não a essência e por isso se enganam o tempo todo, contradizendo-se uns aos outros. O diálogo, isto é, a dialética ou filosofia, é o caminho que nos conduz das sensações, das percepções, das imagens e das opiniões à contemplação intelectual do ser real das coisas, à idéia verdadeira, que existe em si mesma no mundo das puras idéias ou no mundo inteligível. Num outro diálogo, o Banquete, será buscada a idéia ou a essência do amor. Numa festa, oferecida por um poeta que ganhou um prêmio por sua poesia, conversam cinco amigos e Sócrates. Um deles afirma que todos os deuses recebem hinos e poemas de louvor, mas nenhum foi feito ao melhor dos deuses, Eros, o amor. Propõe-se, então, que cada um faça uma homenagem a Eros dizendo o que é o amor. Para um deles, o amor é o mais bondoso dos deuses, porque nos leva ao sacrifício pelo ser amado, inspira-nos devotamento e o desejo de fazer o bem. Para o seguinte, é preciso distinguir dois tipos de amor: o amor sexual e grosseiro e o amor espiritual entre as almas, pois o primeiro é breve e logo acaba, enquanto o segundo é eterno. Já o terceiro afirma que os que o antecederam limitaram muito o amor, tomando-o apenas como uma relação entre duas pessoas. O amor, diz ele, é o que ordena, organiza e orienta o mundo, pois é ele que faz os semelhantes se aproximarem e os diferentes se afastarem. O amor é uma força cósmica de ordem e harmonia do universo. O quarto prefere retornar ao amor entre as pessoas e narra um mito. No princípio, os humanos eram de três tipos: havia o homem duplo, a mulher dupla e o homem-mulher, isto é, o andrógino. Tinham um só corpo, com duas cabeças, quatro braços e quatro pernas. Como se julgavam seres completos, decidiram habitar no céu. Zeus, rei dos deuses, enfureceu-se, tomou de uma espada e os cortou pela metade. 16 Decaídos, separados e desesperados, os humanos teriam desaparecido se Eros não lhes tivesse dado órgãos sexuais e os ajudasse a procurar a metade perdida. Os que eram homens duplos e mulheres duplas amam os de mesmo sexo, enquanto os que eram andróginos amam a pessoa do sexo oposto. Amar é encontrar a nossa metade e o amor é esse encontro. Finalmente, o poeta, anfitrião da festa, toma a palavra dizendo: Todos os que me precederam louvaram o amor pelo bem que faz aos humanos, mas nenhum louvou o amor por ele mesmo. É o que farei. O amor, Eros, é o mais belo, o melhor dos deuses. O mais belo, porque sempre jovem e sutil, porque penetra imperceptivelmente nas almas; o melhor, porque odeia a violência e a desfaz onde existir; inspira os artistas e poetas, trazendo a beleza ao mundo. Resta Sócrates. “Não poderei falar”, diz ele. “Não tenho talento para fazer discursos tão belos.” Os outros, porém, não se conformam e o obrigam a falar. “Está bem”, retruca ele. “Mas falarei do meu jeito.” Com essa pequena frase, Platão mudará todo o tom do diálogo, pois, “falar do meu jeito” significa: Não vou fazer elogios e louvores às imagens e aparências do amor, não vou emitir mais uma opinião sobre o amor, mas vou buscar a essência do amor, o ser do amor, vou investigar a idéia do amor. Sócrates também começa com um mito. Quando a deusa Afrodite nasceu, 17 houve uma grande festa para os deuses, mas esqueceram-se de convidar a deusa Penúria (Pênia). Miserável e faminta, Penúria esperou o final da festa, esgueirou-se pelos jardins e comeu os restos, enquanto os demais deuses dormiam. Num canto do jardim, viu Engenho Astuto (Poros) e desejou conceber um filho dele, deitandose ao seu lado. Desse ato sexual nasceu Eros, o amor. Como sua mãe, Eros está sempre carente, faminto, miserável; como seu pai, Eros é astuto, sabe criar expedientes engenhosos para conseguir o que quer. Qual o sentido do mito? Nele descobrimos que o amor é carência e astúcia, desejo de saciar a fome e a sede, desejo de preenchimento, desejo de completarse e de encontrar a plenitude. Amar é desejar o amado como o que nos completa, nos sacia e satisfaz, nos dá plenitude. Amar é desejar fundir-se na plenitude do amado e ser um só com ele. O que pode completar e dar plenitude a um ser carente? O que é em si mesmo completo e pleno, isto é, o que é perfeito. O amor é desejo de perfeição. O que é a perfeição? A harmonia, a proporção, a integridade ou inteireza da forma. Desejamos as formas perfeitas. O que é uma forma perfeita? A forma perfeita é a formaacabada, plena, inteiramente realizada, sem falhas, sem faltas, sem defeitos, sem necessidade de transformar-se, isto é, sem necessidade de mudar de forma. A forma perfeita é o que chamamos de beleza. O amor é desejo de beleza. Onde está a beleza nas coisas corporais? Nos corpos belos, cuja união engendra uma beleza: a imortalidade dos pais através dos filhos. Onde está a beleza nas coisas incorporais? Nas almas belas, cuja beleza está na perfeição de seus pensamentos e ações, isto é, na inteligência. Que amamos quando amamos corpos belos? O que há de imperecível naquilo que, por natureza, é perecível, isto é, amamos a posteridade ou a descendência. Que amamos quando amamos almas belas? O que há de imperecível na inteligência, isto é, as idéias. O amor pelos corpos belos é uma imagem ou uma sombra do amor pelo imperecível, mas o amor pelas almas belas é o amor por algo que é em si mesmo e por si mesmo imperecível e absolutamente perfeito. Se o amor é desejo de identificar-se com o amado, de fundir-se nele tornando- se como ele, então a qualidade ou a natureza do ser amado determina se um amor é plenamente verdadeiro ou uma aparência de amor. Amar o perecível é tornar-se perecível também. Amar o mutável é tornar-se mutável também. O perecível e o 18 mutável são sombras, cópias imperfeitas do ser verdadeiro, imperecível e imutável. As formas corporais belas são sombras ou imagens da verdadeira beleza imperecível. Abandonando-as pela verdadeira beleza, amamos não esta ou aquela coisa bela, mas a idéia ou a essência da beleza, o belo em si mesmo, único, real. As almas belas são belas porque nelas há a presença, ainda que invisível à primeira vista, de algo imperecível: o intelecto, parte imortal de nossa alma. Que ama o intelecto? Um outro intelecto que seja mais belo e mais perfeito do que ele e que, ao ser amado, torna perfeito e belo quem o ama. O que é um intelecto verdadeiramente belo e perfeito? O que ama a beleza perfeita. Onde se encontra a tal beleza? Nas idéias. O que é a essência ou a idéia do amor? O amor é o desejo da perfeição imperecível das formas belas, daquilo que permanece sempre idêntico a si mesmo, daquilo que pode ser contemplado plenamente pelo intelecto e conhecido plenamente pela inteligência. Sendo amor intelectual pelo inteligível ou pelas idéias, o amor é o desejo de saber: philo sophia, amor da sabedoria. Pelo amor, o intelecto humano participa do inteligível, toma parte no mundo das idéias ou das essências, conhecendo o ser verdadeiro. A ontologia é, assim, a própria Filosofia e o conhecimento do Ser, isto é, das idéias, é a passagem das opiniões sobre as coisas sensíveis mutáveis rumo ao pensamento sobre as essências imutáveis. Passar do sensível ao inteligível – tarefa da Filosofia – é passar da aparência ao real, do Não-Ser ao Ser. 3 A METAFÍSICA DE ARISTÓTELES 3.1 Diferença entre Aristóteles e seus predecessores Embora a ontologia ou metafísica tenha começado com Parmênides e Platão, costuma-se atribuir seu nascimento a Aristóteles por três motivos principais: 1. diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles não julga o mundo das coisas sensíveis, ou a Natureza, um mundo aparente e ilusório. Pelo contrário, é um mundo real e verdadeiro cuja essência é, justamente, a multiplicidade de seres e a mudança incessante. 19 Fonte: blogdoenem.com.br Em lugar de afastar a multiplicidade e o devir como ilusões ou sombras do verdadeiro Ser, Aristóteles afirma que o ser da Natureza existe, é real, que seu modo próprio de existir é a mudança e que esta não é uma contradição impensável. É possível uma ciência teorética verdadeira sobre a Natureza e a mudança: a física. Mas é preciso, primeiro, demonstrar que o objeto da física é um ser real e verdadeiro e isso é tarefa da Filosofia Primeira ou da metafísica. 2. diferentemente de seus dois predecessores, Aristóteles considera que a essência verdadeira das coisas naturais e dos seres humanos e de suas ações não está no mundo inteligível, separado do mundo sensível, onde as coisas físicas ou naturais existem e onde vivemos. As essências, diz Aristóteles, estão nas próprias coisas, nos próprios homens, nas próprias ações e é tarefa da Filosofia conhecêlas ali mesmo onde existem e acontecem. Como conhecê-las? Partindo da sensação até alcançar a intelecção. A essência de um ser ou de uma ação é conhecida pelo pensamento, que capta as propriedades internas desse ser ou dessa ação, sem as quais ele ou ela não seriam o que são. A metafísica não precisa abandonar este mundo, mas, ao contrário, é o conhecimento da essência do que existe em nosso mundo. O que distingue a ontologia ou metafísica dos outros saberes (isto é, das ciências e das técnicas) é o fato de que nela as verdades primeiras ou os princípios universais e toda e qualquer 20 realidade são conhecidos direta ou indiretamente pelo pensamento ou por intuição intelectual, sem passar pela sensação, pela imaginação e pela memória. 3. ao se dedicar à Filosofia Primeira ou metafísica, a Filosofia descobre que há diferentes tipos ou modalidades de essências ou de ousiai. Existe a essência dos seres físicos ou naturais (minerais, vegetais, animais, humanos), cujo modo de ser se caracteriza por nascer, viver, mudar, reproduzirse e desaparecer – são seres em devir e que existem no devir. Existe a essência dos seres matemáticos, que não existem em si mesmos, mas existem como formas das coisas naturais, podendo, porém, ser separados delas pelo pensamento e ter suas essências conhecidas; são seres que, por essência, não nascem, não mudam, não se transformam nem perecem, não estando em devir nem no devir. Existe a essência dos seres humanos, que compartilham com as coisas físicas o surgir, o mudar e o desaparecer, compartilhando com as plantas e os animais a capacidade para se reproduzir, mas distinguindo-se de todos os outros seres por serem essencialmente racionais, dotados de vontade e de linguagem. Pela razão, conhecem; pela vontade, agem; pela experiência, criam técnicas e artes. E, finalmente, existe a essência de um ser eterno, imutável, imperecível, sempre idêntico a si mesmo, perfeito, imaterial, conhecido apenas pelo intelecto, que o conhece como separado de nosso mundo, superior a tudo que existe, e que é o ser por excelência: o ser divino. Se há tão diferentes tipos de essências, se para cada uma delas há uma ciência (física, biologia, meteorologia, astronomia, psicologia, matemática, ética, política, etc.), deve haver uma ciência geral, mais ampla, mais universal, anterior a todas essas, cujo objeto não seja essa ou aquela modalidade de essência, mas a essência em geral. Trata-se de uma ciência teorética que investiga o que é a essência e aquilo que faz com que haja essências particulares e diferenciadas. Essa ciência mais alta, mais ampla, mais universal, que se ocupa com a essência, que estuda por que há essências e como são as essências investigadas pelas demais ciências, é a Filosofia Primeira, escreve Aristóteles no primeiro livro da Metafísica. 3.2 A metafísica aristotélica 21 Na Metafísica, Aristóteles afirma que a Filosofia Primeira estuda os primeiros princípios e as causas primeiras de todas as coisas e investiga “o Ser enquanto Ser”. Fonte: guiadafilosofia.com.br Ao definir a ontologia ou metafísica como estudo do “Ser enquanto Ser”, Aristóteles está dizendo que a Filosofia Primeira estuda as essências sem diferenciar essências físicas, matemáticas, astronômicas, humanas, técnicas, etc., pois cabe às diferentes ciências estudá-las enquanto diferentes entre si. À metafísica cabem três estudos: 1. O do ser divino, a realidade primeira e suprema da qual todo o restante procura aproximar-se, imitando sua perfeição imutável. As coisas se transformam, diz Aristóteles,porque desejam encontrar sua essência total e perfeita, imutável como a essência divina. É pela mudança incessante que buscam imitar o que não muda nunca. Por isso, o ser divino é o Primeiro Motor Imóvel do mundo, isto é, aquilo que, sem agir diretamente sobre as coisas, ficando à distância delas, as atrai, é desejado por elas. Tal desejo as faz mudar para um dia, não mais mudar (esse desejo, diz Aristóteles, explica por que há o devir e por que o devir é eterno, pois as coisas naturais nunca poderão alcançar o que desejam, isto é, a perfeição imutável). Observamos, assim, que Aristóteles, como Platão, também afirma que a Natureza ou o mundo físico ou humano imitam a perfeição do imutável; porém, diferentemente de Platão, para Aristóteles essa imitação não é uma cópia deformada, 22 uma imagem ou sombra do Ser verdadeiro, mas o modo de existir ou de ser das coisas naturais e humanas. A mudança ou o devir são a maneira pela qual a Natureza, ao seu modo, se aperfeiçoa e busca imitar a perfeição do imutável divino. O ser divino chama-se Primeiro Motor porque é o princípio que move toda a realidade, e chama-se Primeiro Motor Imóvel porque não se move e não é movido por nenhum outro ente, pois, como já vimos, movervi significa mudar, sofrer alterações qualitativas e quantitativas, nascer é perecer, e o ser divino, perfeito, não muda nunca; 2. O dos primeiros princípios e causas primeiras de todos os seres ou essências existentes; 3. O das propriedades ou atributos gerais de todos os seres, sejam eles quais forem, graças aos quais podemos determinar a essência particular de um ser particular existente. A essência ou ousia é a realidade primeira e última de um ser, aquilo sem o qual um ser não poderá existir ou sem o qual deixará de ser o que é. À essência, entendida sob essa perspectiva universal, Aristóteles dá o nome de substância: o substrato ou o suporte permanente de qualidades ou atributos necessários de um ser. A metafísica estuda a substância em geral. 3.3 Os principais conceitos da metafísica aristotélica De maneira muito breve e simplificada, os principais conceitos da metafísica aristotélica (e que se tornarão as bases de toda a metafísica ocidental) podem ser assim resumidos: Primeiros princípios: são os três princípios que estudamos na lógica, isto é, identidade, não-contradição e terceiro excluído. Os princípios lógicos são ontológicos porque definem as condições sem as quais um ser não pode existir nem ser pensado; os primeiros princípios garantem, simultaneamente, a realidade e a racionalidade das coisas; Causas primeiras: são aquelas que explicam o que a essência é e também a origem e o motivo da existência de uma essência. Causa (para os gregos) significa não só o porquê de alguma coisa, mas também o o que e o como uma coisa é o que ela é. As causas primeiras nos dizem o que é, como é, por que é e para que é uma essência. São quatro as causas primeiras: 23 1. Causa material, isto é, aquilo de que uma essência é feita, sua matéria (por exemplo, água, fogo, ar, terra); 2. Causa formal, isto é, aquilo que explica a forma que uma essência possui (por exemplo, o rio ou o mar são formas da água; mesa é a forma assumida pela matéria madeira com a ação do carpinteiro; margarida é a forma que a matéria vegetal possui na essência de uma flor determinada, etc.); 3. Causa eficiente ou motriz, isto é, aquilo que explica como uma matéria recebeu uma forma para constituir uma essência (por exemplo, o ato sexual é a causa eficiente que faz a matéria do espermatozóide e do óvulo receber a forma de um novo animal ou de uma criança; o carpinteiro é a causa eficiente que faz a madeira receber a forma da mesa; o fogo é a causa eficiente que faz os corpos frios tornarem-se quentes, etc.); e 4. A causa final, isto é, a causa que dá o motivo, a razão ou finalidade para alguma coisa existir e ser tal como ela é (por exemplo, o bem comum é a causa final da política, a felicidade é a causa final da ação ética; a flor é a causa final da semente transformar-se em árvore; o Primeiro Motor Imóvel é a causa final do movimento dos seres naturais, etc.). Matéria: é o elemento de que as coisas da Natureza, os animais, os homens, os artefatos são feitos; sua principal característica é possuir virtualidades ou conter em si mesma possibilidades de transformação, isto é, de mudança; Forma: é o que individualiza e determina uma matéria, fazendo existir as coisas ou os seres particulares; sua principal característica é ser aquilo que uma essência é num determinado momento, pois a forma é o que atualiza as virtualidades contidas na matéria; Potência: é o que está contido numa matéria e pode vir a existir, se for atualizado por alguma causa; por exemplo, a criança é um adulto em potência ou um adulto em potencial; a semente é a árvore em potência ou em potencial; ato: é a atualidade de uma matéria, isto é, sua forma num dado instante do tempo; o ato é a forma que atualizou uma potência contida na matéria. Por exemplo, a árvore é o ato da semente, o adulto é o ato da criança, a mesa é o ato da madeira, etc. Potência e matéria são idênticos, assim como forma e ato são idênticos. A matéria 24 ou potência é uma realidade passiva que precisa do ato e da forma, isto é, da atividade que cria os seres determinados; Essência: é a unidade interna e indissolúvel entre uma matéria e uma forma, unidade que lhe dá um conjunto de propriedades ou atributos que a fazem ser necessariamente aquilo que ela é. Assim, por exemplo, um ser humano é por essência ou essencialmente um animal mortal racional dotado de vontade, gerado por outros semelhantes a ele e capaz de gerar outros semelhantes a ele, etc.; Fonte: photosgratuite.eu Acidente: é uma propriedade ou atributo que uma essência pode ter ou deixar de ter sem perder seu ser próprio. Por exemplo, um ser humano é racional ou mortal por essência, mas é baixo ou alto, gordo ou magro, negro ou branco, por acidente. A humanidade é a essência essencial (animal, mortal, racional, voluntário), enquanto o acidente é o que, existindo ou não existindo, nunca afeta o ser da essência (magro, gordo, alto, baixo, negro, branco). A essência é o universal; o acidente, o particular; Substância ou sujeito: é o substrato ou o suporte onde se realizam a matériapotência, a forma-ato, onde estão os atributos essenciais e acidentais, sobre o qual agem as quatro causas (material, formal, eficiente e final) e que obedece aos três princípios lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro excluído); em suma, é o Ser. Aristóteles usa o conceito de substância em dois sentidos: num primeiro sentido, substância é o sujeito individual (Sócrates, esta mesa, esta flor, 25 Maria, Pedro, este cão, etc.); num segundo sentido, a substância é o gênero ou a espécie a que o sujeito individual pertence (homem, grego; animal, bípede; vegetal, erva; mineral, ferro; etc.). No primeiro sentido, a substância é um ser individual existente; no segundo é o conjunto das características gerais que os sujeitos de um gênero e de uma espécie possuem. Aristóteles fala em substância primeira para referir-se aos seres ou sujeitos individuais realmente existentes, com sua essência e seus acidentes (por exemplo, Sócrates); e em substância segunda para referir-se aos sujeitos universais, isto é, gêneros e espécies que não existem em si e por si mesmos, mas só existem encarnados nos indivíduos, podendo, porém, ser conhecidos pelo pensamento. Assim, por exemplo, o gênero “animal ” e as espécies “vertebrado”, “mamífero” e “humano” não existem em si mesmos, mas existem em Sócrates ou através de Sócrates. O gênero é um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos seres de uma mesma espécie. A espécie tambémé um universal formado por um conjunto de propriedades da matéria e da forma que caracterizam o que há de comum nos indivíduos semelhantes. Assim, o gênero é formado por um conjunto de espécies semelhantes e as espécies, por um conjunto de indivíduos semelhantes. Os indivíduos ou substâncias primeiras são seres realmente existentes; os gêneros e as espécies ou substâncias segundas são universalidades que o pensamento conhece através dos indivíduos; Predicados: são as oito categorias que vimos no estudo da lógica e que também são ontológicas, porque se referem à estrutura e ao modo de ser da substância ou da essência. Em outras palavras, os predicados atribuídos a uma substância ou essência são constitutivos de seu ser e de seu modo de ser, pois toda realidade pode ser conhecida porque possui qualidades (mortal, imortal, finito, infinito, bom, mau, etc.), quantidades (um, muitos, alguns, pouco, muito, grande, pequeno), relaciona-se com outros (igual, diferente, semelhante, maior, menor, superior, inferior), está em algum lugar (aqui, ali, perto, longe, no alto, embaixo, em frente, atrás, etc.), está no tempo (antes, depois, agora, ontem, hoje, amanhã, de dia, de noite, sempre, nunca), realiza ações ou faz alguma coisa (anda, pensa, dorme, corta, cai, prende, cresce, nasce, morre, germina, frutifica, floresce, etc.) e sofre ações de outros seres (é cortado, é preso, é morto, é quebrado, é arrancado, é puxado, é atraído, é levado, é curado, é envenenado, etc.). 26 As categorias ou predicados podem ser essenciais ou acidentais, isto é, podem ser necessários e indispensáveis à natureza própria de um ser, ou podem ser algo que um ser possui por acaso ou que lhe acontece por acaso, sem afetar sua natureza. Tomemos um exemplo. Se eu disser “Sócrates é homem”, necessariamente terei que lhe dar os seguintes predicados: mortal, racional, finito, animal, pensa, sente, anda, reproduz, fala, adoece, é semelhante a outros atenienses, é menor do que uma montanha e maior do que um gato, ama, odeia. Acidentalmente, ele poderá ter outros predicados: é feio, é baixo, é diferente da maioria dos atenienses, é casado, conversou com Laques, esteve no banquete de Agáton, esculpiu três estátuas, foi forçado a envenenar-se pelo tribunal de Atenas. Se nosso exemplo, porém, fosse uma substância genérica ou específica, todos os predicados teriam de ser essenciais, pois o acidente é o que acontece somente para o indivíduo existente e o gênero e a espécie são universais que só existem no pensamento e encarnados nas essências individuais. Com esse conjunto de conceitos forma-se o quadro da ontologia ou metafísica aristotélica como explicação geral, universal e necessária do Ser, isto é, da realidade. Esse quadro conceitual será herdado pelos filósofos posteriores, que problematizarão alguns de seus aspectos, estabelecerão novos conceitos, suprimirão alguns outros, desenvolvendo o que conhecemos como metafísica ocidental. A metafísica aristotélica inaugura, portanto, o estudo da estrutura geral de todos os seres ou as condições universais e necessárias que fazem com que exista um ser e que possa ser conhecido pelo pensamento. Afirma que a realidade no seu todo é inteligível ou conhecível e apresenta-se como conhecimento teorético da realidade sob todos os seus aspectos gerais ou universais, devendo preceder as investigações que cada ciência realiza sobre um tipo determinado de ser. A metafísica investiga: Aquilo sem o que não há seres nem conhecimento dos seres: os três princípios lógico-ontológicos (identidade, não-contradição e terceiro excluído) e as quatro causas (material, formal, eficiente e final); Aquilo que faz um ser ser necessariamente o que ele é: matéria, potência, forma e ato; 27 Aquilo que faz um ser ser necessariamente como ele é: essência e predicados ou categorias; Aquilo que faz um ser existir como algo determinado: a substância individual (substância primeira) e a substância como gênero ou espécie (substância segunda). É isto estudar “o Ser enquanto Ser”. 4 A ATITUDE CIENTÍFICA O Sol é menor do que a Terra. Quem duvidará disso se, diariamente, vemos um pequeno círculo avermelhado percorrer o céu, indo de leste para oeste? O Sol se move em torno da Terra, que permanece imóvel. Quem duvidará disso, se diariamente vemos o Sol nascer, percorrer o céu e se pôr? A aurora não é o seu começo e o crepúsculo, seu fim? Fonte: olhosideral.blogspot.com As cores existem em si mesmas. Quem duvidará disso, se passamos a vida vendo rosas vermelhas, amarelas e brancas, o azul do céu, o verde das árvores, o alaranjado da laranja e da tangerina? Cada gênero e espécie de animal já surgiram tais como os conhecemos. Alguém poderia imaginar um peixe tornar-se réptil ou um pássaro? Para os que são religiosos, os livros sagrados não ensinam que a divindade criou de uma só vez todos 28 os animais, num só dia? A família é uma realidade natural criada pela Natureza para garantir a sobrevivência humana e para atender à afetividade natural dos humanos, que sentem a necessidade de viver juntos. Quem duvidará disso, se vemos, no mundo inteiro, no passado e no presente, a família existindo naturalmente e sendo a célula primeira da sociedade? A raça é uma realidade natural ou biológica produzida pela diferença dos climas, da alimentação, da geografia e da reprodução sexual. Quem duvidará disso, se vemos que os africanos são negros, os asiáticos são amarelos de olhos puxados, os índios são vermelhos e os europeus, brancos? Se formos religiosos, saberemos que os negros descendem de Caim, marcado por Deus, e de Caim, o filho desobediente de Noé. Certezas como essas formam nossa vida e o senso comum de nossa sociedade, transmitido de geração em geração, e, muitas vezes, transformando-se em crença religiosa, em doutrina inquestionável. A astronomia, porém, demonstra que o Sol é muitas vezes maior do que a Terra e, desde Copérnico, que é a Terra que se move em torno dele. A física óptica demonstra que as cores são ondas luminosas de comprimentos diferentes, obtidas pela refração e reflexão, ou decomposição, da luz branca. A biologia demonstra que os gêneros e as espécies de animais se formaram lentamente, no curso de milhões de anos, a partir de modificações de microrganismos extremamente simples. Historiadores e antropólogos mostram que o que entendemos por família (pai, mãe, filhos; esposa, marido, irmãos) é uma instituição social recentíssima – data do século XV – e própria da Europa ocidental, não existindo na Antiguidade, nem nas sociedades africanas, asiáticas e americanas pré-colombianas. Mostram também que não é um fato natural, mas uma criação sociocultural, exigida por condições históricas determinadas. Sociólogos e antropólogos mostram que a ideia de raça também é recente – data do século XVIII -, sendo usada por pensadores que procuravam uma explicação para as diferenças físicas e culturais entre os europeus e os povos conhecidos a partir do século XIV, com as viagens de Marco Polo, e do século XV, com as grandes navegações e as descobertas de continentes ultramarinos. Ao que parece, há uma grande diferença entre nossas certezas cotidianas e o 29 conhecimento científico. Como e por que ela existe? 4.1 Características do senso comum Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com Um breve exame de nossos saberes cotidianos e do senso comum de nossa sociedade revela que possuem algumas características que lhes são próprias: São subjetivos, isto é, exprimem sentimentos e opiniões individuais e de grupos, variando de uma pessoa para outra, ou de um grupo para outro, dependendo das condições em que vivemos. Assim, por exemplo, se eu for artista, verei a beleza da árvore; se eu for marceneira, a qualidade da madeira; se estiver passeandosob o Sol, a sombra para descansar; se for bóia-fria, os frutos que devo colher para ganhar o meu dia. Se eu for hindu, uma vaca será sagrada para mim; se for dona de um frigorífico, estarei interessada na qualidade e na quantidade de carne que poderei vender; São qualitativos, isto é, as coisas são julgadas por nós como grandes ou pequenas, doces ou azedas, pesadas ou leves, novas ou velhas, belas ou feias, quentes ou frias, úteis ou inúteis, desejáveis ou indesejáveis, coloridas ou sem cor, com sabor, odor, próximas ou distantes, etc.; 30 São heterogêneos, isto é, referem-se a fatos que julgamos diferentes, porque os percebemos como diversos entre si. Por exemplo, um corpo que cai e uma pena que flutua no ar são acontecimentos diferentes; sonhar com água é diferente de sonhar com uma escada, etc.; São individualizadores por serem qualitativos e heterogêneos, isto é, cada coisa ou cada fato nos aparece como um indivíduo ou como um ser autônomo: a seda é macia, a pedra é rugosa, o algodão é áspero, o mel é doce, o fogo é quente, o mármore é frio, a madeira é dura, etc.; Mas também são generalizadores, pois tendem a reunir numa só opinião ou numa só idéia coisas e fatos julgados semelhantes: falamos dos animais, das plantas, dos seres humanos, dos astros, dos gatos, das mulheres, das crianças, das esculturas, das pinturas, das bebidas, dos remédios, etc.; Em decorrência das generalizações, tendem a estabelecer relações de causa e efeito entre as coisas ou entre os fatos: “onde há fumaça, há fogo”; “quem tudo quer, tudo perde”; “dize-me com quem andas e te direi quem és”; a posição dos astros determina o destino das pessoas; mulher menstruada não deve tomar banho frio; ingerir sal quando se tem tontura é bom para a pressão; mulher assanhada quem ser estuprada; menino de rua é delinqüente, etc.; Não se surpreendem e nem se admiram com a regularidade, constância, repetição e diferença das coisas, mas, ao contrário, a admiração e o espanto se dirigem para o que é imaginado como único, extraordinário, maravilhoso ou miraculoso. Justamente por isso, em nossa sociedade, a propaganda e a moda estão sempre inventando o “extraordinário”, o “nunca visto”; Pelo mesmo motivo e não por compreenderem o que seja investigação científica, tendem a identificá-la com a magia, considerando que ambas lidam com o misterioso, o oculto, o incompreensível. Essa imagem da ciência como magia aparece, por exemplo, no cinema, quando os filmes mostram os laboratórios científicos repletos de objetos incompreensíveis, com luzes que acendem e apagam, tubos de onde saem fumaças coloridas, exatamente como são mostradas as cavernas 31 ocultas dos magos. Essa mesma identificação entre ciência e magia aparece num programa da televisão brasileira, o Fantástico, que, como o nome indica, mostra aos telespectadores resultados científicos como se fossem espantosa obra de magia, assim como exibem magos ocultistas como se fossem cientistas; Costumam projetar nas coisas ou no mundo sentimentos de angústia e de medo diante do desconhecido. Assim, durante a Idade Média, as pessoas viam o demônio em toda a parte e, hoje, enxergam discos voadores no espaço; Por serem subjetivos, generalizadores, expressões de sentimentos de medo e angústia, e de incompreensão quanto ao trabalho científico, nossas certezas cotidianas e o senso comum de nossa sociedade ou de nosso grupo social cristalizam- se em preconceitos com os quais passamos a interpretar toda a realidade que nos cerca e todos os acontecimentos. Fonte: pt.slideshare.net 4.2 A atitude científica O que distingue a atitude científica da atitude costumeira ou do senso comum? Antes de qualquer coisa, a ciência desconfia da veracidade de nossas certezas, de nossa adesão imediata às coisas, da ausência de crítica e da falta de curiosidade. Por isso, ali onde vemos coisas, fatos e acontecimentos, a atitude científica vê problemas 32 e obstáculos, aparências que precisam ser explicadas e, em certos casos, afastadas. Sob quase todos os aspectos, podemos dizer que o conhecimento científico opõe se ponto por ponto às características do senso comum: É objetivo, isto é, procura as estrutur as universais e necessárias das coisas investigadas; É quantitativo, isto é, busca medidas, padrões, critérios de comparação e avaliação para coisas que parecem ser diferentes. Assim, por exemplo, as diferenças de cor são explicadas por diferenças de um mesmo padrão ou critério de medida, o comprimento das ondas luminosas; as diferenças de intensidade dos sons, pelo comprimento das ondas sonoras; as diferenças de tamanho, pelas diferenças de perspectiva e de ângulos de visão, etc.; É homogêneo, isto é, busca as leis gerais de funcionamento dos fenômenos, que são as mesmas para fatos que nos parecem diferentes. Por exemplo, a lei universal da gravitação demonstra que a queda de uma pedra e a flutuação de uma pluma obedecem à mesma lei de atração e repulsão no interior do campo gravitacional; a estrela da manhã e a estrela da tarde são o mesmo planeta, Vênus, visto em posições diferentes com relação ao Sol, em decorrência do movimento da Terra; sonhar com água e com uma escada é ter o mesmo tipo de sonho, qual seja, a realização dos desejos sexuais reprimidos, etc.; É generalizador, pois reúne individualidades, percebidas como diferentes, sob as mesmas leis, os mesmos padrões ou critérios de medida, mostrando que possuem a mesma estrutura. Assim, por exemplo, a química mostra que a enorme variedade de corpos se reduz a um número limitado de corpos simples que se combinam de maneiras variadas, de modo que o número de elementos é infinitamente menor do que a variedade empírica dos compostos; São diferenciadores, pois não reúnem nem generalizam por semelhanças aparentes, mas distinguem os que parecem iguais, desde que obedeçam a estruturas diferentes. Lembremos aqui um exemplo que usamos no capítulo sobre a linguagem, quando mostramos que a 33 palavra queijo parece ser a mesma coisa que a palavra inglesa cheese e a palavra francesa fromage, quando, na realidade, são muito diferentes, porque se referem a estruturas alimentares diferentes; Só estabelecem relações causais depois de investigar a natureza ou estrutura do fato estudado e suas relações com outros semelhantes ou diferentes. Assim, por exemplo, um corpo não cai porque é pesado, mas o peso de um corpo depende do campo gravitacional onde se encontra – é por isso que, nas naves espaciais, onde a gravidade é igual a zero, todos os corpos flutuam, independentemente do peso ou do tamanho; um corpo tem uma certa cor não porque é colorido, mas porque, dependendo de sua composição química e física, reflete a luz de uma determinada maneira, etc.; Surpreende-se com a regularidade, a constância, a freqüência, a repetição e a diferença das coisas e procura mostrar que o maravilhoso, o extraordinário ou o “milagroso” é um caso particular do que é regular, normal, freqüente. Um eclipse, um terremoto, um furacão, embora excepcionais, obedecem às leis da física. Procura, assim, apresentar explicações racionais, claras, simples e verdadeiras para os fatos, opondo-se ao espetacular, ao mágico e ao fantástico; Distingue-se da magia. A magia admite uma participação ou simpatia secreta entre coisas diferentes, que agem umas sobre as outras por meio de qualidades ocultas e considera o psiquismo humano uma força capaz de ligar-se a psiquismos superiores (planetários, astrais, angélicos, demoníacos) para provocar efeitos inesperados nas coisas e nas pessoas. A atitude científica, ao contrário, opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e quetais conhecimentos podem ser transmitidos a todos; Afirma que, pelo conhecimento, o homem pode libertar-se do medo e das superstições, deixando de projetá-los no mundo e nos outros; Procura renovar-se e modificar-se continuamente, evitando a transformação 34 das teorias em doutrinas, e destas em preconceitos sociais. O fato científico resulta de um trabalho paciente e lento de investigação e de pesquisa racional, aberto a mudanças, não sendo nem um mistério incompreensível nem uma doutrina geral sobre o mundo. Os fatos ou objetos científicos não são dados empíricos espontâneos de nossa experiência cotidiana, mas são construídos pelo trabalho da investigação científica. Esta é um conjunto de atividades intelectuais, experimentais e técnicas, realizadas com base em métodos que permitem e garantem: Separar os elementos subjetivos e objetivos de um fenômeno; Construir o fenômeno como um objeto do conhecimento, controlável, verificável, interpretável e capaz de ser retificado e corrigido por novas elaborações; Demonstrar e provar os resultados obtidos durante a investigação, graças ao rigor das relações definidas entre os fatos estudados; a demonstração deve ser feita não só para verificar a validade dos resultados obtidos, mas também para prever racionalmente novos fatos como efeitos dos já estudados; Relacionar com outros fatos um fato isolado, integrando-o numa explicação racional unificada, pois somente essa integração transforma o fenômeno em objeto científico, isto é, em fato explicado por uma teoria; Formular uma teoria geral sobre o conjunto dos fenômenos observados e dos fatos investigados, isto é, formular um conjunto sistemático de conceitos que expliquem e interpretem as causas e os efeitos, as relações de dependência, identidade e diferença entre todos os objetos que constituem o campo investigado. Delimitar ou definir os fatos a investigar, separando-os de outros semelhantes ou diferentes; estabelecer os procedimentos metodológicos para observação, experimentação e verificação dos fatos; construir instrumentos técnicos e condições de laboratório específicas para a pesquisa; elaborar um conjunto sistemático de conceitos que formem a teoria geral dos fenômenos estudados, que controlem e guiem o andamento da pesquisa, além de ampliá-la com novas investigações, e permitam a previsão de fatos novos a partir dos já conhecidos: esses são os pré- 35 requisitos para a constituição de uma ciência e as exigências da própria ciência. A ciência distingue-se do senso comum porque este é uma opinião baseada em hábitos, preconceitos, tradições cristalizadas, enquanto a primeira baseia-se em pesquisas, investigações metódicas e sistemáticas e na exigência de que as teorias sejam internamente coerentes e digam a verdade sobre a realidade. A ciência é conhecimento que resulta de um trabalho racional. Fonte: slideplayer.com.br O que é uma teoria científica? É um sistema ordenado e coerente de proposições ou enunciados baseados em um pequeno número de princípios, cuja finalidade é descrever, explicar e prever do modo mais completo possível um conjunto de fenômenos, oferecendo suas leis necessárias. A teoria científica permite que uma multiplicidade empírica de fatos aparentemente muito diferentes sejam compreendidos como semelhantes e submetidos às mesmas leis; e, vice-versa, permite compreender por que fatos aparentemente semelhantes são diferentes e submetidos a leis diferentes. 4.3 A ciência na História - As três principais concepções de ciência. Historicamente, três têm sido as principais concepções de ciência ou de ideais de cientificidade: o racionalista, cujo modelo de objetividade é a matemática; o empirista, que toma o modelo de objetividade da medicina grega e da história natural 36 do século XVII; e o construtivista, cujo modelo de objetividade advém da ideia de razão como conhecimento aproximativo. A concepção racionalista – que se estende dos gregos até o final do século XVII – afirma que a ciência é um conhecimento racional dedutivo e demonstrativo como a matemática, portanto, capaz de provar a verdade necessária e universal de seus enunciados e resultados, sem deixar qualquer dúvida possível. Uma ciência é a unidade sistemática de axiomas, postulados e definições, que determinam a natureza e as propriedades de seu objeto, e de demonstrações, que provam as relações de causalidade que regem o objeto investigado. O objeto científico é uma representação intelectual universal, necessária e verdadeira das coisas representadas e corresponde à própria realidade, porque esta é racional e inteligível em si mesma. As experiências científicas são realizadas apenas para verificar e confirmar as demonstrações teóricas e não para produzir o conhecimento do objeto, pois este é conhecido exclusivamente pelo pensamento. O objeto científico é matemático, porque a realidade possui uma estrutura matemática, ou como disse Galileu, “o grande livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos”. A concepção empirista – que vai da medicina grega e Aristóteles até o final do século XIX – afirma que a ciência é uma interpretação dos fatos baseada em observações e experimentos que permitem estabelecer induções e que, ao serem completadas, oferecem a definição do objeto, suas propriedades e suas leis de funcionamento. A teoria científica resulta das observações e dos experimentos, de modo que a experiência não tem simplesmente o papel de verificar e confirmar conceitos, mas tem a função de produzi-los. Eis por que, nesta concepção, sempre houve grande cuidado para estabelecer métodos experimentais rigorosos, pois deles dependia a formulação da teoria e a definição da objetividade investigada. Essas duas concepções de cientificidade possuíam o mesmo pressuposto, embora o realizassem de maneiras diferentes. Ambas consideravam que a teoria científica era uma explicação e uma representação verdadeira da própria realidade, tal como esta é em si mesma. A ciência era uma espécie de raio-X da realidade. A concepção racionalista era hipotético-dedutiva, isto é, definia o objeto e suas leis e disso deduzia propriedades, efeitos posteriores, previsões. A concepção empirista era hipotético-indutiva, isto é, apresentava suposições sobre o objeto, realizava 37 observações e experimentos e chegava à definição dos fatos, às suas leis, suas propriedades, seus efeitos posteriores e previsões. A concepção construtivista – iniciada no século passado – considera a ciência uma construção de modelos explicativos para a realidade e não uma representação da própria realidade. O cientista combina dois procedimentos – um, vindo do racionalismo, e outro, vindo do empirismo – e a eles acrescenta um terceiro, vindo da idéia de conhecimento aproximativo e corrigível. Fonte: profemorais.blogspot.com Como o racionalista, o cientista construtivista exige que o método lhe permita e lhe garanta estabelecer axiomas, postulados, definições e deduções sobre o objeto científico. Como o empirista, o construtivista exige que a experimentação guie e modifique axiomas, postulados, definições e demonstrações. No entanto, porque considera o objeto uma construção lógico-intelectual e uma construção experimental feita em laboratório, o cientista não espera que seu trabalho apresente a realidade em si mesma, mas ofereça estruturas e modelos de funcionamento da realidade, explicando os fenômenos observados. Não espera, portanto, apresentar uma verdade absoluta e sim uma verdade aproximada que pode ser corrigida, modificada, abandonada por outra mais adequada aos fenômenos. São três as exigências de seu ideal de cientificidade: 38 1. que haja coerência (isto é, que não haja contradições) entre os princípios que orientam a teoria; 2. que os modelosdos objetos (ou estruturas dos fenômenos) sejam construídos com base na observação e na experimentação; 3. que os resultados obtidos possam não só alterar os modelos construídos, mas também alterar os próprios princípios da teoria, corrigindo-a. 4.4 Diferenças entre a ciência antiga e a moderna Quando apresentamos os ideais de cientificidade, dissemos que tanto o ideal racionalista quanto o empirista se iniciaram com os gregos. Isso, porém, não significa que a concepção antiga e a moderna (século XVII) de ciência sejam idênticas. Tomemos um exemplo que nos ajude a perceber algumas das diferenças entre antigos e modernos. Aristóteles escreveu uma Física. O objeto físico ou natural, diz Aristóteles, possui duas características principais: em primeiro lugar, existe e opera independentemente da presença, da vontade e da ação humanas; em segundo lugar, é um ser em movimento, isto é, em devir, sofrendo alterações qualitativas, quantitativas e locais; nasce, vive e morre ou desaparece. A Física estuda, portanto, os seres naturais submetidos à mudança. O mundo, escreve Aristóteles, divide-se em duas grandes regiões naturais, cuja diferença é dada pelo tipo de substância, de matéria e de forma dos seres de cada uma delas. A região celeste, formada de Sete Céus ou Sete Esferas, onde estão os astros, tem como substância o éter, matéria sutil e diáfana, forma universal que não sofre mudanças qualitativas nem quantitativas, mas apenas a mudança ou movimento local, realizando eternamente o mais perfeito dos movimentos, o circular. A segunda região é a sublunar ou terrestre - nosso mundo -, constituída por quatro substâncias ou elementos – terra, água, ar e fogo -, de cujas combinações surgem todos os seres. São substâncias fortemente materiais e, portanto (como vimos no estudo da metafísica aristotélica), fortemente potenciais ou virtuais, transformando-se sem cessar. A região sublunar é o mundo das mudanças de forma, ou da passagem contínua de uma forma a outra, para atualizar o que está em potência na matéria. Os seres físicos não se movem da mesma maneira (não se transformam nem se deslocam da mesma maneira). Seus movimentos e mudanças dependem da qualidade de suas matérias e da quantidade em que cada um dos quatro elementos 39 materiais existe combinado com os outros num corpo. Deixemos de lado todas as modalidades de movimentos estudadas por Aristóteles e examinemos apenas uma: o movimento local. Os corpos, diz o filósofo, procuram atualizar suas potências materiais, atualizando-se em formas diferentes. Cada modalidade de matéria realiza sua forma perfeita de maneira diferente das outras. No caso do movimento local, a matéria define lugares naturais, isto é, locais onde ela se atualiza ou se realiza melhor do que em outros. Assim, os corpos pesados (nos quais predomina o elemento terra) têm como lugar natural o centro da Terra e por isso o movimento local natural dos pesados é a queda. Os corpos leves (nos quais predomina o elemento fogo) têm como lugar natural o céu e por isso seu movimento local natural é subir. Os corpos não inteiramente leves (nos quais predomina o elemento ar) buscam seu lugar natural no espaço rarefeito e por isso seu movimento local natural é flutuar. Enfim, os corpos não totalmente pesados (nos quais predomina o elemento água) buscam seu lugar natural no líquido e por isso seu movimento local natural é boiar nas águas. Além dos movimentos naturais, os corpos podem ser submetidos a movimentos violentos, isto é, àqueles que contrariam sua natureza e os impedem de alcançar seu lugar natural. Por exemplo, quando o arqueiro lança uma flecha, imprime nela um movimento violento, pois força-a a permanecer no ar, embora seu lugar natural seja a terra e seu movimento natural seja a queda. Este pequeno resumo da Física aristotélica nos mostra algumas características marcantes da ciência antiga: É uma ciência baseada nas qualidades percebidas nos corpos (leve, pesado, líquido, sólido, etc.); É uma ciência baseada em distinções qualitativas do espaço (alto, baixo, longe, perto, celeste, sublunar); É uma ciência baseada na metafísica da identidade e da mudança (perfeição imóvel, imperfeição móvel); É uma ciência que estabelece leis diferentes para os corpos segundo sua matéria e sua forma, ou segundo sua substância; Como consequência das características anteriores, é uma ciência que 40 concebe a realidade natural como um modelo hierárquico no qual os seres possuem um lugar natural de acordo com sua perfeição, hierarquizando-se em graus que vão dos inferiores aos superiores. Quando comparamos a física de Aristóteles com a moderna, isto é, a que foi elaborada por Galileu e Newton, podemos notar as grandes diferenças: Para a física moderna, o espaço é aquele definido pela geometria, portanto, homogêneo, sem distinções qualitativas entre alto, baixo, frente, atrás, longe, perto. É um espaço onde todos os pontos são reversíveis ou equivalentes, de modo que não há “lugares naturais” qualitativamente diferenciados; Os objetos físicos investigados pelo cientista começam por ser purificados de todas as qualidades sensoriais – cor, tamanho, odor, peso, matéria, forma, líquido, sólido, leve, grande, pequeno, etc. -, isto é, de todas as qualidades sensíveis, porque estas são meramente subjetivas. O objeto é definido por propriedades objetivas gerais, válidas para todos os seres físicos: massa, volume, figura. Torna-se irrelevante o tipo de matéria, de forma ou de substância de um corpo, pois todos se comportam fisicamente da mesma maneira. Torna-se inútil a distinção entre um mundo celeste e um mundo sublunar, pois astros e corpos terrestres obedecem às mesmas leis universais da física; A física estuda o movimento não como alteração qualitativa e quantitativa dos corpos, mas como deslocamento espacial que altera a massa, o volume e a velocidade dos corpos. O movimento e o repouso são as propriedades físicas objetivas de todos os corpos da Natureza e todos eles obedecem às mesmas leis – aquelas que Galileu formulou com base no princípio da inércia (um corpo se mantém em movimento indefinidamente, a menos que encontre um outro que lhe faça obstáculo ou que o desvie de seu trajeto); e aquelas formuladas por Newton, com base no princípio universal da gravitação (a toda ação corresponde uma reação que lhe é igual e contrária). Não há diferença entre movimento natural e movimento violento, pois todo e qualquer movimento obedece 41 às mesmas leis; A Natureza é um complexo de corpos formados por proporções diferentes de movimento e de repouso, articulados por relações de causa e efeito, sem finalidade, pois a idéia de finalidade só existe para os seres humanos dotados de razão e vontade. Os corpos não se movem, portanto, em busca de perfeição, mas porque a causa eficiente do movimento os faz moverem-se. A física é uma mecânica universal. A física da Natureza se torna geométrica, experimental, quantitativa, causal ou mecânica (relações entre a causa eficiente e seus efeitos) e suas leis têm valor universal, independentemente das qualidades sensíveis das coisas. Terra, mar e ar obedecem às mesmas leis naturais. A Natureza é a mesma em toda parte e para todos os seres, não existindo hierarquias ou graus de imperfeição-perfeição, inferioridade- superioridade. Há, ainda, uma outra diferença profunda entre a ciência antiga e a moderna. A primeira era uma ciência teorética, isto é, apenas contemplava os seres naturais, sem jamais imaginar intervir neles ou sobre eles. A técnica era um saber empírico, ligado a práticas necessárias à vida e nada tinha a oferecer à ciência nem a receber dela. Numa sociedade escravista, que deixava tarefas, trabalhos e serviços aos escravos, a técnica era vista como uma forma menor de conhecimento.Duas afirmações mostram a diferença dos modernos em relação aos antigos: a afirmação do filósofo inglês Francis Bacon, para quem “saber é poder”, e a afirmação de Descartes, para quem “a ciência deve tornar-nos senhores da Natureza”. A ciência moderna nasce vinculada à idéia de intervir na Natureza, de conhecê-la para apropriar-se dela, para controlá-la e dominá-la. A ciência não é apenas contemplação da verdade, mas é sobretudo o exercício do poderio humano sobre a Natureza. Numa sociedade em que o capitalismo está surgindo e, para acumular o capital, deve ampliar a capacidade do trabalho humano para modificar e explorar a Natureza, a nova ciência será inseparável da técnica. Na verdade, é mais correto falar em tecnologia do que em técnica. De fato, a técnica é um conhecimento empírico, que, graças à observação, elabora um conjunto de receitas e práticas para agir sobre as coisas. A tecnologia, porém, é um saber teórico que se aplica praticamente. 42 Por exemplo, um relógio de sol é um objeto técnico que serve para marcar horas seguindo o movimento solar no céu. Um cronômetro, porém, é um objeto tecnológico: por um lado, sua construção pressupõe conhecimentos teóricos sobre as leis do movimento (as leis do pêndulo) e, por outro lado, seu uso altera a percepção empírica e comum dos objetos, pois serve para medir aquilo que nossa percepção não consegue perceber. Uma lente de aumento é um objeto técnico, mas o telescópio e o microscópio são objetos tecnológicos, pois sua construção pressupõe o conhecimento das leis científicas definidas pela óptica. Em outras palavras, um objeto é tecnológico quando sua construção pressupõe um saber científico e quando seu uso interfere nos resultados das pesquisas científicas. A ciência moderna tornou-se inseparável da tecnologia. 4.5 As mudanças científicas Vimos até aqui duas grandes mudanças na ciência. A primeira delas se refere à passagem do racionalismo e empirismo ao construtivismo, isto é, de um ideal de cientificidade baseado na ideia de que a ciência é uma representação da realidade tal como ela é em si mesma, a um ideal de cientificidade baseado na ideia de que o objeto científico é um modelo construído e não uma representação do real, uma aproximação sobre o modo de funcionamento da realidade, mas não o conhecimento absoluto dela. A segunda mudança refere-se à passagem da ciência antiga – teorética, qualitativa – à ciência moderna – tecnológica, quantitativa. Por que houve tais mudanças no pensamento científico? Durante certo tempo, julgou-se que a ciência (como a sociedade) evolui e progride. Evolução e progresso são duas ideias muito recentes – datam dos séculos XVIII e XIX -, mas muito aceitas pelas pessoas. Basta ver o lema da bandeira brasileira para perceber como as pessoas acham natural falar em “Ordem e Progresso”. As noções de evolução e de progresso partem da suposição de que o tempo é uma linha reta contínua e homogênea (como a imagem do rio, que vimos ao estudar a metafísica). O tempo seria uma sucessão contínua de instantes, momentos, fases, períodos, épocas, que iriam se somando uns aos outros, acumulando-se de tal modo que o que acontece depois é o resultado melhorado do que aconteceu antes. Contínuo e cumulativo, o tempo seria um aperfeiçoamento de todos os seres (naturais e humanos). 43 Fonte: slideplayer.com.br Evolução e progresso são a crença na superioridade do presente em relação ao passado e do futuro em relação ao presente. Assim, os europeus civilizados seriam superiores aos africanos e aos índios, a física galileana-newtoniana seria superior à aristotélica, a física quântica seria superior à de Galileu e de Newton. Evoluir significa: tornar-se superior e melhor do que se era antes. Progredir significa: ir num rumo cada vez melhor na direção de uma finalidade superior. Evolução e progresso também supõem o tempo como uma série linear de momentos ligados por relações de causa e efeito, em que o passado é causa e o presente, efeito, vindo a tornar-se causa do futuro. Vemos essa ideia aparecer quando, por exemplo, os manuais de História apresentam as “influências” que um acontecimento anterior teria tido sobre um outro, posterior. Evoluir e progredir pressupõem uma concepção de História semelhante à que a biologia apresenta quando fala em germe, semente ou larva. O germe, a semente ou a larva são entes que contêm neles mesmos tudo o que lhes acontecerá, isto é, o futuro já está contido no ponto inicial de um ser, cuja história ou cujo tempo nada mais é do que o desdobrar ou o desenvolver pleno daquilo que ele já era potencialmente. Essa ideia encontra-se presente, por exemplo, na distinção entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Quando digo que um país é ou está desenvolvido, digo que sei que alcançou a finalidade à qual estava destinado desde que surgiu. 44 Quando digo que um país é ou está subdesenvolvido, estou dizendo que a finalidade – que é a mesma para ele e para o desenvolvido – ainda não foi, mas deverá ser alcançada em algum momento do tempo. Não por acaso, as expressões desenvolvido e subdesenvolvido foram usadas para substituir duas outras, tidas como ofensivas e agressivas: países adiantados e países atrasados, isto é, países evoluídos e não evoluídos, países com progresso e sem progresso. Em resumo, evolução e progresso pressupõem: continuidade temporal, acumulação causal dos acontecimentos, superioridade do futuro e do presente com relação ao passado, existência de uma finalidade a ser alcançada. Supunha-se que as mudanças científicas indicavam evolução ou progresso dos conhecimentos humanos. 4.6 Desmentindo a evolução e o progresso científicos A Filosofia das Ciências, estudando as mudanças científicas, impôs um desmentido às ideias de evolução e progresso. Isso não quer dizer que a Filosofia das Ciências viesse a falar em atraso e regressão científica, pois essas duas noções são idênticas às de evolução e progresso, apenas com o sinal trocado (em vez de caminhar causal e continuamente para frente, caminhar-se-ia causal e continuamente para trás). O que a Filosofia das Ciências compreendeu foi que as elaborações científicas e os ideais de cientificidade são diferentes e descontínuas. Quando, por exemplo, comparamos a geometria clássica ou geometria euclidiana (que opera com o espaço plano) e a geometria contemporânea ou topológica (que opera com o espaço tridimensional), vemos que não se trata de duas etapas ou de duas fases sucessivas da mesma ciência geométrica, e sim de duas geometrias diferentes, com princípios, conceitos, objetos, demonstrações completamente diferentes. Não houve evolução e progresso de uma para outra, pois são duas geometrias diversas e não geometrias sucessivas. Quando comparamos as físicas de Aristóteles, Galileu-Newton e Einstein, não estamos diante de uma mesma física, que teria evoluído ou progredido, mas diante de três físicas diferentes, baseadas em princípios, conceitos, demonstrações, experimentações e tecnologias completamente diferentes. Em cada uma delas, a ideia de Natureza é diferente; em cada uma delas os métodos empregados são diferentes; em cada uma delas o que se deseja conhecer é diferente. 45 Quando comparamos a biologia genética de Mendel e a genética formulada pela bioquímica (baseada na descoberta de enzimas, de proteínas do ADN ou código genético), também não encontramos evolução e progresso, mas diferença e descontinuidade. Assim, por exemplo, o modelo explicativo que orientava o trabalho de Mendel era o da relação sexual como um encontro entre duas entidades diferentes – o espermatozoide e o óvulo -, enquanto o modelo que orienta a genética contemporânea é o da cibernética e da teoria da informação. Quando comparamos a ciência da linguagem do século XIX (que era baseada nos estudosde filologia, isto é, nos estudos da origem e da história das palavras) com a linguística contemporânea (que, como vimos no capítulo dedicado à linguagem, estuda estruturas), vemos duas ciências diferentes. E o mesmo pode ser dito de todas as ciências. Verificou-se, portanto, uma descontinuidade e uma diferença temporal entre as teorias científicas como consequência não de uma forma mais evoluída, mais progressiva ou melhor de fazer ciência, e sim como resultado de diferentes maneiras de conhecer e construir os objetos científicos, de elaborar os métodos e inventar tecnologias. O filósofo Gaston Bachelard criou a expressão ruptura epistemológicas para explicar essa descontinuidade no conhecimento científico. 4.7 Rupturas epistemológicas e revoluções científicas Um cientista ou um grupo de cientistas começam a estudar um fenômeno empregando teorias, métodos e tecnologias disponíveis em seu campo de trabalho. Pouco a pouco, descobrem que os conceitos, os procedimentos, os instrumentos existentes não explicam o que estão observando nem levam aos resultados que estão buscando. Encontram, diz Bachelard, um “obstáculo epistemológico”. Para superar o obstáculo epistemológico, o cientista ou grupo de cientistas precisam ter a coragem de dizer: Não. Precisam dizer não à teoria existente e aos métodos e tecnologias existentes, realizando a ruptura epistemológica. Esta conduz à elaboração de novas teorias, novos métodos e tecnologias, que afetam todo o campo de conhecimentos existentes. Uma nova concepção científica emerge, levando tanto a incorporar nela os conhecimentos anteriores, quanto a afastá-los inteiramente. O filósofo da ciência Khun designa esses momentos de ruptura epistemológica e de criação de novas teorias 46 com a expressão revolução científica, como, por exemplo, a revolução copernicana, que substituiu a explicação geocêntrica pela heliocêntrica. Fonte: slideplayer.com.br Segundo Khun, um campo científico é criado quando métodos, tecnologias, formas de observação e experimentação, conceitos e demonstrações formam um todo sistemático, uma teoria que permite o conhecimento de inúmeros fenômenos. A teoria se torna um modelo de conhecimento ou um paradigma científico. Em tempos normais, um cientista, diante de um fato ou de um fenômeno ainda não estudado, usa o modelo ou o paradigma científico existente. Uma revolução científica acontece quando o cientista descobre que os paradigmas disponíveis não conseguem explicar um fenômeno ou um fato novo, sendo necessário produzir um outro paradigma, até então inexistente e cuja necessidade não era sentida pelos investigadores. A ciência, portanto, não caminha numa via linear contínua e progressiva, mas por saltos ou revoluções. Assim, quando a ideia de próton-elétron-nêutron entra na física, a de vírus entra na biologia, a de enzima entra na química ou a de fonema entra na linguística, os paradigmas existentes são incapazes de alcançar, compreender e explicar esses objetos ou fenômenos, exigindo a criação de novos modelos científicos. Por que, então, temos a ilusão de progresso e de evolução? Por dois motivos principais: 47 1. Do lado do cientista, porque este sente que sabe mais e melhor do que antes, já que o paradigma anterior não lhe permitia conhecer certos objetos ou fenômenos. Como trabalhava com uma tradição científica e a abandonou, tem o sentimento de que o passado estava errado, era inferior ao presente aberto por seu novo trabalho. Não é ele, mas o filósofo da ciência que percebe a ruptura e a descontinuidade e, portanto, a diferença temporal. Do lado do cientista, o progresso é uma vivência subjetiva; 2. Do lado dos não-cientistas, porque vivemos sob a ideologia do progresso e da evolução, do “novo” e do “fantástico”. Além disso, vemos os resultados tecnológicos das ciências: naves espaciais, computadores, satélites, fornos de micro-ondas, telefones celulares, cura de doenças julgadas incuráveis, objetos plásticos descartáveis, e esses resultados tecnológicos são apresentados pelos governos, pelas empresas e pela propaganda como “signos do progresso” e não da diferença temporal. Do lado dos não-cientistas, o progresso é uma crença ideológica. Há, porém, uma razão mais profunda para nossa crença no progresso. Desde a Antiguidade, conhecer sempre foi considerado o meio mais precioso e eficaz para combater o medo, a superstição e as crendices. Ora, no caso da modernidade, o vínculo entre ciência e aplicação prática dos conhecimentos (tecnologias) fez surgirem objetos que não só facilitaram a vida humana (meios de transporte, de iluminação, de comunicação, de cultivo do solo, etc.), mas aumentaram a esperança de vida (remédios, cirurgias, etc.). Do ponto de vista dos resultados práticos, sentimos que estamos em melhores condições que os antigos e por isso falamos em evolução e progresso. Do ponto de vista das próprias teorias científicas, porém, a noção de progresso não possui fundamento, como explicamos acima. 4.8 Falsificação X revolução Vimos que a ciência contemporânea é construtivista, julgando que fatos e fenômenos novos podem exigir a elaboração de novos métodos, novas tecnologias e novas teorias. 48 Fonte: slideplayer.com.br Alguns filósofos da ciência, entre os quais Karl Popper, afirmaram que a reelaboração científica decorre do fato de ter havido uma mudança no conceito filosófico-científico da verdade. Esta, como já vimos, foi considerada durante muitos séculos como a correspondência exata entre uma ideia ou um conceito e a realidade. Vimos também que, no século passado, foi proposta uma teoria da verdade como coerência interna entre conceitos. Na concepção anterior, o falso acontecia quando uma ideia não correspondia à coisa que deveria representar. Na nova concepção, o falso é a perda da coerência de uma teoria, a existência de contradições entre seus princípios ou entre estes e alguns de seus conceitos. Popper afirma que as mudanças científicas são uma consequência da concepção da verdade como coerência teórica. E propõe que uma teoria científica seja avaliada pela possibilidade de ser falsa ou falsificada. Uma teoria científica é boa, diz Popper, quanto mais estiver aberta a fatos novos que possam tornar falsos os princípios e os conceitos em que se baseava. Assim, o valor de uma teoria não se mede por sua verdade, mas pela possibilidade de ser falsa. A falseabilidade seria o critério de avaliação das teorias científicas e garantiria a ideia de progresso científico, pois é a mesma teoria que vai sendo corrigida por fatos novos que a falsificam. A maioria dos filósofos da ciência, entre os quais Khun, demonstrou o absurdo da posição de Popper. De fato, dizem eles, jamais houve um único caso em que uma 49 teoria pudesse ser falsificada por fatos científicos. Jamais houve um único caso em que um fato novo garantisse a coerência de uma teoria, bastando impor a ela mudanças totais. Cada vez que fatos provocaram verdadeiras e grandes mudanças teóricas, essas mudanças não foram feitas no sentido de “melhorar” ou “aprimorar” uma teoria existente, mas no sentido de abandoná-la por uma outra. O papel do fato científico não é o de falsear ou falsificar uma teoria, mas de provocar o surgimento de uma nova teoria verdadeira. É o verdadeiro e não o falso que guia o cientista, seja a verdade entendida como correspondência entre ideia e coisa, seja entendida como coerência interna das ideias. 4.9 Classificação das ciências Ciência, no singular, refere-se a um modo e a um ideal de conhecimento que examinamos até aqui. Ciências, no plural, refere-se às diferentes maneiras de realização do ideal de cientificidade, segundo os diferentes fatos investigados e os diferentes métodos e tecnologias empregados. A primeira classificação sistemática dasciências de que temos notícia foi a de Aristóteles, à qual já nos referimos no início deste livro. O filósofo grego empregou três critérios para classificar os saberes: Critério da ausência ou presença da ação humana nos seres investigados, levando à distinção entre as ciências teoréticas (conhecimento dos seres que existem e agem independentemente da ação humana) e ciências práticas (conhecimento de tudo quanto existe como efeito das ações humanas); Critério da imutabilidade ou permanência e da mutabilidade ou movimento dos seres investigados, levando à distinção entre metafísica (estudo do Ser enquanto Ser, fora de qualquer mudança), física ou ciências da Natureza (estudo dos seres constituídos por matéria e forma e submetidos à mudança ou ao movimento) e matemática (estudo dos seres dotados apenas de forma, sem matéria, imutáveis, mas existindo nos seres naturais e conhecidos por abstração); Critério da modalidade prática, levando à distinção entre ciências que 50 estudam a práxis (a ação ética, política e econômica, que tem o próprio agente como fim) e as técnicas (a fabricação de objetos artificiais ou a ação que tem como fim a produção de um objeto diferente do agente). Com pequenas variações, essa classificação foi mantida até o século XVII, quando, então, os conhecimentos se separaram em filosóficos, científicos e técnicos. A partir dessa época, a Filosofia tende a desaparecer nas classificações científicas (é um saber diferente do científico), assim como delas desaparecem as técnicas. Das inúmeras classificações propostas, as mais conhecidas e utilizadas foram feitas por filósofos franceses e alemães do século XIX, baseando-se em três critérios: tipo de objeto estudado, tipo de método empregado, tipo de resultado obtido. Desses critérios e da simplificação feita sobre as várias classificações anteriores, resultou aquela que se costuma usar até hoje: Ciências matemáticas ou lógico-matemáticas (aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, lógica, física pura, astronomia pura, etc.); Ciências naturais (física, química, biologia, geologia, astronomia, geografia física, paleontologia, etc.); ? ciências humanas ou sociais (psicologia, sociologia, antropologia, geografia humana, economia, lingüística, psicanálise, arqueologia, história, etc.); Ciências aplicadas (todas as ciências que conduzem à invenção de tecnologias para intervir na Natureza, na vida humana e nas sociedades, como por exemplo, direito, engenharia, medicina, arquitetura, informática, etc.). Cada uma das ciências subdivide-se em ramos específicos, com nova delimitação do objeto e do método de investigação. Assim, por exemplo, a física subdivide-se em mecânica, acústica, óptica, etc.; a biologia em botânica, zoologia, fisiologia, genética, etc.; a psicologia subdivide-se em psicologia do comportamento, do desenvolvimento, psicologia clínica, psicologia social, etc. E assim sucessivamente, para cada uma das ciências. Por sua vez, os próprios ramos de cada ciência subdividem-se em disciplinas cada vez mais específicas, à medida que seus objetos conduzem a pesquisas cada vez mais detalhadas e especializadas. 51 5 AS CIÊNCIAS HUMANAS Embora seja evidente que toda e qualquer ciência é humana, porque resulta da atividade humana de conhecimento, a expressão ciências humanas refere-se àquelas ciências que têm o próprio ser humano como objeto. A situação de tais ciências é muito especial. Em primeiro lugar, porque seu objeto é bastante recente: o homem como objeto científico é uma ideia surgida apenas no século XIX. Até então, tudo quanto se referia ao humano era estudado pela Filosofia. Fonte: ceticismo.net Em segundo lugar, porque surgiram depois que as ciências matemáticas e naturais estavam constituídas e já haviam definido a ideia de cientificidade, de métodos e conhecimentos científicos, de modo que as ciências humanas foram levadas a imitar e copiar o que aquelas ciências haviam estabelecido, tratando o homem como uma coisa natural matematizável e experimentável. Em outras palavras, par a ganhar respeitabilidade científica, as disciplinas conhecidas como ciências humanas procuraram estudar seu objeto empregando conceitos, métodos e técnicas propostos pelas ciências da Natureza. Em terceiro lugar, por terem surgido no período em que prevalecia a concepção 52 empirista e determinista da ciência, também procuraram tratar o objeto humano usando os modelos hipotético-indutivos e experimentais de estilo empirista, e buscavam leis causais necessárias e universais para os fenômenos humanos. Como, entretanto, não era possível realizar uma transposição integral e perfeita dos métodos, das técnicas e das teorias naturais para os estudos dos fatos humanos, as ciências humanas acabaram trabalhando por analogia com as ciências naturais e seus resultados tornaram-se muito contestáveis e pouco científicos. Essa situação levou muitos cientistas e filósofos a duvidar da possibilidade de ciências que tivessem o homem como objeto. Quais as principais objeções feitas à possibilidade das ciências humanas? A ciência lida com fatos observáveis, isto é, com seres e acontecimentos que, nas condições especiais de laboratório, são objetos de experimentação. Como observar-experimentar, por exemplo, a consciência humana individual, que seria o objeto da psicologia? Ou uma sociedade, objeto da sociologia? Ou uma época passada, objeto da história? A ciência busca as leis objetivas gerais, universais e necessárias dos fatos. Como estabelecer leis objetivas para o que é essencialmente subjetivo, como o psiquismo humano? Como estabelecer leis universais para algo que é particular, como é o caso de uma sociedade humana? Como estabelecer leis necessárias para o que acontece uma única vez, como é o caso do acontecimento histórico? A ciência opera por análise (decomposição de um fato complexo em elementos simples) e síntese (recomposição do fato complexo por seleção dos elementos simples, distinguindo os essenciais dos acidentais). Como analisar e sintetizar o psiquismo humano, uma sociedade, um acontecimento histórico? A ciência lida com fatos regidos pela necessidade causal ou pelo princípio do determinismo universal. O homem é dotado de razão, vontade e liberdade, é capaz de criar fins e valores, de escolher entre várias opções possíveis. Como dar uma explicação científica necessária àquilo que, por essência, é contingente, pois é livre e age por liberdade? 53 A ciência lida com fatos objetivos, isto é, com os fenômenos, depois que foram purificados de todos os elementos subjetivos, de todas as qualidades sensíveis, de todas as opiniões e todos os sentimentos, de todos os dados afetivos e valorativos. Ora, o humano é justamente o subjetivo, o sensível, o afetivo, o valorativo, o opinativo. Como transformá-lo em objetividade, sem destruir sua principal característica, a subjetividade? 5.1 O humano como objeto de investigação Embora as ciências humanas sejam recentes, a percepção de que os seres humanos são diferentes das coisas naturais é antiga. Sob esse ponto de vista, podemos dizer que, do século XV ao início do século XX, a investigação do humano realizou-se de três maneiras diferentes: 1. Período do humanismo: inicia-se no século XV com a idéia renascentista da dignidade do homem como centro do Universo, prossegue nos séculos XVI e XVII com o estudo do homem como agente moral, político e técnico-artístico, destinado a dominar e controlar a Natureza e a sociedade, chegando ao século XVIII, quando surge a idéia de civilização, isto é, do homem como razão que se aperfeiçoa e progride temporalmente através das instituições sociais e políticas e do desenvolvimento das artes, das técnicas e dos ofícios. O humanismo não separa homeme Natureza, mas considera o homem um ser natural diferente dos demais, manifestando essa diferença como ser racional e livre, agente ético, político, técnico e artístico. 2. Período do positivismo: inicia-se no século XIX com Augusto Comte, para quem a humanidade atravessa três etapas progressivas, indo da superstição religiosa à metafísica e à teologia, para chegar, finalmente, à ciência positiva, ponto final do progresso humano. Comte enfatiza a idéia do homem como um ser social e propõe o estudo científico da sociedade: assim como há uma física da Natureza, deve haver uma física do social, a sociologia, que deve estudar os fatos humanos usando procedimentos, métodos e técnicas empregados pelas ciências da Natureza. A concepção positivista não termina no século XIX com Comte, mas será uma das correntes mais poderosas e influentes nas ciências humanas em todo o século 54 XX. Assim, por exemplo, a psicologia positivista afirma que seu objeto não é o psiquismo enquanto consciência, mas enquanto comportamento observável que pode ser tratado com o método experimental das ciências naturais. A sociologia positivista (iniciada por Comte e desenvolvida como ciência pelo francês Emile Durkheim) estuda a sociedade como fato, afirmando que o fato social deve ser tratado como uma coisa, à qual são aplicados os procedimentos de análise e síntese criados pelas ciências naturais. Os elementos ou átomos sociais são os indivíduos, obtidos por via da análise; as relações causais entre os indivíduos, recompostas por via da síntese, constituem as instituições sociais (família, trabalho, religião, Estado, etc.) 3. Período do historicismo: desenvolvido no final do século XIX e início do século XX por Dilthey, filósofo e historiador alemão. Essa concepção, herdeira do idealismo alemão (Kant, Fichte, Schelling, Hegel), insiste na diferença profunda entre homem e Natureza e entre ciências naturais e humanas, chamadas por Dilthey de ciências do espírito ou da cultura. Os fatos humanos são históricos, dotados de valor e de sentido, de significação e finalidade e devem ser estudados com essas características que os distinguem dos fatos naturais. As ciências do espírito ou da cultura não podem e não devem usar o método da observação-experimentação, mas devem criar o método da explicação e compreensão do sentido dos fatos humanos, encontrando a causalidade histórica que os governa. O fato humano é histórico ou temporal: surge no tempo e se transforma no tempo. Em cada época histórica, os fatos psíquicos, sociais, políticos, religiosos, econômicos, técnicos e artísticos possuem as mesmas causas gerais, o mesmo sentido e seguem os mesmos valores, devendo ser compreendidos, simultaneamente, como particularidades históricas ou “visões de mundo” específicas ou autônomas e como etapas ou fases do desenvolvimento geral da humanidade, isto é, de um processo causal universal, que é o progresso. O historicismo resultou em dois problemas que não puderam ser resolvidos por seus adeptos: o relativismo (numa época em que as ciências humanas buscavam a universalidade de seus conceitos e métodos) e a subordinação a uma filosofia da História (numa época em que as ciências humanas pretendiam separar-se da Filosofia). 55 Fonte: yoloseduco.com Relativismo: as leis científicas são válidas apenas para uma determinada época e cultura, não podendo ser universalizadas. Filosofia da História: os indivíduos humanos e as instituições socioculturais só são compreensíveis se seu estudo científico subordinar-se a uma teoria geral da História que considere cada formação sociocultural seja como “visão de mundo” particular, seja como etapa de um processo histórico universal. Para escapar dessas conseqüências, o sociólogo alemão Max Weber propôs que as ciências humanas – no caso, a sociologia e a economia – trabalhassem seus objetos como tipos ideais e não como fatos empíricos. O tipo ideal, como o nome indica, oferece construções conceituais puras, que permitem compreender e interpretar fatos particulares observáve is. Assim, por exemplo, o Estado se apresenta como uma forma de dominação social e política sob vários tipos ideais (dominação carismática, dominação pessoal burocrática, etc.), cabendo ao cientista verificar sob qual tipo encontra-se o caso particular investigado. 5.2 Fenomenologia, estruturalismo e marxismo A constituição das ciências humanas como ciências específicas consolidou-se a partir das contribuições de três correntes de pensamento, que, entre os anos 20 e 56 50 do século passado, provocaram uma ruptura epistemológica e uma revolução científica no campo das humanidades. 5.3 A contribuição da fenomenologia Como vimos em vários momentos deste livro, a fenomenologia introduziu a noção de essência ou significação como um conceito que permite diferenciar internamente uma realidade de outras, encontrando seu sentido, sua forma, suas propriedades e sua origem. Dessa maneira, a fenomenologia começou por permitir que fosse feita a diferença rigorosa entre a esfera ou região da essência “Natureza” e a esfera ou região da essência “homem”. A seguir, permitiu que a esfera ou região “homem” fosse internamente diferenciada em essências diversas: o psíquico, o social, o histórico, o cultural. Com essa diferenciação, garantia às ciências humanas a validade de seus projetos e campos científicos de investigação: psicologia, sociologia, história, antropologia, linguística, economia. Qual a diferença entre a perspectiva positivista e a fenomenológica? Dois exemplos podem ajudar-nos a compreendê-la. Recusando a perspectiva metafísica, que se referia ao psíquico em termos de alma e de interioridade, a psicologia volta-se para o estudo dos fatos psíquicos diretamente observáveis. Ao radicalizar essa concepção, a psicologia positivista fazia do psiquismo uma soma de elementos físico-químicos, anatômicos e fisiológicos, de sorte que não havia, propriamente falando, um objeto científico denominado “o psíquico”, mas efeitos psíquicos de causas não-psíquicas (físicas, químicas, fisiológicas, anatômicas). Por isso, a psicologia considerava-se uma ciência natural próxima da biologia, tendo como objeto o comportamento como um fato externo, observável e experimental. Ao contrário, a psicologia como ciência humana do psiquismo tornou-se possível a partir do momento em que um conjunto de fatos internos e externos ligados à consciência (sensação, percepção, motricidade, linguagem, etc.) puderam ser definidos como dotados de significação objetiva própria. Recusando a perspectiva da filosofia da História, que considerava as sociedades etapas culturais e civilizatórias de um processo histórico universal, a sociologia volta-se para o estudo dos fatos sociais observáveis. Inspirando-se nas 57 ciências naturais, a sociologia positivista fazia da sociedade uma soma de ações individuais e tomava o indivíduo como elemento observável e causa do social, de sorte que não havia a sociedade como um objeto ou uma realidade propriamente dita, mas um efeito de ações psicológicas dos indivíduos. Somente a definição do social como algo essencialmente diferente do psíquico e como não sendo a mera soma de ações individuais permitiu o surgimento da sociologia como ciência propriamente dita. Em resumo, antes da fenomenologia, cada uma das ciências humanas desfazia seu objeto num agregado de elementos de natureza diversa do todo, estudava as relações causais externas entre esses elementos e as apresentava como explicação e lei de seu objeto de investigação. A fenomenologia garantiu às ciências humanas a existência e a especificidade de seus objetos. Fonte: filosofandoehistoriando.blogspot.com 5.4 A contribuição do estruturalismo O estruturalismo permitiu que as ciências humanas criassem métodos específicospara o estudo de seus objetos, livrando-as das explicações mecânicas de causa e efeito, sem que por isso tivessem que abandonar a ideia de lei científica. A concepção estruturalista veio mostrar que os fatos humanos assumem a forma de estruturas, isto é, de sistemas que criam seus próprios elementos, dando a estes sentidos pela posição e pela função que ocupam no todo. As estruturas são 58 totalidades organizadas segundo princípios internos que lhes são próprios e que comandam seus elementos ou partes, seu modo de funcionamento e suas possibilidades de transformação temporal ou histórica. Nelas, o todo não é a soma das partes, nem um conjunto de relações causais entre elementos isoláveis, mas é um princípio ordenador, diferenciador e transformador. Uma estrutura é uma totalidade dotada de sentido. Já vimos a noção de estrutura quando, nos capítulos dedicados à teoria do conhecimento, nos referimos à teoria da percepção, formulada pela psicologia da Gestalt ou da forma, bem como quando nos referimos à teoria da linguagem, elaborada pela linguística contemporânea. Após a psicologia e a linguística, a primeira das ciências humanas a se transformar profundamente, graças à ideia de estrutura e ao método estrutural, foi a antropologia social. Esta pôde mostrar que, ao contrário do que pensava a antropologia positivista, as chamadas “sociedades primitivas” não são uma etapa atrasada da evolução da história social da humanidade, mas uma forma objetiva de organizar as relações sociais de modo diferente do nosso, constituindo estruturas culturais. O antropólogo Claude Lévi-Strauss, por exemplo, mostrou que as estruturas dessas sociedades são baseadas no princípio do valor ou da equivalência, que permite a troca e a circulação de certos seres, de maneira a constituir o todo da sociedade, organizando todas as relações sociais: a troca ou circulação das mulheres (estrutura do parentesco como sistema social de alianças), a troca ou circulação de objetos especiais (estrutura do dom como sistema social da guerra e da paz) e troca e circulação da palavra (estrutura da linguagem como sistema do poder religioso e político). O modo como cada um desses sistemas ou estruturas parciais se organiza e se relaciona com os outros define a estrutura geral e específica de uma sociedade “primitiva”, que pode, assim, ser compreendida e explicada cientificamente. 5.5 A contribuição do marxismo O marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são instituições sociais e históricas produzidas não pelo espírito e pela vontade livre dos indivíduos, mas pelas condições objetivas nas quais a ação e o pensamento humanos devem realizar-se. Levou a compreender que os fatos humanos mais originários ou primários 59 são as relações dos homens com a Natureza na luta pela sobrevivência e que tais relações são as de trabalho, dando origem às primeiras instituições sociais: família (divisão sexual do trabalho), pastoreio e agricultura (divisão social do trabalho), troca e comércio (distribuição social dos produtos do trabalho). Assim, as primeiras instituições sociais são econômicas. Para mantê-las, o grupo social cria ideias e sentimentos, valores e símbolos aceitos por todos e que justificam ou legitimam as instituições assim criadas. Também para conservá-las, o grupo social cria instituições de poder que sustentem (pela força, pelas armas ou pelas leis) as relações sociais e as ideias-valores-símbolos produzidos. Fonte: slideplayer.com.br Dessa maneira, o marxismo permitiu às ciências humanas compreender as articulações necessárias entre o plano psicológico e o social da existência humana; entre o plano econômico e o das instituições sociais e políticas; entre todas elas e o conjunto de ideias e de práticas que uma sociedade produz. Graças ao marxismo, as ciências humanas puderam compreender que as mudanças históricas não resultam de ações súbitas e espetaculares de alguns indivíduos ou grupos de indivíduos, mas de lentos processos sociais, econômicos e políticos, baseados na forma assumida pela propriedade dos meios de produção e 60 pelas relações de trabalho. A materialidade da existência econômica comanda as outras esferas da vida social e da espiritualidade e os processos históricos abrangem todas elas. Enfim, o marxismo trouxe como grande contribuição à sociologia, à ciência política e à história a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado de contradições sociais, de lutas e conflitos sóciopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade. Em resumo, a fenomenologia permitiu a definição e a delimitação dos objetos das ciências humanas; o estruturalismo permitiu uma metodologia que chega às leis dos fatos humanos, sem que seja necessário imitar ou copiar os procedimentos das ciências naturais; o marxismo permitiu compreender que os fatos humanos são historicamente determinados e que a historicidade, longe de impedir que sejam conhecidos, garante a interpretação racional deles e o conhecimento de suas leis. Com essas contribuições, que foram incorporadas de maneiras muito diferenciadas pelas várias ciências humanas, os obstáculos epistemológicos foram ultrapassados e foi possível demonstrar que os fenômenos humanos são dotados de sentido e significação, são históricos, possuem leis próprias, são diferentes dos fenômenos naturais e podem ser tratados cientificamente. 5.6 Os campos de estudo das ciências humanas Se tomarmos as ciências humanas de acordo com seus campos de investigação, podemos distribuí-las da seguinte maneira: Psicologia Estudo das estruturas, do desenvolvimento das operações da mente humana (consciência, vontade, percepção, linguagem, memória, imaginação, emoções); Estudo das estruturas e do desenvolvimento dos comportamentos humanos e animais; Estudo das relações intersubjetivas dos indivíduos em grupo e em sociedade; Estudo das perturbações (patologias) da mente humana e dos 61 comportamentos humanos e animais. Sociologia Estudo das estruturas sociais: origem e forma das sociedades, tipos de organizações sociais, econômicas e políticas; Estudo das relações sociais e de suas transformações; Estudo das instituições sociais (origem, forma, sentido). Economia Estudo das condições materiais (naturais e sociais) de produção e reprodução da riqueza, de suas formas de distribuição, circulação e consumo; Estudo das estruturas produtivas – relações de produção e forças produtivas – segundo o critério da divisão social do trabalho, da forma da propriedade, das regras do mercado e dos ciclos econômicos; Estudo da origem, do desenvolvimento, das crises, das transformações e da reprodução das formas econômicas ou modos de produção. Antropologia Estudo das estruturas ou formas culturais em sua singularidade ou particularidade, isto é, como diferentes entre si por seus princípios internos de funcionamento e transformação. A cultura é entendida como modo de vida global de uma sociedade, incluindo: religião, formas de poder, formas de parentesco, formas de comunicação, organização da vida econômica, artes, técnicas, costumes, crenças, formas de pensamento e de comportamento, etc.; Estudo das comunidades ditas “primitivas”, isto é, tanto das que desconhecem a divisão social em classes e recusam organizar-se sob a forma do mercado e do poder estatal, quanto daquelas que já iniciaram o processo de divisão social e política. 62 História Estudo da gênese e do desenvolvimento das formações sociais em seus aspectos econômicos, sociais, políticos e culturais; Estudo das transformações das sociedades e comunidades como resultado e expressão de conflitos, lutas, contradiçõesinternas às formações sociais; Estudo das transformações das sociedades e comunidades sob o impacto de acontecimentos políticos (revoluções, guerras civis, conquistas territoriais), econômicos (crises, inovações técnicas, descobertas de novas formas de exploração da riqueza ou procedimentos de produção, mudanças na divisão social do trabalho), sociais (movimentos sociais, movimentos populares, mudanças na estrutura e organização da família, da educação, da moralidade social, etc.) e culturais (mudanças científicas, tecnológicas, artísticas, filosóficas, éticas, religiosas, etc.); Estudo dos acontecimentos que, em cada caso, determinaram ou determinam a preservação ou a mudança de uma formação social em seus aspectos econômicos, políticos, sociais e culturais; Estudo dos diferentes suportes da memória coletiva (documentos, monumentos, pinturas, fotografias, filmes, moedas, lápides funerárias, testemunhos e relatos orais e escritos, etc.). Linguística Estudo das estruturas da linguagem como sistema dotado de princípios internos de funcionamento e transformação; Estudo das relações entre língua (a estrutura) e fala ou palavra (o uso da língua pelos falantes); Estudo das relações entre a linguagem e os outros sistemas de signos e símbolos ou outros sistemas de comunicação. 63 Psicanálise Estudo da estrutura e do funcionamento do inconsciente e de suas relações com o consciente; Estudo das patologias ou perturbações inconscientes e suas expressões conscientes (neuroses e psicoses). Devemos observar que: Cada uma das ciências humanas subdivide-se em vários ramos, definidos pela especificidade crescente de seus objetos e métodos. Assim, podemos falar em psicologia social, clínica, do desenvolvimento, da aprendizagem, da criança, do adolescente, etc. Ou em sociologia política, do trabalho, rural, urbana, econômica, etc. Também podemos falar em história econômica, política, oral, social, etc. Ou levar em consideração que a antropologia depende de investigações feitas pela etnografia e pela etnologia ou pela arqueologia, assim como a lingüística trabalha com a fonologia, a fonética, a gramática, a semântica, a sintaxe, etc.; Embora com campos e métodos específicos, as ciências humanas tendem a apresentar resultados mais completos e satisfatórios quando trabalham interdisciplinarmente, de modo a abranger os múltiplos aspectos simultâneos e sucessivos dos fenômenos estudados; Os desenvolvimentos da lingüística, da antropologia e da psicanálise suscitaram o aparecimento de uma nova disciplina ou interdisciplina científica: a semiologia, que estuda os diferentes sistemas de signos e símbolos que constituem as múltiplas e diferentes formas de comunicação. O desenvolvimento da semiologia conduziu à idéia de que signos e símbolos são ações e práticas sócio-históricas, isto é, estão referidos às relações sociais e às suas condições históricas, cada sociedade e cada cultura constituindo-se como um sistema que integra e totaliza vários subsistemas de signos e símbolos (linguagem, arte, religião, instituições sociais e políticas, costumes, etc.). 64 Vários estudiosos propuseram que o método das ciências humanas fosse capaz de descrever e interpretar esses subsistemas e o sistema geral que os unifica. Esse método é a semiótica, tomada como metodologia própria às ciências humanas e capaz de unificá-las1. Fonte: slideshare.net 6 A METAFÍSICA DO SER: UM ESTUDO FILOSÓFICO PARA A VIDA A cada amanhecer e anoitecer, existe algo que está dentro de cada indivíduo, algo que o faz existir no aqui e agora, algo que não se vê, mas que faz evidência. Este estudo de base filosófica é uma pequena síntese do conhecimento sobre uma força que move tudo sem ser movida, que faz vida, o Ser transcendente, o Ser como princípio universal de tudo o quanto existe ou é real. Há sempre uma forma de vida. Algo que ordena, sem ser ordenado, uma inteligência que não nasce, mas, faz tudo nascer. O objetivo do trabalho é indagar-se: o que é o Ser? De que modo ele é? Qual a relação que há entre o Ser com as diversas individuações do universo? Como percebê-lo sendo nós humanos? Cada humano o tem? E como tocá-lo? De que modo a Ontopsicologia explica o Ser? 1 Texto adaptado: www.home.ufam.edu.br 65 “A vida deve ser estudada e indagada lá onde aparece suprema, mais elevada segunda nossa experiência, vale dizer no homem. É inútil buscar a vida dentro de um fóssil, ou dentro de uma planta. Indaguemos, em vez disso, os horizontes do ser psíquico do homem, que nos dirá muito mais” (MENEGHETTI, 2004, p. 18). Justifica-se este tema pela relevância que ele tem como forma de entendimento para a identidade do ser humano. É fato que, recebem-se informações junto as quais se esquece de ver a vida como um todo, buscam-se soluções através de fatos físicos, matéricos, do modo como a tecnologia resolve os problemas através do externo. Desta forma, indaga-se no decorrer do estudo se, o homem, não compreendendo o que é o Ser, pode ser modificado da sua forma originária, se ele reconhece a sua natureza. Como resultado, busca-se entender o Ser, também como forma de encontrar a natureza original do homem, é um resolver interno, resgatar o conhecimento próprio, o conhecimento organísmico. Busca-se a evidência oferecida pela natureza, que sustenta o conhecer do ser humano. Por fim, a verdade só é verdadeira se o sujeito é verdadeiro, como já dizia o filósofo Sócrates na Antiguidade Clássica: “Conhece a ti mesmo”. Fonte: pt.slideshare.net A vida é um fato a ser entendido, observado, instigado. Esta se resplandece a 66 cada momento, no aqui, no agora. Entender a vida é entender o que se é, para que se vive, o que se vê e principalmente o que se faz, pois com ela não basta acreditar, é preciso agir. Viver é uma alegria, o saber viver é uma festa para a alma, é saber buscar o que é vivo para dentro de si. “Vida: o lugar da força. Semovência autônoma a um intrínseco fim no particular e no total” (MENEGHETTI, 2012, p. 269). Compreender de fato o que é a vida, o que é o projeto da natureza de cada ser humano é uma tarefa de responsabilidade e também de magnitude. O filósofo Heráclito já dizia: “Máxima virtude é ser sábios e a sabedoria consiste em dizer e fazer coisas verdadeiras, compreendendo-as segundo a sua natureza” (CAROTENUTO, 2009, p. 15). Buda, também tem uma passagem muito interessante sobre o que para ele significava a vida: Conta-se que certa vez Buda, interpelado sobre a vida, serviu-se deste fato para explicar. Fez trazer a si um elefante, e depois, colocou ao seu redor dez ou quinze homens cegos e convidou-os a tocar o animal, permanecendo parados onde se encontravam. Disso resultou que os cegos definiam de acordo com as partes que tocavam. A vida não pode ser conhecida por inteiro enquanto cada existente tende a ressaltar o seu ponto de observação, não conseguindo superar o fato de que espaçotempo são unidades de medida convencionadas à nossa ótica, ao nosso modo de caminhar, mas não são absolutas. Não temos objetividade de existência enquanto pretendemos nos relacionar ao absoluto com medidas relativas ao nosso ponto de observação. O nosso nada é um nada de relação, jamais é um nada absoluto. Em si e por si existe somente o ser. O nada é a projeção dos limites da individuação no âmbito da existência (MENEGHETTI, 2004, p. 22). Conhecer a vida por inteiro, é abraçar o real, que realidade? Aquela que cada um possui. Esta é uma força, um instinto. De que lugar ele vem? Para que lugar vai? Como conhecer o real sem apenas definir com as pequenas partes que conhecemos segundo nossa lógica? Segundo nosso modo, as nossas medidas, aquilo que chamamos de tempo? Duns Scotus, filósofomedieval, descreve sobre abraçar o real, a possibilidade que a psique humana tem de assumi-lo e compreendê-lo. Considera a noção unívoca de ente como objeto primeiro do intelecto: é a noção que define a extensão das possibilidades cognoscitivas humanas. De fato, como conceito de ente é aplicável univocamente a tudo o que é, assim o nosso intelecto pode atingir naturalmente qualquer ente. Portanto, também na atual condição, o homem pode assumir, graças ao conceito unívoco de ente, um ponto de vista que consente abraçar a totalidade do real (CAROTENUTO, 2009, p.53-54). 67 Se ente, é tudo aquilo que é, há uma força que move, e que já é. Há uma intelectualidade que faz tudo se mover em completa harmonia. Uma harmonia que o ser humano pode e deve buscar para a sua vida. Meneghetti (2004), descreve que seria impossível a vida existir por apenas uma força da Terra sozinha: “A vida não poderia existir por força intrínseca da Terra sozinha. Nós somos os resultados e as reflexões de todo um conjunto cósmico: esta vida, neste planeta, é determinada por um particular sincronismo interplanetário e interestrelar. Como um certo números de átomos proporcionais entre si, efetua uma molécula específica, assim as relações energéticas de variáveis cósmicas efetuam um modo de vida que chamamos existência terrestre” (MENEGHETTI, 2004, p. 24). Partindo deste pretexto, pode-se afirmar que existe um Ser, um princípio que move tudo sem ser movido, faz gerar a vida, enquanto ele é vida. Anaxágoras falou desta força, deste Deus, conceituando-o como nùs (transliteração da língua grega ao português): “Ele é a única realidade absoluta e ilimitada e a ele competem duas funções – além daquela de princípio vital e cosmogônico que põe em movimento a massa indistinta das sementes – conhecer e governar todas as coisas, enquanto se o conhecimento é possível por contraste, a nùs sendo diversa de cada coisa pode conhece-las todas (CAROTENUTO, 2009, p.16). Esta força conhece todas as coisas e faz todas as coisas diferenciarem-se, não há uma igual a outra. Cada vida já tem um projeto feito para si, já nasceu para ser aquela concepção. Assim, também se estende ao ser humano, um assunto muito questionável ao longo da história: a relação do homem com o Ser. Que força é esta, verdadeira amiga do homem? Que mestre é este que está dentro de cada ser humano? Já somos escolhidos antes de estar no ventre? Somos chamados? Mas o nosso existir em referência ao transcendente, ao Ser, a Deus, que valor tem? Nós não somos diretamente escolhidos pelo Em Si avulso da história; todavia, a partir do momento em que a história nos determina, nós vivemos com a mesma importância do Ser em si. Através da história passa a identidade do Em Si; o ser atua-se, fenomeniza-se exatamente no aqui e agora dos nossos ascendentes, da nossa situação espaço-tempo. A partir do momento em que eu aconteço, necessariamente sou amado, sou desejado, necessariamente sou chamado desde sempre (MENEGHETTI, 2004, p. 29). Como o humano entende que há um Ser que o chamou para a história, lhe deu um projeto de vida? Meneghetti (2010), acrescenta que enquanto se vive é necessária 68 uma passagem metafísica: “Todavia, enquanto se vive, resta uma oportunidade e é a passagem ao metafísico: de qualquer posição que se encontre, o sujeito pode se deparar, como próprio encontro secreto naquele além que é sempre aqui. É uma consolação mística” (MENEGHETTI, 2010, p. 278). Por metafísica conceitua: “A “metafísica”, propriamente é a racionalidade elementar que se refere ao ser. A ontologia pura é metafísica. O termo “metafísica” usa-se, propriamente, apenas para os modelos mentais em relação ao ser (MENEGHETTI, 2014, p. 13). Fonte: sbcoaching.com.br Também descreve a importância de compreender o que é a ontologia: “Para compreender profundamente a experiência da psicologia é preciso ter uma formação, uma experiência filosófica de ontologia. (...) é a ciência, o discurso sobre o ser. Ontologia é a descrição e compreensão do ser, dos seus modos, relações e das próprias fenomenologias (MENEGHETTI, 2010, p. 272). A tentativa da Ontopsicologia é elucidação do ser em referência, isto é, um favorecer a experiência consciente do ser enquanto está referindo-se, um mostrar ótica fora da alteração verbalística, um tornar o ôntico ontológico. Tal tentativa não pertence, por ordem fatal, a alguns predestinados, mas é direito e dever de todos. Jesus dizia: “sois como deuses, o reino de Deus está dentro de vós, sede perfeitos como perfeito é o vosso Pai”. A experiência que me conheço me faz sentir comum; o que eu sou é de todos (MENEGHETTI, 2003, p. 197). O que é tornar o ôntico ontológico? Por ôntico entende-se: “genitivo do 69 particípio presente do verbo ser. Participado pelo ser em si. O que constitui o princípio para qualquer possibilidade ou fato de existir. Atualidade da causa primeira de um processo. O princípio pelo qual é, ou não é” (MENEGHETTI, 2012, p. 188). Em forma simples, Ser o que se “é” por natureza, compreender a si, e assim, compreender o ser, suas fenomenologias. “Ninguém pode entender a vida em si enquanto a sua consciência estiver fora do contato com o Em Si ôntico, única presença do originário metafísico. Qualquer homem que chega a conscientizar o próprio Em Si ôntico conhece a voz do Pai e, daqui, sabe toda revelação” (MENEGHETTI, 2003, p. 196). Trata-se de uma realidade simples, quotidiana, contínua, total: é ou não é. Qualquer coisa que se correlacione a esta cópula – “é”- a este ente, ou seja, dado primordial da racionalidade e da experiência humana, que não é constituído pelos sentidos, pela matéria, ou pelo sujeito, mas pelo “é”: ou é, ou não é. Se não é, opera-se uma negação. Essa sumidade metafísica, portanto, é quotidiana, é algo com o qual o sujeito faz o jogo e o jogador. Qualquer modo, ou é fundamentado no ser, ou não tem sentido” (MENEGHETTI, 2014, p. 23). Também se torna válido o discurso sobre o que é o Ser para Meneghetti (2012). Este o conceitua do seguinte modo (2012, p. 244): Ser: Princípio universal do quanto existe ou é real. O ser é o primeiro simples geral que consente a lógica apriórica entre ser e não ser. Em Ontopsicologia, distinguemse três modos de ser: a) Metafísico ou Ser transcendente, ou Ser como Deus; b) Comum, ou ser como participação universal de todas as coisas; c) Individual, ou ser como participação de mim existente aqui e agora. O Em Si ôntico é mediador dessas três realidades: com base no Ser transcendente, o Em Si ôntico tem a relação com o primeiro princípio; com base no ser comum, o Em Si ôntico tem a relação com o cosmo, com o universo, com a vida; com base no ser individual, o Em Si ôntico tem a relação com o homem enquanto ecceidade histórica, pela qual assinala a própria irrepetibilidade (MENEGHETTI, 2012, p. 244). Ou seja, na prática, cada pessoa como ser humano, com seu Em Si ôntico, seu projeto de natureza faz relação com o Ser de modo metafísico, depois, através do Em Si ôntico, faz relação com a vida, com o que encontra no universo, existe uma unidade de ação universal, é a operatividade da intelectualidade do ser, é a psique. E, também através do Em Si ôntico, cada pessoa é exclusiva aqui (ecceidade), tem uma experiência máxima daquela presença que a identifica, faz a sua participação do aqui agora daquilo que é. O ser se diferencia conforme as individuações (pedra, ser humano, flor, pinheiro, carvalho, água, etc.): do genérico ser, começam infinitas estradas de variáveis que fazem a dialética existencial dos cosmos. Cada um é diferente: a pedra não é homem, o homem não é a árvore e assim por diante. 70 O que é que os faz variar? É o projeto. O ser, quando acontece, acontece com um projeto, com uma informação. O Em Si ôntico é a especificidade como o ser se presencia, se individuaaqui, agora e assim. É a identidade informacional do sujeito em dialética existencial: é o projeto e o projetante (MENEGHETTI, 2010, p. 274). Para Vidor (2015), “para entender o ser não se deve partir da consciência, mas do fato existencial é o corpo em todas as variações dele, o sonho, as emoções, sentimentos. Infinidades de variações do corpo como antenas. E dar atenção ao íntimo da mente que se chama intelecto”. Se partimos do que está em nossa consciência, esta pode estar embaçada, e esquecemos que somos a realidade do Ser. Quando não se chega a esta percepção, vive-se com outro em si mesmo, acreditam-se em tantas outras convicções, culturas, religiões, o que a família, amigos dizem. E, se esquece que há um projeto que é só seu, irrepetível. Tudo é, todos os homens são, e cada um se diferencia no interior do ser. A individuação é um dos infinitos modos de participação do ser, é ecceidade do ser, é aquele indivíduo específico. Dois sujeitos, “A” e “B”, mesmo tendo em comum a participação ao ser, são distintos. Disso se deduz que o ser é transcendente, enquanto está em tudo, mas contemporaneamente, em cada um é irrepetível: “A” é somente “A”, aqui, assim, agora, como. Não existe identidade, realidade sem o ser: essa nasce de modo em que o ser se faz ecceico aqui. Dos diversos “aqui” nasce a infinita dialética da sociedade, ou seja, do indivíduo no tempo, no espaço, entro os outros (MENEGHETTI, 2010, p. 273). Outro ponto a ser destacado, é que fomos ensinados a compreender aquilo que se vê, algo que faz matéria, racionalidade. Como se a psique não devesse ser estudada, como se não se deve utilizar esta inteligência com aquilo que somos. Acaba-se deixando “escapar” informações que a vida traz, mostra, aquilo que é a realidade de cada um. Devemos concordar que estamos cindidos no nosso modelo de realidade; estamos habituados que o real existe na medida em que toco externamente aqui e que o mesmo altera a realidade corpórea. As coisas estando assim, explica-se a desconfiança que sentem todos aqueles que afrontam a investigação do profundo do homem: este profundo que convém denominar psíquico (MENEGHETTI, 2005, p. 19). A atividade psíquica é o agir do Ser, ele age através dela evadindo o tempo e o espaço que nós humanos condicionamos. Esta, age de modo ordenado. “A realidade psíquica, sendo o fundamento das outras realidades sensoriais, possui velocidades, possui relações desconhecidas aos nossos sentidos; é superior, funda todos os outros sentidos. A psique, pelo seu extremo grau de amplitude, pode intercambiar os tempos, os lugares. A realidade psíquica tem a possibilidade de 71 transferir-se sem ser necessitada pela progressão” (MENEGHETTI, 2005, p. 21). “A atividade psíquica pura não é tanto energia, mas é o processo de formalização” (MENEGHETTI, 2012, p. 27). Compreendendo as passagens do Ser, através do Em Si ôntico, do projeto de natureza de cada pessoa, chega-se ao nexo ontológico. Para Vidor (2015), “se o momento reflexivo-psicológico é igual ao real que sou, é igual a ação ôntica, o saber segue e é conforme a lógica do ser. O único ponto firme que o homem tem é o próprio Em Si ôntico. Ele é a raiz ou núcleo que informa o saber coincidente ao próprio ser. O nexo ontológico é o critério que fundamenta a veracidade de todas as ciências” (VIDOR, Apostila Filosofia e Lógica, Bacharelado em Ontopsicologia, 2015, s/p). Ser fiel naquilo que verdadeiramente sou. Neste sentido encontramos na obra de Antonio Meneghetti (2004): A fidelidade ao meu ato de existir determina a plenitude sempre em crescimento, porque onde eu existo, me amo, me reconheço, determino novamente o sentido nascente acrescente. Através de mim, acontece qualquer forma de milagre, qualquer forma de sucesso (MENEGHETTI, 2004, p. 30). Esta é a proposta de ser. “Limpar” a consciência, e ser uno ao todo. O eu só é real quando age a lógica do próprio Em Si ôntico. O Ser está em todas as coisas. Começou tudo através de uma intenção. Uma energia que independe da matéria, é atividade psíquica. Por fim, o homem é um ente inteligente, que enquanto há vida, sempre está direcionado à intenção de realizar um projeto, o seu projeto2. O meu é um discurso filosófico e psicológico, e não entendo subverter as pedagogias sociais existentes e muito menos fundar um partido ou uma nova religião, mas diminuir a solidão dos que chegam além e pedir-lhes que não se paralisem. A consciência ôntica é um sacerdócio solitário sem paternalismos protetores. (...) O homem verdadeiro é no estilo de um sacerdócio solitário que honra o Em Si eterno na oferta da existência comum sem um “imprimatur” de paternidade exterior... (MENEGHETTI, 2003, p. 197). 7 RAZÕES DO AGIR E NORMATIVIDADE EM HEIDEGGER A atribuição de razões para o agir e a normatividade são temas que têm encontrado relevante espaço na reflexão filosófica contemporânea. As motivações quem levam o homem a agir nem sempre são claras, e por isso necessitam de uma 2 Texto adaptado: www.saberhumano.emnuvens.com.br 72 investigação que não leve em conta apenas os aspectos objetivos da ação, mas o contexto no qual a ação e a decisão acerca do agir se desenvolvem. Além disso, podemos afirmar que são muito diversos os modos a partir dos quais podemos abordá-los, visto que tratam-se de temas bastante amplos no âmbito filosófico. Poderíamos, por exemplo, tratá-los sob uma perspectiva histórica, percorrendo o caminho através do qual os temas foram compreendidos ao longo da história da filosofia, ou poderíamos confrontar teorias, posicionando-nos favoravelmente a uma ou a outra. Fonte: todamateria.com.br No presente texto, contudo, apresentaremos uma tentativa de abordar a atribuição de razões para o agir e a normatividade sob a perspectiva da filosofia heideggeriana. Embora Heidegger não tenha tratado de maneira específica de tais temas, é possível justificar, especialmente a partir dos textos do período de Ser e tempo, um tipo de normatividade adequada à singularidade que caracteriza a existência do Dasein. Assim, ao invés de nos voltarmos para a definição de normas objetivas, ou da determinação de razões absolutas para o agir em geral, o foco do presente trabalho se volta para o questionamento acerca da própria possibilidade da normatividade e da atribuição de razões. O como assume importância fundamental, pois se refere às condições de possibilidade, para que normas e razões se imponham 73 sobre o modo pelo qual o Dasein age e se relaciona com o mundo. Neste contexto, o presente trabalho tem como objetivo principal indicar, a partir da análise desenvolvida por Steven Crowell em alguns dos seus textos principais, elementos que nos permitem interpretar a normatividade que decorre da condição existencial do Dasein, e assim compreendermos o modo pelo qual lhe é possível atribuir razões para o agir. Buscaremos, nesta perspectiva, sustentar que tanto a normatividade quanto a atribuição de razões possuem um fundamento ontológico, o qual se coloca em manifesto na resposta que o Dasein dá à exigência que se impõe a si mesmo em seu ter-que-ser. Uma vez que a atribuição de razões e a normatividade são tradicionalmente abordadas no âmbito das ontologias regionais – esfera ôntica – , a leitura feita por Crowell se mostra relevante, na medida em que se propõe a demonstrar que há um fundamento ontológico, tanto em relação ao tipo de normatividade, que decorre da ontologia fundamental quanto na atribuição de razões para o Dasein em seu modo de agir. Logo no início de Ser e tempo, deparamo-nos com uma crítica feita à tradição metafísica, pelo fato desta tentar interpretar o modo de ser do ser humano, a partir de conceitos inadequados ao tipo de ente que ele é. Heidegger, no entanto, segue outro caminho. Através da analítica existencial,o filósofo alemão nos apresenta uma descrição das estruturas existenciais do Dasein, sem recorrer ao esquema categorial de propriedades. (REIS, 2014, p. 16). Como consequência, Heidegger nos apresenta uma nova concepção do ser humano, a qual busca superar a objetificação decorrente do esquema sujeito-objeto da modernidade. Neste aspecto, Heidegger critica frontalmente toda conceituação do ser humano construída sobre uma essência predeterminada, visto que tais concepções já pressupõem uma interpretação do ente, sem levantarem a questão da verdade do ser. No fundo, toda definição de ser humano, que assuma uma natureza específica previamente definida como fundamento permanece metafísica e, por isso, não alcança a compreensão do homem em seu ser. E é justamente com o intuito de romper com a tradição metafísica, e poder apresentar uma concepção do ser humano em sua relação necessária com o ser, que Heidegger, em Ser e tempo, afirma que “a essência do Dasein consiste em sua existência”. (HEIDEGGER, 2006, p. 42). Ao reservar o termo existência exclusivamente para o Dasein, Heidegger chama a atenção para o fato de que o modo de ser do Dasein é diferente do modo de 74 ser dos entes intramundanos. Evidentemente, ao dizer que somente o Dasein existe, e que os demais entes são, Heidegger não está negando a existência destes. O objetivo heideggeriano é evidenciar que o Dasein, concebido enquanto existência, é o único ente que compreende o ser. Ou, dito de outra forma, os entes somente são porque o Dasein possui desde sempre a compreensão do ser. Fonte: youtube.com Desse modo, o termo existência possui grande importância no pensamento de Heidegger. Por um lado, existência significa a capacidade de autodefinição e autodeterminação, que só o Dasein possui. Mas além disso, e este é um ponto fundamental no presente trabalho, ‘existir’ (Existenz) é ser de tal forma que o ser mesmo seja (ou signifique) uma tarefa ou uma questão – em jogo – não apenas agora e depois, mas em todos os lugares e sempre”. (CROWELL, 2012, p. 34). Ou seja, o Dasein tem em sua essência uma incompletude que o acompanha como constitutiva do seu ser. E uma vez que sua essência consiste na existência, é sua tarefa constante a autointerpretação e a definição sobre o que fazer de si mesmo. O Dasein é, neste contexto, possibilidade de ser, conforme explicita Heidegger na seguinte passagem: O Dasein não é um ente subsistente (Vorhandenes) que ainda possui como acréscimo poder ser algo, mas é primariamente ser possível. O Dasein é sempre o que pode ser e no modo da sua possibilidade. […]. O ser-possível, que o Dasein sempre é, distingue-se tanto da possibilidade lógica, vazia, 75 como da contingência de algo subsistente com o qual pode “passar” isso ou aquilo. Como categoria modal da subsistência, a possibilidade designa o que ainda não é efetivo e que nunca será necessário. Caracteriza o somente possível. Do ponto de vista ontológico, é inferior à efetividade e à necessidade. Em contrapartida, a possibilidade enquanto existencial é a mais originária e última determinidade ontológica positiva do Dasein. (HEIDEGGER, 2006, p. 143- 144). Consequentemente, não encontramos em Ser e tempo uma definição de ser humano como um o que, cuja essência consista em uma propriedade objetiva comum a todos os homens, mas uma descrição do modo de ser do ente que é o Dasein, revelado no como da sua existência. Este como, por sua vez, só pode ser explicado pela noção existencial de possibilidade. Desse modo, ao afirmarmos que: (a) o Dasein é um ente que tem o seu ser como uma questão para si mesmo, e (b) a sua essência consiste na sua existência, o que queremos dizer é que o Dasein está desde sempre lançado diante de si, com a tarefa de decidir o que fazer de si mesmo. A resposta à pergunta sobre o seu ser, contudo, não é encontrada no mundo, nem na razão, mas se dá no próprio existir. No ensaio Sobre a essência do fundamento, Heidegger é enfático em ressaltar que, na proposição “O ser-aí existe em-vista-de-si-mesmo”, não reside um isolamento solipsista do Dasein, nem se trata de uma afirmação egoístico-ôntica de cada homem fático. Tal proposição também não pode ser refutada pela alegação de que muitos homens se sacrificam pelos outros, e que em geral os homens vivem em comunidade. Ao contrário, “a proposição dá a condição de possibilidade para que o homem ‘se’ comporte, quer ‘egoística’, quer ‘altruisticamente’.” (HEIDEGGER, 1973a, p. 313). O objetivo de Heidegger – amplamente tratado em Ser e tempo – é evidenciar as condições do que torna o Dasein si mesmo. Determinar a mesmidade do Dasein mostrase uma tarefa fundamental, uma vez que somente através dela pode um eumesmo relacionar-se com um tu-mesmo. Importa ainda notar que a decisão sobre o que fazer de si mesmo não consiste em uma simples escolha contingente, em que poderíamos escolher de um certo modo, assim como poderíamos escolher de modo diverso. Isso porque na decisão há um comprometimento do Dasein consigo mesmo, visto que seu ser está nela implicado. A questão, contudo, se refere ao fato de que, colocado diante de si mesmo, o Dasein pode querer escolher a si mesmo ou não. Quando escolhe a si mesmo, Heidegger afirma que o Dasein assumiu o modo de ser autêntico, pois reconheceu a exigência a 76 ele imposta e se tornou responsável pelo seu ser. Por outro lado, quando exime-se de decidir, o Dasein assume o modo de ser inautêntico, fugindo da responsabilidade de decidir sobre o que fazer de si mesmo. A este respeito, Crowell sustenta que é somente através do modo de ser da autenticidade que o Dasein realmente se compromete com as normas e exercita a capacidade de conformar sua conduta a elas, fazendo-se a si mesmo responsável. (CROWELL, 2013, p. 147). Fonte: icogn.wordpress.com Observe-se ainda que, na perspectiva heideggeriana, os entes não trazem em si um sentido já definido, independentemente de sua relação com o Dasein. Do mesmo modo que o ser humano não possui uma essência prévia determinada, o mundo não carrega consigo um significado pronto e acabado. Isso ocorre porque o mundo, para Heidegger, não consiste na mera soma dos entes, como um conjunto de entes com os quais nos deparamos no curso de nossa vida. É o Dasein que, na realidade, atribui sentido aos entes, não de forma arbitrária, nem como produto da subjetividade, mas como resultado da relação prática que mantém com os próprios entes. O mundo, nesta perspectiva, deve ser concebido como uma rede de sentidos que o Dasein atribui aos entes, que decorrem diretamente da sua compreensão do ser. Poderíamos concluir, neste contexto, que o mundo é sempre particular, produto 77 do solipsismo, e por isso seria impossível tanto a vida em sociedade quanto a própria ética. Esta, contudo, seria uma interpretação inadequada não só de Ser e tempo, mas do pensamento heideggeriano como um todo. Heidegger é claro no § 27 de Ser e tempo, ao elucidar que o modo de ser que o Dasein cotidiano assume imediata e regularmente é regido pela compreensão de mundo estabelecida pelo impessoal. Isso significa que, primariamente, o sentido que o Dasein possui do mundo é um sentido previamente estabelecido, que no fundo constitui um contexto de sentido compartilhado, que torna possível as relações sociais. Ocorre, porém, que as possibilidades do Dasein não estão limitadas aos contextos de sentido previamente definidos pelo impessoal. E, na medida em que o Dasein dá-se conta de que suas possibilidades de ser não estão restritas aos sentidos estabelecidos pelo impessoal, abre-se a possibilidade de atribuir novos sentidos aos entes, e assim lançar-se em modos próprios de ser. Este lançar-se em modos próprios de ser revela a autocompreensão do Dasein, o qual Heidegger chama de projeto (Entwurf), e que Crowell define comoidentidade prática. (CROWELL, 2012, p. 37). O projeto exige, nessa medida, o modo de ser autêntico, o que torna o Dasein responsável pela decisão sobre o seu próprio ser. Conforme explicita Crowell, o projeto descerra o mundo “como um espaço significativo em que as coisas aparecem como as coisas que elas são”. (CROWELL, 2012, p. 38). Em nosso lidar cotidiano, as coisas só aparecem para nós como utensílios (Zuhanden), porque estamos em relações ordenadas uns com os outros (relações “com-vistas-a”). Um martelo, por exemplo, aparece a nós como um utensílio “com-vistas-a” pregar pregos, assim como os pregos nos aparecem como utensílios que utilizamos para pregar tábuas. Esta instrumentalidade, contudo, não é suficiente para explicar nossa relação com os utensílios; o “trabalho” a ser feito precisa ser também considerado. Se minha tarefa é construir uma casa para pássaros, uma marreta aparece como um utensílio inadequado; no entanto, se minha tarefa é destruir uma casa de pássaros, a mesma marreta será o utensílio a ser utilizado. Através do exemplo acima, o que se pretende justificar é que o mundo não traz em si o sentido dos entes, nem dita as normas para o agir. Ele não me diz se o meu segurar a marreta é para construir uma casa de pássaros – mesmo que se trate de utensílio inadequado – ou para destruí-la. O que merece ser destacado é que o “com- vistas-a” sempre se refere a um “emvirtude-de”, que, segundo Heidegger, sempre 78 pertence ao ser do Dasein, para o qual, sendo, o seu próprio ser é sempre uma questão. (HEIDEGGER, 2006, p. 84). Construir uma casa de pássaros ou destruí-la são ambas possibilidades. Mas saber se quem está segurando a marreta irá construir ou destruir uma casa de pássaros é uma questão que não pode ser respondida por critérios objetivos ou estritamente racionais. Com tais considerações, não se quer afirmar que não deliberamos sobre nossas condutas, mas que agir intencionalmente não implica que tenhamos previamente deliberado sobre a intencionalidade da ação. (CROWELL, 2013, p. 262). Muito pelo contrário, a maioria das ações que praticamos diariamente não são previamente deliberadas, mas nem por isso temos motivos para afirmar que não tivemos razões para praticá-las. Isso ocorre porque o “emvirtude-de” que acompanha a compreensão de mundo do Dasein pertence à mesma estrutura da ação. Para Heidegger, assim como para Husserl, “as razões que consideramos quando deliberamos estão fundadas em nossas experiências perceptivas, afetivas e volitivas, ainda que Heidegger negue que a intencionalidade destas experiências tenha sua sede originária nos atos de consciência”. (CROWELL, 2013, p. 275-276). A diferença é que, para Heidegger, é a capacidade de ser autêntico que lhe permite dar razões, e não sua capacidade de deliberar. Isso não significa que não possa haver um espaço de deliberação prévio ao agir, mas apenas que o modo pelo qual o Dasein se relaciona com os entes não ocorre através de um processo de deliberação. A relação que o Dasein tem com o mundo e consigo mesmo, no fundo, é uma relação prática e não epistêmica. Conforme destaca Tugendhat, Heidegger foi o primeiro a compreender que a relação que o Dasein tem consigo mesmo não é uma relação de um “eu” que precisa ser conhecido através de uma atividade reflexiva, mas uma relação empírica, em que o agente toma uma posição frente à sua própria existência. Ao passo que os outros podem se relacionar com nossa existência teoricamente, cada ser humano precisa decidir sobre o seu ser de forma prática. Nosso ser “é dado a nós como algo que nós devemos ser, e que é uma questão para nós; a este respeito, a relação de si mesmo com o ser que é assim experienciado só pode ser prática, ou seja, uma relação volitiva e afetiva”. (TUGENDHAT, 1986, p. 157). A afirmação de Crowell de que “as razões que consideramos quando deliberamos estão fundadas em nossas experiências perceptivas, afetivas e volitivas”, 79 referida acima, se justifica pelo fato de o ser do Dasein estar submetido à estrutura do cuidado (Sorge). Sua estrutura triádica revela um Dasein projetado em um poder-ser (compreensão), lançado em sua faticidade (sentimento de situação) e já-sempre- junto-aos-entes (decaída). E mais do que isso, todas elas evidenciam a relação prática, e não reflexiva, a partir da qual se dá a construção de sentido do mundo e de si mesmo. Fonte: slideplayer.com.br A fim de exemplificar sua interpretação acerca do modo pelo qual atribuímos razões às nossas ações, Crowell traz um exemplo. O existir de um escritor, em- virtude-de ser um escritor, o provê com padrões de sucesso ou de fracasso à luz dos quais ele pode deliberar sobre o que fazer. Se ele percebe que o prazo final se aproxima, ele toma isto como uma razão para trabalhar em seu capítulo; se ele não se sente satisfeito com o segundo parágrafo, ele toma isto como uma razão para melhorá-lo; ele considera suas opções para melhorá-lo, e ele “prefere praticamente” adicionar uma nota de rodapé para estender o texto com exemplos, e então isto se torna uma razão para fazer o primeiro. (CROWELL, 2013, p. 276). Observamos, no exemplo apresentado por Crowell, que as razões para o escritor trabalhar no capítulo e melhorá-lo têm sua origem primária no fato de que ele quer ser um bom escritor. E, na medida em que sua resposta à questão sobre “o que fazer de si mesmo” é “ser um bom escritor”, certas normas lhe são impostas como resultado da sua decisão. “Trabalhar no capítulo”, por exemplo, é uma norma que se 80 aplica a quem quer ser um escritor, mas não a quem quer ser um carpinteiro, assim como a “aproximação do prazo final” é uma razão para trabalhar no capítulo. O sentido do ser um escritor está em jogo em suas ações, e é porque o Dasein age em virtude do que projeta ser, que as normas apropriadas lhe são impostas como orientadoras do que ele deve fazer. Neste contexto, o projeto ganha uma dupla importância. Ao mesmo tempo em que o projeto revela a compreensão de mundo do Dasein – visto que o projeto revela o em-virtude-de da compreensão dos entes –, ele de certa forma estabelece o contexto no qual emergem as normas que se impõem. Assim como “trabalhar no capítulo para terminá-lo no prazo” é uma norma que se impõe somente a quem se projeta como um bom escritor, levar o filho a um jogo, ao invés de sair para tomar uma cerveja com os amigos, é uma norma que se impõe a quem projeta ser um bom pai. Neste último caso, embora as duas possibilidades possam ser vistas como inclinações, o projeto torna a primeira inclinação a razão, tratando-a como normativamente melhor do que a segunda. Fonte: slideplayer.com.br Ao estabelecer uma certa hierarquia entre as inclinações, o Dasein exercita duas diferentes habilidades-para-ser. No caso do pai que prefere levar o filho a um jogo, ao invés de sair para tomar uma cerveja com os amigos, ele está exercitando: (a) a habilidade para ser um bom pai, e (b) a habilidade para ser si mesmo, assumindo- se como fundamento. Conforme explica Crowell, “a habilidade do Dasein de ser 81 explicitamente orientado rumo ao que é ‘melhor’, nesse sentido, dá-se, porque o ponto de vista da primeira pessoa é ontologicamente irredutível no que diz respeito ao entendimento do ser”. (CROWELL, 2012, p. 45). O que está em jogo é perceber que o fundamento primordial do agir não é encontrado junto aos entes. Ao decidir sobre seu ser, e com isso assumir para si a tarefa de existir, o Dasein torna-se o fundamento de si mesmo, o fundamento do seu poder-ser. (HEIDEGGER, 2006, p. 284). E é justamente porque o Dasein é um tipo de ente que pode existir como fundamento de si mesmo, que ele pode compreender-se em termos normativos, e tomar aspectos do mundo – como percepções e afetos –, como razões legitimantes. Conforme explicaCrowell, não é porque minhas experiências tenham uma estrutura racional que eu posso agir responsavelmente (racionalmente) ao conformar minhas práticas à razão inerente a elas; mas é porque eu posso ser responsável que eu posso tratar minhas experiências perceptivas e afetivas como potenciais razões justificantes; isto é, como coisas que falam a favor ou contra minhas crenças e intenções, como posições que respondem a normas. (CROWELL, 2013, p. 277). Nesta perspectiva, a atribuição de razões possuiria um fundamento ontológico. Enquanto permanecer no âmbito ôntico, a pretensão de universalização de condutas, com base em razões, deixa de perceber uma dimensão prévia que se coloca como condição para a própria atribuição de razões, a saber, a compreensão prévia do ser. Na esfera ôntica, o fato é que sempre podemos incluir novas circunstâncias à situação fática, o que implicaria a possibilidade de incluirmos sempre novas razões para agirmos de um modo ou de outro. Uma ação, que poderia se mostrar adequada em determinada situação, pode se transformar em uma ação inadequada pela adição de novas razões. O problema é que, nas situações concretas de nossa vida, dificilmente estamos cientes de todas as razões que podem estar implicadas nas decisões sobre o nosso agir. Se compreendermos, contudo, os pressupostos ontológicos para a possibilidade de atribuição de razões, poderemos então alcançar a singularidade existencial, em que as ações são praticadas. E neste ponto a filosofia heideggeriana poderia nos ajudar a compreender o como, que acompanha não só a imposição das normas reguladoras da ação, mas a própria possibilidade da atribuição de razões. A este respeito, dois aspectos de uma questão prévia não devem ser deixados de lado: (a) o horizonte de compreensão do agente; e (b) o que o agente decide fazer de si 82 mesmo. Do mesmo modo, as normas dependem do projeto lançado, seu conteúdo é igualmente dependente da compreensão de mundo do Dasein que se projeta. Se, por um lado, as normas possuem um caráter universalizável, visto que podemos avaliar a conduta do outro e o contexto no qual as ações são praticadas, por outro, contudo, a atribuição de razões é particular, e depende do caráter singular da existência. O modo pelo qual atribuímos razões para o agir, de qualquer modo, não deve ser descrito como um simples exercício racional, nem como decorrência de uma hierarquia de valores preestabelecida. A desvinculação da atribuição de razões dos contextos particulares, a partir das quais as decisões acerca do modo de agir são tomadas, demonstram-se insuficientes para dar conta do que está em jogo no agir humano. Fonte: desistirnunca.com.br Segundo Heidegger, a prática não envolve apenas uma orientação para uma meta, mas um compromisso consigo mesmo enquanto possibilidade de ser. Há, a este respeito, uma conexão necessária entre vontade e razão, visto que o agir é um comprometer-se com normas de ser e de fazer, o que por sua vez significa tratar o dado da minha situação com razões. (CROWELL, 2013, p. 277). Podemos dizer, portanto, que é somente porque o ser do Dasein está em jogo ao projetar-se um bom escritor (ser um escritor), que ele se compromete com certas normas e com certas razões. 83 Assim, se admitirmos que da ontologia fundamental decorre um certo tipo de normatividade que governa a ação do Dasein, precisaremos também admitir que a atribuição de razões possui um fundamento ontológico. E, na medida em que o Dasein se torna o fundamento, isto é, responsável pelo seu ser, ele passa a compreender-se em termos normativos, e assim tornar aspectos do mundo razões para a concretização do projeto lançado3. 7.1 Uma análise acerca da ética evolucionista tradicional O ponto comum de diferentes éticas evolucionistas tradicionais é o embasamento em uma visão progressista acerca da teoria da evolução. Defendemos uma teoria da evolução não progressista, assim como delimitamos a atuação da seleção natural. Fonte: razaoemquestao.blogspot.com A expressão ética evolucionista tradicional é bastante difundida como “darwinismo social”. Darwinismo social é uma nomenclatura genérica que é dada a diferentes teorias acerca da sociedade, que aplicam essencialmente dois conceitos biológicos: a sobrevivência do mais apto e a seleção natural. Tais conceitos biológicos são aplicados à sociologia e à política. 3 Texto adaptado: www.ucs.br 84 Atualmente, ainda há um acirrado debate acerca do real posicionamento de Charles Darwin, em relação ao darwinismo social. Em relação ao debate, os principais questionamentos estão relacionados ao que estaria realmente abarcado no posicionamento de Darwin, e que é chamado de darwinismo social. A partir de uma leitura sistematizada da Origem das espécies, a aplicação das hipóteses de sobrevivência do mais apto e a seleção natural parecem estar longe daquelas aplicadas pelos ditos darwinistas sociais. Porém, segundo Ruse (1979), se fizermos uma análise da obra A descendência do homem, podemos ter diversas razões para acreditar em um posicionamento bastante próximo aos darwinistas sociais. A citação abaixo (A descendência do homem) deixa clara a possível posição comum entre Darwin e os darwinistas sociais, pela aplicação da seleção natural e da sobrevivência do mais apto às sociedades humanas. Num futuro não muito distante, se medido em séculos, as raças civilizadas de homem quase certamente eliminarão e substituirão as raças selvagens através do mundo. Ao mesmo tempo, os grandes símios antropomórficos [...] serão sem dúvida exterminados. A lacuna entre o homem e os seus parentes mais próximos será então mais profunda; ela ficará entre o homem em estágio mais civilizado, podemos esperar, do que o caucasiano e algum símio tão inferior quanto um babuíno, em lugar de se situar como agora entre o negro ou o aborígene australiano e o gorila. (DARWIN, 1871, p.168). Não foi Charles Darwin que promoveu e articulou a ética evolucionista; quem o fez foi Herbert Spencer autor contemporâneo de Darwin. Devido à contribuição direta de Herbert Spencer (1852, 1857, 1892), esse será essencialmente o pensamento exposto acerca do darwinismo social ora exposto. Inicialmente, os teóricos considerados tradicionais acerca da ética evolucionista, tendo como protagonista Herbert Spencer, utilizam teorias que compõem a natureza do processo evolutivo, para fundamentar suas próprias teorias. A partir da obra Origem das espécies, de Charles Darwin, foi constatado que os organismos em sua totalidade são produtos de um longo, lento e gradual processo evolutivo. Esse processo ocorre em função da seleção natural advindo como o efeito da luta pela existência. O termo evolução não aparece em nenhuma das edições da Origem, pois essencialmente Darwin, em sua obra magna, pretendia defender uma forma natural, referente ao surgimento de novas espécies na natureza. Justamente pelo advento do pensamento evolucionista, através das hipóteses 85 defendidas por Darwin, os defensores da ética evolucionista tradicional sustentam que o mundo orgânico está sujeito à luta pela existência que irá culminar na seleção natural. Partindo do pressuposto de que os humanos (Homo sapiens sapiens) não passam de resultado de um longo processo evolutivo, que ocorre no mundo orgânico, é natural que ocorra entre os indivíduos de nossa espécie uma luta pela existência, que culmina na seleção natural. Os darwinistas sociais defendem que as ações que se vinculam à luta pela existência e à seleção natural são, em certo sentido, justas e legítimas. Se os indivíduos forem colocados sob uma perspectiva normativa, os pensadores acerca da ética evolucionista tradicional defenderiam a posição de que tais indivíduos deveriam aceitar e possivelmente favorecera luta pela existência e pela própria sobrevivência. Daí decorreria a seleção dos indivíduos. Houve diversas discussões acerca da verdadeira forma como a luta pela existência ocorre entre os seres humanos. Porém, os pesquisadores que possuíam a mesma opinião que Herbert Spencer pensavam que tal luta se resumiria a uma forma bastante simplória de economia sociopolítica que seria então denominada laissez-faire. Spencer relaciona Darwin ao laissezfaire da seguinte forma: para ele traz à tona a importância da reprodução que irá operar por meio da seleção sexual, favorecendo a seleção natural, através da competição. Nesse sentido, o individualista dará maior importância ao dinheiro, operando por meio da busca pelo lucro, auxiliando a seleção natural e, consequentemente, impulsionando na escala mais ampla a produção daquilo que é mais ambicionado, e consequentemente, mensurado pelo valor de troca. Nesse tipo de economia, o Estado deveria intervir minimamente, afastando-se e despreocupando-se com as possíveis consequências sociais. A partir do cenário inicial acerca do darwinismo social, ocorreram diversas variações. O debate acerca da luta pela existência ganha um papel central nas discussões. A luta pela existência seria algo produzido exclusivamente no interior das sociedades ou poderia ser algo que ocorre de forma mais frequente entre as distintas sociedades? Se partirmos do pressuposto de que a luta pela existência é um fenômeno gerado dentro das sociedades, portanto aparentemente uma economia laissez-faire, sugerida por Herbert Spencer, parece ser coerente. Entretanto, se partirmos do pressuposto de que a luta pela existência é algo que ocorre frequentemente entre sociedades distintas, é possível afirmar que temos que avivar 86 certas formas de altruísmo e bons sentimentos entre os indivíduos que compõem uma sociedade, pois isso favorecerá o acúmulo de energia para uma possível luta entre grupos, não justificando assim uma economia do tipo laissez-faire. Tal argumento poderia ser utilizado para justificar algum tipo de socialismo. Apesar de concordar com a nossa tendência ao altruísmo e aos bons sentimentos, os seres humanos possuem uma alta variabilidade genética, que culmina em uma alta variabilidade comportamental, sendo necessária a possibilidade de escolha. Assim, um regime do tipo totalitário, que predeterminaria as funções dos indivíduos na sociedade, parece ir contra a natureza humana. Fonte: coladaweb.com Um autor contemporâneo que parece defender uma ética evolucionista, porém muito mais intimamente relacionada com a sociobiologia, é o pesquisador entomólogo e sociobiólogo Edward Wilson. Wilson (1984, 2002) sustenta a biophilia que consiste na capacidade inata que os seres humanos possuem de amar as outras espécies, quando temos a possibilidade de nos aproximarmos e de as conhecermos. O ser humano vive de forma simbiótica (inter-relação obrigatória) com a natureza; a natureza ganha o papel de companheira obrigatória. A espécie humana é como o gigante mitológico Anteu, que extraía força do contato com a mãe, Géia, a deusa Terra, e a usava para derrotar os adversários. Hércules, depois de descobrir seu segredo, levantou Anteu no mar e o manteve nesta posição até que perdesse as forças, terminando por esmagá-lo. “Os humanos também são prejudicados com a separação da 87 Terra, mas nosso sofrimento é autoimposto, e com uma agravante: também enfraquece a Terra. (WILSON, 2002, p. 169). Somos criaturas com estrutura biológica, e isso não nos permite viver em um ambiente estritamente artificial, porém o ser humano parece devastar essa natureza mesmo necessitando da mesma para poder sobreviver. Wilson (2002) defende a tese de que para sobrevivermos, como espécie, necessitamos da natureza e por isso devemos preservar o meio ambiente, pois sua degradação pode acarretar o nosso próprio fim. Para que possamos auxiliar na evolução do ser humano, temos de preservar o meio ambiente, e as ações morais têm por obrigação serem dirigidas para tal fim. 7.2 Algumas críticas ao darwinismo social (ética evolucionista tradicional) Na exposição realizada na primeira parte do artigo, acerca da ética evolucionista, foi considerado essencialmente o nível normativo, que é caracterizado conforme o que deve ser feito. Os três pontos defendidos foram: a) laissez-faire; b) a coesão dentro da sociedade (não justificação da laissez-faire); c) a preservação do meio ambiente. Estes três pontos partem de uma conclusão comum, que é a de que devemos agir da maneira estabelecida, pois exclusivamente dessa forma temos a possibilidade de propiciar o bem-estar e a consequente garantia da perpetuação da espécie Homo sapiens. Tal conclusão parece responder a: Por que devemos fazer o que devemos fazer, porém qual seria a justificação de beneficiarmos o ser humano? A partir da análise teórica da ética evolucionista a resposta se dá simplesmente pelo fato de que devemos beneficiar a nossa própria espécie, pois o ser humano é um simples produto de longo processo evolutivo. Sendo assim, é bom para a nossa espécie nos autobeneficiarmos. Os teóricos evolucionistas tradicionais geralmente são criticados, devido às divergentes regras particulares desenvolvidas em suas teorias. Thomas H. Huxley (1901) afirma que a economia do tipo laissez-faire traz à tona apenas as características menos atrativas da natureza humana, como a cupidez e o egoísmo, 88 distanciando-se do bem moral ou social. As normas apresentadas nos pontos b e c podem também ser criticadas. Podemos nos opor à asserção b, que poderia levar a um controle total do estado sobre as pessoas; porém, parece complicado opormo-nos aos princípios conservacionistas de Wilson. Para que seja possível criticar a ética evolucionista tradicional, no que concerne aos seus fundamentos, é necessário mais do que exprimir de forma simplista uma opinião acerca das conclusões normativas que, supostamente, alicerçam os fundamentos. A crítica de George Edward Moore, acerca da ética evolutiva tradicional, é mais elaborada. Moore (1903) corrobora que o darwinismo social (ética evolucionista tradicional) realiza uma espécie de salto ilusório, pois parte-se do que é o mundo (enunciado de fatos), para como o mundo deveria ser (enunciados da moral). Moore (1903) compartilha com David Hume (2009) (precursor da argumentação que segue), que não é possível resultar enunciados de obrigação, a partir de uma singela descrição da realidade empírica. Moore e os pensadores que compartilham sua tese concluem da seguinte forma: ainda que seja factível a compreensão, em larga escala, das teses defendidas pelos teóricos da ética evolucionista tradicional, tais teses em nenhum momento propõem algum tipo de fundamento metaético, que justifique suas teses normativas. Fonte: veja.abril.com.br As objeções filosóficas acerca da ética evolucionista tradicional, 89 aparentemente, não afetam os defensores de tal área. Aparentemente, há uma concordância, que, em situações usuais, porventura seja inaceitável que ocorra a passagem de um enunciado de fato para um enunciado de obrigação. Porém, eles defendem que há uma ocasião particular onde a transição é justificada, isso ocorre no caso da evolução. Isso fica claro na tentativa de transpassar a forma como a Terra evoluiu para como a Terra deve evoluir. Tal asserção é admissível, podendo tornar- se, em alguns aspectos, obrigatória. Nesse caso há possivelmente um repto entre a dicotomia dever ser e ser. Este se refere a uma exceção reconhecida à regra. Há aspectos na fundamentação da ética evolucionista tradicional, que são realmente críticos. Tanto Spencer quanto Wilson compartilham uma visão acerca do processo evolutivo. Ambos pensam que o processo evolutivo não é um mero percurso aleatório, que ocorre muito lentamentee que não possui uma finalidade. Esses autores compreendem o processo evolutivo como sendo algo direcionado e com alguma finalidade. Nesse sentido, a visão sobre evolução de Spencer e Wilson é teleológica.4 A evolução é progressiva, indo de mônade (substantivo simples) ou do amorfo até o ser humano considerado o ser altamente organizado. O movimento que a evolução segue é ascendente; consequentemente direcional, indo das formas mais simples às formas mais complexas, sendo que a segunda possui maior valor. Spencer, como é possível verificar na citação abaixo, era notavelmente defensor de um processo evolutivo progressista. Assim, propomo-nos demonstrar, em primeiro lugar, que esta lei do progresso orgânico é a lei de todo o progresso; quer se trate das transformações da Terra, do desenvolvimento da vida à sua superfície ou do desenvolvimento das instituições políticas, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, dá-se sempre a mesma evolução do simples para o complexo, mediante sucessivas diferenciações. (SPENCER, 1939, p. 5). Dos autores contemporâneos, Edward Wilson é abertamente progressista, no que concerne ao processo evolutivo. É possível observar tal posicionamento, de forma fatual, no livro A diversidade da vida, em que o autor defende que, embora haja diversos caminhos para a ocorrência do processo evolutivo, é possível observar que a evolução é direcionada às formas mais ascendentes. Durante os últimos milhares de milhões de anos, o conjunto dos animais evoluiu num sentido ascendente em tamanho corporal, alimentação e técnica defensiva, complexidade cerebral e de comportamento, organização social e 90 precisão de controle ambiental – em cada caso, para mais longe do estado não vivo do que seus antecedentes mais simples. (WILSON, 1997, p. 192). A visão teleológica acerca do processo evolutivo, que é realizada por esses defensores tradicionais de uma ética evolucionista, confere valor ao processo evolutivo. Quanto mais a espécie está elevada na cadeia evolutiva, maior é a acumulação de características e o consequente aumento no nível de valor. No topo desse processo evolutivo, está o ser humano. Nós somos a espécie que possui o maior valor. Por esse motivo, a partir dessa percepção acerca da evolução, surgem as teses sobre o que é mundo, que possuímos o dever moral de preservar a natureza, o dever de favorecer de forma ativa o processo evolutivo e os possíveis produtos desse processo. Particularmente, o ser humano tem o dever de oferecer condições propícias para o bem-estar e a perpetuação da espécie humana, a fim de que a mesma não seja extinta. E tal conclusão decorre tanto da preservação ambiental, como do laissez-faire, quanto um possível socialismo. Essas teses de cunho normativo vêm em decorrência imediata da natureza evolutiva, compreendida por esses autores. Fonte: jovem-jurista.blogspot.com A interpretação acerca do processo evolutivo realizada por tais autores é de cunho teleológico. É bastante comum esse tipo de interpretação, que também foi realizada pelo próprio Darwin. A principal função do princípio de seleção natural é explicar de que forma novas espécies surgem na natureza, refutando assim o 91 Criacionismo como doutrina, segundo a qual cada espécie é fruto de um ato particular de criação. Para Darwin, as espécies não são produzidas cada uma por um ser externo, mas surgem na própria natureza, segundo suas leis e condições. E é a natureza que dá o cunho teleológico à hipótese de Darwin. Porém, a interpretação moderna acerca da teoria da evolução não possui cunho teleológico, e é nesse ponto que se encontra a maior falha na interpretação dos teóricos clássicos da ética evolutiva. 7.3 Os limites do princípio de seleção natural na teoria evolutiva moderna A biologia moderna é centralizada pela teoria neodarwiniana da evolução pelo princípio de seleção natural. O processo evolutivo é considerado um tipo de fenômeno extremamente complexo que envolve diversos processos, sendo que o mecanismo de seleção natural é o processo central. O aspecto de mais fácil compreensão acerca da teoria evolutiva estabelece que os indivíduos que geram uma prole efetivamente sejam maior do que a dos outros indivíduos do grupo; nas gerações seguintes, estarão melhor representados genética e eficazmente. Nesse sentido, os indivíduos das gerações futuras serão mais semelhantes geneticamente aos indivíduos que obtiverem maior sucesso reprodutivo. Esse processo de sucesso reprodutivo diferencial é denominado seleção natural. Segundo Futuyma (1997), a seleção não é nada além do que a sobrevivência diferencial de entidades biológicas. Podemos conceber a seleção natural como um mecanismo que irá determinar a forma e a frequência de indivíduos em cada uma das gerações. A seleção estabilizadora5 manterá os sistemas biológicos, assim como direciona os sistemas para novos rumos, ou seja, para a mudança evolutiva. A seleção natural é a hipótese central da teoria da evolução; porém, ela não opera de forma isolada. Para que seja possível a compreensão da teoria da evolução, é necessário que sejam incorporados diversos processos biológicos distintos. Tais processos irão direcionar e restringir a ação da seleção natural, no contexto em que está ocorrendo. A seleção somente poderá operar através das variações encontradas nas populações.6 Charles Darwin, na Origem, traz dois capítulos para elucidar as variações que ocorrem dentro de uma mesma espécie, e procura explicar como as espécies surgem naturalmente, sem a necessidade de um criador supranatural. Os capítulos que tratam essencialmente acerca da variação são originalmente intitulados 92 Variation in Nature e Variationunderdomestication. A maior variação entre indivíduos de uma mesma espécie, em meio cultivado, serve como ponto de partida para que Darwin argumente em favor da complexidade das leis de variabilidade. Essas leis são capazes de colocar o uso e desuso não mais como único e principal agente gerador de mudanças dos indivíduos. Isto é, não é somente o meio pressionando o indivíduo que o levará a apresentar variações. A seleção natural é o processo pelo qual as variedades sobrevivem e se reproduzem, tendo maior sucesso reprodutivo do que outras. Se a tendência se mantiver, as formas com maior sucesso reprodutivo tendem a se tornar a forma dominante na população. É a seleção que irá definir qual é a extensão e a frequência de variação que será encontrada, em distintos sistemas biológicos. A seleção só executará sua função quando existir variação e houver um sentido adaptativo. A atuação, a direção e a velocidade seletiva estarão limitadas pela natureza e pela extensão da variação ocorrente dentro de uma população. Para que seja possível compreender a reprodução diferencial, é necessário o reconhecimento da amplitude de variação da forma existente; esta amplitude está relacionada tanto à forma comportamental quanto à forma morfológica. Há uma ocorrência de diversas variações; entretanto, não é qualquer tipo de variação que compõe a matéria-prima do processo evolutivo, porque um outro tipo de restrição é a base genética da vida. A seleção irá operar sobre o fenótipo,7 ou seja, através da real manifestação morfológica, bioquímica, fisiológica e comportamental. Através da aptidão8 do fenótipo, é possível determinar o sucesso reprodutivo e de perpetuação da espécie. A seleção só poderá atuar, se houver um meio das características fenotípicas serem herdadas, ou seja, transmitidas à prole, nas sucessivas gerações. Se não houvesse a possibilidade de transmissão fenotípica, esse atributo não teria consequência evolutiva. A transmissão de genes nos eucariotos ocorre de duas formas: verticalmente ou horizontalmente. A transmissão vertical consiste na incorporação do gene, em um gameta haploideque é transmitido dos pais para a prole. A transmissão horizontal consiste em um processo onde um organismo transfere para outra parte do seu material genético para um indivíduo que não é seu descendente. A descoberta da transmissão horizontal afeta diretamente a organização do que chamamos árvore da vida. O pesquisador Doolittle (2000), a partir de pesquisas realizadas acerca da 93 transmissão horizontal, indica que há a possibilidade de existência de um aglomerado diverso de células primitivas que coevoluíram. Tais células possuíam um número reduzido de genes e, através da transmissão horizontal, elas trocavam material genético. Esse pode ser o processo que originou as formas de vida que conhecemos atualmente. Os seres vivos podem se beneficiar ou sofrer, em função do comportamento reprodutivo dos outros indivíduos. A limitação da transmissão dos genes entre as gerações atua diretamente como um limitador da seleção natural. Fonte: estudopratico.com.br Os genes novos podem surgir em uma população, como resultado de um processo de mutação.9 As mutações são responsáveis por manter e aumentar a variabilidade genética. Nesse sentido, as mutações são outra restrição à seleção natural. A mutação é uma incorreção no processo de replicação de um gene, durante a meiose. A presença da mutação pode incorporar uma nova variante (novo fenótipo), que competirá com aqueles existentes nos conjuntos de genes. Se levarmos em conta a ocorrência de outras fontes de variabilidade, como o fluxo gênico, a recombinação, a migração e a deriva genética, carecendo de mutação, a seleção natural pode agir apenas mantendo a estrutura ou as formas já existentes, ou quando isto já não for mais viável, possivelmente levar a população à extinção. A análise acerca dos processos evolutivos deve sempre considerar a natureza e a velocidade da mutação. Pois a mutação é a fonte de variação para a atuação da seleção natural. O processo 94 de mutação ocorre de forma aleatória, porém uma mutação depende diretamente do loco do alelo de onde ela está modificando. Nesse sentido, uma mutação que ocorra nos seres humanos pode aumentar a capacidade de aprendizado pela natureza do loco. Porém, uma mutação que ocorra no loco de uma Drosophilla não irá fazê-la desenvolver a capacidade de pintar, pois a mutação é limitada pela estrutura do DNA da espécie em questão. Um dos principais motivos de o processo evolutivo ocorrer de forma gradual, justamente são as próprias limitações naturais impostas à mutação. As possíveis consequências que uma mutação pode causar não ocorrem necessariamente de forma simultânea ou instantânea. Uma mutação que seja capaz de aumentar, por exemplo, a capacidade de aprendizagem, pode causar algum tipo de efeito imediato. Todavia, o impacto total dessa mutação poderá não ocorrer durante várias gerações, podendo ser dependente de tipos especiais de informações que serão aprendidas. A competição é um fator que irá afetar a ação da seleção natural. Há uma diferença significativa do conceito (strugle for existence/competição), definido por Malthus, que se limitava a explicar a sobrevivência do indivíduo, através da relação com a produtividade de alimento do ambiente. Darwin amplia este conceito, no sentido de que o mesmo ganha novas atribuições, estando relacionado com o surgimento de novas características, que possibilitam a perpetuação das espécies. Com seu significado darwiniano, strugle for existence distancia-se bastante do seu significado malthusiano. Para Darwin, a “luta pela existência” é um fator que auxilia no resultado positivo do surgimento de novas espécies, como formas novas e aperfeiçoadas em relação às parentais. Para Malthus, a “luta pela existência” não seria meio de aperfeiçoamento, mas um mero agente natural determinístico sobre a relação ambiente-vida e entre homens, na sociedade, conducente à miséria e à degradação moral. A competição será uma pré-condição da seleção natural. Quando houver um contexto em que os recursos estarão limitados, as variantes, que possuírem melhor adaptação para adquiri-los, obterão vantagem reprodutiva e consequentemente seletiva. Somente será possível à seleção natural atuar sobre uma determinada característica, se ela tiver algum efeito sobre o sucesso reprodutivo dos indivíduos. A seleção natural não atua, se não existir a interação entre a natureza do fenótipo, e as distinções no sucesso reprodutivo. As diferenças ocorrentes no fenótipo que não 95 possuam efeito significativo sobre as capacidades de sobrevivência dos indivíduos não desempenham um papel importante no processo evolutivo. Porém, uma variação fenotípica, que não tenha um efeito significativo sobre as capacidades de sobrevivência, pode ter, conforme as variações ocorrentes no hábitat e nos recursos necessários para a sobrevivência, ou mesmo a sobreposição de nichos.19 O cerne da teoria evolutiva resume o princípio de seleção natural, ou seja, o sucesso diferencial dos seres vivos. Porém, como a seleção natural atua no mundo biológico e físico, sendo colocados sobre ela limites. As restrições como herança genética, variabilidade genética, competição, mutações darão à evolução biológica um caráter observável e específico. Essas restrições podem ser vistas como aspectos epifenomenais da evolução. Nesse sentido, que a abordagem evolutiva estará centralizada na compreensão acerca da seleção natural, visando às possíveis consequências sobre a matéria viva e o contexto no qual ela está atuando. 7.4 O melhoramento moral como antropotécnica: um substituto ao humanismo? O filósofo alemão Peter Sloterdijk trata da questão do pós-humanismo, a partir da visão de uma antropotécnica. Buscamos verificar se tal abordagem possui alguma identidade com as ideias trabalhadas pelos filósofos eticistas, o sueco Ingmar Persson e o australiano Julian Savulescu quanto à sua perspectiva de melhoramento moral.1 É importante ressaltar que, apesar de tratarem de questões em parte semelhantes, os citados pesquisadores possuem abordagens distintas. Fonte: fronteiras.com 96 Estes últimos seguem a analítica, com influência anglo-saxã (especialmente dos filósofos contemporâneos de Oxford), enquanto o outro possui uma abordagem hermenêutica, com base na tradição continental mais recente (em especial Heidegger e Nietzsche). Diante destes autores, passamos a analisar suas reflexões quanto à questão do uso da tecnologia e a influência desta no comportamento humano. A abordagem de Sloterdijk se faz pela antropotécnica, concebendo como uma sucessora da antropologia humanista, visto que esta última não dá conta da tarefa de inibir a bestialidade do comportamento humano. Outrossim, Savulescu e Persson compreendem que, no momento atual, a espécie humana está em uma situação de gravidade global. Portanto, faz-se necessário o uso de bio melhoramentos morais para auxiliá-la a tomar decisões mais éticas, visando impedir que a situação chegue a um nível irreversível para a vida no planeta. Preliminarmente, podemos notar uma intersecção nas ideias de ambos; contudo, precisamos compreender melhor cada uma destas abordagens, antes de tirarmos quaisquer conclusões. Inicialmente, abordamos o pensamento do filósofo Sloterdijk, a partir de seu livro Regras para o Parque Humano: uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo, buscando clarificar os conceitos trabalhados pelo autor. Em um segundo momento, enfocamos a questão do bio melhoramento moral trabalhado pelos eticistas Persson e Savulescu em seu livro Inadequado para o futuro: a necessidade de melhoramentos morais. E, finalmente, na terceira parte analisamos uma possível intersecção entre as abordagens, indicando possíveis convergências. 7.5 Uma leitura da antropotécnica, a partir de Peter Sloterdijk Sloterdijk trata da antropotécnica comouma superação da antropologia filosófica do humanismo, na função de domesticação dos humanos. Nas palavras do filósofo, “o humanismo, como palavra e como assunto, sempre tem um ‘contra que’, uma vez que constitui o empenho para retirar os seres humanos da barbárie” (SLOTERDIJK, 2000), enquanto os que não fossem submetidos a tal domesticação humanista permaneceriam na barbárie, pois “o tema latente do humanismo é, portanto o desembrutecimento do ser humano, e sua tese latente é: as boas leituras conduzem à domesticação”. Em Regras pra o parque humano..., Sloterdijk parte de uma abordagem das 97 origens deste humanismo,que remonta aos filósofos gregos. Inicialmente trata o Humanismo como um meio de manter amizades a distância, seja ela espacial, seja temporal (intergeracional), por meio da escrita. Para o autor, a filosofia não apenas trata do amor à sabedoria, mas também busca compelir outros a este amor, o que leva os leitores da filosofia a participarem de uma espécie de círculo de amigos e, justamente neste ponto, começa a sua abordagem do humanismo, como meio de domesticação. Sloterdijk cita que, dentro desta fantasia de seita ou clube, “saber ler significava de fato algo como a participação em uma elite cercada de mistérios” e que “os humanizados não são mais que a seita dos alfabetizados e, como em muitas outras seitas, também nesta despontam projetos expansionistas e universalistas”. Porém, o projeto humanista só foi tomar corpo característico da atualidade, nos séculos XIX e XX, através dos Estados nacionais burgueses conforme cita: […] O padrão da sociedade literária ampliou-se para norma da sociedade política. Dali em diante os povos se organizaram como membros plenamente alfabetizados de associações compulsórias de amizade, que se filiavam, em cada território nacional, a um cânon obrigatório de leitura. […] Pois o que são as nações modernas se não eficazes ficções de públicos leitores que teriam se transformado, pelos mesmos escritos em uma associação concordante de amigos? (2000, p. 12). Assim, a alfabetização tornou-se uma norma, e as então consideradas “boas leituras” faziam parte de uma espécie de pedagogia nacional, mas mesmo no passado era notável tal função. Este Humanismo possui um caráter inibidor da bestialidade humana, uma forma racional de resposta aos estímulos desinibidores, tal como era notável na Roma antiga onde havia de um lado a leitura filosófica humanizadora e, de outro, os anfiteatros e combates de gladiadores. Neste escopo, o que tornava humano era renunciar às influências desinibidoras e escolher pelas inibidoras, buscando o desenvolvimento da própria natureza. (2000). Como pode-se notar, Sloterdijk entende os seres humanos como sujeitos influenciáveis, os quais, ao optarem pelo caminho da humanidade, tornar-seiam de fato humanos. Nesta perspectiva faz uma citação de Zaratustra de Nietzsche: “A virtude é para eles aquilo que torna modesto e domesticado: com ela fazem do lobo um cão, e dos próprios homens os melhores animais domésticos para os homens”. (NIETZSCHE apud SLOTERDIJK, 2000). Traz esta perspectiva de influências domesticadoras de um humanismo sobre os outros homens. A visão de Zaratustra, 98 ao adentrar a cidade onde tudo parecia menor, mostra uma domesticação que se dava através de uma combinação de ética e genética, para criarem-se a si mesmos menores, submetendo-se em uma seleção direcionada para produzir uma sociabilidade semelhante à de animais domésticos (SLOTERDIJK, 2000), e os responsáveis por deterem tal monopólio de criação eram aqueles que se apresentavam como amigos dos homens, a saber os padres e professores. (2000). Fonte: youtube.com Para Sloterdijk, podemos notar desde o diálogo “O Político”, de Platão, características deste Humanismo domesticador. O filósofo alemão comenta que os discursos falam sobre uma comunidade humana que, ao mesmo tempo, é um parque zoológico e um parque temático, e o que poderia parecer um pensamento sobre política é, na verdade, uma reflexão sobre regras para a administração de parques humanos. (2000). A administração de uma comunidade e de um zoológico diferem na questão das espécies domesticadas, e que os próprios humanos são capazes de autorregulamentarem-se. Para Sloterdijk, Platão desenvolve os preâmbulos de antropotécnica política, através de “uma neocriação sistemática de exemplares humanos mais próximos dos protótipos ideais”, quando desenvolve seu diálogo entre o jovem Sócrates e o Estrangeiro, que efetuam as divisões dos animais que andam sobre a Terra dos aquáticos, dos que possuem chifres os dos sem tal característica, 99 até chegar ao ponto da genuína arte da política, que se dá ao cuidado voluntariamente oferecido sobre os rebanhos dos seres que os aceitam. (2000). Mas o principal foco deste pensamento reside no controle dos criadores sobre a reprodução, citado na analogia do tecelão, conforme Sloterdijk: A razão pela qual o senhor platônico é um senhor reside apenas em um conhecimento régio da arte da criação; em uma perícia, portanto, das mais raras e refletidas. Emerge aqui o fantasma de uma reinado de peritos, cujo fundamento de direito baseia-se no conhecimento de como as pessoas devem ser classificadas e combinadas, sem jamais causar dano à sua natureza de agentes voluntários. Pois a antropotécnica régia exige do estadista que ele saiba como entrelaçar de maneira mais efetiva as características mais favoráveis à comunidade de pessoas voluntariamente dóceis, de forma que sob sua direção o parque humano alcance a melhor homeostase possível. 2000, p. 54). Assim, a busca por este parque humano homeostático se daria a partir de um senhor “super-humanista”. Conforme descrito por Sloterdijk, “a tarefa desse super- humanista [über-humanisten] não é nada menos que o planejamento das características de uma elite, que deve ser especificamente criada em benefício do todo”. (2000). Daí se demonstra a existência de um humanismo que foi se desenvolvendo ao longo da História humana. Contudo, em meados do século XX, este humanismo começou a enfrentar um novo empecilho: Com o estabelecimento midiático da cultura de massas no Primeiro Mundo em 1918 (radiodifusão), e depois em 1945 (televisão) e mais ainda pela atual revolução da internet, a coexistência humana nas sociedades atuais foi retomada a partir de novas bases. Essas bases, como se pode mostrar sem esforço são decididamente, pós-humanistas. Quem considera demasiado dramático o prefixo “pós-” nas formulações poderia substituí-lo pelo advérbio “marginalmente” – de forma que nossa tese diz: é apenas marginalmente que os meios literários, epistolares e humanistas servem às grandes sociedades modernas para a produção de sínteses políticas e culturais. (2000, p. 14). Assim este humanismo inibidor vem perdendo espaço para mecanismos que muitas vezes são desinibidores; as pessoas leem menos as cartas dos velhos amigos que as domesticariam e optam por meios pós-humanistas, como as recentes mídias que, muitas vezes, trazem influências desinibidoras. Neste cenário, o humanismo literário se esmaece e buscam-se outras antropotécnicas capazes de domesticar o ser humano com influências inibidoras. 8 A NECESSIDADE DE BIOMELHORAMENTOS MORAIS SEGUNDO PERSSON E SAVULESCU 100 Os eticistas Ingmar Persson e Julian Savulescu também partem de uma perspectiva de que, no século XX, a situação dos humanos, enquanto espécie, encontrava-se em estado diverso daquele do passado. Sua argumentação parte da premissa de que as condições de vida humanas modificaram-se drasticamente com o avanço da ciência e tecnologia. Contudo, a estrutura psicológica moral dos humanos fundamentalmente mantém-se a mesma de milhares de anos atrás. (PERSSON; SAVULESCU, 2017). Assim, os humanos vivem em grandes sociedades com milhões de pessoas,em um planeta habitado por bilhões de outros seres de sua mesma espécie, mas interligados através de sua tecnologia. Os autores argumentam que, “neste momento a natureza dos seres humanos não é equipada com uma psicologia moral que capacite a lidar com os problemas morais gerados por essas novas condições de vida”. (2017). Este ponto contém principalmente duas questões em nível global: a possibilidade de gerarmos o Dano Último e os problemas ambientais; bem como suas decorrências sociais. Os esticistas citam que, desde meados do século XX, os humanos adquiriram a capacidade de causar o Dano Último, que impossibilitar para sempre a existência de uma vida valiosa neste planeta (2017), o que é um argumento cogente diante da destruição causada a partir do uso de bombas atômicas, no final da Segunda Guerra Mundial, bem como da possibilidade do uso de armas biológicas e o risco de pandemias globais. O risco é tamanho, que não apenas poderia encerrar bilhões de vidas no Planeta, como impedir que novas surjam, devido à radiação e o contágio de doenças infecciosas decorrentes da explosão de uma bomba ou da propagação inicial de uma doença contagiosa. Tal cenário não é implausível, conforme citado pelos autores, “é psicologicamente mais difícil e mais revoltante, por exemplo, assassinar 10 pessoas com um machado do que matar 10 mil pessoas ou mais por intermédio de um bombardeio por avião” (2017), e isso se dá devido a uma espécie de deficiência moral que os humanos possuem, quando elevamos os traços morais a um grande número de pessoas. Persson e Savulescu partem do pressuposto de que os humanos possuem uma série de características morais que são problemáticas em nossa sociedade globalizada, superpopulosa e que faz uso de uma ampla tecnologia científica. O 101 primeiro ponto se refere à propensão dos humanos a prejudicarem uns aos outros enquanto competem entre si por recursos naturais escassos (2017), e isso decorre não somente de intencionalidade, mas de possibilidades factuais, pois é muito mais fácil gerar dano intenso a um maior número de pessoas do que promover benefícios proporcionais ao mesmo número de pessoas. Mesmo dispondo de recursos para gerar benefícios às pessoas, é muito mais prático gerar dano com tais ferramentas. Segundo os autores “isso se dá por haver mais maneiras de atrapalhar um sistema que esteja funcionando bem, a exemplo de um organismo biológico ou a interação de organismos, como em um ecossistema, do que aprimorá-lo de maneira similar”. (2017). Fonte: laparola.com.br Outra característica é a responsabilidade baseada na causalidade. O senso comum nos passa a impressão de que somos mais responsáveis por consequências das ações que praticamos do que por coisas que deixamos acontecer ao omitirmo- nos de preveni-las (2017). Ocorre que, ao nos omitirmos de uma determinada conduta, estamos permitindo que ela ocorra sem evitá-la, mesmo podendo, nossa responsabilidade é menor do que se tivéssemos provocado o ato considerado. Contudo temos alguma responsabilidade. Outro ponto desta questão é que nossa responsabilidade parece diluir-se quando causamos efeitos em conjunto com outros agentes. Quando pisamos em um gramado contribuindo para a sua deterioração, nossa responsabilidade parece ser menor do que se o tivéssemos destruído sozinhos 102 (2017). Essa característica é especialmente relevante aos problemas ambientais que serão comentados posteriormente. Uma terceira característica destacada pelos autores é a de que os humanos possuem um viés em relação ao futuro próximo. Segundo ambos, este viés se manifesta quando nos sentimos aliviados se algo desagradável que iria acontecer conosco no futuro próximo é adiado; e, desapontados, se algo agradável reservado para nós no futuro próximo é adiado, enquanto o mesmo adiamento de coisas desagradáveis e agradáveis em um futuro mais distante não nos afeta. (2017, p. 51). Este ponto é citado pelos autores, tendo em vista que parece ser a explicação de por que termos uma fraqueza de vontade ao optarmos por um bem menor imediato, em detrimento de um bem maior posterior. Tal escolha nos parece irracional e normalmente nos gera arrependimentos ao analisarmos de forma retrospectiva. Contudo, este viés tem um valor de sobrevivência aos seres vivos, que não têm capacidade de fazer estimativas confiáveis em relação aos eventos futuros, o que de certo modo era a realidade humana, durante a maior parte de sua História (2017). Contudo, Persson e Savulescu destacam “que precisamos ser cuidadosos ao distinguir entre o que é a explicação evolutiva ou a razão de por que temos um certo traço e qual é a nossa razão ou motivo quando agimos e reagimos em conformidade com este traço” (2017), o que é especialmente relevante prevendo a possibilidade de modificarmos tal comportamento. Uma característica que também é destacada pelos autores é a de que somos mais propensos a compreender melhor a dor de um único indivíduo, mas dificilmente compreendemos tão bem a dor na mesma intensidade de um grande número de pessoas. Trata-se de uma insensibilidade numérica, pois se um número maior de pessoas precisam de ajuda, a quantidade de ajuda que estamos dispostos a dar a cada uma diminui (2017). A característica do “altruísmo de parentesco” também é relevante dentre as que afetam nosso comportamento moral. Apesar do nome, tendemos a agir de forma altruísta não só a nossos parentes, mas também a pessoas com as quais convivemos diariamente, e de forma menos altruísta com pessoas que não conhecemos. Dentro deste traço também há implicação em algumas emoções humanas, como a raiva ou agressão ao punir quem não devolve favores, e culpa ou remorso quando é nós que estamos nesta posição (2017). Para pequenos grupos a situação de troca de favores 103 parece ser mais harmônica, enquanto que uma cooperação sincrônica com inúmeros agentes é difícil de ser notada pelos participantes se alguém quebrou o pactuado e, semelhante à característica baseada na causalidade, em um número maior de agentes, o tamanho da contribuição individual tende a diminuir. Isso leva ao entendimento de que “quando o número de cooperadores sincrônicos é menor, os níveis de altruísmo e confiança provavelmente serão maiores” (2017). Os autores destacam que este altruísmo de parentesco não afeta somente pessoas ligadas a nós diretamente, mas também a estranhos que são semelhantes a nós (2017). Fonte: prismacientifico.wordpress.com Ao decorrerem por análises racionais das explicações evolutivas destes traços morais, eles chegam ao seguinte quadro da moralidade comum e da psicologia moralmente relevante: Nós somos primordialmente responsáveis pelo que causamos, na proporção da nossa contribuição causal. O que nos é mais importante moralmente é não causar a outrem danos que impliquem relações a direitos. Além disso, somos psicologicamente míopes, com uma disposição a nos importar mais com o que acontece conosco e com alguns indivíduos que nos estão próximos e que nos são caros no futuro próximo. Nós somos capazes de sentir empatia e de simpatizar principalmente com indivíduos isolados. Não conseguimos ter esses dois sentimentos por coletivos, nem alinhá-los, proporcionalmente, ao número de componentes das coletividades. Por estarmos equipados com um conjunto de respostas de comportamentos de retribuição, nosso altruísmo provinciano nos permite que nos engajemos em cooperação consecutiva e recíproca, ao lado da cooperação sincrônica, a qual, por si só, não pressupõe altruísmo e confiança enquanto os participantes forem poucos o bastante 104 para serem capazes de vigiar uns aos outros constantemente. Todavia, essa vigilância não é possível em sociedades modernas com milhões de cidadãos; nessa circunstância, indivíduos aproveitadores e antissociais, que necessariamenteexistirão em sociedades maiores, tomando como base a patente probabilidade de que existirão, irão encontrar ampla oportunidade para desviar a atenção e, desse modo, prosperar. (2017, p. 67). Além da análise da psicologia moral humana, os autores também refletem sobre como este aparato psicológico se dá em democracias liberais e nações autoritárias. Os referidos eticistas optaram por definir de maneira demonstrativa o que seria uma democracia liberal a saber, países como: os da União Europeia, os Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, o Japão, etc. (2017), e em um contraponto, como os autoritários, citam exemplos da história recente da China. As democracias liberais têm como características a busca de isonomia na aplicação da legislação, direitos iguais na aquisição de propriedade – e portanto economia de mercado, além de liberdade de expressão, imprensa, associação e religião, tal como a descrita por pensadores como John Rawls (2017). A abordagem traz a questão da dificuldade das democracias liberais lidarem com os problemas contemporâneos globais, em especial as armas de destruição em massa e as mudanças climáticas antropogênicas. Justamente por defenderem tais liberdades, as democracias possuem dificuldades em restringir algumas ações danosas de seus cidadãos, e os governantes que tentam acabam sofrendo com a impopularidade, inclusive ameaçando seus mandatos. Os autores comentam que, para lidar com a ameaça do terrorismo, as democracias liberais tenderão a se tornar menos liberais, pois, com o avanço da tecnologia e cada vez mais ao alcance da população em geral o risco de um grupo terrorista se apropriar de uma arma capaz de gerar o dano último é imenso, ou ainda de estes mesmos grupos terroristas forjarem ações visando a enganar um Estado nuclear, fazendo com que este ataque outro Estado nuclear, provocando assim a retaliação deste (2017). Tal cenário é plausível e foi assim exemplificado pelo historiador israelense Yuval Noah Harari: Terroristas são como uma mosca tentando destruir uma loja de porcelanas. A mosca é tão fraca que não é capaz de deslocar uma única xícara de chá. Então ela encontra um touro, e entra em sua orelha e começa a zunir. O touro fica louco de medo e de raiva – e destrói a loja de porcelanas. Foi isso que aconteceu no Oriente Médio na última década. (HARARI, 2016, p. 28). As democracias liberais são multiculturais, e ao aceitar a diversidade cultural 105 permitem que surjam grupos dentro delas que defendem ideias frontalmente opostas a esta mesma democracia liberal. Segundo Persson e Savulescu, estes subgrupos capazes de restaurar a violência, para promover ideologias, podem utilizar a tecnologia para proporcionar-lhes armas cada vez mais poderosas à sua causa. (PERSSON; SAVULESCU, 2017). Aqui localizamos um ponto de encontro explícito entre a proposta dos eticistas e do filósofo alemão anteriormente comentado. Em uma passagem, Sloterdijk cita: Basta que tenhamos a noção de que as próximas grandes etapas do gênero humano serão períodos de decisão política quanto à espécie. Nelas se revelará se a humanidade ou suas elites culturais conseguirão pelo menos encaminhar procedimentos efetivos de autodomesticação. Na própria cultura contemporânea trava-se uma luta titânica entre os impulsos domesticadores e os bestializadores, e seus respectivos meios de comunicação. Seria surpreendente a obtenção de sucessos mais significativos no campo da domesticação, diante de um processo de civilização em que uma onda desinibidora sem precedentes avança de forma aparentemente irrefreável. Se o desenvolvimento a longo prazo também conduzirá a uma reforma genética das características da espécie – se uma antropotecnologia futura avançará até um planejamento explícito de características, se o gênero humano poderá levar a cabo uma comutação do fatalismo do nascimento ao nascimento opcional e à seleção pré-natal – nestas perguntas, ainda que de maneira obscura e incerta, começa a abrir-se à nossa frente o horizonte evolutivo. (SLOTERDIJK, 2000, p. 46-47). Nesta passagem de Sloterdijk, nota-se tanto a questão dos impulsos desinibidores que provocam violência, quanto à perspectiva da manipulação genética.4 Persson e Savulescu são mais incisivos e, diante da inaptidão dos métodos tradicionais de moralização, sugestionam a alternativa do biomelhoramento moral: Nós poderíamos nos tornar moralmente mais motivados, moralmente melhorados, por meio de uma aplicação mais completa dos métodos tradicionais de educação moral. Porém, como já apontado, esses métodos parecem ter tido um sucesso muito modesto durante o último par de milênios. Nós sugerimos, então, que deveríamos investigar se nosso crescente conhecimento de biologia, especialmente genética e neurobiologia, poderia fornecer técnicas suplementares de melhoramento moral, tais como drogas farmacêuticas ou modificações genéticas. (PERSSON; SAVULESCU, 2017, p. 26). No século XXI, a humanidade passa por um panorama sem igual em sua História, e os métodos clássicos, conforme apontado pelos três autores, não conseguem sozinhos suprir esta demanda. A partir desta premissa, analisaremos o biomelhoramento moral como uma alternativa ao humanismo literário, na função de 106 contenção das influências bestializadoras e um meio de evitar um desastre global. 8.1 O bio melhoramento moral, como antropotécnica, é capaz de superar o humanismo? Após uma análise dos problemas enfrentados pela humanidade do início do século XXI, Persson e Savulescu propõem a alternativa do bio melhoramento moral, não como a solução exaustiva de todos os problemas, mas como mais uma possibilidade no rol que os humanos têm à sua disposição. O principal problema é que dispomos de pouco tempo, pois com o aumento da violência e disseminação de grupos extremistas, capazes de fazer uso de alguma arma de destruição em massa que gere o Dano Último e a constante degradação ambiental, que provoca uma mudança climática antropogênica, pode-se chegar a um nível que impeça qualquer reversão ao momento anterior. Os referidos autores citam que, devido àquelas características citadas anteriormente, em especial nossa insensibilidade ao sofrimento de grandes grupos de pessoas, frágil senso de responsabilidade por omissões e contribuições coletivas, é necessário questionarmo-nos até que ponto o melhoramento moral pode ser atingido, a partir de métodos tradicionais de educação moral (2017). Fonte: obviousmag.org Esta distância entre os métodos tradicionais de educação moral e tecnologia 107 fica evidente ao compararmos o que desenvolvemos moralmente ao longo da História humana e o rápido progresso da tecnologia nos últimos anos. Os autores abordam a tese trabalhada por Steven Pinker,5 que argumenta sobre poderes de razão melhorados nos levariam a ter melhores engajamentos morais. Contudo, a confrontam sob a perspectiva de que apenas uma razão aprimorada não é o suficiente para que os humanos ajam moralmente bem, pois é indispensável melhorarmos também uma maior solidariedade e senso de justiça para lidarmos com a mudança climática antropogênica, levando em consideração gerações futuras e animais não humanos (2017). Portanto, os autores partem da ideia de que, ao melhorarmos o altruísmo humano e o senso de justiça, melhoraríamos nossas ações. Sua tese do bio melhoramento moral é fundamentada na premissa de que tais traços possuem uma origem biológica, diante dos dados identificados na análise do comportamento de animais não humanos, como os chimpanzés estudados pelo primatologista holandês Frans de Waal e em estudos do comportamento de gêmeos idênticos humanos, em comparação com gêmeos não idênticos do economista Bjorn Wallace. Persson e Savulescu não descartam a tradição clássica do ensino moral do humanismo; eles buscam justamente uma maneirade torná-la mais eficiente. A sua análise lembra a ideia de acrasia tratada por Aristóteles, e o exemplo citado por eles inclusive lembra um incontinente,6 conforme comentam: Educação ou instrução sobre o que é moralmente bom não é suficiente para o melhoramento moral porque ser moralmente bom envolve não apenas saber o que é bom, mas também ser tão fortemente motivado para fazê-lo, que isso prevalece sobre tendências e impulsos egoístas, nepotistas, xenofóbicos, etc. Uma comparação instrutiva poderia ser quando pessoas que, mesmo sabendo muito bem que não devem fumar ou comer alimentos doces e gordurosos porque são prejudiciais à sua saúde, ainda assim o fazem devido à falta de força de vontade. (2017, p. 170). A tese é de que mesmo sabendo o que é agir moralmente bem, as pessoas não o praticam por impulsos que não conseguem controlar. Retomando Aristóteles, com o biomelhoramento moral seria possível tornar um incontinente no mínimo em um continente, o que também pode ser vislumbrado ao analisarmos outras virtudes e vícios. Persson e Savulescu entendem que os humanos conseguem passar uma grande quantidade de conhecimento teórico de uma geração à outra. Contudo, o desenvolvimento moral ao longo de uma vida é em grande parte perdido, sempre que os agentes morrem (2017). Em um âmbito prático, Persson e Savulescu citam experimentos com agentes 108 químicos que alteram o comportamento humano. Os autores trazem como exemplos o uso de Inibidores Seletivos de Recaptação de Serotonina (ISRSs) e dos níveis de oxitocina e como isso afeta a cooperação em grupos (visando justamente à questão do altruísmo e do senso de justiça). Uma objeção comum ao uso de tais substâncias para modificar o comportamento humano é de que tal ato prejudica a liberdade dos agentes. Esta crítica é abordada pelo eticista Thomas Douglas, em seu artigo “Aprimoramento moral”, em que cita que mesmo nesta circunstância não há problema algum se o sujeito optou de forma autoconsciente passar pelo melhoramento moral, sabendo de suas consequências, bem como esta suposta diminuição de liberdade na realidade diminui o impulso do “eu bruto” e fortalece o “eu verdadeiro”. (DOUGLAS, 2012, p. 29- 30). Nesta perspectiva, o indivíduo não moralmente melhorado está mais sujeito a impulsos; ao decidir por melhoramento, poderá ter acesso ao seu eu verdadeiro, uma autonomia em seu sentido de ser, capaz de impor-se uma norma. Persson e Savulescu possuem uma argumentação semelhante: Sob nosso ponto de vista, aqueles que passarem pelo biomelhoramento moral agirão pelos mesmos motivos pelos quais agem atualmente aqueles dentre nós que são mais morais, e a noção de que é “impossível” que eles façam o que percebem como imoral será a mesma para os melhorados moralmente e para a pessoa virtuosa comum: algo que é psicológica e motivacionalmente fora de questão que eles escolham.[...] É um erro acreditar que pessoas que são moralmente boas por natureza sempre tentam fazer o que julgam ser o certo são necessariamente menos livres e menos responsáveis do que aqueles dentre nós que falham nisso com frequência. Assim como as pessoas moralmente virtuosas não fazem compulsivamente o que acreditam ser correto, da mesma forma, os melhorados moralmente não irão fazer compulsivamente o que eles acreditam ser correto. (PERSSON; SAVULESCU, 2017, p. 164-165). Portanto, não há uma limitação de liberdade, mas ao contrário, há um aumento desta. A pessoa melhorada alcançaria um nível moral mais elevado, a ponto de poder optar por agir virtuosamente, sem, contudo, agir de forma rígida e necessária. Estas perspectivas vêm de encontro ao trabalhado por Sloterdijk, em relação à autodomesticação do ser humano. O indivíduo poderá optar por abandonar as tendências desinibidoras bestiais e seguir por um caminho humanizante, através das escolhas por mídias inibidoras, conforme descreve: Mas o que se diz com isso é que a humanidade consiste em escolher, para o 109 desenvolvimento da própria natureza, as mídias domesticadoras, e renunciar às desinibidoras. O sentido dessa escolha de meios consiste em desabituar- se da própria bestialidade em potencial, e pôr distância entre si e a escalada desumanizadora dos urros do teatro. (SLOTERDIJK, 2000, p. 19). Ao optarmos por meios inibidores e abri mão dos desinibidores, tornamo-nos humanos. Enquanto for uma ação autodeterminada, a opção pelo bio melhoramento moral pode ser uma antropotécnica a ser utilizada como um substituto ao humanismo literário. Fonte: slideplayer.com.br A aproximação entre o pensamento do filósofo Sloterdijk e dos eticistas Persson e Savulescu mostrou-se possível. Mesmo que Sloterdijk não defenda o bio melhoramento moral, sua tese prevê espaço para tal antropotécnica, e ainda que Persson e Savulescu façam uma abordagem distinta da hermenêutica, os temas se cruzam em suas conclusões. É importante ressaltar que nenhum dos autores se opõe ao humanismo como possibilidade moralizante, contudo reconhecem que os métodos tradicionais não estão sendo capazes de conter os ímpetos humanos, em uma sociedade globalizada de bilhões de pessoas. Assim, o espaço para as antropotécnicas está disponível. A hipótese inicial foi demonstrada como plausível; contudo, surgem novas 110 questões a partir disso. Ao abrirmos a possibilidade de modificarmos nossas reações naturais de forma dirigida a questões morais, em que ponto se torna moralmente discutível tal mudança? Nesse sentido existe a possibilidade clara de modificarmos o que consideramos como moral, e com esta mesma tecnologia modificar drasticamente a natureza humana. O biomelhoramento moral e o melhoramento humano em geral permanecem como questões em aberto e que necessitam ser profundamente trabalhadas diante da velocidade como a tecnologia aprimora-se a cada dia, ampliando cada vez mais a possibilidade de modificação dos humanos por eles mesmos4. 9 INDIVIDUAÇÃO DO SI: UMA LEITURA MARIONIANA DE LEVINAS A discussão que circunda a filosofia pós-moderna consiste na urgência de se repensar e de se redefinir o conceito moderno de subjetividade. Tal fato é acentuado quando nos deparamos com a decadência das dimensões filosóficas que sustentavam uma forma de pensar a subjetividade, principalmente a do conatus espinosano, do cogito cartesiano, do sujeito universal kantiano ou, ainda, da consciência intencional husserliana e do Dasein heideggeriano. Parece-nos que as perguntas: O que é o eu puro ou o que define o sujeito transcendental ainda se apresentam como questões plausíveis para o debate filosófico contemporâneo, pois estamos ainda distantes de chegar a um consenso teórico diante dessas interrogações. Para além da falta de consenso ainda temos os horrores da Primeira e Segunda Guerra Mundial, mais as barbáries que vivenciamos em nosso século, que parecem conclamar uma nova abordagem daquilo que tornaria o eu, elemesmo (soi-même). O eu, enquanto estrutura universal da subjetividade, revela-se como um elemento insuficiente para a determinação de sua individualidade, porquanto tal expressão designa uma subjetividade geral, ou seja, um eu compreendido como uma entidade abstrata, que realiza atos singulares de consciência, comuns a qualquer eu. Jean-Luc Marion, filósofo contemporâneo de nacionalidade francesa, investiga essa temática parecendo, em certa medida, apropriar-se do pensamento fenomenológico exposto por Emmanuel Levinas. A partir disso, almejamos neste artigo apresentar, de forma introdutória, alguns 4 Texto extraído: www.ucs.br 111 aspectos centrais da leitura de Marion do pensamento de Levinas sobre a individuação do si, pautados, especialmente, no artigo marioniano intitulado D’autrui á l’individu3 (2000). Logo, não está em nosso horizonte de investigação, nesse instante,fazer uma análise mais detalhada da relação teórica e/ou epistemológica existente entre esses autores, mas, somente, introduzir alguns tópicos que parecem ecoar, posteriormente, no projeto filosófico de Marion. Retroagimos as obras de Levinas a partir das indicações realizadas por Marion em seu artigo, consequentemente, as que se destacaram foram: Totalidade e infinito4 (1971); Outramente que ser ou mais além da essência5 (1974); e O tempo e o outro6 (1980). O estudo de tais livros se revela fundamental, dentre outros motivos, pela abordagem que apresentam da individuação do si. Buscando romper com o primado do mesmo ou do anonimato do ser, temos, em Levinas, uma abordagem filosófica que apresenta a alteridade como ponto principal da individuação do si. Nesse aspecto, a filosofia da egologia (Descartes), da intencionalidade (Husserl) e da ontologia (Heidegger) são convidadas a dividir e, em partes, ceder seu espaço para a filosofia do acusativo (Levinas) e do dativo (Marion). Quando optamos por reconhecer uma relação de alteridade entre o eu e o outrem, ultrapassando a subordinação do diferente, do singular ao mesmo, deparamo- nos, de maneira especial, com o pensamento levinasiano e marioniano. No contato inicial com esses autores, somos convidados a repensar algumas questões centrais que envolvem a individuação do si, tais como: a) Qual proposta de individuação do si que emerge quando abandonamos o imperativo universal – “tu não matarás”?; b) Para que o si consiga relacionar-se com o outro, em sua alteridade, esse outro não teria que se apresentar para além ou para aquém do mandamento moral?; c) Seria possível ordenar ao si que ame seu próximo, sem recorrer a lei universal apresentada por Levinas? Romper com a filosofia do mesmo enfatizada na tradição europeia ou no modo de filosofar ocidental, onde o mesmo antecede ao outro, onde o princípio da egoidade do eu fecha-se numa atividade solitária de um eu pensante sem abertura para a heteronomia, torna-se o objetivo daqueles que buscam pensar a filosofia para além dos paradigmas modernos estabelecidos. Voltar-se para o estudo do eu encarnado (Gabriel Marcel; Michel Henry, entre outros) também se mostra como um outro caminho possível para pensar a relação do eu com a diferença, com o irredutível. O 112 outro apresenta-se como excesso, inadequação da estrutura intencional ou ontológica do eu, não permitindo sua dominação, sua significação. O eu não pode conter o outro, pois o outro está para além do eu. 9.1 Individuação do Si Marion interessa-se, inicialmente, pela leitura apresentada por Levinas, na obra O tempo e o outro, da individualização do si através da finitude e do encontro com o outro. Almejando romper com o primado do mesmo, Levinas delineia um caminho distinto do cogito ou do conatus – pensamentos filosóficos que revelam um eu anônimo e impessoal – para pensar o eu. A constituição do si se dá através do instante da presença, do aqui e do agora. Fonte: paramais.com.br O sofrimento, que atravessa o si no instante presente, revelar-se-ia como a impossibilidade do si de se separar do instante da existência, ou seja, uma “impossibilidade de recuo” do momento atual. O si, ao perceber-se sofrente, tornar- se-ia enraizado naquela situação, sendo forçado a retirar-se do seu anonimato, defrontando-se com a “impossibilidade de fugir do existir”.8 A existência clama por sua presença, por seu engajamento no mundo. Consequentemente, seria no sofrimento que o si apareceria, revelando-se enquanto aquele que sofre. A diacronia, o momento 113 presente da existência, não permitiria uma tematização da vivência, um depois. Marion esclarece isso ao dizer que “no sofrimento, o existir perde sua objetividade e sua indiferença às pessoas – ele se torna o meu, insubstituível, inesquivável, individuante [...]” O sofrimento do si apresentaria uma individuação originada na/da existência. Contudo, o sofrimento que tornaria possível a individuação poderia ser evitada, tratada ou até mesmo findada na morte? Para Marion sim, a individuação oportunizada no sofrimento seria imperfeita ou, ainda, a sua perfeição descumpriria a individuação, pois, quando o sofrimento atinge seu ápice, acaba por levar o sujeito à morte. De outra forma, podemos dizer que o si, para manter-se si, teria que permanecer na condição de sofrente. No entanto, seria somente a individuação do si enquanto sofrente que encontraríamos na diacronia? A relação face a face, que ocorre no momento presente, seria suficiente para individuar o si sem reduzir o outro a um fenômeno da consciência do mesmo? Para Levinas, na relação face a face, o outro não aparece enquanto um mero existente entre outros existentes; todavia, seria retirado de seu anonimato e assumido como outrem na sua existência. Outrem, na relação face a face, tornar-se-ia acessível ao eu, não reduzido, revelando-se em partes. Revelar-se significa apresentar-se ao outro, aparecer enquanto mistério, isto é, um aparecer incompleto, impossibilitado de totalidade. Outrem, ao não se revelar por completo, guardaria em si a possibilidade de surpreender todo aquele que tenta objetivá-lo ou reduzi-lo a um mero significado da consciência. Para Levinas, a relação entre o eu e outrem é permeada por um enigma, em que a distância é também proximidade, uma vez que “a relação com outrem é ausência do outro”12 ou, ainda, ausência do outro que permite precisamente a sua presença como outro. Ausência que não é ausência e presença que não é presença, relação enigmática ou paradoxal, que permitiria o encontro entre os diferentes sem a redução ao mesmo. Esta situação onde o acontecimento chega a um sujeito que não o assume, que não pode nada poder a seu respeito, [sc. como no caso do sofrimento e da morte], mas onde, entretanto, ele está em face dele [sc. ao contrário da morte] de um certo modo é a relação com outrem, o faceà-face com outrem, o encontro de um rosto que, ao mesmo tempo, dá e rouba outrem. Deparamo-nos, assim, com uma forma de relação entre o eu e outrem que não 114 violaria o mistério do outro, a possibilidade de manter-se desconhecido, como também não o reduziria à leitura de um eu enquanto alter ego – um outro eu. O outro é aqui entendido como aquilo que “eu não sou”. O outro, quando assumido na relação face a face, é um mistério inalienável ao mesmo. 115 REFERÊNCIA Bibliografia Básica ARISTÓTELES. Metafísica. Bauru: EDIPRU, 2006. ______. Introdução à metafísica. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1969. GUIRALDELLI JR., Paulo. Caminhos da filosofia. Rio de Janeiro: DP&A, 2005 Bibliografia Complementar KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1978. LEIBNIZ. A monadologia e outros textos. São Paulo: Hedra, 2009. MACHADO, Roberto. Ciência e saber: a trajetória da Arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1988 MARCONDES, Danilo. Textos básicos de filosofia. Dos pré-socráticos a Wittgenstein. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. MARX, K. Teses contra Feuerbach. In: Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987c (Coleção Os Pensadores, v.1)