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Qual a concepção de direito para a filosofia clássica?

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Lia Busch

Aristóteles dizia que o homem é um ser eminentemente social, que precisa viver em sociedade e se relacionar com os seus semelhantes. A convivência social é uma forma de não viver completamente isolado, é o que proporciona a união entre os grupos de homens, o que é característica essencial da espécie humana.

Viver em sociedade é uma tarefa extremamente difícil, pois o tempo todo é necessário nos limitar para que não interfiramos no espaço e na conduta de nosso semelhante. Neste sentido o homem social se viu compelido a criar o Estado, para que esse determine os limites de nossa atuação.

A sociabilidade nem sempre é pacífica e a convivência em comunidade gera conflitos e divergências que necessitam de solução, para que seja restaurada a paz social e reestabelecida uma convivência minimamente harmônica.

O Estado ao tentar delimitar nossa atuação cria normas de conduta, de como devemos nos portar perante o próximo, limita nossa liberdade com vistas a um bem maior, que seria a pacificação social, uma ordem social necessária para uma vida em sociedade.

Assim, nasce o Direito, podendo inicialmente ser entendido como um conjunto de normas que visam garantir a manutenção da paz social, que luta pela convivência harmônica e pelo bem estar coletivo, visando sempre a justiça social.

Preliminarmente, o Direito busca reestabelecer a harmonia social, interferindo diretamente nas condutas humanas, pondo limites à atuação do homem, seja através da imposição de obrigações, seja através de punições. O Estado, pessoa jurídica de Direito Público, politicamente organizado, cria através do Direito, princípios reguladores da vida em sociedade.

Roberto Lyra Filho[1], afirma que “A maior dificuldade, numa apresentação do Direito, não será mostrar o que ele é, mas dissolver as imagens falsas ou distorcidas que muita gente aceita como retrato fiel”.

Este Insigne Mestre demonstra que se procurarmos a palavra que mais frequentemente é associada a Direito, nos deparamos com a lei, começando pelo inglês, em que law designa as duas coisas, Direito e lei propriamente dita. Mas já deviam servir-nos de advertência, contra esta confusão, as outras línguas, em que Direito e lei são indicados por termos distintos: lus e lex (latim), Derecho e léy (espanhol), Diritto e legge (italiano), Droit e loí(francês), Recht e gesetz (alemão), Pravo e zakon (russo), Jog e tõrveny (húngaro) e assim por diante.[2] Assim, podemos perceber que Direito e lei são coisas distintas, ou senão, podemos afirmar que a lei está inserida no Direito, sendo este último mais abrangente e amplo.

Devido a esta diversidade de sentidos os autores ingleses e americanos tem de falar em Right, e não Law, quando pretendem referir-se exclusivamente ao Direito, independente da lei ou até, se for o caso, contra ela (isto não significa, que o verdadeiro Right não possa ser um Direito legal, porém que ele continuaria a ser Direito, se a lei não o admitisse.[3]

Hart[4] evidencia que no estudo histórico das sociedades poucas perguntas causaram tamanha polêmica e foram tão debatidas como a pergunta “O que é o Direito?”, in verbis:

“Pocas preguntas referentes a la sociedad humana han sido formuladas con tanta persistencia y respondidas por pensadores serios de maneras tan diversas, extrañas, y aun paradójicas, como la pregunta “qué es derecho?”.

“No hay una vasta literatura consagrada a contestar las preguntas “qué es química?” o “qué es medicina?”, como la hay para responder a la pregunta “qué es derecho?”.

Tendo em vista os diversos conceitos de Direito formulados ao longo dos tempos, acabou-se por separar duas grandes correntes, onde se agrupam os principais conceitos de Direito.

O homem sempre seguiu regras, seja social, moral ou jurídica. Ele sempre se guiou através de regras de conduta, sendo essas regras divididas em duas correntes; a corrente do jusnaturalismo e a corrente do juspositivismo.

A corrente do jusnaturalismo defende que o direito é independente da vontade humana, ele existe antes mesmo do homem e acima das leis do homem, para os jusnaturalistas o Direito é algo natural e tem como pressupostos os valores do ser humano, e busca sempre um ideal de justiça.

O Direito Natural é universal, imutável e inviolável, é a lei imposta pela natureza a todos aqueles que se encontram em um estado de natureza.

Ao contrário do que defende a corrente jusnaturalista, a corrente juspositivista acredita que só pode existir o Direito e consequentemente a justiça através de normas positivadas, ou seja, normas emanadas pelo Estado com poder coercivo, podemos dizer que são todas as normas escritas, criadas pelos homens por intermédio do Estado.

O Direito Positivo é aquele que o Estado impõe à coletividade, e que deve estar adaptado aos princípios fundamentais do direito natural. Neste sentido, RADBRUCH[5] explana que as leis naturais descrevem o mundo real e leis positivas criam um projeto de mundo melhor.

Jusnaturalismo

O jusnaturalismo se afigura como uma corrente jurisfilosófica de fundamentação do direito justo que remonta às representações primitivas da ordem legal de origem divina, passando pelos sofistas, estóicos, padres da igreja, escolásticos, racionalistas dos séculos XVII e XVIII, até a filosofia do direito natural do século XX[6].

A concepção jusnaturalista foi o resultado de transformações econômicas e sociais que impuseram mudanças na concepção de poder do Estado, que passou a ser compreendido como uma instituição criada através do consentimento dos indivíduos através do contrato social.

O declínio das relações feudais de produção, desenvolvimento econômico da burguesia, a reforma protestante, as revoltas camponesas e as guerras ocorridas durante o processo de formação do capitalismo propiciaram uma nova situação social. Em oposição aos privilégios da nobreza, a burguesia não podia invocar o sangue e a família para justificar sua ascensão econômica. 

Em outras palavras, a partir da secularização do pensamento político, os intelectuais do século XVII então, preocupados em buscar respostas no âmbito da razão como justificativa do poder do Estado. Daí a preocupação com a origem do Estado. Porém, não se tratava de uma busca histórica, mas sim de uma explicação lógica que justificasse a ordem social representada pelos interesses da burguesia em ascensão.

O jusnaturalismo moderno inicia sua formação a partir do século XVI. Tinha por escopo tal escola deixar para traz o dogmatismo medieval, bem como escapar do ambiente teológico em que se formou e desenvolveu.

Na fase jusnaturalista, os princípios ocupavam uma função meramente informativa (para valorar como certo ou errado, conforme a norma de direito positivo se conformasse ou não às diretrizes dos princípios), mas sem qualquer eficácia sintática normativa. Nesta fase os princípios jurídicos eram situados em esfera metafísica e abstrata, sendo reconhecidos como inspiradores de um ideal de justiça, cuja eficácia se cinge a uma dimensão ético-valorativa do Direito.

Tamanha foi a influência histórica da escola jusnaturalista que, já no século XIX, com o advento do Estado Liberal muitos dos preceitos seguidos pelos jusnaturalistas foram incorporados em textos escritos. Era a superação histórica do naturalismo.

Com base no magistério de Norberto Bobbio[7] podem ser vislumbradas duas teses básicas do movimento jusnaturalista. A primeira tese é a pressuposição de duas instâncias jurídicas: o direito positivo e o direito natural. O direito positivo corresponderia ao fenômeno jurídico concreto, apreendido através dos órgãos sensoriais, sendo, deste modo, o fenômeno jurídico empiricamente verificável, tal como ele se expressa através das fontes de direito, especialmente, aquelas de origem estatal. Por sua vez, o direito natural corresponderia a uma exigência perene, eterna ou imutável de um direito justo, representada por um valor transcendental ou metafísico de justiça.

A segunda tese do jusnaturalismo é a superioridade do direito natural em face do direito positivo.  Neste sentido, o direito positivo deveria, conforme a doutrina jusnaturalista, adequar-se aos parâmetros imutáveis e eternos de justiça. O direito natural enquanto representativo da justiça serviria como referencial valorativo (o direito positivo deve ser justo) e ontológico (o direito positivo injusto deixa de apresentar juridicidade), sob pena da ordem jurídica  identificar-se com a força ou o mero arbítrio. Neste sentido, o direito vale caso seja justo e, pois, legítimo, daí resultando a subordinação da validade à legitimidade da ordem jurídica.

O jusnaturalismo tem como seus principais pensadores grandes nomes da filosofia mundial, dentre eles: Tomás de Aquino, Francisco Suárez, Richard Hooker, Thomas Hobbes, Hugo Grócio, Samuel Von Pufendorf, John Locke e Jean-Jacques Rousseau[8], que exerceu uma influência profunda no movimento do racionalismo jurídico do século XVIII, quando surge a noção dos direitos fundamentais, no conservadorismo, e no desenvolvimento da common lawinglesa.

Juspositivismo

Corrente de pensamento, surgida no séc. XVII, que negava a racionalidade divina como legitimadora do poder despótico e tomava os direitos individuais como centro de referência da organização social. Esta corrente toma como Direito somente o que é ditado pelas Leis.

O positivismo jurídico proclama suposta identidade entre Direito e Estado. A norma centraliza a ocupação do jurista, e toda a reflexão estranha ao entorno especificamente normativo ficaria relegada a outros campos de preocupações epistêmicas.

Na obra de Austin o comando do Estado ganha contornos de ordem definitiva, como ato de vontade, cujo cumprimento não se discute. Em Bentham[9], a codificação entroniza o comando estatal, na mira da maior felicidade para o maior número de pessoas. A escola de exegese francesa cogitou de um legislador que tudo prevê, justificando-se a infalibilidade dos textos legais, a exemplos dos códigos, que então proliferavam.

A tradição iluminista, plasmada em Montesquieu, reservava ao magistrado o cumprimento do comando do legislador, mandatário do povo, detentor do poder. Max Weber primou pela objetividade e pela neutralidade do observador, conceitos que dinamizaram o positivismo jurídico. Kelsen[10] elevou o positivismo jurídico, fornecendo teorização robusta que se dizia defensora de um direito puro de influências políticas e de preocupações sociológicas. Hart[11] releu o positivismo, repensando Austin, a quem imputou reverência de discípulo. Desta feita, Hart defende sua posição positivista frente a críticas naturalistas contra as ideias de Austin, vejamos:

Estos hechos sugieren el punto de que el derecho es entendido mejor como una “rama” de la moral o de la justicia y que es su congruencia con los principios de moral o justicia, y no el hecho de que constituye un cuerpo de órdenes y amenazas, lo que hace a su “esencia”. Esta es la doctrina característica no sólo de las teorías escolásticas del derecho natural sino de cierta teoría jurídica contemporánea que critica al “positivismo” jurídico heredado de Austin. Sin embargo, también aquí las teorías que llevan a cabo esta estrecha asimilación del derecho a la moral, con frecuencia parecen confundir, en último término, uno y otro tipo de conducta obligatoria, y dejar un lugar insuficiente para las diferencias de especie entre las reglas morales y las jurídicas y para las divergencias en sus requerimientos.”

Para o positivismo, Direito é apenas o sistema de normas e regras, válidas, positivadas, escritas e criadas por uma autoridade competente, relegando a segundo plano outras preocupações como a moral e as leis naturais.

A corrente positivista sofreu várias críticas após a segunda grande guerra e todas as atrocidades praticadas por Hitler e o Terceiro Reich. Hitler justificou sua subida do poder e todos os absurdos praticados, com base na linha de raciocínio positivista, vez que o Direito escrito, positivado, não haveria mais o que se discutir, era um Direito justo.

Em decorrência de tais atitudes fala-se no cambio da visão de Radbruch, o qual antes da Segunda Guerra Mundial era um defensor do Positivismo Jurídico e, após tantas barbaridades, alguns afirmam que mudou de posição, partindo para ideias que se assemelham mais com a  corrente naturalista.

No prólogo de sua obra Arbitrariedade Legal y Derecho Supralegal[12] comenta María Isabel Azaretto de Vásquez:

“A experiência nacionalsocialista produz uma tal impressão nele, que o obriga a repensar seu anterior positivismo, e esta reflexão o leva a rechaçá-lo, já que vê na separação do direito e da moral a base em que se apoiou o nazismo para levar a cabo, sob a aparência de legalidade, as maiores injustiças. A formação positivista dos juízes e advogados os inabilitou para defender-se contra a legalidade injusta. Isto leva a Radbruch a sustentar que uma lei que contrarie os princípios básicos da moralidade não é direito, ainda que seja "formalmente válida".”

Os positivistas não consideram os conhecimentos ligados às crenças, superstição ou qualquer outro que não possa ser comprovado cientificamente. Para eles, o progresso da humanidade depende exclusivamente dos avanços científicos.

A corrente positivista é, em grande parte, responsável pela Proclamação da República no Brasil. De acordo com VALENTIM[13]:

"A partir da segunda metade do século XIX, as ideias de Augusto Comte permearam as mentalidades de muitos mestres e estudantes militares, políticos, escritores, filósofos e historiadores. Vários brasileiros adotaram, ou melhor, se converteram ao Positivismo, dentre eles o professor de matemática da Escola Militar do Rio de Janeiro Benjamin Constant, o mais influente de todos. Tais influências estimularam movimentos de caráter republicano e abolicionista, em oposição à monarquia e ao escravismo dominante no Brasil. A Proclamação da República, ocorrida através de um golpe militar, com apoio de setores da aristocracia brasileira, especialmente a paulista, foi o resultado “natural” desse movimento".

O lema Ordem e Progresso na bandeira do Brasil é inspirado pelo lema de Auguste Comte do positivismo: “L'amour pour principe et l'ordre pour base; le progrès pour “ ("Amor como princípio e ordem como base; o progresso como meta"). Foi colocado, pois várias das pessoas envolvidas no golpe militar que depôs a monarquia e proclamou o Brasil República eram seguidores das ideias de Comte.

Direito, Moral e Justiça.

Evidente que não se pode desvincular totalmente a moral do Direito, na verdade o Direito nasceu de uma fortíssima base moral. Tal assertiva é de fácil constatação quando buscamos na história do Direito suas bases canônicas, época em que Direito, Estado e Igreja eram intimamente ligados, por vezes sendo um só.

“Teria sido o desenvolvimento do Direito influenciado pela Moral? A resposta a esta pergunta é, obviamente, sim, o que não implica, de modo algum, que uma resposta também afirmativa não possa ser dada à pergunta inversa: Foi o desenvolvimento da Moral influenciada pelo Direito?”. [14]

A moralidade parece mais invocar um mandamento religioso do que atrelado ao Direito. Buscar como base única, ou mesmo como base principal do Direito apenas a moral é restringir o Direito, ou retroceder ao direito oriundo da Igreja, ditado duramente pelos estados despóticos e utilizando-se do manto da religião para se legitimar.

As regras costumeiras, bem como a moralidade trazem aquilo que sempre ocorreu no passado e por isso se tornam legítimas para continuar ocorrendo no presente e futuro. Todavia, a moralidade trazida pelos costumes antigos crítica com veemência novos modos liberais que inovam ao agir.

O Direito e sua moralidade só existem e são mensuráveis quando aplicados ao caso concreto. Diferente disto, o direito torna-se apenas regras abstratas.

A moral está no homem e não nas coisas, assim só é possível se averiguar a existência da moralidade de um determinado Direito no caso concreto, quando este efetivamente é aplicado ao homem.

Assoa, ou mesmo para determinada sociedade, pode apresentar-se como uma enorme injustiça, variando de acordo com os costumes de cada local.

“Também se pode lembrar, a propósito, o renomado Goethe. Em 22 de Janeiro de 1811, após a leitura de uma “História Comparada do Sistema Filosófico”, escrevia a Reinhard: “na leitura dessa obra percebo novamente aquilo que o autor expressa com toda a clareza: a diversidade nos homens se funda nos diferentes modos de pensar, e exatamente por isso é impossível uma mesma convicção uniforme.”[18]

Com tal declaração Radbruch demonstra a impossibilidade de se filiar a rótulos pré-concebidos, como positivismo ou naturalismo, pois o Direito é local e aplicado ao caso concreto, impossibilitando de se criar teorias gerais e superficiais que abarcam o Direito em toda a sua plenitude.

Obviamente o Direito busca abarcar o maior número de pessoas possível visando promover a Justiça, no entanto, tem-se consciência que a unanimidade do Direito é utópica, servindo apenas como um norte, uma meta, inalcançável, contudo que deve sempre se seguir.

 

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