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Como o pensamento de Hugo Grócio e Samuel Pufendorf superou a visão jusnaturalista de Santo Agostinho e Tomás de Aquino?

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Giovana Soares Carneiro

O direito natural, ou jusnaturalismo, supõe a existência de um direito universal, estabelecido pela natureza. Seu fundamento é o da lei natural, e não o da lei humana, que rege os acordos e contratos sociais. A lei natural corresponde à physis (natureza), embora, ao longo do tempo, sua própria noção tenha sofrido mudanças que a fizeram passar da esfera natural para a esfera humana, social ou moral. De qualquer forma, o direito natural se contrapõe ao direito positivo, aquele legitimado pelas leis estabelecidas por uma determinada sociedade.

No pensamento jusnaturalista existem correntes distintas, contudo todas manifestam a convicção de que, além do direito regulamentado pelas leis humanas, há uma ordem superior que corresponde à expressão do direito justo. Essa seria a "lei verdadeira", de acordo com a razão universal e imutável da natureza. São Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Hugo Grócio (ou Grotius) e Samuel von Pufendorf foram alguns dos principais estudiosos da teoria do direito natural. Na Idade Média, o jusnaturalismo adquiriu cunho teológico, com base nos princípios da inteligência e da vontade divina; segundo essa concepção, as leis seriam reveladas por Deus. São Tomás de Aquino foi o principal representante dessa corrente, no qual advém que o postulado cristão emerge como religião privilegiadora do aspecto humanitário, com caráter universal, não estando centrada em um único povo, pois preceitua atingir a todos indistintamente. 

Historicamente, o direito divino como fonte do direito natural na filosofia medieval, têm como defensores principais Santo Agostinho e São Tomas de Aquino. No jusnaturalismo teocêntrico, a fonte reveladora agora é Deus, e o direito que não fosse conforme jusnaturalismo, ou não seria direito ou seria nulo. A filosofia patrística, que dentre outros nomes da igreja destaca Santo Agostinho como um dos expoentes, pregava a existência de uma lei natural fundada em Deus, universal e imutável: a supremacia da Igreja sobre o Estado, para quem a cidade terrena é do pecado, civitas impiorum, em contraposição a cidade de Deus, civita Dei. Foi Santo Agostinho quem primeiro idealizou aquilo que ele chamou de lex aeterna, não como uma concepção da reta razão humana, mas sim como uma concepção divina, obra de Deus. Se Santo Agostinho era um admirador de Platão, outro doutor da Igreja cristianizou a filosofia aristotélica. Trata-se de São Tomás de Aquino, o "Doutor Angélico". Foi com a doutrina escolástica que São Tomás de Aquino conciliou a filosofia de Aristóteles com os dogmas da Igreja. São Tomás de Aquino considerava a Igreja superior ao Estado, mas também relevava a importância da relação entre ambos, pois sendo o homem um ser social obrigado a viver no Estado, deveria este propiciar os meios de realização de uma convivência voltada para o bem-estar comunitário. Foi o grande conciliador da razão com a revelação, ou seja: da filosofia pagã, especialmente a aristotélica, com os dogmas da Igreja.

 No jusnaturalismo antropocêntrico, com efeito, já é então o homem que vem assumir o papel de criador de todo o direito, porém, ainda com respaldo em algo que não é tão somente sua vontade livre (positivismo). Era o homem, sobretudo, libertando-se das imposições místicas. No fim do século XIV, tem-se o renascimento marcado pelo homocentrismo em contraposição ao teocentrismo da Idade Média. O homem voltou a ser, a exemplo do que pregavam os sofistas, a medida de todas as coisas. Em face dessa radical transformação, o direito natural sofreu um processo de acentuada laicização, desenvolvendo-se, a partir de então, uma corrente de pensamento jusnaturalista que enaltecia a supremacia da razão humana. É curioso observar que, ainda que involuntariamente, a filosofia escolástica de São Tomás de Aquino contribuiu para ocorrência desse fenômeno, já que pela razão o homem poderia tomar conhecimento do direito natural, conforme a Lex Naturalis concebida por ele. Essa nova tendência de laicização do direito natural, e até certo ponto de profanação, ganhou projeção com Hugo Grócio que, por intermédio da Escola de Direito Natural, rompe com o pensamento jusnaturalista escolástico e proporciona o desenvolvimento da ciência jurídica, à medida que defende o direito como fenômeno que se origina na razão humana, e não em forças de origem divina ou super-humana, trazendo, assim, o direito para o mundo terreno, conferindo-lhe status de realidade criada pelo homem e para o homem.

O pensamento jusnaturalista de Grócio, considerado o primeiro grande teórico do direito natural moderno, consistia em conceber o direito natural de forma independente da existência de Deus; era a ruptura com os princípios teológicos da patrística e da escolástica bem como uma profanação, o que não teria agradado o pensamento da Igreja. Deus passou a ser visto como parte integrante da natureza de onde também o direito natural provém, este último em razão da natureza social do homem, sendo um ditame da razão reta e que indica o que convém e não convém, de acordo com a razão e a natureza de cada um. Embora admitindo que as leis fossem estabelecidas conforme interesses pessoais, Grócio acreditava que elas poderiam ser benéficas para as partes envolvidas. Ele rompeu com a fundamentação teológica e dividiu o direito em duas categorias: o jus voluntarium, que decorre da vontade divina ou humana, e o jus naturale, oriundo da natureza humana, derivada de sua tendência inata de viver em sociedade, conforme a concepção aristotélica. Grócio concebia a soberania como um corpo perfeito de pessoas livres, reunidas em busca do bem comum, e o direito natural como sinônimo de direito universal, ou seja, aquilo que não muda, que é fundamental aos seres humanos em qualquer época. O direito natural, portanto, seria para ele um fundamento para todos os seres humanos, o ditame da razão; e o senso social, a fonte do direito. 

Foi Samuel von Pufendorf quem inicia a elaboração das bases metodológicas de um sistema jusnaturalista autônomo, baseado no racionalismo e no individualismo. Em sua obra principal, De iure naturae et gentium libri VIII (1672), Pufendorf elabora um sistema racional e livre dos dogmas religiosos, alicerçado na dedução e na observação. Para ele, os princípios do direito deveriam ser estabelecidos pelo método científico e para que o conhecimento jurídico o fosse, dever-se-ia apresentar-se de forma neutra no sentido de não poder emitir qualquer juízo de valor acerca da opção adotada pelo órgão competente para a edição da norma jurídica. Pufendorf foi representante da transição do jusnaturalismo grociano para o iluminismo setecentista. Foi influenciado por Hobbes em sua produção sobre o Direito das Gentes, pois o concebeu como direito interestadual, que, como o direito natural, emana da razão, defendendo o princípio da igualdade dos Estados. O Estado (ou a vida civil) é condição indispensável para a conservação do gênero humano, pois é a única forma de permitir que o homem se desenvolva e se aperfeiçoe. E isso se dá mediante um pacto, o contrato social, isto é, os homens obrigam-se uns para com os outros a juntar-se em um corpo único e perpétuo e a regular de comum acordo o que respeita a sua conservação e segurança. A este contrato, que dá origem a um rudimento de Estado, acresce um segundo contrato (decreto) destinado a fixar a forma de governo. Finalmente, pelo pacto da sujeição, os indivíduos conferem autoridade a uma ou mais pessoas as quais se obrigam a zelar pelo interesse público em troca de obediência. Portanto, os homens dão origem ao poder pelo pacto da sujeição, visto que antes desse pacto não há Estado nem governo, e essa competência para criar um governo vem de Deus, como autor da lei natural. 

 

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