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Georgia Garcia

O humanismo ateu de Niels Lyhne

Romance de Jacobsen se aproxima da família a que pertencem certos personagens de Dostoiévski

por Benedito Nunes

Por certos aspectos biográficos de seu personagem, "Niels Lyhne", de Jens Peter Jacobsen, livro de cabeceira de Rainer Maria Rilke, tem quase tudo de um "Bildungsroman" (romance de formação): a relação decisiva com amigos, os entrechoques amorosos, os ganhos ou perdas de conhecimento e afeição, traçam aí o perfil de uma vida em busca de si mesma. Segundo escreve Otto Maria Carpeaux, no ensaio que dedicou ao autor dinamarquês, esse perfil é nuançado, como atestam as grandes cenas de amor, de despedida e de morte que recortam a narrativa.
Cenas de amor: Niels é um don Juan, mas suas conquistas amorosas levam-no ao fracasso. Cenas de despedida: as mulheres que ama se ausentam ou morrem. Cenas de morte: marcam as perdas afetivas ou mudanças de rumo numa busca sempre interrompida. A formação no romance equivale, nos seus vários episódios, a um processo de auto-educação, que tende a cumprir três metas, moral, cognoscitiva e poética, de que a narrativa constitui o sofrido roteiro.
"Nada ali é pequeno", dizia Rilke em "Cartas a um Jovem Poeta", a propósito desse romance. "O menor acontecimento desenrola-se como um destino e o próprio destino se desdobra como um tecido, amplo e magnífico, em que cada fio, conduzido por mão infinitamente doce, é preso e mantido por cem outros." Não obstante, Niels Lyhne não é um Wilhelm Meister, personagem de exemplar romance de auto-educação, em que as três metas apontadas, moral, cognoscitiva e poética, se alternam e se completam na formação de uma personalidade única . Então o comportamento ético, a criação artística e o domínio das ciências se harmonizam numa só forma de saber ou numa única forma de experiência de vida. Mas no romance de Jacobsen nenhuma daquelas finalidades se cumpre de maneira plena.
Niels teve na mãe, sonhadora, amante de poesia, a sua primeira mestra. E amou-a tanto quanto vai amar, na infância, uma tia, Edele, sua primeira grande paixão, cuja perda faz germinar nele a crise religiosa. A jovem Gerde, a quem se une, já no final da narrativa, e com quem terá um filho, é sua última paixão, antes de morrer em consequência de um ferimento, na guerra dos Ducados (1864), da qual participa como voluntário. 
O tecido amplo e magnífico da narrativa constrói uma atmosfera já pré-rilkiana, como na descrição de Copenhague aos olhos de Edele: "Parecia tão fantástica, cheia de atividade e de luz, com suas vidraças caiadas e seu perfume de frutas nas ruas; as casas tornavam-se irreais, e era como se sobre elas planasse um silêncio que o ruído dos carros e carroças não conseguia afugentar... Depois era o morno e sombrio salão à hora do crepúsculo, no outono, quando, vestida para ir ao teatro, ela esperava que os outros se aprontassem: o perfume de pastilhas queimadas, o fogo das lareiras iluminando o tapete...". 

Meta poética Nos romances de formação que nos oferecem a saga do nascimento do artista ou do poeta, como no "Retrato do Artista Quando Jovem", de Joyce, no "Doutor Fausto", de Thomas Mann, no "Wilhelm Meister", de Goethe, e mesmo nesse defectivo "Niels Lyhne", nuançado dentro do gênero, a meta poética prepondera. Nas quatro obras, o conhecimento orienta a conduta ética, ambos condicionados à criação artística e operando uma mudança na atitude religiosa dos personagens, da qual resulta uma crítica ou uma rejeição do cristianismo.
Wilhelm Meister tenderia para o universalismo religioso, Stephan abandonaria a fé católica, o doutor Fausto tornar-se-ia um místico panteísta. Niels Lyhne, poeta como aqueles três, adotou porém uma aguda forma de ateísmo, que o aproxima de outra família romanesca, aquela a que pertencem certas personagens de Dostoiévski, como Stravoguin e Kirilov, em "Os Demônios", e Ivan e Dimitri, em "Os Irmãos Karamazov".
É quase impossível delinear, de maneira suficiente, a figura do ateísmo moderno, tal como se implantou na cultura ocidental em fins do século 19. Insatisfatório seria defini-lo como pura antítese teórica do "theismo" cristão e do deísmo iluminista. Singularmente, o ateísmo desse período, que deixa incólume o deísmo iluminista, convertido numa hipótese, é uma rejeição prática do Deus da tradição hebraico-cristã, morto ou assassinado pelos homens. Nietzsche insiste, no parágrafo 25 de "A Gaia Ciência", na idéia de que a morte de Deus foi um assassinato: "Que aconteceu com Deus? , gritou (o homem louco). Vou dizer-vos! Nós o matamos -vós e eu! Somos todos seus assassinos! Como isso se deu? Como pudemos esvaziar o mar? Quem nos deu a esponja para apagar todo o horizonte? (...) Jamais houve ato mais grandioso...".
Para o ateísmo de nossa cultura, não se trata só de negar a existência de um Ser supremo, bom e misericordioso, pai e redentor dos homens. Rejeita-se essa existência, luta-se contra ela. Deus, portanto, não morreu por si. Nós é que não queremos que ele viva. O ateísmo se transforma no que Henri de Lubac (em "Le Drame de l" Humanisme Athée") chamou de antiteísmo. É o pensamento de Kirilov: não se quer que esse ser todo-poderoso exista. Se existe, o poder é todo seu. Se não existe, o poder é só do homem. Então façamos com que Deus não exista.
O ateísmo de Niels Lyhne se enquadra nesse tipo, mas com um componente otimista que faltou em Dostoiévski. O poder, que só ao homem pertence, será um poder libertário, usado em seu benefício próprio para torná-lo feliz. No dia em que a humanidade pudesse proclamar livremente que não há Deus, "nesse dia", dizia Niels Lyhne, "como por encanto serão criados um novo céu e uma nova terra... Só então o céu se tornará um espaço livre e infinito, em vez de ser o olhar ameaçador de um espião. Só então a terra será nossa e nós pertenceremos à terra -quando o mundo obscuro dos santos e dos condenados explodir como uma bolha de sabão... A imensa corrente que sobe atualmente para o Deus em que os homens crêem se espalhará pela terra quando o céu estiver vazio e tornará maiores e mais belas as virtudes humanas, com as quais temos enfeitado a divindade para torná-la digna de nosso amor: bondade, justiça, sabedoria e quantas mais".
O ateísmo, como tudo no romance de Jacobsen, é destino, mas destino decepcionante e decepcionado. Para salvar o filho gravemente enfermo e que acabará sucumbindo, Niels Lyhne pede a intervenção do Deus que assassinara. Mas assim mesmo morrerá ateu. "Teria sido tão bom ter um Deus a se queixar e suplicar." Mas esse destino desiludido do personagem, que se repetira em "O Drama de Jean Barrois", de Roger Martin Du Gard, já da cronologia do século 20, mas no qual o humanismo ateu também está em jogo, é que o liga à época, atando a narrativa romanesca à história.
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Benedito Nunes é crítico e professor de literatura na Universidade Federal do Pará, autor de "Hermenêutica e Poesia" (Ed. da UFMG) e "Crivo de Papel" (Ed. Ática), entre outros.

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