A República – Livro IX
O que precede os temas tratados no livro IX é a exposição das formas de governo e dos homens tais quais elas se apresentam, feita numa trajetória de pensamento na qual caminhavam sempre a natureza de cada tipo de governo ao lago do homem portador de uma natureza confirma a ela. São avaliados os tipos de governo encontrados nas cidades já existentes, a saber: timarquia, democracia, oligarquia e tirania, sendo que as outras constituições estariam entre as mencionadas. Todas são examinadas quanto à sua presença em nível de publico e individual, ainda na intenção de comparar dentro delas o homem mais justo ao mais injusto, levando ao cabo a pesquisa acerca da natureza e benefício da justiça. Tendo tratado de todas as formas de governo enumeradas por Sócrates, a ordem da obra deixa para o Livro IX o exame do homem par da tirania, que foi, no livro anterior, a ultima forma de governo explorada nos diálogos.
Entrando no livro IX, antes do exame do homem tirânico, Sócrates lembra-se da falta de uma pesquisa sobre os desejos. Com efeito, é importante observar inicialmente que desejos assim estão presentes em todos os homens, sendo que a diferença se faz pela moderação – natural ou habitual – que cada homem é capaz de impor a eles. É nesse aspecto que Sócrates e seus interlocutores retornam à natureza do homem democrático a partir do oligarca, para então desembocar no homem tirânico. Tal homem, conforme Sócrates, “se torna tirano no sentido estrito quando, por natureza e por hábito, ou por ambos os motivos, torna-se um bêbado, um enamorado, um rancoroso” (573 c d). Em outras palavras, o homem tirânico se deixa levar por todos os desejos que nele habitam, fazendo de tudo para satisfazê-los, colocando-os acima de todo o resto. Desse prisma, pode-se afirmar que, segundo o que ficou acordado sobre o que é a justiça, ele pode ser considerado injusto e desleal (576 a).
Questionando seguidamente a felicidade de tal homem, Sócrates propõe – como se fez até então – examinar a tirania em seu cerne, primeiro na cidade, depois dentro do homem. Aqui é interessante notar a menção ao governo de um rei, em contraposição à situação da tirania, em referencia ao governo de sua cidade perfeita. Podemos ver também que Sócrates, ao ter elogiado a tirania, o fez não por mérito dela como forma de governo que proporciona justiça e felicidade, mas apenas pela semelhança de sua estrutura de governo em relação ao de sua cidade perfeita.
Prosseguindo, o exame da cidade tirânica a revela escrava de seus prazeres e desejos, tendo poucos homens livres, e maioria escravos. É uma cidade que não pode fazer o que quer. Dessa forma, uma tirania é a mais infeliz das formas de governo apresentadas e examinadas. O homem tirânico particular, entretanto, só não é mais infeliz que o próprio tirano, que governa cegamente, pois - não tendo controle de seus desejos - é obrigado a controlar os cidadãos. Tal governante não possui liberdade já que, além de não poder deixar a cidade para não perder o poder, teme seus cidadãos. O governante tirano tem, assim, que adular seus cidadãos e, sem poder realizar nenhum de seus desejos, leva uma vida temerosa e infeliz.
Terminando o percurso desse exame, resta ainda saber qual é o homem mais feliz entre os elencados para discussão. A essa questão, Sócrates responde ordenando decrescentemente: o homem da realiza, o da timocracia, e o da oligarquia, da democracia e, por último, o tirano. Pois quanto mais virtude, mais perto da felicidade está um governo e seus cidadãos. No universo dessa discussão, dado que a felicidade deriva da virtude, segue-se que o homem que agrega mais virtude é o que tem a razão como guia de sua constituição interna. Em resumo, o prazer mais doce e a vida mais prazerosa não é a do ambicioso ou do amigo do lucro, outros dois tipos de constituição interna descritas por Sócrates, guiadas pela impetuosidade e pelos desejos respectivamente, e sim a daquele que busca o conhecimento do verdadeiro.
Remetendo à Teoria das Idéias do livro VII, o raciocínio de Sócrates segue com a constatação de que somente colocando à frente de si a parte racional e buscando conhecer o mais alto é possível atingir o conhecimento verdadeiro do ser, conhecimento esse que supera os simulacros e opiniões baseadas no aparente. Com efeito, as outras duas constituições internas não são capazes de atingir esse patamar, ficando aquém dessa plenitude. E quando não se busca o conhecimento verdadeiro, vivendo à mercê de simulacros, desejos e opiniões, os homens acabam por competir e destruir-se mutuamente.
Em síntese, quanta mais longe da razão, mais longe se está da lei e da ordem e, portanto, mais perto da tirania, tanto no público quanto no particular. Assim, o tirano é o que mais dista dos prazeres verdadeiros, frutos do conhecimento do ser. É por isso que a vida do rei fazendo referência ao rei filósofo, governante divino de sua cidade, é infinitamente mais agradável.
Nesse ponto, segundo Sócrates, já se pode concluir que, ao contrário da afirmação da tese de Trasímaco, a justiça é muito mais útil e prazerosa que a injustiça. Usando a figura devem ser formados por partes de muitos animais, porém revestido da aparência do homem, Sócrates ilustra justiça e a injustiça em seu interior. Com relação ao injusto, é como se nutrisse apenas as feras, e enfraquecesse a parte humana, ou seja, a razão, sendo dominado por ímpetos e desejos. Já o homem justo age de modo diferente, pois cuida da parte humana, que tem mais poder sobre o todo de sua alma, e domina seus ímpetos.
Tem-se demonstrado o fato de a justiça se antepor à injustiça, tanto na questão de sua utilidade quanto do prazer que proporciona.
Voltando à esfera pública e à cidade perfeita, a discussão retorna à questão da natureza do governante ao colocar a seguinte questão: não seria infinitamente melhor ser governado por um governante divino, o melhor entre os melhores, que por um tirano? (590 d). Um governante não deve governar para prejuízo dos cidadãos (conforme afirmara Trasímaco), pelo contrário, deve ter em mente o bem da cidade como um todo. Sendo assim, para qualquer um é melhor ser governado por alguém, divino e sábio. Na medida em que tal governante obedece à constituição da cidade, forjada conforme seu próprio bem.
Finalmente, um homem justo tal qual sua cidade segue a razão e busca sempre a virtude, levando uma vida temperante e sábia. Se cuida da saúde e do corpo, não é somente por cultivá-lo, mas para ter entre corpo e alma a mesma harmonia que mantém as partes de sua alma entre si. Ainda, a mesma atitude com relação às riquezas e honras, agindo para com elas segundo sua constituição interna, que é conforme a de sua cidade.
Tendo a discussão chegado ao termo naquilo em que se propôs, a saber, distinguir com clareza a justiça e a injustiça no interior do homem que detém uma ou outra, assim como o que disso decorre, o que se vê no último livro da obra – o livro X – é uma retomada da questão concernente ao lugar da poesia na cidade perfeita. Questão essa que vêm, à luz das discussões anteriores, de uma outra forma no que diz respeito à sua formulação, porém aprofundada, mantendo o que, já concluído, precedeu a construção da cidade perfeita.
Bibliografia
Platão, A República; tradução de Ana Lia de Almeida Prado; Martins Fontes, 2006.
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