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De acordo com a leitura do Material Referencial, o que podemos entender por estigma social?

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Jade

estigma social é forte desaprovação sobre caracteristicas,crenças,cultura e etc que vão contra normas culturais.a estigma social na maioria das vezes pode levar a marginalização do individuo.estigma no mundo de hoje pode ser interpletado como valor social negativo.caracteristicas de individuos que seguem o oposto dos demais na sociedade sendo considerado indigno,desonroso ou má reputação.

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LR

Estigma social relaciona-se às questões de segregação, marginalização, e violência simbólica. A resposta para a questão irá articular todos estes conceitos do ponto de vista da leitura sociológica.

Sobre segregação:

O conceito de segregação pode ser compreendido, de forma ampla, nos seguintes termos:

1. “ato ou processo de isolar ou ser isolado de outros ou de um corpo principal ou grupo; discriminação”; “toda gama de práticas discriminatórias” (HOUAISS, 2009: 1721)

2. “modalidade subjetiva de separação em que a minoria racial julgada inferior é apartada do convício da maioria; discriminação racial” (HOUAISS, 2009: 1721)

3. “tratamento pior ou injusto dado a alguém por causa de características pessoais; intolerância, preconceito”; “ato que quebra o princípio da igualdade, como distinção, exclusão, restrição ou preferências, motivado por raça, cor, sexo, idade, trabalho, credo religioso ou convicções políticas” (HOUAISS, 2009: 693)

Sendo então segregação “toda gama de práticas discriminatórias”, e discriminação todo forma de “tratamento pior ou injusto dado a alguém por cauda de características pessoais”, nas ciências sociais o debate surge em diversos autores no sentido de compreender as formas de tratamento baseadas em preconceitos surgidos a partir características individuais, enquanto ação coletiva e por isso socialmente estruturante.

Sobre violência simbólica:

Compreender a violência simbólica não é possível sem antes se verificar a legitimidade do uso da violência qualquer que seja, simbólica, econômica, física.

Pelo viés da sociologia do direito, Kelsen atribui ao Estado a condição “ser uma autoridade com o poder de obrigar, especialmente se essa autoridade for soberana” (KELSEN, 2005: 273). Dessa forma, enquanto “organização política”, o Estado figura-se como  “ordem que regula o uso da força, porque ela monopoliza o uso da força” (KELSEN, 2005: 273). Bobbio é outro autor que também atribui ao Estado o monopólio legítimo da força, e caracteriza esse monopólio segundo o viés de seu ‘poder político’. Afirma que “o poder político, justamente em virtude do monopólio da força, constitui o poder supremo num  determinado grupo social” (BOBBIO, 1993: 957).. Deve-se verificar que em ambos autores o termo que se utiliza não é ‘violência’ e sim ‘força’, essa escolha é uma preocupação semântica pois não atribuir logo de início o termo ‘violência’ amplia o guarda-chuva das possíveis ações coercitivas que o Estado pode vir a exercer. Gramsci esclarece ainda que o Estado opera por duas vias opostas: a coerção e o consenso: “‘para a vida de um Estado duas coisas são absolutamente necessárias: as armas e a religião’” (LINGUORI; VOZA, 2017: 127). Não devemos limitar semanticamente o par ‘armas’ e ‘religião’, pois tratam-se apenas de exemplos generalistas, e Gramsci ainda expõe outros diversos pares, como “força e consenso”, “coerção e persuasão”, “política e moral” (LINGUOR; VOZA, 2017: 127). Quando ao último par, “política e moral”, deve-se compreender por moral a moral uma ética presente nas  “atividades da sociedade civil” capaz de constituir um pensamento hegemônico (LINGUORI; VOZA, 2017: 128), e por política o campo da “iniciativa e [da] coerção estatal-governamental’” (LINGUORI; VOZA, 2017: 128). Considerando que soma-se no Estado o campo da “sociedade política” e o campo da “sociedade civil” tornar-se claro o Estado legitima-se segundo uma “hegemonia couraçada de coerção” (LINGUORI; VOZA, 2017: 127). Dessa formar é possível afirmar que a legitimidade é o “ o elemento integrador na relação de poder que se verifica no âmbito do Estado.” (BOBBIO, 1993: 675). Duverger esclarece ainda o poder legítimo do Estado pode ser um fenômeno de força, coação e coerção. Coação significa uma obrigatoriedade, uma imposição feita através de um ato de “constrangimento, violência física ou moral imposta a alguém para que se faça ou deixe de fazer ou permita que se faça alguma coisa” (HOUAISS, 2009: 482). E coerção é a “força exercida pelo Estado para fazer valor o direito” (HOUAISS, 2009: 482). Das diversas formas que o Poder enquanto fenômeno de força pode vir a assumir, é possível citar a ‘coação física’ presente tanto na política enquanto instituição, quanto o exército enquanto estrutura, a ‘coação economia’ produzida pela luta de classes, a ‘coação por pressão social’ gerada pela existência de tradições e costumes culturalmente enraizados em uma dada sociedade, a ‘coação por enquadramento social’ que é obrigação individual de acatar o que é institucionalmente estabelecido como consenso, e a ‘coação psicológica’ exercida de forma obscura através da “divulgação de uma ideia, crença” de modo “persuasivo” (HOUAISS, 2009: 1561). A obra de Duverger inspira a compreensão de que para governar é preciso colonizar as mentes, e a conclusão que se chega através de tudo que foi apresentado até aqui é a de que não há apenas uma via para se colonizar as mentes, e que o Estado e seu monopólio do uso da força tem a força física como o ultimo dos recursos de legitimação.

Pierre Bourdieu compreende que o poder estatal é “composto pela articulação de estruturas mentais e estruturas objetivas”, o que significa dizer que a “a razão, o desinteresse, o civismo” (SANTOS, 2015: 184) são exemplos de ferramentas simbólicas a serem mobilizadas no momento da disputa política. Essas ferramentas, postas na condição de armas, são elegidas pala condição universal que possuem. A razão é historicamente universalizável, o civismo e o desinteresse também, assim o “campo simbólico, constituído por maneiras de ver e de pensar, dá‑se a produção social da violência simbólica” (SANTOS, 2015: 184). Tudo o que pode ser visto como universal na histórico de um grupo social é motivo de coesão. Assim o universal tem a qualidade de ser acionável por todos, independentemente de a quem o universal beneficia, ou seja, o universal é acionado tanto por quem domina, quanto por quem é dominado. Bourdieu explica que A violência simbólica é uma violência que se exerce com a cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também, frequentemente, daqueles que a exercem na medida em que uns e outros são inconsciente de a exercer ou a sofrer” (Bourdieu, 1996: 16). Kelsen, Bobbio, Gramsci e Duverge, foram os autores que articulamos até aqui. Todos eles possuem diferenças enormes entre si, mas todos compreendem que o Estado possui o monopólio do uso da força, e que o uso da força pode se apresentar de diversas formas. Bourdieu é tão particular quanto os outros autores destacados, e ao mesmo tempo apresenta-se como semelhante na medida que define que o “Estado é a posse do monopólio da violência física e simbólica”, mas deve legitimar-se pelo consenso, e o consenso nada mais é do que uma aceitação universal, é a internalização individual e coletiva de uma verdade socialmente constituída, o que significa dizer que o Estado funda a integração lógica e a integração moral do mundo social e, por aí, o consenso fundamental sobre o sentido do mundo que é a condição mesma dos conflitos a propósito do mundo social” (Bourdieu, 2012: 15). A ideia de Estado é em Bourdieu é uma defesa a crença de que determinados “pontos de vista não são válidos e que há um ponto de vista que é a medida de todos os pontos de vista, dominante e legítimo” (Bourdieu, 2012: 116). Assim o debate sobre a violência simbólica é norteada pelas seguintes perguntas: “Quem tem interesse no Estado? Existem interesses do Estado? Há interesses do público, do serviço público? Há interesses universais e quem são seus portadores? Quem tem os monopólios dos monopólios do Estado – violência física e simbólica legítimas?” (Bourdieu, 2012: 199).

Jessé Souza busca analisar a formação do que seria pensamento social brasileiro segundo a perspectiva da violência simbólica de Bourdieu. A violência simbólica não é explicita necessariamente, não se articula linguisticamente por exemplo. Jessé explica que há em Bourdieu a noção de habitus, de o que ponto de vista dominante e legítimo se expressa nas relações interpessoais que possuem a qualidade da normalidade, do natural, do socialmente aceito. Para Jessé, a análise feita por Florestan Fernandes em Integração do Negro na Sociedade de Classes demonstra “as dificuldades de adaptação dos segmentos marginais na mais burguesa e competitiva das cidades brasileiras.” (SOUZA, 2003: 54). A superação da escravidão foi um processo de abandono, o destino no negro recém liberto não foi calculado ou assistido pelas instituições brasileiras, o que significa dizer que em um dia grande parte contingente negro da população brasileira dormiu escravo e acordou simplesmente livre (e sozinho). Deixou de ser responsabilidade do seu dono, na Elite escravista e passou a ter responsabilidade de si mesmo. O negro escravo aprende que para sobreviver é necessário se submeter ao senhor de escravo. Ao negro liberto não é foi dada as condições materiais e sociais para sua sobrevivência “numa nascente economia competitiva de tipo capitalista e burguês” (SOUZA, 2003: 54), assim mediante a necessária adaptação à este cenário inédito, o negro parte de uma posição de desvantagem em relação ao restante da população, pois é destituído dos “pressupostos sociais e psicossociais” que tornariam possível vencer a competição social. Se por um lado os negros não se sentiam inclinados a aceitar exercer as funções que remetiam ao seu passado degradante (funções que foram então assumidas pelos imigrantes), por outro a situação de abandono a própria sorte a qual foram submetidos, foram os elementos que geraram para o que hoje ainda é a maior parte população brasileira um destino marginal e pobre. O insucesso dos negros na nova ordem nascia da “ânsia em libertar-se das condições humilhantes da vida anterior”,  o que gerava no grupo “um tipo de comportamento reativo e ressentido” em relação a realidade que se apresentava a eles (SOUZA, 2003: 55). Confundia-se “as obrigações do contrato de trabalho”, e para além disso existia uma dificuldade em distinguir “a venda da força de trabalho da venda dos direitos” (SOUZA, 2003: 55) recém conquistados. Outro fator negativo que Jessé destaca presente na tese de Florestan é a estrutura deficitária da família negra. A política escravista sempre negou ao negro a possibilidade de se organizar tanto de forma comunitária quanto de forma familiar. A ausência história da referencia de família enquanto “instância moral e social básica”  foi um “fator decisivo para a perpetuação das condições de desorganização social de negros e mulatos” (SOUZA, 2003: 55), pois a família negra ao não se constituir como “uma base segura para a vida numa sociedade competitiva” tornava-se um obstáculo na medida que a “não-socialização adequada de nenhum dos papéis familiares” não produzia personalidades aptas para a sobrevivência em um mundo capitalista. Da desordem familiar somada a pobreza era transpõe-se “uma situação de sobrevivência tão agreste que mina, por dentro, qualquer vínculo de solidariedade, desde o mais básico na família até o comunitário e associativo mais geral” (SOUZA, 2003: 56). Aqui está a chave da vinculação que fizemos entre a noção de habitus e conceito de violência simbólica descritas por Bourdieu. Para Florestan e Jessé a marginalidade e a inadaptação do contingente de ex-escravos não se justifica pela mera diferenciação racial, mas sim primeiramente pela “reprodução de um ‘habitus precário’” (SOUZA, 2003: 56). Assim não basta afirmar as relações de sociabilidade no Brasil são mediadas “preconceito de cor, mas sim um preconceito que se refere a certo tipo de ‘personalidade’, julgada como improdutiva e disruptiva para a sociedade como um todo” (SOUZA, 2003: 56). Florestan não deixa de perceber “que as condições de inadaptação da população negra é comparável a dos dependentes rurais brancos” (SOUZA, 2003: 56), e Jessé une esses dois grupos em um único, o da ralé brasileira, considerando que a questão racial, de cor, é sem um “uma ferida adicional à auto-estima do sujeito em questão, mas o núcleo do problema é a combinação de abandono e inadaptação, destinos que atingiam ambos os grupos independentemente da cor” (SOUZA, 2003: 56). Para Jessé limitar o debate sobre a marginalização ao argumento da cor é supor tratar-se de uma realidade temporal, “modificável por altas taxas de crescimento econômico, as quais, de algum modo obscuro, terminaria por incluir todos os setores marginalizados” (SOUZA, 2003: 58). É verdade que com “o desenvolvimento econômico” a realidade do passado está “destinada a desaparecer”, mas também é verdade que não há uma relação de inercia entre o passado e o presente, hoje somos o que fomos ontem, mas não inteiramente. A marginalidade do presente é a “redefinição ‘moderna’ do negro (e do dependente ou agregado brasileiro rural e urbano de qualquer cor) como ‘imprestável’ para exercer qualquer atividade relevante e produtiva no novo contexto” (SOUZA, 2003: 58).

Vamos retomar algo que já foi dito aqui. Bourdieu faz os seguintes questionamentos: “Quem tem interesse no Estado? Existem interesses do Estado? Há interesses do público, do serviço público? Há interesses universais e quem são seus portadores? Quem tem os monopólios dos monopólios do Estado – violência física e simbólica legítimas?” (Bourdieu, 2012: 199). Jessé Souza faz questionamentos outros: “de que modo a transição do poder pessoal para o impessoal muda radicalmente as possibilidades de classificação e desclassificação social? O que está em jogo nessa passagem e nessa mudança tão radical que expele como imprestáveis os segmentos responsáveis fundamentalmente pela produção econômica no regime anterior?” (SOUZA, 2003: 58). De certa forma Jessé e Bourdieu dialogam e se complementam nas questões levantadas. Quando Jessé questiona ‘a transição do poder pessoal para o impessoal’ responde a Bourdieu que sim, ‘Há interesses universais’. Quando aponta no jogo da ‘classificação e desqualificação social’ há um grupo dos que são considerados ‘imprestáveis’ e que este grupo é o mesmo que no passado era responsável pela produção econômica, informa quem são aqueles que não possuem ‘os monopólios dos monopólios do Estado – violência física e simbólica legítimas’, e por consequência aponta quem são aqueles que possuem, quem são os dominados e quem são os dominadores, a quem interessa a manutenção essa realidade. A nova ordem possuía uma “hierarquia valorativa implícita e impessoal”, para que o negro obtivesse sucesso ele precisava deixar de ser negro e passar a ‘ser gente’, precisava não estar imerso ao ‘habitus precário’ que todo ex-escravo estava destinado. Jessé apresenta essa relação a partir do que Florestan relata da fala de um informante: “Um dos sujeitos das histórias de vida, que vivia com a mãe e a irmã, ‘ao deus dará’, relata o deslumbramento que sentiu, por volta de 1911, ao passar a viver, aos dez anos, na casa de um italiano. Viu, então, ‘o que era viver no seio de uma família, o que entre eles (os italianos) era coisa séria’. Gostava porque comia na mesa...e podia apreciar em que consistia‚ ’viver como gente’. No mesmo sentido, temos as declarações abaixo: ‘Negro é gente e não tem que andar diferente dos outros’... ‘Ser gente’ só pode significar ‘ser igual ao branco’ e para isso é preciso ‘proceder como o branco’, lançando-se ativamente na competição ocupacional.” (SOUZA, 2003: 60). A noção então de habitus, de o que ponto de vista dominante e legítimo se expressa nas relações interpessoais que possuem a qualidade da normalidade, do natural, do socialmente aceito, é o universal e sua qualidade de ser acionável por todos, independentemente de a quem o universal beneficia, ou seja, o universal é acionado tanto por quem domina, quanto por quem é dominado. O negro que quer ser gente, compreende que para obter sucesso ele deveria ser branco, e na impossibilidade de ser branco ele deve então se comportar como um branco. A violência simbólica se expressa na ciência que o negro, ou um periférico independente de sua cor, tem de que ele não possui a mesma classificação social que um branco integrante de uma classe social mais abastada. Quando aos resto dos brasileiros, Jesse esclarece não se tratar de uma intencionalidade, ao passo que nenhum integrande da classe média confessaria, em sã consciência, que considera seus compatriotas das classes baixas não-europeizadas ‘subgente’”, sendo possível inclusive que uma classe média progressista e favorável aos direitos humanos. A sociedade opera segundo “acordos e consensos sociais mudos e subliminares, mas por isso mesmo tanto mais eficazes, que articulam, como que por meio de fios invisíveis, solidariedades e preconceitos profundos e invisíveis”, tonando a classificação e a desclassificação social “objetiva, subliminar, implícita e intransparente”, na medida em que “não precisa ser linguisticamente mediada ou simbolicamente articulada”, já que é consensual, universalmente acionada por todos os integrantes de uma mesma sociedade independente da posição social, já que existe “toda uma visão de mundo e uma hierarquia moral que se sedimenta e se mostra como signo social de forma imperceptível, a partir de signos sociais aparentemente sem importância, como a inclinação respeitosa e inconsciente do inferior social quando encontra um superior, pela tonalidade da voz mais do que pelo que é dito etc” (SOUZA, 2003: 71). Estabelece-se assim uma cumplicidade tácita daqueles que a sofrem e também, frequentemente, daqueles que a exercem na medida em que uns e outros são inconsciente de a exercer ou a sofrer” (Bourdieu, 1996: 16).

Nos próximos tópicos consta o conceito de violência simbólica em Jesse Souza (pensamento social brasileiro), em Norbert Elias (segregação social) e em Michelle Alexander (encarceramento em massa).

1- A violência simbólica em Jessé Souza:

A violência simbólica posta por Jessé de Souza em seus livro A Elite do Atraso (2017) e A tolice da inteligência brasileira (2018) – entre outros livros do autor tão importantes quanto estes citados –, tem sua raiz no que ele determina ser o pacto elitista. Há, primeiramente, a existência de um pensamento hegemônico que naturaliza certas aspectos da sociedade que só beneficiam uma parcela minoritária dela. Duverge (1976), em síntese, estaria correto quando expõe que a violência física é o último recurso de um governo (levando em conta que governo, no caso brasileiro, é sinônimo de Elite), e recurso este que expõe sua ilegitimidade, assim para governar, mais do que a violência aberta, visível, é necessário colonizar as mentes dos governados, ou seja, construir um discurso hegemônico capaz de ser um elemento de controle social. Para Jessé, este discurso hegemônico desenvolvido pela elite brasileira, trata-se da violência simbólica ao qual o povo brasileiro é submetido sem ao menos perceber, e ao não perceber, perde-se a possibilidade de se rebelar contra o status de coisa que os reprime e os relega as piores condições da miséria humana. Jessé questiona-se como é possível que o 1% mais rico da população brasileira possa ser capaz de concentrar a riqueza produzida pelo trabalho executado pelo restante (99%) da população brasileira. A resposta que o autor dá é que a todo o arcabouço de produção de conhecimento, e todas as formas de reprodução desse conhecimento, dedica-se a construção de um pensamento hegemônico cujos interesses são avessos aos interesses sociais, e cujas as origens são tão enraizadas no pensamento brasileiro, através da construção de um pensamento social que sequestrou a nossa história passada, amenizando os efeitos da violência física que herdamos do nosso passado escravista, e recolocando esta mesma violência, que impõe um novo tipo de escravidão de forma mais perversa. A elite, ao reescrever o passado do brasil segundo os próprios interesses e ao financiar a produção e a reprodução de novos conhecimentos a partir dessa história deturpada, e fazendo isso transparecer tanto na academia quanto eu todos os diversos meios de comunicação, construiu um senso comum tão desagregador socialmente que é capaz de mantê-la no poder sem que os 99% de oprimidos sejam capazes de se revoltar. Não o são pois possuir uma história de desagregação social, cuja a sociabilidade não é pautada no reconhecimento dos interesses da própria classe, e sim na reprodução dos interesses da classe que os domina e os oprime, das elites: “tamanha ‘violência simbólica’ só é possível pelo sequestro da ‘inteligência brasileira’ para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vem da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da ‘corrupção apenas do Estado’.” (SOUZA, 2018: 10).

Como se verifica essa ‘violência simbólica’: “A realidade social não é visível a olho nu, o que significa que o mundo social não é transparente aos nossos olhos. Afinal, não são apenas os músculos dos olhos que nos permite ver, existem ideias dominantes, compartilhadas e repetidas por quase todos, que, na verdade, ‘selecionam’ e ‘distorcem’ o que os olhos veem, e ‘escondem’ o que não deve ser visto.” (SOUZA, 2018: 9); “É isso que faz com o que mundo social seja sistematicamente distorcido e falseado. Todos os privilégios e interesses que estão ganhando dependem do sucesso da distorção e do falseamento do mundo social para continuarem a se reproduzir indefinidamente. A reprodução de todos os privilégios injustos no tempo depende do ‘convencimento1, e não da ‘violência’. Melhor dizendo, essa reprodução dependente de uma ‘violência simbólica’, perpetrada com o consentimento mudo dos excluídos dos privilégios, e não da ‘violência física’. É por conta disso que os privilegiados são os donos dos jornais, das editoras, das universidades, das TVs e do que se decide nos tribunais e nos partidos políticos. Apenas dominando todas essas estruturas é que se pode monopolizar os recursos naturais que deveriam ser de todos, e explorar o trabalho da imensa maioria de não privilegiados sob a forma de taxa de lucro, juro, renda de terra ou aluguel.” (SOUZA, 2018: 9 – 10); “A soma dessas rendas de capital no Brasil é monopolizada em grande parte pelo 1% mais rico da população. É o trabalho dos 99% restantes que se transfere em grande medida para o bolso do 1% mais rico.” (SOUZA, 2018: 10); “tamanha ‘violência simbólica’ só é possível pelo sequestro da ‘inteligência brasileira’ para o serviço não da imensa maioria da população, mas do 1% mais rico, que monopoliza a parte do leão dos bens e recursos escassos. Esse serviço que a imensa maioria presta é o que possibilita a justificação, por exemplo, de que os problemas brasileiros não vem da grotesca concentração da riqueza social em pouquíssimas mãos, mas sim da ‘corrupção apenas do Estado’.” (SOUZA, 2018: 10).

2 – Violência simbólica em Norbert Elias:

Norbert Elias, em Os Estabelecidos e os Outsiders (2000), tem como objeto de estudo dois bairros de Winston Parva, uma pequena cidade industrial britânica. Os habitantes de ambos os bairros possuem as mesmas características étnicas e econômicas, a diferença entre os bairros é que um deles aglutina os moradores mais antigos, e outro moradores recentes.

“Atualmente há uma tendência a discutir o problema da estigmatização social como se ele fosse uma simples questão de pessoas que demonstram, individualmente, um desapreço acentuado por outras pessoas como indivíduos. Um modo conhecido de conceituar esse tipo de observação é classificá-la como preconceito. Entretanto, isso equivale discernir apenas no plano individual algo que não pode ser entendido sem que se o perceba, ao mesmo tempo, no nível do grupo. Na atualidade, é comum não se distinguir a estigmatização grupal e o preconceito individual e não relacioná-los entre si. Em Winston Parva, como em outros lugares, viam-se membros de um grupo estigmatizando os outros, não por suas qualidades individuais como pessoas, mas por eles perceberem a um grupo coletivamente considerados diferentes e inferior ao próprio grupo.” (ELIAS, 2000: 23)

“Um grupo só pode estigmatizar outro com eficácia quando está bem instalado em posições de poder das quais o grupo estigmatizado é excluído. Enquanto isso acontece, o estigma de desonra coletiva impugnado aos outsiders pode fazer-se prevalecer. O desprezo absoluto e a estigmatização unilateral e irremediável dos outsiders, tal como a estigmatização dos intocáveis pelas castas superiores da Índia ou a dos escravos africanos ou seus descendentes na América, apontam para um equilíbrio de poder muito instável. Afixar o rótulo de ‘valor humano inferior’ a outro grupo é uma das armas usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de mantes sua superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais poderoso ao menos poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso, enfraquece-lo e desarmá-lo.” (ELIAS, 2000: 24).

3 – Violência simbólica em Michelle Alexander:

Michelle Alexander, em A nova segregação: racismo e encarceramento em massa (2017), ao trazer o debate do encarceramento em massa da população negra nos EUA como sendo uma atualização do processo histórico de segregação racial, retoma os mecanismos de segregação do passado (a lei Jim Crow, por exemplo) para demonstrar o quando o presente ainda mantém viva essas raízes, e o faz mediante a uma complexa e recente forma de efetivar a segregação entre classes/raça.

“ ‘Lá atrás, antes do Jim Crow, antes da invenção do Negro ou do homem branco ou das palavras e dos conceitos para descrevê-los, a população consistia majoritariamente em uma grande massa de escravos brancos e negros, que ocupavam a mesma categoria econômica embrutecida e eram tratados com igual desprezo pelos senhores das plantations e das legislaturas. Curiosamente, despreocupados com a sua cor, essas pessoas trabalhavam e descansavam juntas.’ Lerone Bennett Jr.” (ALEXANDER, 2017: 62).

“Como sabemos, as leis do Jim Crow determinavam a segregação residencial, os negros eram relegados às piores partes da cidade. As estradas literalmente terminavam na fronteira de muitos bairros negros, mudando do asfalto para a terra batida. Água, sistemas de esgoto e outros serviços públicos disponíveis nas áreas brancas da cidade frequentemente não se estendiam às áreas negras. A extrema pobreza que atormentava os negros devido a seu status de inferioridade legalmente sancionado era em grande parte invisível aos brancos – desde que os brancos permanecessem em seus próprios bairros, o que eles estavam inclinados a fazer. A segregação racial tornou a experiência negra em grande medida invisível aos brancos, que passavam a ter maior facilidade para mantes estereótipos raciais a respeito dos valores e da cultura dos negros. Isso também tornava mais fácil negar ou ignorar seu sofrimento.” (ALEXANDER, 2017: 277).

“O encarceramento em massa funciona de modo semelhante. Ele consegue a segregação racial ao separar da sociedade os prisioneiros – a maioria dos quais são pretos e pardos. Eles são mantidos atrás das grades, normalmente a mais de 150 km de casa. Mesmo as prisões – seus edifícios – raramente são vistos por muitos estadunidenses, já que costumam estar localizados longe dos centros populacionais. Embora os municípios rurais contenham apenas 20% da população estadunidense, 60% das construções de novas prisões se situam neles. Os prisioneiros estão, portanto, escondidos da visão do público – fora do campo de visão, fora da mente. Em certo sentido, o encarceramento é uma forma muito extrema de segregação física e residencial do que a promovida pelo Jim Crow. Em vez de simplesmente remover os negros para o outro lado da cidade ou encurralá-los em guetos, o encarceramento em massa os deixa trancados em jaulas. Grades e paredes mantêm centenas de milhares de pessoas pretas e pardas longe da sociedade – uma forma de apartheid diferente das que o mundo já viu.” (ALEXANDER, 2017: 277 – 278).

“O encarceramento em massa, assim, perpetua e aprofunda padrões preexistentes de segregação e isolamento racial, não apenas removendo pessoas não brancas da sociedade e pondo-as em prisões, mas jogando-as de volta em guetos após sua libertação. Se tivessem recebido uma chance na vida e não disso rotulados como bandidos, jovens não brancos poderiam ter escapado de suas comunidades no gueto – ou ajudado a transformá-las –, em vez disso se encontram presos num circuito fechado de marginalidade perpétua, circulando entre o gueto e a prisão.” (ALEXANDER, 2017: 279 – 280).

“Os guetos racialmente segregados e atingidos pela pobreza presente nas áreas centrais das grandes cidades em todo o país não existiriam hoje se não fossem as políticas governamentais racialmente preconceituosas nunca de fato reparadas. Assim, todos os anos, centenas de milhares de pessoas pobres não brancas que foram alvo da Guerra às Drogas são forçadas a voltar a essas comunidades racialmente segregadas – bairros ainda mutilados pelo legado de um sistema de controle anterior. Do ponto de vista prático, elas não têm outra escolha. Dessa forma, o encarceramento em massa, assim como fazia seu predecessor, o Jim Crow, cria e mantém a segregação racial.” (ALEXANDER, 2017: 280).

 

Referências bibliográficas:

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Messo. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

ALEXANDER, Michelle. A nova segregação: racismo e encarceramento em massa. São Paulo: Boitempo, 2017.

ELIAS, Norbert. Os Estabelecidos e os Outsider: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

SOUZA, Jessé. A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pela elite. 2ed. Rio de Janeiro: LeYa, 2018.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: 2017.

SOUZA, Jessé. (Não) Reconhecimento e subcidadania, o que é ‘ser gente’? in Lua Nova, n°59, 2003.

DUVERGER, Maurice. Ciência Política, Teoria e Método. Rio de Janeiro: Editora Zatar, 1976.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

KELSEN, Hans. Teoria geral do direito e do Estado. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

LIGUORI, Guido; VOZA, Pasquale. Dicionário Gramsciniano: 1926 - 1937. São Paulo: Boitempo, 2017

BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 5. ed. Brasília: Edunb, 1993.

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2007.

HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Messo. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.

SANTOS, José Vicente Tavares do. A violência simbólica: o Estado e as práticas sociais. In Revista Crítica de Ciências Sociais, n.108, Coimbra, dez.2015.

Bourdieu, Pierre. Sur l’État. Cours au Collège de France (1989-1992). Paris: Raisons d’Agir/Seuil. (2012)

Bourdieu, Pierre. Sur la télévision. Paris: Liber. (1996)

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