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como a biologia foi associada a cultura?

💡 2 Respostas

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Gabriel Leite

A antropologia abrange o estudo do ser humano como ser cultural, fazedor de cultura. Investiga as culturas humanas no tempo e no espaço, suas origens e desenvolvimento, suas semelhanças e diferenças. Tem seu foco de interesse voltado para o conhecimento do comportamento cultural humano, adquirido por aprendizado social. A partir da compreensão da variedade de procedimentos culturais dentro dos contextos em que são produzidos, a antropologia, como o estudo das culturas, contribui para erradicar preconceitos derivados do etnocentrismo, fomentar o relativismo cultural e o respeito à diversidade.

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LR

Resposta resumida:

O antropólogo Row Wagner altera completamente as bases da pesquisa antropológica ao redefinir a perspectiva da produção de conhecimento que se pretende teorizar ‘culturas’, e ao redefinir o próprio conceito de cultura.

Sobre o campo do natural Wagner apresenta o debate por duas vias: I) A biologia; II) O mundo natural.

I) A biologia:

Muito instigante e ousado, da parte do autor, é o intertexto que ele faz com as ciências biológicas, particularmente a perspectiva evolucionista. Desse modo, não é concebível pensar que os primeiros homicídios eram aculturados, que seria pois 100% “natureza”, o homem-animal. Cultura e natureza sempre fizeram parte do ser humano, mas o autor vai além e lança uma provocação, se há animais ‘culturados’, por que pensar que há/houve humanos aculturados. A segmentação entre natural e cultura é insustentável, para além do saber antropológico.

II) O mundo natural:

É do senso comum afirmar que a ciência possui a função de desenvolver mecanismos que tornam a nossa vida mais no presente mais adaptável e no futuro mais seguramente previsível, mediando e prevenindo acontecimentos. Nós acreditamos assim que ao possuir a ciência, possuímos também a capacidade de controlar o mundo natural. Wagner não acredita que há fundamentos reais para essa crença. O autor defende que que tudo o que temos em mãos, e tudo o que supomos ser nossas ferramentas de controle na natureza, são na realidade o conjunto de conhecimentos do homem, é a nossa ciência e a nossa arte. Entretanto, a nossa ciência e a nossa arte é o conjunto de convenções que temos para inventar o mundo natural e fenomênico. Ao afirmar categoricamente que o mundo natural completamente previsível ao homem, mascaramos o fato de que na realidade ele é uma criação nossa. O mundo natural como o compreendemos, esse que somos capaz de nos adaptar e prever, não passa de uma artificialidade do natural, pois é fruto da manipulação feita pelo próprio homem. Assim como o homem na sala de ópera é moldado por homem, o mundo natural como o teorizamos é também obra homem.

Tomemos o tempo como exemplo, tanto em seu aspecto meteorológico, quanto eu seu aspecto de contagem quantitavamente  temporal na vida humana. Para Wagner a prepotência do homem está em acreditar que ele pode fazer com que ambos os eventos nos atinja de surpresa em meio a nossa própria invenção. É confuso mas interessante. O homem inventa esse mundo supostamente natural, como também no mesmo ato permite que esse mundo natural pegue a ele mesmo de surpresa, isso porque supõe que possui a capacidade de prevê-lo. As intervereis do tempo não são só previstas como são desejadas: “Nós fazemos com que eles nos pegue de surpresa ao supormos que somos capazes de prevê-lo e de nos prepararmos para ele.” (WAGNER, 2010: 126). O homem ocidental inventa o mundo natural não da mesma forma que diversos povos tribais o inventam. O mundo artificialmente natural do homem ocidental é baseado em tentativas de controle e descontrole dele, como se fosse a própria cultura estivesse sendo ameaçada por esse mundo natural cultura: “Nós ‘fazemos uma Cultura ameaçada, acossada e motivada pelo tempo; eles fazem o ‘tempo’ como uma ‘coisa que os pertence’ – acossada e motivada pela cultura.” (WAGNER, 2010: 127).

Debater como o homem prevê o tempo, como o homem inventa o mundo natural, é debater como o homem cria suas regras, suas convenções, de forma a extrapolar próprio eu, de modo a inventar a si mesmo, a invenção cíclica do homem pelo homem, e do contexto que o torna este homem e não outro homem, que torna o mundo ocidental este e o mundo tribal um este outro. Wagner acredita que “o homem é em última instância motivado por impulsos naturais, tais como ‘instinto’, ‘propensões’ e ‘uma necessidade de gratificação’.” (WAGNER, 2010: 132), e incapaz de desligar totalmente dos instintos, surge essa ideia do homem que é pego de surpresa pelo mundo natural inventado por ele mesmo.

A invenção da cultura (2010) de Roy Wagner:

A invenção da Cultura publicado em 1975 por Roy Wagner foi contemporâneo a publicação de outros dois livros, A interpretação das culturas (1973) de Clifford Geertz e Cultura e razão pratica (1976) de Marshall Sahlins. Os dois últimos são textos apresentavam certa sintonia com o que se pensava em antropologia na época, ao contrário da obra de Wagner, que representou uma quebra com a produção de conhecimento que se tinha até em tão, reformulando as bases que haviam sustentado a disciplina por tanto tempo. Marcio Goldman expõe as diferenças entre Wager, Geertz e Sahlins da seguinte forma: “A ‘mensagem’ desses livros – ‘A interpretação da cultura’ e ‘Cultura e razão prática’ – parece tão adaptada ao momento que foram escritos que é difícil concebê-los em outro contexto qualquer. Afinal, nos dois casos se tratava, em breves palavras, de salvar o culturalismo daquilo que sempre foi o que poderíamos chamar seu melhor inimigo, a saber, o reducionismo naturalista. Ou seja, aquilo sem o que a antropologia cultural simplesmente não pode funcionar, na medida em que lhe faltaria esse seu ‘outro’, aquele que define equivocadamente sem dúvida, o que a cultura elabora, interpreta, simboliza ou transcende a natureza.” (GOLDMAN, 2011: 196).

Quando se fala de antropologia, muitas pessoas associam quase naturalmente à cultura, sobretudo ao estudo de culturas outras: “selvagens”, “primitivas”, termos já a muito tempo superados. Wagner, com o intuito de ir além do conteúdo clássico e programático da disciplina, questiona o que foi até então posto como inquestionável dentro disciplina. Apenas metodologicamente Wagner não rompe com a forma tradicional da produção de conhecimento antropológico, debruçando-se sobre esforços interpretativos, simbolizações e observações em campo. “Assim como vários outros aspectos da moderna cultura interpretativa americana, a antropologia desenvolveu o hábito de se apropriar dos meios e idiomas por meio dos quais o protesto e a contradição são expressos, fazendo deles uma parte de sua mensagem sintética e culturalmente corroborante. O exotismo e a relatividade cultural são a isca e as pressuposições e ideologias de uma cultura do empreendimento coletivo são o anzol abocanhado com a isca. A antropologia é teorizada e ensinada como um esforço para racionalizar a contradição, o paradoxo e a dialética, e não para delinear e discernir suas implicações; tanto estudantes quanto profissionais aprendem a reprimir e ignoras essas implicações, a ‘não enxerga-las’ e a imaginar as mais terríveis conseqüências com o suposto resultado de não faze- lo. Eles reprimem a dialética para que possam sê-la. Escrevi este livro, delineando explicitamente as implicações da relatividade, num esforço resoluto para combater essa tendência em todos nós.” (WAGNER, 2010: 10)

Nesse sentido, o autor caminha mostrando como se posiciona a ideia de cultura, e para tanto aponta o que há de mais singular: “o antropólogo usa sua própria cultura para estudar outras, e para estudar a cultura em geral” (WAGNER, 2010: 28), trata-se portanto de uma objetividade relativa, pois “A objetividade absoluta exigiria que a antropólogo não tivesse nenhum viés e portanto nenhuma cultura” (WAGNER, 2010:  28). Essa relação, somente se faz possível pois a figura do antropólogo é a ponte da cultura entre ele e de por quem por ele é observado na condição de objeto de estudo), e o que de fato existe é ela em si, a própria relação, pois a cultura que está sendo radiografada frutifica a partir do universo do antropólogo, este, portanto, acredita Wagner, é um inventor de culturas, “No ato de inventar outra cultura, o antropólogo inventa a sua própria e acaba por reinventar a própria noção de cultura.” (WAGNER, 2010: 31). E é isso que gera no antropólogo a necessidade de tornar a cultura uma coisa, de efetuar um processo objetivo capaz de tornar a cultura visível. E o que torna a cultura visível, são os momentos que se vive a inadequações com o ‘novo’, com o ‘diferente’. É o momento do choque cultural, onde as discrepâncias são objetificadas enquanto entidade. E é neste mesmo momento que ‘uma cultura’ é enfim inventada: “A invenção das culturas, e da cultura em geral, muitas vezes começa com a invenção de uma cultura particular, e esta, por força do processo de invenção, ao mesmo tempo é e não é a própria cultura do inventor.” (WAGNER, 2010: 37).

O inventor vive a circunstância de ser, ao mesmo tempo, forasteiro em relação ao nativo, com a missão de mergulhar no universo desconhecido, mas é ele mesmo, o antropólogo, nesta relação, que acaba por embriagar-se de sua própria cultura, é um nativo ‘metafórico’, que vive a crença de ter transcendido as culturas, enquanto, na verdade, “A relação por ele criada amarra o inventor quase tanto quanto as ‘culturas’ que ele inventa.” (WAGNER, 2010: 38). Wagner ainda usa como metáfora, afim de descrever o antropólogo,  a figura de um mensageiro evangélico que aglutina vários fiéis em uma fé cega.

A invenção da cultura garante a forma e os tons da antropologia, ou melhor, a invenção dá vida à própria antropologia. Se existem culturas, elas existem porque elas foram inventadas e se efetivaram no que foi proposto. Ao criar uma cultura, o antropólogo se vale de termos que lhe são familiares e, à medida que se vai familiarizando com a cultura estranha, crescentemente estranha sua própria cultura. “Ele inventa 'uma cultura' para as pessoas, e elas inventam 'a cultura' para ele” (WAGNER, 2010: 39). Essa invenção, porém, é inconsciente e acaba por forçar o pesquisador a obedecer às ideias e formas surgidas simultânea à criação. O inventor acaba, portanto, tendo que corresponder à própria invenção: “viríamos a apreender nossos próprios significados de um ponto de vista genuinamente relativo” (WAGNER, 2010: 46). Ver a nosso como vemos o outro, externalizando o nosso próprio nativo (inventado), o nativo que passa a nos habitar, o nativo que somos emerge assim diante de nossos olhos. E, enfim, o que Wagner cobra é uma postura mais firme diante da presunção da cultura, sendo ético e teórico. Nossa cultura sendo criativa, há de se considerar como igualmente criativas as outras: “E se criatividade e invenção emergem como as qualidades salientes da cultura, então é para elas que nosso foco deve voltar-se agora.” (WAGNER, 2010, p. 46).

O capítulo A cultura como criatividade inicia-se com algumas passagens sobre o trabalho em campo de Wagner junto ao povo Daribi. O choque cultural e adaptação ao ambiente desconhecido são as primeiras problemáticas que surgem ao antropólogo. O primeiro choques a serem superado foi a condição pessoal de Wagner. Para os ter esposa, tinha filhos e saber cozinhar sua própria comida era as necessidades mais básicas da vida, e Wagner não contemplava nenhuma desses exigências. O homem Daribi quando chega a uma certa idade, deve estar casado, e quando não está é motivo de vergonha, e um sinal de inferioridade perante o resto do grupo. Então escolher por permanecer solteiro, gerava um estranhamento na relação entre os Daribis  e o antropólogo. A própria profissão, antropólogo já era deveras motivo de desconfiança,  pois para os Daribis não era clara a importância de conhecer a história de outros povos, dessa forma não conseguiam assumir que Wagner estava entre eles por motivos profissionais. Para eles o antropólogo não cabia em nenhuma das categorias por eles jpa conhecidas: “Perguntavam-me se eu era ‘governo’, ‘missão’, ou doutor (eles recebiam visitas regulares dos membros de controle da lepra), e informados que eu não era nada disso estarreciam-se: ‘Não é governo, não é missão, não é doutor!’. Quando descobri o termo em pidgin para antropólogo, storimasta, adotei-o como rótulo para meu trabalho, e os nativos me colocaram no mesmo ‘bolo’ dos linguistas missionários que lhes eram familiares.” (WAGNER, 2010: 50). Questionavam também: “Vocês, antropólogos, podem se casar com gente do governo ou com missionários?” (WAGNER, 2010, p. 52); “Existem kanakas (isto é, “nativos”, gente como nós) nos Estados Unidos?” (WAGNER, 2010: 52). O que em realidade as perguntas dos Daribis significavam era a necessidade de localizar quais era as reais motivações de Wagner com eles e com a cultura deles. Wagner ansiava por inventar uma cultura Daribi, materializa-los, torna-los culturalmente concretos através de sua pesquisa. E neste processo, descobrir a impossibilidade de dissociar da própria cultura, a cultura de sua família norte-americana, e se viu diante de um processo que ao se relacionar com o povo Daribi afim de inventar uma cultura para eles, acabou por se ver inventando uma cultura para si e reinventando-a constantemente. Pois não é apenas o antropólogo que inventa a cultura do nativo, o nativo ao se ver frente a frente com um forasteiro, também inventa uma cultura para o antropólogo.

Compreendia-se até então a cultura sob o ponto de vista de uma sala de opera, onde o personagem no centro do palco era um homem moldado pelo próprio homem: o homem é o que o homem fez dele. Do ponto de vista antropológico, cultura nesses termos seria “uma acepção abstrata da noção de domesticação e refinamento humano do indivíduo, para o coletivo, de modo que podemos falar de cultura como um controle, refinamento e aperfeiçoamento gerais do homem por ele mesmo, em lugar da conspicuidade de um só homem nesse aspecto.” (WAGNER, 2010: 54). Para Wagner esse processo de criação do homem pelo homem era o processo “da moderação dos instintos e desejos mais ‘naturais’ do homem por uma imposição arbitrária da vontade” (WAGNER, 2010: 54), isso tudo sob a perspectiva de uma desejável, evoluída e feliz ideia de progresso.

A arte, a ciência e a tecnologia, são elementos criados e manipulados pelo homem, e que na nossa sociedade são encarados como conquistas, ou pelo menos o eram em um passado não muito distante, segundo a respectiva do progresso, como uma demonstração de maior ou menor civilidade. Dos processos de expansão do mercado no mundo antigo ao o mundo já globalizado, a sociedade ocidental historicamente levou consigo, como quem carrega no peito suas medalhas e credenciais, esses elementos de conquista, e o fazia como forma de diferenciação, de manifestação de uma suposta superioridade social perante outros povos. Wagner busca quebrar essa noção pejorativa de medição civilizatória citando um exemplo que seria moralmente repudiado na sociedade ocidental atual, mas que é perfeitamente justificável segundo uma outra perspectiva histórica e cultura: “A compra de esposas em sociedades primitivas não tem nenhuma equivalência com as trocas pecuárias do Ocidente. O dinheiro não é o importante e com certeza não é o atrativo. É a mulher que é valiosa.” (WAGNER, 2010, p. 58). Nas ilhas Salomão, onde as esposas são vendidas, o valor de troca não é o dinheiro, é a mulher. Assim a moralidade da sociedade ocidental é exposta a seguinte contradição: se por um lado repudia a venda de esposas nas Ilhas Salomão, por outro lado, o que é valioso em uma sociedade organizada segundo a logica capitalista-burguesa não é o ser humano, independentemente de se gênero ou idade, é a dinheiro, pois se fosse o ser humano o elo maior valor não existiria nos países capitalistas do mundo ocidental a condição de extrema miserabilidade humana, não existiria essa forma de reprodução da vida segundo as bases da exploração do homem pelo homem. Para o que interesse ao estudo antropológico é que a ciência não pode ser mediada pelo moralismo cultural de quem produz o conhecimento, ou se quem o lê e interpreta. A cultura de todos os povos é fruto de um processo histórico mediado pela necessidade de reprodução concreta da vida, ou seja, pela sobrevivência, é então relação dialética que se estabelecida entre a materialidade e historicidade, uma relação dialética a qual todas as sociedades estão submetidas, e também é apenas por este motivo, pelas variantes do tempo e do espaço, que cada povo se diferencia e cria para si uma moralidade pragmática.

Na produção do conhecimento antropológico, e está é a grande defesa de Wagner, a herança cultural do pesquisador não pode representar um pressuposto de análise, se por um lado não é possível dissociar homem algum da construção social que ele representa, também não é desejável que o antropólogo leia um povo construído sociologicamente sob outras circunstancias, segundo sua circunstância: “Precisamos ser capazes de experimentar nosso objeto de estudos diretamente, como significado alternativo, em vez de fazê-lo indiretamente, mediante sua literalização ou redução aos termos de nossas ideologias.” (WAGNER, 2010: 66). Isso tudo significa dizer que o antropólogo deve estar disposta não apenas a inventar uma cultura para seu objeto de estudo, como também se submeter ao processo de invenção e reinvenção da própria cultura. E Wagner vai ainda mais além nesse argumento pois defende que é a invenção em si a própria cultura. O fazer antropológico é por si dialético, pois é pensar e viver a realidade sobre a qual se pensa, é pensar sobre o que se vive em campo e de fato viver em campo. A invenção é fruto dessa dialética e é também a própria cultura. Entretanto não é apenas o fazer da antropológico que deve ser dialético, o próprio antropólogo deve também o ser. A isenção do antropológico é irrealizável, e esta é critica que Wagner aos seus predecessores da área. Se por dialética compreendemos ser a síntese entre o pensar e o viver materialmente a experiência, ao supor ser possível que o antropólogo isente sua herança cultural da experiência (matéria e pensamento) vivida em campo, supões também que ele é a própria dialética, ele não se submete a dialética pois ele se considera capaz de ser a própria dialética, ou o inventor da dialética daquele povo, o inventor da cultura: “A antropologia é teorizada e ensinada como um esforço para racionalizar a contradição, o paradoxo e a dialética, e não para delinear e discernir suas implicações; tanto estudantes quanto profissionais aprendem a reprimir e ignoras essas implicações, a ‘não enxerga-las’ e a imaginar as mais terríveis conseqüências com o suposto resultado de não faze- lo. Eles reprimem a dialética para que possam sê-la.” (WAGNER, 2010: 10). Para Wagner não é possível, nem desejável reprimir a própria dialética para construir a dialética de um povo: “antropologia é o estudo do homem mediante a presunção da cultura, uma noção que abarca os pensamentos e ações do antropólogo e dos seus objetos de estudo como variedades do mesmo fenômeno.” (WAGNER, 2010: 75). Então quando se diz que a invenção em si é cultura, ela o é na medida em que a experiência e o compreensão sobre ela não é feita a partir do nada, o antropólogo não é tábula rasa, e sim parte para o campo armado por uma base uma comunicativa de convenções partilhadas.

Para Wagner todo ser humano é um antropólogo, um inventor de cultura. Todo homem possui uma herança cultural, e possui porque todo homem nasce e cresce imerso um determinado patrão de vida materialmente e socialmente consolidado através dos séculos. Em outras palavras, todo homem possui para um conjunto de convenções compartilhadas através de uma processo de invenção coletiva da cultura. E esse conjunto de convenções são as ferramentas socias que garantem a reprodutividade da própria vida, na medida em que o torna apto a se comunidade e a compreender as experiências que se apresentam inevitavelmente ao longo da vida. São dois os aspectos elementares aqui: 1) A invenção é o princípio da cultura, e há humanidade sem cultura; 2) É cíclica a seguinte relação: a comunicação é o conjunto de associações e convenções compartilhadas, a o conjunto de associações e convenções compartilhadas é o que permite a comunicação. Expressão e comunicação são interdependentes: nenhuma é possível sem a outra. (WAGNER, 2010:76). Toda experiência e todo compreensão sobre ela, é uma de invenção, ou seja, a relação dialética entre a materialidade concreta da vida e o pensamento gerado por ela, o que elementarmente é o princípio da cultura. Mas a invenção só é possível mediante a existência de um conjunto de associações e convenções compartilhadas, pois é esse conjunto é o que é a própria comunicação e também o que gera a comunicação. A invenção só se concluir quando ela é comunicada, mas não apenas comunicada, mas é expressada, significada. Se a comunicação só “é possível mediante o compartilhamento de associações derivadas de certos contextos convencionais por aqueles que desejam se comunicar.” (WAGNER, 2010: 80), e expressão é mediada de antemão pelo contexto e pelas convenções já dadas, já naturalizadas do indivíduo e no coletivo, por exemplo “A moralidade é uma espécie de significado , um significado com direção, propósito e motivação, e não um substrato sistêmico” (WAGNER, 2010:82). Toda expressão carrega em si um significado. A invenção da cultura é uma relação dialético da experiência e do pensamento, e para tal é necessário a preexistência um conjunto de informações, mas esse processo só se conclui mediante o esforço comunicativo, e o esforço comunicativo é também expressivo, ou seja o ato de expressar algo carrega em si um significado fruto dos sentimentos individuais ou coletiva gerados da experiência vivida, o só se expressa algo através do esforço comunicativo. Ou seja, assim como o antropólogo ou homem algum no mundo, não é tabula rasa, a invenção também não parte do nada, nunca há uma primeira invenção, há um ciclo continuo de invenção e reinvenção da cultura gerado pelo espontaneísmo e pela criatividade tipicamente humana.

Wagner explica o aspecto cíclico da invenção da cultura da seguinte forma: “Os vários contextos de uma cultura obtêm suas características significativas uns dos outros, por meio da participação de elementos simbólicos em mais de um contexto. Eles são inventados uns a partir dos outros, e a ideia de que alguns dos contextos reconhecidos em  uma cultura são "básicos" ou "primários", ou representam o "inato",  ou de que suas propriedades são de algum modo essencialmente objetivas ou reais, é uma ilusão cultural.” (WAGNER, 2010: 83). Essa ilusão é a chave no processo, “uma ilusão necessária, que faz parte do viver em uma cultura e do inventá-la” (WAGNER, 2010, p. 83), é , desenhando-se o mundo à maneira como se crê, que a cultura é experiênciada e inventada continuamente, não somente perpetuando seus contextos nesse processo de “invenção uns a partir dos outros e uns por meio dos outros” (WAGNER, 2010, p.94), como também os estendendo pois não apenas se mantém o que se aprende, como também se adapta o que foi ensinada as novas realidades que possuam concretamente surgir:“Isso significa que não podemos apelar para a força de algo chamado ‘tradição’, ‘educação’ ou orientação espiritual para dar conta da continuidade cultural – ou, na verdade, da mudança cultural. As associações simbólicas que as pessoas compartilham, sua ‘moralidade’, ‘cultura’, ‘gramática’ ou ‘costumes’, duas ‘tradições’, são tão dependentes de continua reinvenção quanto as idiossincrasias, retalhes e cacoetes que elas percebem em si mesmas ou no mundo que as cerca. A invenção perpetua não apenas as coisas que ‘aprendemos’, como a língua ou boas maneiras, mas também as regularidades de nossa percepção, como cor e sim, e mesmo o tempo e o espaço.” (WAGNER, 2010, p.94).

O coletivo e o convencional dialogam com o individual e idiossincrático, desta forma fazem sentido, “contextos coletivos só podem ser retirados e reconhecidos como tais ao serem continuamente filtrados através das malhas do individual e do particular, e as características individuais e particulares do mundo só podem ser retiradas e reconhecidas com tais ao serem filtradas através das malhas do convencional.” (WAGNER, 2010, p.95) É a convenção que define sob quais circunstâncias o ator irá movimentar. Em um só momento, a invenção se dá com o intuito de ratificar a orientação convencional, conforme o texto: “A necessidade da invenção é dada pela convenção cultural e a necessidade da convenção cultural é dada pela invenção.” (WAGNER, 2010, p. 96). Estas têm entre si, portanto, uma relação dialética, o que configura uma relação de interdependência: “Inventamos para sustentar e restaurar nossa orientação convencional; aderimos a essa orientação para efetivar o poder e os ganhos que a invenção nos traz.” (WAGNER, 2010, p.96).

A Invenção do eu, quarto capítulo, propõe um debate a respeito do enorme poder da inovação científica e tecnológica, e importância dada esse poder no mundo contemporâneo

É do senso comum afirmar que a ciência possui a função de desenvolver mecanismos que tornam a nossa vida mais no presente mais adaptável e no futuro mais seguramente previsível, mediando e prevenindo acontecimentos. Nós acreditamos assim que ao possuir a ciência, possuímos também a capacidade de controlar o mundo natural. Wagner não acredita que há fundamentos reais para essa crença. O autor defende que que tudo o que temos em mãos, e tudo o que supomos ser nossas ferramentas de controle na natureza, são na realidade o conjunto de conhecimentos do homem, é a nossa ciência e a nossa arte. Entretanto, a nossa ciência e a nossa arte é o conjunto de convenções que temos para inventar o mundo natural e fenomênico. Ao afirmar categoricamente que o mundo natural completamente previsível ao homem, mascaramos o fato de que na realidade ele é uma criação nossa. O mundo natural como o compreendemos, esse que somos capaz de nos adaptar e prever, não passa de uma artificialidade do natural, pois é fruto da manipulação feita pelo próprio homem. Assim como o homem na sala de ópera é moldado por homem, o mundo natural como o teorizamos é também obra homem.

Tomemos o tempo como exemplo, tanto em seu aspecto meteorológico, quanto eu seu aspecto de contagem quantitavamente  temporal na vida humana. Para Wagner a prepotência do homem está em acreditar que ele pode fazer com que ambos os eventos nos atinja de surpresa em meio a nossa própria invenção. É confuso mas interessante. O homem inventa esse mundo supostamente natural, como também no mesmo ato permite que esse mundo natural pegue a ele mesmo de surpresa, isso porque supõe que possui a capacidade de prevê-lo. As intervereis do tempo não são só previstas como são desejadas: “Nós fazemos com que eles nos pegue de surpresa ao supormos que somos capazes de prevê-lo e de nos prepararmos para ele.” (WAGNER, 2010: 126). O homem ocidental inventa o mundo natural não da mesma forma que diversos povos tribais o inventam. O mundo artificialmente natural do homem ocidental é baseado em tentativas de controle e descontrole dele, como se fosse a própria cultura estivesse sendo ameaçada por esse mundo natural cultura: “Nós ‘fazemos uma Cultura ameaçada, acossada e motivada pelo tempo; eles fazem o ‘tempo’ como uma ‘coisa que os pertence’ – acossada e motivada pela cultura.” (WAGNER, 2010: 127).

Debater como o homem prevê o tempo, como o homem inventa o mundo natural, é debater como o homem cria suas regras, suas convenções, de forma a extrapolar próprio eu, de modo a inventar a si mesmo, a invenção cíclica do homem pelo homem, e do contexto que o torna este homem e não outro homem, que torna o mundo ocidental este e o mundo tribal um este outro. Wagner acredita que “o homem é em última instância motivado por impulsos naturais, tais como ‘instinto’, ‘propensões’ e ‘uma necessidade de gratificação’.” (WAGNER, 2010: 132), e incapaz de desligar totalmente dos instintos, surge essa ideia do homem que é pego de surpresa pelo mundo natural inventado por ele mesmo.

A invenção da cultura nada mais é, genericamente, do que uma renovação constante de convenções que já tenham sido anteriormente construídas. O processo de aprendizado de uma criança se dá através de uma sucessão de tentativas de erros e acertos, em um processo constante de renovação. “As línguas literalmente ‘falam a si mesma’ em outras línguas, e as sociedades vivem a si mesmas em novas formas sociais.” (WAGNER, 2010: 167), assim como a criança, a língua falada e a sociedade, estão igualmente imersos em uma constância de renovações, em um contínuo processo de evolução, progresso. O povo é a língua que fala. A língua que o povo fala é a ‘comissão de frente’ dessa sociedade. Falando sobre nações ocidentais e povos tribais, existe ainda uma diferenciação em relação à maneira como eles veem a língua, onde os ocidentais a colocam como objeto  de controle tanto interno, deles próprios como reguladores deles mesmo e controle e opressão de nações supostamente mais “fracas”, povos tribais estes que colocam a língua como algo controlado por eles, algo deles, da cultura deles, não como uma ferramenta de nivelamento. Assim o homem inventa e reinventa sua sociedade, e usa por excelência a linguagem como ferramenta reguladora.

A invenção da antropologia (o último capítulo do livro), aprofunda as questões suscitadas no início. A antropologia estruturou-se com base na diferenciação binária entre natureza e cultura, e o autor caminhou desconstruindo essa concepção ao longo da obra como vimos. Nesse sentido, apontando para base dos estudos antropológicos, o ser humano, Wagner implode o pseudo-antagonismo que supostamente haveria e sob o qual muita antropologia se fundamentara.

“O homem sempre foi cultural, assim como sempre foi natural.” (WAGNER, 2010: 207). Isso significa que é impossível dissociar essas esferas que, na verdade, compõem a mesma unidade do ‘humano’. E, assim, o autor novamente reitera a inventiva criatividade do ser humano, que ao mesmo tempo é um mediador de coisas, mas é igualmente permeável às coisas, aos pensamentos, às fantasias. Ele, ser humano, cria as coisas, ele se transforma nelas, e é ele próprio a coisa em si. Sua humanidade, portanto, não é inata, mas se trata de “um incremento do viver por meio de outras pessoas e coisas e do deixá-las viver por meio dele” (WAGNER, 2010, p. 212). O ser humano é o devir.

Muito instigante e ousado, da parte do autor, é o intertexto que ele faz com as ciências biológicas, particularmente a perspectiva evolucionista. Desse modo, não é concebível pensar que os primeiros homicídios eram aculturados, que seria pois 100% “natureza”, o homem-animal. Cultura e natureza sempre fizeram parte do ser humano, mas o autor vai além e lança uma provocação, se há animais ‘culturados’, por que pensar que há/houve humanos aculturados. A segmentação entre natural e cultura é insustentável, para além do saber antropológico.

Diante de tudo isso e do debate de qual seria essa antropologia, sim, partindo da linha de invenção, ela mesma a antropologia enquanto invenção, Wagner crê que se deva assumir firmemente a postura inventiva, com plena consciência deste viés por  parte do antropólogo. Há contradições, diferenças, ilusões... os caminhos que A invenção da cultura aponta é o norte, sul, leste, oeste, de possibilidades. É a transparência da antropologia que inventamos que possibilitará que a potência criativa se concretize, potência essa eminentemente (mais que) humana.

Referência bibliográfica:

WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

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