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O Estado e a sociedade civil no século XXI Por Márcia Moussallem Professora Doutoranda – PUC – São Paulo – 2009

Este artigo tem o objetivo de analisar as transformações e o papel do Estado e da sociedade civil, diante das novas expressões da questão social contemporânea. Entretanto apesar da abrangência do tema, procurou-se fazer um resgate inicial do processo histórico do Estado, em direção aos novos desafios e mudanças em todas as sociedades, no que diz respeito à esfera social, política, econômica, ideológica e cultural.

No primeiro momento é necessário fazer um recorte na História, frente à amplitude e as nuances dos processos históricos das sociedades, e mais especificamente da América Latina, no qual engloba processos históricos estruturais de questões relacionadas à colonização, lutas pela independência, tipos de Estado e políticas sociais (Wanderley, 2004).

A consolidação do Estado do bem estar social não aconteceu da mesma maneira em todos os países. As peculiaridades da formação do Estado e as suas relações nos países latino-americanos englobam questões estruturais que se fundam nas relações culturais, ideologias, sociais, políticas e econômicas de classes.

No Brasil, ao contrário dos países desenvolvidos, a formação do Estado foi marcada pelo autoritarismo, patrimonialismo e fisiologismo, assumindo um padrão historicamente marcado por duas características: Um sistema burocrático e administrativo denominado neopatrimonialista e o segundo, o despotismo burocrático (Simon Schwartzman, 1988).

O autor destaca: O problema crucial dos Estados contemporâneos de origem burocrático-patrimonialista é de como fazer uma transição de uma estrutura ineficiente e pesada e embebida por um sistema de valores ultrapassado e conservador, para uma estrutura ágil, moderna e capaz de elevar o efeito, finalmente, a passagem do subdesenvolvimento e atraso ao desenvolvimento e justiça. (Simon Schwartzman, 1988, p.10)

Robert Castel (2004) destaca que a própria realidade latinoamericana é una e diversa e comporta várias características. Para esse entendimento o autor contribui ao analisar a questão social da seguinte maneira: (…) a questão social fundante que permanece vigendo sob formas variáveis nesses 500 anos do descobrimento aos nossos dias, centra-se nas extremas desigualdades e injustiças que reinam na estrutura social dos países latino-americanos, resultantes dos modos de produção e reprodução social, dos modos de desenvolvimento, que se formam em cada sociedade nacional e na região em seu complexo. Ela se funda nos conteúdos e formas assimétricas assumidos pelas relações sociais, políticas, culturais, religiosas, com acento na concentração de poder e riqueza de classes e setores sociais dominantes e na pobreza generalizada de outras classes e setores que constituem as maiorias populacionais, cujos impactos alcançam todas as dimensões da vida social, do cotidiano às determinações estruturais (pág 58).

Denota-se dessas análises iniciais do Estado nos países da América Latina no caso aqui citado o Brasil, características estruturais e especificas de um Estado de caráter “patrimonialista” e “dissipador” que desde a colonização se desresponsabiliza com a proteção à população de excluídos.

Nos países desenvolvidos, o chamado Welfare State foi consolidado na defesa e na garantia dos direitos sociais com vistas à criação de políticas universalistas de maior equidade para atender as necessidades fundamentais do cidadão. Maria do Carmo Brant de Carvalho (1999) ressalta que este modelo engendrou um modo especifico de gestão social com características de uma gestão centralizada no Estado-Nação; a primazia do Estado regulador; a gestão das políticas sociais universalistas e a consolidação da sociedade salarial.

O Estado de bem estar social, surge a partir do pós-guerra em um contexto histórico marcado por crises e desigualdades. A resposta estava na criação de um sistema de direitos e políticas sociais de amparo e proteção aos trabalhadores.

A partir dos anos 80 e 90, assistimos um desmonte da política universal de direito, acompanhado por um conjunto de crises conjugadas em uma relação turbulenta e complexa, provocadas pelos processos de globalização, os avanços tecnológicos, o desemprego, o aumento da pobreza e dos novos padrões sociais e culturais.

Partindo dessa reflexão inicial podemos entender os diferentes processos históricos e mais precisamente da segunda metade do século XX e inicio do século XXI, as mudanças do papel do Estado e as novas relações com a sociedade civil. Os fenômenos da globalização mundial, os avanços da ciência e da tecnologia, o acelerado processo de urbanização mundial, o enfraquecimento do Estado Nação, o fim da política russa de regime socialista, as transformações no mundo do trabalho, as novas identidades culturais desencadearam mudanças significativas nas relações do Estado, mercado e sociedade civil ( Moussallem, 2008). Tais fenômenos são tomados por um ciclo histórico inteiramente novo de mudanças rápidas e continuas desencadeando mudanças em todas as esferas e transformações socioculturais nas sociedades.

O sociólogo Polonês Zygmunt Bauman (1999, p.67) analisa brilhantemente no livro Globalização conseqüências humanas, esse fenômeno contemporâneo caracterizando-o como: “indeterminado, indisciplinado e de autopropulsão dos assuntos mundiais; a ausência de um centro de um papel de controle; de uma comissão diretora; de um gabinete administrativo. (…) A globalização é a nova desordem mundial”. Nesta mesma obra, o autor chama atenção para as transformações que vem ocorrendo mundialmente nos Estados. O que assistimos neste novo momento histórico é um novo mecanismo de ordenação onde os três pés do tripé da soberania foram quebrados: “a auto-suficiência militar, econômica e cultural do Estado e de qualquer Estado”. O autor faz a seguinte analogia: “no cabaré da globalização, o Estado passa por um strip-tease e no final do espetáculo é deixado apenas com as necessidades básicas: seu poder de repressão. Com a base material destruída, sua soberania e independência anuladas, sua classe política apagada, a nação-estado torna-se um mero serviço de segurança para mega-empresas” (Bauman, p.74).

São fundamentais as reflexões que Bauman traz, contribuindo para a análise mais aguçada, diante da nova lógica do Estado capitalista em que, as políticas de proteção coletiva tornam-se cada vez mais distantes. As consequências dessa nova ordem fragilizam, reduzem e pressionam os Estados aniquilando o seu poder de ator soberano, transformando-os em “Estados Fracos”, e meros distritos policiais e garantidores da ordem necessária para que os negócios de uma elite global possam fluir.

Alguns teóricos analisam este novo contexto, destacando mais precisamente as décadas de 80 e 90, como uma avalanche da política neoliberal, focada na idéia de um Estado mínimo e na primazia do mercado para a superação da crise. Os governos neoliberais procuraram reestruturar o Estado do bem-estar social através da transferência de atividades de órgãos públicos estatais às empresas privadas, organizações sociais de caráter público não estatal (ONGS contratadas pelo Estado) ou parcerias entre autarquias governamentais e entidades privadas (Singer, 1999).

Listz Vieira (2005) por outro lado destaca, que além dos fenômenos da globalização mundial, os acontecimentos relacionados à democratização da América Latina trouxeram uma nova perspectiva e um novo comportamento dos atores sociais, onde o novo modelo de construção dos espaços públicos são redesenhados frente a nova ordem social e redefinição das ralações entre a sociedade civil e o Estado.

Brant de Carvalho (1999:20) analisa e contribui para esse entendimento reforçando: “As compressões políticas e econômicas globais; as novas demandas de uma sociedade complexa; os déficits públicos crônicos; a revolução informacional; a

transformação produtiva; desemprego e precarização das relações de trabalho; a expansão da pobreza; e o aumento das desigualdades sociais são alguns dos tantos fatores que engendram demandas e limites e pressionam por novos arranjos e modo de gestão da política social”. Ele define esses novos arranjos sociais, como uma forma de gestão compartilhada de responsabilidades, que combinam os distintos recursos do Estado e do mercado com as iniciativas das organizações da sociedade civil. Nesse contexto mundial de retração do Estado e da perda do status do trabalho como vetor da inclusão social, a sociedade civil vem se apresentando como defensora legítima dos interesses dos cidadãos no espaço público e na luta pela melhoria da qualidade de vida.

É inegável que as transformações mundiais ocorridas nas últimas décadas, com a globalização política, econômica, social e cultural têm favorecido o enfraquecimento dos Estados nacionais frente ao seu papel garantidor dos direitos de cidadania. Esta mudança força ou até mesmo empurra a participação dos cidadãos, por meio da proliferação de organizações da sociedade civil em busca de alternativas para a solução dos problemas socais (Moussallem, 2008).

Entretanto não cabe aqui mitificar ou endeusar as organizações da sociedade civil, e nem mesmo reforçar as idéias e os princípios do neoliberalismo, até porque, essas organizações não substituem a importância do Estado como garantidor universal dos interesses da coletividade, papel este que deveria moralmente ser concretizado.

A reflexão está em compreender e criar alternativas reais para as questões sociais que atingem todas as sociedades, em especial os países subdesenvolvidos e os em desenvolvimento.

Anete Ivo (2006) ressalta que o processo de democratização da sociedade brasileira e os próprios compromissos internacionais no combate à pobreza, consolida-se no compromisso de toda a sociedade perante essa questão que atinge todo o planeta. A autora destaca: (…) O apoio de uma ampla rede de sociabilidade comunitária, a partir de práticas solidárias – algumas de caráter filantrópico –, muitas vezes alternativas à ausência do Estado, ou seja, as mudanças e diagnósticos críticos quanto à ação restritiva do Estado no âmbito das políticas sociais, assim como o capital social preexistente, de algumas ONGs, entidades filantrópicas, têm solidificado o caráter emergencial e estratégico da ação humanitária em favor das camadas mais pobres da sociedade (…) pág,76.

As análises e contribuições dos autores aqui citados são relevantes para o entendimento, a reflexão e o questionamento dessa nova ordem contemporânea. Realidade esta analisada pelo sociólogo Bauman como das incertezas, das muralhas não sólidas, da fluidez, da individualização, da mobilidade e da liberdade ilusória.

As perguntas são muitas e as respostas são poucas e claras no que diz respeito ao presente e ao futuro da humanidade. Mas, sabemos que somos nós, seres humanos, responsáveis pelos nossos destinos, e que podemos construir caminhos que nos levem em direção a políticas universais, ações e alternativas sociais a partir de uma teia tecida de compartilhamento, cuidado e responsabilidade em beneficio dos interesses da coletividade. Não é fácil construirmos essa teia em um sistema capitalista perverso e cruel, mas, pode e deve ser possível a partir do resgate e da reconstrução de princípios e valores humanitários por toda a sociedade, em defesa dos mais pobres e excluídos.

 

 

Bibliografia

BAUMAN, Zygmunt. A Sociedade individualizada - vidas contadas e histórias vividas. Rio de Janeiro: Zahar,2008. _____________________. Identidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005. _____________________. Globalização - As conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar,

1999. _____________________. Comunidade - A busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. CARVALHO, M.C.Brant. A reemergência das solidariedades microterritoriais na formação da política contemporânea. In São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação Seade, n.4, out-dez/1997. CARVALHO, M.C.Brant. Apostas contemporâneas nas organizações solidárias da sociedade civil. In São Paulo Perspectiva, vol.12/4-1998. CARVALHO, M.C. Brant. Sociedade civil, Estado e Terceiro Setor. In São Paulo em Perspectiva, Revista da Fundação Seade, vol.12/4-1998. CASTEL, Robert; WANDERLEY,Luiz Eduardo;; WANDERLEY, Mariangela. Desiguldade e a questão social. São Paulo: Educ, 2004. IVO, Anete Brito Leal. A reconversão da questão social e a retórica da pobreza nos anos 1990. Buenos Aires: Ciências Sociais, Coleção Clacso-Crop.2006. MOUSSALLEM, Márcia. Associação privada sem fins econômicos- da filantropia à cidadania. São Paulo: Plêiade, 2008. SHAWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. Rio de Janeiro: Campus, 1988. WANDERLEY, Luiz Eduardo; CASTEL, Robert; WANDERLEY, Mariangela. Desigualdade e a questão social. São Paulo: Educ, 2004. VIEIRA. Listz. Os argonautas da cidadania- sociedade civil na globalização. Rio de Janeiro: Record, 2001.

 

 

ATIVIDADE PROPOSTA

 

A partir da leitura efetuada, comente, criticamente, a seguinte assertiva:

“As organizações da sociedade civil – nelas as ONGs, em seu relacionamento com o Estado – podem assumir duas formas distintas de atuação: podem atuar em conjunto com o Estado – pela firmação de parcerias com o poder estatal e na produção de consensos a partir dos processos deliberativos –, ou podem assumir uma postura de tensão (accountability) no sentido de exercer controle e oposição aos parâmetros das políticas estabelecidas pelo Estado”.

 

Considere em sua resposta que a expressão ‘sociedade civil’ requer precisão conceitual. A popularização do termo e a decorrente entrada em cena de novos sujeitos no espaço público permitem observar uma complexa ramificação no que se refere a sua atuação. Envolve desde grandes questões sociais de abrangência global até micro discussões de âmbito local e extremamente restritas – o que acaba englobando uma imensa quantidade de entidades e organismos, entre os quais estão as organizações não-governamentais (ONGs).

Some-se a isso a definição de sociedade civil trazida por Pinto (2004, p. 102) para quem [...] a sociedade civil não só não inclui todos os cidadãos, como também tem uma existência concreta, que vai muito além da presença de cidadãos e cidadãs. Sociedade civil tem a ver com organizações, têm a ver com presença de cidadãos agindo de forma coletiva em diversas áreas da vida cotidiana, cívica, religiosa, cultural, artística, sindical, associativa, voluntária, que se formalizam em movimentos sociais, igrejas, clubes, associações e ONGs, dentre outras. [PINTO, Céli. A sociedade civil institucionalizada. Política e Sociedade, Florianópolis, n. 5, p. 99-116, 2004]

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Relações Internacionais

diantes dos estudos abordados existe uma analise que se embasa em...

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