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Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nesse e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile. Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe: — Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá. Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha: — Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico. Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça: — Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária! ASSIS, Machado de. Um apólogo. In: Para gostar de ler: contos (volume 9). São Paulo: Ática, 1984. p. 59. 19 20 21 22 23 24 Acolchetar: pôr na roupa um tipo de grampo ou botão (colchete) para enfeitá-la. Mofar: zombar; ridicularizar. Mucama: criada. Ordin‡rio: de qualidade inferior. Glossário Joaquim Maria Machado de Assis nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 21 de junho de 1839. De origem humilde, sabe-se pouco a respeito de sua infância. Consta que tenha ajudado a madrasta a vender doces e, mesmo sem frequentar a escola, tenha aprendido a língua francesa com um confeiteiro que trabalhava em uma pada- ria que frequentava. Escreveu poemas, peças teatrais, crônicas, contos e romances. É considerado pela crítica especializada o escritor brasileiro mais influente de todos os tempos. Entre seus principais livros estão os romances Memórias póstumas de Brás Cubas (1881) e Dom Casmurro (1899). O escritor Carlos Drummond de Andrade, em 1959, dedicou um poema a Machado qualificando-o como “bruxo”. Desde então, o apelido de “Bruxo do Cosme Velho”, bairro onde viveu a maior parte da sua vida, consagrou-se. A origem do apelido é incerta, mas dizem que Machado costumava queimar documentos e papéis velhos no jardim de sua casa... dentro de um caldeirão! B I O G R A F I A F u n d a ç ã o B ib lio te c a N a c io n a l 1 Que fato no texto demonstra que se trata de uma ficção que se opõe à realidade cotidiana? O fato de objetos de costura conversarem: agulha, linha e alfinete. 2 Levando em consideração que o texto é um conto, por que não podemos dizer que essa narrativa é uma men- tira que deixa o leitor indignado? A narrativa não é uma mentira porque se trata de um conto, uma obra de ficção cuja leitura se inicia com “Era uma vez”, recurso típico dos contos de fadas. Sendo assim, o leitor espera ler fatos inventados que nem por isso são mentirosos. 3 Com base nas respostas dadas às questões 1 e 2 e na definição da palavra apólogo no Glossário, explique como podemos verificar a verossimilhança interna no texto de Machado de Assis. O texto tem coerência com a proposta de um apólogo, uma vez que a história é uma invenção que ilustra comportamentos humanos, evidentes nos diálogos entre linha, agulha e alfinete, cujas personalidades são absurdas para objetos na vida real, mas têm compatibilidade com a postura arrogante, submissa ou conselheira de seres humanos reais. 138 R ED A Ç Ã O M Ó D U LO 10 PH6_EF2_133a141_RED_C2_M10.indd 138 11/7/17 3:47 PM 4 A verossimilhança interna sustenta-se pela criação de um mundo ficcional no qual os fatos e as carac- terísticas estão conectados por uma coerência que nos permite estabelecer relações e fazer previsões. O próprio discurso dos personagens linha, agulha e alfinete já nos aponta como eles vão se comportar na narrativa. a) Retire do texto uma fala que melhor represente o comportamento de cada um dos personagens. Agulha: “Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...”. Linha: “Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.” Alfinete: “Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.” b) Defina cada personagem. A agulha é trabalhadora e realiza um “trabalho de bastidor” para a linha aparecer. A linha é arrogante e soberba, pois se considera mais importante que a agulha. Já o alfinete é observador e conselheiro, por perceber a dinâmica da relação das duas e alertar a agulha. 5 A própria definição de apólogo, juntamente com a interpretação da história, evidencia que também há verossimilhança externa na narrativa. Explique. É evidente que o autor se inspirou em situações e personalidades reais para compor o texto, que guarda coerência com a vida que levamos. A linha nada mais representa do que pessoas soberbas que se consideram melhores que as demais, ao passo que a agulha representa os indivíduos que, sem perceber, servem a essas pessoas que os inferiorizam e não têm nenhum reconhecimento pelo esforço; finalmente, o alfinete toma a posição dos que percebem as injustiças e abrem os olhos dos que se submetem aos arrogantes. 6 Cite ao menos duas situações reais presentes na socie- dade que foram representadas pelo relacionamento entre linha e agulha. Sugestão de resposta: os jovens que alcançam suas vitórias pessoais e não valorizam todas as condições que os pais lhes deram para que isso acontecesse; os artistas que desprezam os fãs, que contribuem para o seu sucesso; os políticos que ignoram as necessidades da população que os elegeu e muitas vezes desviam o dinheiro público, entre outras situações. 7 No final do texto (parágrafos 23 e 24), há um diálogo entre o narrador e um personagem a quem chama “pro- fessor de melancolia”, ou seja, uma pessoa experiente e conhecedora desse sentimento de tristeza. Nesse mo- mento, notamos que a narrativa é realista, ou seja, que ela apresenta de forma clara verossimilhança externa. a) Explique o porquê, relacionando o desfecho ao res- tante do texto. Quando o narrador disse que contou aquela história a um professor de melancolia, ele torna possível na realidade tudo o que foi narrado entre linha, agulha e alfinete, porque a situação em que uma pessoa conta uma história para a outra é perfeitamente aceitável segundo os padrões do cotidiano. 139 R ED A Ç Ã O M Ó D U LO 10 PH6_EF2_133a141_RED_C2_M10.indd 139 11/7/17 3:47 PM b) Interprete a fala do professor, levando em conside- ração que ele é uma pessoa experiente e madura. A que espécie de situação ele estaria se referindo? Por se tratar de uma pessoa madura, mais experiente que o narrador, é provável que tenha se lembrado de vários momentos de sua vida. Assim, estaria se referindo à totalidade de múltiplas situações de não reconhecimento acumuladas ao longo da vida. 8 No conto “Um apólogo”, você deve ter notado que os personagens em geral são objetos e não têm nome próprio, além de o autor usar termos generalizantes, como “uma agulha”, “um novelo”, “muita linha ordiná- ria”, entre outros. Qual é o efeito de sentido que essa generalização produz? Explique. A generalização torna a situação retratada exemplar. A presença de elementos textuais indefinidos e o fato de os protagonistasserem objetos garantem a possibilidade de associação das ideias às mais variadas situações cotidianas. DESENVOLVENDO HABILIDADES René Magritte. La trahison des images (A traição das imagens), 1929 (óleo sobre tela, de 63,5 cm × 93,98 cm). Museu de Arte do Condado de Los Angeles. R e n e M a g ri tt e , C e c i n ’e s t p a s u n e p ip e , 1 9 4 8 1 A imagem acima é famosa. Nela, há uma frase em fran- cês cuja tradução para o português é “Isso não é um cachimbo”. Ela se aplica ao conteúdo de verdade, men- tira, ficção e verossimilhança porque: a) a frase é uma mentira, pois vemos realmente um cachimbo. b) a imagem não é de um cachimbo, logo a frase é verdadeira por isso. c) vemos a imagem de um cachimbo e não o objeto em si; logo, a frase trata da verossimilhança. d) a arte, representada pela pintura, trabalha com a verdade real e a imagem do cachimbo está enga- nando o leitor, conforme diz a frase. Leia a seguir o trecho de uma reportagem da revista Veja para responder às questões 2 a 4: Nesta sexta-feira, a internet brasileira foi tomada pela história de Katie e Dalton Prager, que morreram com poucos dias de diferença, e são conhecidos nos Estados Unidos como o casal de carne e osso de A culpa é das estrelas, o best-seller de John Green levado ao cinema com Shailene Woodley (Divergente) no papel principal. A associação de Katie e Dalton com o enredo é, na verdade, posterior à eclo- são do livro: os dois são chamados pela imprensa americana de “the real couple” (“o casal real”) de A culpa pela semelhança entre a sua história e a de Green. O autor, porém, teve inspi- ração em outra pessoa para o livro: uma outra menina que ele conheceu e morreu de câncer em 2010, Esther Grace Earl. Id e á ri o L a b /A rq u iv o d a e d it o ra R ED A Ç Ã O » M Ó D U LO 10 140 PH6_EF2_133a141_RED_C2_M10.indd 140 11/7/17 3:48 PM Esther morreu em 2010, aos 16 anos de idade, de câncer de tireoide. Ela era uma grande amiga do autor John Green, e apoiou seu desejo de escrever o livro. Em 2006, a garota foi diagnosticada com câncer e passou a ter dificuldades para res- pirar, necessitando de um tanque de oxigênio sempre ao lado. Esther tinha uma presença muito grande na internet em redes sociais como Twitter e Tumblr, mas ficou bem conhecida por ser uma vlogger (na era pré-Youtubers) com vídeos engraçados. Em 2009, John Green e a garota se conheceram em uma conferência de fãs de Harry Potter e ali iniciaram uma ami- zade, que durou até 25 de agosto de 2010, quando ela morreu. O autor lamentou muito a morte da amiga e até gravou um vídeo que foi publicado no canal dela no Youtube. Disponível em: <http://veja.abril.com.br/entretenimento/ conheca-a-menina-que-inspirou-a-culpa-e-das-estrelas>. Acesso em: 27 jan. 2017. 2 A história de Katie e Dalton Prager relaciona-se à pintura do cachimbo, ambas trabalhando o tema da verossimi- lhança, porque: a) a imagem parece ser um cachimbo, mas não é, assim como a história do livro parece ser a desse casal, mas a reportagem mostra que não é. b) a imagem representa criativamente o objeto real do cachimbo, do mesmo modo que a história ficcional do casal ilustra os personagens do livro. c) a imagem, com base nas cores e na forma, tem coerência com a proposta de uma pintura, assim como os fatos vividos por Katie e Dalton Prager também têm coerência interna com uma narrativa ficcional. d) a imagem é um cachimbo tal como a história do casal inspirador da obra é exatamente a contada no livro. 3 O fato de a história de Katie e Dalton Prager ter ocorrido após a publicação do livro e ser tratada pela imprensa americana como “o casal real” mostra que o livro: a) conta uma mentira. b) não tem verossimilhança externa. c) conta uma verdade exata e específica. d) tem verossimilhança externa. 4 Sabendo que o livro A culpa é das estrelas é classificado como ficção juvenil, assinale a alternativa correta. a) Devemos acreditar que a história é real, pois conta a verdadeira história de Esther Grace Earl. b) Os dados biográficos de Esther Grace Earl nos aju- dam a entender a história do livro, inclusive propor- cionando-nos maior prazer na leitura. c) O livro pode até ser “baseado em fatos reais”, mas, como toda ficção que se inspira na realidade, não podemos crer que tudo no enredo ocorreu daquele modo na vida de Esther Grace Earl. d) Não é possível encontrar acontecimentos típicos de adolescentes e de pacientes com câncer que não tenham se consumado na vida de Esther Grace Earl, pois a história ficaria incoerente, já que trabalha exclusivamente com a verossimilhança externa. ANOTAÇÕES Esther Grace Earl teria inspirado o amigo John Green a escrever A culpa é das estrelas. w w w .T S W G O .o rg /D iv u lg a • ‹ o 141 R ED A Ç Ã O » M Ó D U LO 10 PH6_EF2_133a141_RED_C2_M10.indd 141 11/7/17 3:48 PM