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quando a sorte sangra CAPRICHOS DO DESTINO LIVRO 1 CASEY L BOND TRADUÇÃO ERIKA ROBLES Copyright © 2019 Casey L. Bond Título Original: When Wishes Bleed Preparação: Thátia Gonçalves Capa, mapa e carta de tarô: Melissa Stevens – The Illustrated Author Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e situações são produtos da imaginação do autor ou usados como ficção. Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência. Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes, através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados. Todos os direitos desta edição reservados à: DL BOOKS EDITORA contents Untitled Untitled Untitled Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Untitled Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Untitled Capítulo 22 Capítulo 23 Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Epílogo Outros Livros da Autora Sobre a Autora Notes Quando a Sorte Sangra Casey L. Bond Tradução Erika Robles Dedicatória: Para Misty, Por me mostrar a magia na amizade. Os Setores 1 até 4 — Os Setores Centrais 5 e 6 — As Artes 7 e 8 — Industriais 9 até 10 — Agropecuária 12 — Madeira 13 — Forca PARTE UM: Quando a Sorte Sangra um AS PONTAS DOS MEUS DEDOS, até unhas, estavam azul gelo apesar do ar quente e seco do outono. Elas doíam e latejavam conforme bombeava água em uma chaleira e formigavam enquanto a carregava de volta para dentro e pendurava sobre o fogo. Nada além da morte as traria de volta a vida a esta altura. Passei os dedos congelados pela cintura e esperei pacientemente que ela chegasse. Estava quase aqui, ainda bem. Tinha negócios importantes para resolver hoje, mas as duas leituras que o Destino exigia eram prioridade. Peguei as folhas de chá e as empilhei em um montinho na bancada, depois coloquei três xícaras atrás. Para as bruxas para quem fazia a leitura, deviam parecer idênticas, mas cada uma tinha uma marca própria e segredos que só ela poderia revelar. Hoje era meu aniversário, e meu poder e eu agora éramos considerados maduros. Destino, eu sabia muito bem, era real. Não era um conceito obscuro da sorte, ou um sonho do que o futuro poderia trazer. E com certeza não era a sorte ou um poço dos desejos. Era senciente e muito vivo. Eu era a filha do Destino, e ele vivia dentro de mim. Quando era criança, era gentil com suas exigências, mas hoje não restava nenhuma gentileza. Os sussurros fáceis se tornaram gritos, e ultimamente, os cutucões de orientação se tornaram empurrões bruscos. Destino me empurrava agora, evidenciado pelos congelados e necróticos dedos e a rigidez se apoderando das articulações, mas aprendera a revidar. Quase sempre escutava quando prometia fazer o que ele queria a tempo, mas hoje estava impaciente. Queria que um homem balançasse na forca, e que eu o colocasse ali. Eu queria enforcá-lo, para ser honesta. Queria que a pontada de agulha da dor desaparecesse, ser capaz de alongar os ossos, e que a sensação retornasse por completo para as partes que pareciam adormecidas. A única coisa me segurando era o fato que nenhum crime havia sido cometido, ainda. Sempre confirmava para garantir. Destino me avisava que uma ofensa aconteceria, e que se esperasse, o que fosse que acontecesse chatearia todas as bruxas da Forca, mas me recusava a enforcar alguém quando ainda existia a menor chance que o delinquente escolhesse um caminho diferente. E eu acreditava piamente que até um limite ser ultrapassado, existia esperança. Destino… discordava. Hoje não era um dia que podia enforcar alguém a não ser que quisesse ser exilada. Era o Equinócio. Macular um dia tão reverente e sagrado, até para o Destino, era imprudente. Ele precisaria segurar sua raiva por um curto período, e eu teria que aprender melhor a tolerar a dor. Soltei ar quente no meio dos punhos enrijecidos. A garota pisou na soleira, as tábuas gastas rangendo sob o peso. Empurrou a porta aberta, se demorando ligeiramente para dentro ao analisar minha pequena e abarrotada cabana. Da cabeça aos pés, usava vermelho. O vestido, capa, e até os sapatos representavam a cor ardente da sua Casa. No braço estava uma pequena cesta, de onde o cheiro de alho fresco flutuava na minha direção: o pagamento. — Coloque a cesta no banco ao seu lado. Pulou e olhou para a cesta como se tivesse esquecido que estava pendurada no braço. Ela a colocou delicadamente na antiga relíquia de madeira, tomando cuidado para que o desnível não fizesse o fundo virar e espalhar os bulbos cheirosos. Depois, se empertigou e alisou a saia, ansiosa. Remexeu a capa até estar satisfeita com a posição, os lados jogados por cima dos ombros. — Chá, cera, ou ossos? — perguntei, esperando a resposta que já sabia que daria. A garota mordiscou o lábio inferior ao considerar as três opções. O punhado de sardas sobre o nariz e bochechas a fazia parecer mais jovem do que era, mas a indecisão foi o que mostrou sua verdadeira imaturidade. Toda bruxa na Forca sabia o que eu preferia ler. A garota não era exceção. O tom avermelhado do seu cabelo era da mesma nuance do monte de folhas de chá soltas sobre o balcão. Do outro lado do recinto, a chaleira soltava fumaça. Fios soltos e lentos que se curvavam e enlaçavam um ao outro. Poderia me perder na sua dança sedosa se olhasse tempo o suficiente, então voltei o olhar para ela para recuperar o foco. A água não estava aquecendo para ela; estava aquecendo para o garoto no bosque. Ele estava parado atrás da minha cabana, segurando-se à casca grossa de uma árvore, tentando desesperadamente se convencer de bater em minha porta e pedir para que lesse seu destino, e se repreendendo por considerar ir embora antes de consegui-lo. Uma hora, reuniria iniciativa o bastante para se aproximar e me pedir o favor que cobiçava, mas não antes de testemunhar a saída apressada da garota. Ele surgiria da floresta enquanto ela saía pela porta dos fundos, provavelmente para evitar arruinar sua reputação caso alguém o veja aqui. E escolheria uma leitura de folhas de chá pois temia a cor da vela que pudesse escolhê-lo, e que os ossos pudessem dizer algo que não estava preparado para ouvir, guiá-lo para onde ainda tinha medo de pisar. Ele era um garoto que lutava contra uma incerteza intensa. Um garoto que preferia grudar em uma árvore a soltar. Eu o afastei da minha mente e observei conforme a garota entrava aos poucos no recinto, como se estivesse entrando em um lago de água gelada. Não havia muito para se ver no pequeno espaço aberto. Um sofá à esquerda, e uma mesa quadrada simples e cadeiras no canto mais distante. A cozinha estava à sua direita. Ali estavam apenas alguns armários, e as bancadas manchadas e meio deformadas estavam cheias de pedras preciosas e ervas em vasos. Os olhos dela se demoraram na lareira com o fogo tremeluzente, e as ondas mais densas de vapor se derramando da chaleira. Ela se virou para longe da lareira e do chá. Os pálidos olhos âmbar se prenderam no tecido esticado sobre o tampo da mesa. Viu os ossos da sorte empilhados em uma tigela de prata, desejando desesperadamente que não fosse tão fraca. Não podia ouvir suas palavras na minha cabeça, mas segui o jeito que as feições delicadas revelaram uma onda de emoções que cresceu e quebrou sobre seu semblante. — O Destino não favorece os fracos — avisei a garota conforme ela mudava o peso de um lado para o outro, os dedos inquietos. Seus olhos encontraram os meus. Nas profundezas nadavam culpa e confusão. Elaborei para ela. — Não deveria temer os ossos. Podem revelar coisas que a cera e as folhas de chá não podem. Ela era uma garota que não aceitaria conselhos mesmo quando fosse de seu interesse, uma garota que dava ao medo domínio sobre suas decisões. Os olhos foram para uma prateleira próxima e as velas incolores que ali estavam. Ela se recusava a desviar o olhar dospavios pálidos, com medo que os ossos a atraíssem outra vez. Sempre atraíam. — Escolho cera, por favor — falou com a voz trêmula. A ratinha estava apavorada, não pelo chá ou cera, ou mesmo pelos ossos… mas por mim. Dei um sorriso para tranquilizá-la, ciente que poderia fazer o inverso, e fui até a prateleira, recolhendo o monte de velas delgadas e as levando para a mesa. — Poderia remover o tecido? Hesitou, mas segurou gentilmente os cantos do quadrado de seda escura com as pontas dos dedos e o puxou da superfície de madeira. Acomodei as velas, as firmando para que nenhuma saísse rolando, depois peguei o tecido. Durante a troca, o tremor em seus dedos passou pelo tecido até os meus. Os olhos foram para a bandeja de ossos da sorte de novo, depois voltaram para mim. Não os ofereceria a ela outra vez. Fizera sua escolha, e meu tempo era tão valioso quando minha leitura. Não o perderia com sua indecisão ou medo. Dobrei o tecido de feitiços escuro, coloquei no largo bolso do vestido, e removi a tigela de ossos da visão. Tensão exalou dos músculos da garota assim que desapareceram. Peguei uma cesta de candelabros aleatórios das prateleiras, entregando a ela. — Coloque uma vela em cada, e os posicione em um círculo. Ela mudou o peso do pé esquerdo para o direito, depois de volta. — Começo por qual? Todas parecem iguais. — Vai descobrir que a sensação não é a mesma. Segure cada uma, e depois as coloque onde sente que pertence. O padrão é seu para formar. Os lábios dela se apertaram. — Pense em uma pergunta para a qual gostaria de saber a resposta. Foque nela e a sensação da vela em sua mão, depois a posicione. Se permitir, a cera vai mostrar a resposta no padrão que formar. Avise-me quando estiver satisfeita com o círculo. As cores se revelarão, e vou decifrá-las para você. Engoliu em seco e depois pegou uma vela, fechando o punho ao redor e fechando os olhos por um breve segundo antes de abri-los. Colocou a primeira vela no castiçal localizado na posição de doze horas. Devagar, formou um círculo, guiando cada vela pela circunferência em posições variadas até cada castiçal estar cheio. Ela não podia ver além da cera opaca até a cor interna, mas eu conhecia cada uma como a palma da minha mão. Sua organização me surpreendeu. Continha combinações chocantes de amarelo e preto, violeta e verde, laranja e branco. Quando completou o círculo, olhou para cima com expectativa. — Satisfeita? — perguntei. Olhou para o círculo que fez e assentiu. — A sensação é correta. — Não esperava isso de você — revelei, passando as mãos sobre o círculo sagrado. As velas se ergueram dos castiçais e começaram a rodopiar no ar. As cores verdadeiras foram absorvidas na cera branca da ponta de cada pavio até a base. Esperava ler o padrão, mas outra vez, ela me surpreendeu. Ou melhor, seu futuro. Uma vela em particular a escolheu, o que era um poder raro. Os olhos dela lutavam para acompanhar enquanto as velas perdiam a velocidade, e observava desconfiada conforme uma única vela deixou sua posição na roda e pairou para o centro. A cera da cor de beringela, ou um profundo e demorado hematoma – uma sorte infeliz para qualquer bruxa colher, mas uma bruxa esperta acataria o aviso e poderia mudar seu destino… — O que significa? — É um aviso. Engoliu em seco. — Previsão é um dom do Destino. Se acatar seu aviso, pode tomar decisões para evitar uma catástrofe. Os lábios mal se moveram, mas os vi formar um inaudível “catástrofe”. — O que vai acontecer comigo? — perguntou. Sussurrei um encanto. Fogo queimou o pavio, ficando alto e oscilante. Fumaça escura pairou na direção do teto. Ela observou a chama, o elemento e fonte do seu poder. O reflexo do fogo brilhou em seus olhos. — Apague-a — falei baixo. Fechou os olhos e a chama morreu na hora. — Fique longe da fronteira. — Por quanto tempo? — foi rápida em perguntar. Rápida demais. Arqueei uma sobrancelha. Ela não deveria estar indo lá desacompanhada, de qualquer maneira. — Por que está saindo sem permissão? A garota engoliu. Segurando a vela, li o sopro remanescente que exalara no pavio. — Um garoto no Doze? Você está se esgueirando pela fronteira há meses. Os olhos dela se arregalaram. — Por favor, não conte para a Sacerdotisa. Serei banida da Casa. — O coração do jovem homem é tão preto quanto suas palavras são doces. Está atraindo-a para uma rede de mentiras. Nunca deveria vê-lo outra vez. O lábio começou a tremer. Ah, não. Já podia sentir o impacto de emoções em rebuliço por ela. Não tinha nada que podia fazer para impedir um sentimento tão forte quanto o amor, mas se pudesse convencê-la, fazê-la ver que era um amor que nunca fora reciprocado… — Você o ama? — Sim — coaxou. — Ele não ama você. — Uma lágrima gorda escorreu por sua bochecha. Olhou para os sapatos. Envergonhada. — Bem no fundo, você já sabe disso. Uma segunda lágrima escapou do seu olho. Esta espirrou na ponta da bota de couro. — O encontro casual pode ser relevado, mas você sabe que estar com qualquer um fora da Forca significa que nunca poderá retornar. Sem a Casa, seu poder irá diminuir. Deseja perder sua chama? Balançou a cabeça. Ela precisava saber que qualquer casinho que estivesse tendo com o garoto não poderia durar, mas o fruto proibido era uma tentação que alguns não poderiam se forçar a ignorar. Suavizei a voz, esperando que visse lógica. — E a sua vida? Deseja que seja extinta? A garota começou a chorar por completo. Sabia que não poderia e não iria mentir para ela, mas os sentimentos que guardava pelo jovem homem malicioso eram tão fortes quanto a vontade dele de parti-la. — Posso ver a vontade dele — revelei —, e seu único propósito é machucá-la. — A verdade com frequência doía. Seus olhos encontraram com os meus. — Ele não faria isso. — Ele vai matá-la. Se o vir outra vez, ele a matará. Balançou a cabeça em desafio e limpou o nariz. — Ele nunca me machucaria. — É a verdade. Agora, você deve tomar uma decisão importante. A mais urgente da sua vida. Vai acatar meu aviso, ou aceitará seu destino? Ela me empurrou para passar e abriu a porta dos fundos com tudo. Uma batida alta chacoalhou as paredes. Quase a repreendi pela grosseria, mas em sua defesa, a leitura foi bem chocante. A maior parte do tempo, tinha uma faísca de esperança que a pessoa para quem lia pudesse mudar seu destino, mas não acho que isso se concretizaria no caso dela. Se fosse até ele esta noite como planejado, este momento – e eu – seriamos uma das últimas coisas das quais se lembraria antes que a morte a reivindicasse. Não havia terminado de guardar as velas antes do garoto do lado de fora entrar na cabana. A capa e a túnica refletiam a cor ardente da Casa do Fogo, mas as roupas não eram dele. Não tinha chama. Que estranho… Nunca o vira antes, e pensei que tivesse visto todas as bruxas em um momento ou outro. Ainda assim, havia algo familiar nele, apesar de não poder identificar. Seus olhos estavam baixos ao perscrutarem minha cabana. — Gostaria de algo afiado para tirar a casca da árvore de baixo das suas unhas? — perguntei, voltando a cera e a cesta de castiçais para seu lugar correto. Ele se eriçou. — Quero que leia meu destino. — Qual pagamento oferece? Colocou a mão no bolso esquerdo da capa e tirou um cristal. — Ametista. Tirei a pedra roxa pálida da sua mão. Era tão grande quanto minha palma. Nunca recusaria um cristal dessa beleza. — Chá, cera, ou ossos? — Chá — respondeu rápido. — Pode se apressar? Preciso voltar logo. — Antes que alguém descubra que veio até mim? — Exatamente. — Os olhos dele foram de um item para outro na cozinha esparsa conforme me movia pelo espaço. Acenei para o balcão. — Escolha uma xícara e um pires, depois coloque três colheres cheias de folhas de chá na xícara. Vou verter a água. Ele se moveu para a bancada e rapidamente colocou três montes de folhas em uma xícara. Seus olhos lampejaram para mim. As pupilas eram estranhas. Não redondas, mas verticais… como as de uma cobra. Cruzei os braços e apoiei o quadril na bancada. — Por que você veio aqui? — Desculpa?— perguntou, a testa franzida. — Está claro que não quer estar aqui. — Preciso do meu destino. Rápido. Nada mais. E não lhe devo uma explicação além disso, Filha do Destino. Com a chaleira na mão, parei sobre a xícara. — Seria inteligente ser mais respeitoso. Inclinou a cabeça e murmurou uma desculpa. — É só que tenho sido afligido recentemente. Sonhos estranhos. Vozes… Deixei a água fluir para a xícara branca simples que ele escolhera. Todas as minhas xícaras eram brancas para o olhar comum, assim como as velas. Mas cada uma tinha uma asa distinta, e cada uma escolhia o recipiente da sorte com a mesma distinção. Esta xícara refletia mudança. Sua vida estava prestes a ser dramaticamente alterada. Observou a superfície conforme as folhas rodopiavam, afundavam, e subiam. Seus olhos lampejaram para mim, mas se desviaram rápido. — E agora? — Pense na pergunta para a qual precisa de respostas ao assoprar o vapor. — Todo ele? — perguntou. — Todo. — Já fui chamado de saco de vento, mas nem mesmo eu poderia assoprar todo esse vapor. Está fumegando. Dei-lhe um olhar feio até que segurasse a borda da bancada, enrugasse os lábios e assoprasse. O vapor desapareceu, e com ele, a água também. O padrão de folhas que restou no fundo e nas laterais começou a se transformar em imagens. — Como…? — perguntou. — Observe. Não desvie a atenção. Seguiu minhas instruções, observando até as folhas se acomodarem. Formaram uma linha reta que iam do leste para oeste, dele para mim. — Como eu o conheço? — perguntei. Abriu a boca. — Eu não deveria ter vindo. — O que está escondendo? Sei que a túnica que usa foi roubada. Não posso pressentir uma afinidade, ainda assim sinto algo poderoso em você. Algo sombrio. — Algo que poderia ser lindo ou mortal, não o disse. — O que vê nas folhas? — exigiu firme. — Seu mundo inteiro está prestes a ser virado de cabeça para baixo, e de alguma forma, isso está relacionado a mim. Vai precisar de mim para alguma coisa. E este não é apenas o seu destino. Algo… terrível vai acontecer. Murmurou algo ininteligível. — O quê? — perguntei, erguendo uma sobrancelha. — Só… esqueça. Isso estava ficando entediante. — As escolhas que está prestes a fazer são as mais importantes da sua vida. Escolha bem. O garoto saiu tempestuoso pela porta dos fundos assim como a garota fizera, a capa vermelha roubada oscilando atrás de si. dois PONTADAS de dor perpassavam por todos os músculos conforme subia os degraus de pedra de trezentos anos da Casa da Terra. No patamar, fortaleci minhas costelas e encarei a porta. As pontas frígidas dos meus dedos ergueram a aldrava e bati contra a porta. Uma. Duas. Três vezes. Virei-me ao esperar uma resposta, escondendo as mãos nos bolsos da saia, mas não era possível disfarçar o igual tom azul dos lábios. Parecia como se tivesse uma forca na cintura, me puxando na direção da Casa do Destino do outro lado do gramado aparado do Centro. Não tenho muito tempo para analisar a estrutura, porque gritinhos soam dentro da casa recém-pintada de verde musgo, anunciando a resposta da minha convocação. Gêmeas com cabelo castanho cervo escancaram a porta, apesar das risadinhas e sorrisos desaparecerem quando me veem. Além delas, maços de ervas secando estavam pendurados em vigas de madeira suspensas do teto. As paredes atrás tão verdes quanto suas vestes. Os olhos percorrem minha roupa, tão diferente delas. Apesar da idade, meu vestido é preto como piche, e um pouco apertado agora. Desconforto exalou entre nós e se tornou aparente que nenhuma das jovens bruxas iria me recepcionar. Dei um passo à frente e ergui o queixo. — Gostaria de conversar com sua Sacerdotisa, por favor. Não fui convidada para entrar e a porta se fechou com um baque, parando a um centímetro do meu rosto. Dei um passo para trás e esperei pacientemente para que abrisse outra vez, virando- me para olhar para o coração da Forca. O tom terroso do verão se esvaía da grama do Centro mais e mais a cada dia. Era triturada sob os pés das bruxas andando por ela. Para o sul estava a forca. Um laço acinzentado balançava ao vento como se estivesse dançando, como se tivesse esperança de que logo seria útil mais uma vez. Não seria. Preferia minha própria corda. A acinzentada era de minha mãe. Foi com aquela que fora enforcada. Eu me recusava a tocá-la. A porta se abriu atrás de mim e a Alta Sacerdotisa da Casa da Terra parou do outro lado da soleira. Ela era mais velha do que a própria casa, velha o suficiente para ter visto três delas serem erguidas e demolidas. Era minha avó materna, apesar de ter deserdado minha mãe antes que eu nascesse e por extensão, me deserdou antes que inalasse minha primeira respiração. — Filha do Destino — cumprimentou rígida, curvando-se de leve na cintura. As vestes verde sálvia estavam presas na cintura larga por um cinto simples trançado com contas de barro, cada uma gravada com uma runa de proteção diferente. A estampa de trepadeiras no tecido da túnica se contorcia, alongava, e retrocedia, se acomodando outra vez ao falar. Retribui a mesura. — Sacerdotisa, Destino requer um quórum. E enquanto estivermos reunidos, tenho um assunto pessoal para discutir com o Círculo. A testa envelhecida franziu e os olhos ficaram afiados. — Certamente os dois assuntos podem esperar até o Equinócio passar. Flexionei os dedos no bolso. Teria sido menos doloroso se alguém tivesse espetado milhares de alfinetes. — Temo que não possam. — As palavras saíram mais engasgadas do que esperei, cheias da dor que me atravessava, junto com a sensação de derrota. Não podia mais segurar o Destino. Empertigou a coluna corcunda o máximo que pode, as vértebras estalando em sucessão. Os dedos ossudos se curvaram sobre as tábuas de madeira lacada do chão. — Muito bem. Vou reunir o Círculo. — Vou esperar no Centro. Ao fechar a porta, menos rude do que as garotas da sua Casa fizeram, o olor fragrante de ervas e terra foi carregado pela brisa fresca e quente. Rodopiei, sentindo olhos em mim. Quando olhei sobre o ombro, a cortina da janela frontal balançou. O Centro da Forca era entrecruzado por caminhos gastos e convergentes que formavam um pentagrama. Situada no ápice de cada ponta da estrela estava uma das Casas. Terra e Ar à esquerda, e Fogo e Água à direita. As pontas das minhas botas gastas apontavam na direção do que eu mais queria, como se fossem uma bússola mostrando o norte. Na ponta da estrela, a Casa do Destino estava vazia e dilapidada. Esvaía-se cada dia que passava desocupada e indesejada. Os últimos dezessete anos não foram gentis com ela. Pedaços de telhas onduladas estavam ausentes. O revestimento externo desbotara de preto para um branco fantasmagórico, de vez em quando interrompido por manchas de alga verde vivo. Cada tábua recuperável precisava ser lixada e repintada. E isso era apenas do lado de fora. Pisei no gramado do Centro e virei o rosto para o sol quente. Os raios infiltraram-se na pele. Estava fazendo o que pedira, mas o Destino não ansiava por me libertar dos sempre presentes lembretes do seu poder… incluindo o fato que sempre conseguia o que queria, de um jeito ou de outro. Os ossos dos meus dedos pareciam que poderiam se quebrar a qualquer momento. Pareciam friáveis, tão gastos quanto a decrépita Casa do Destino. O som de grama triturando veio das quatro direções atrás de mim conforme os membros do Círculo se aproximavam. Eu me virei e cumprimentei cada um com uma leve mesura. — Requisitou um quórum? — disse Wayra, Alta Sacerdotisa da Casa do Vento, a mais jovem dos quatro membros do Círculo. Nunca foi de enrolação. A brisa que a acompanhava por todos os lugares agitou a túnica e longo cabelo branco. Flanqueando-a estavam minha avó Ela e Ethne, Alta Sacerdotisa da Casa do Fogo. As vestes dela eram feitas de fogo vivo. Azuis na barra e laranja profundo na cintura, com labaredas amarelas no colarinho. Sons de estalidos e chiados acompanhavam cada passo. O único Alto Sacerdote me encarava de uma distância respeitosa, alguns passos atrás das companheiras femininaspara honrá-las. Bay era o Sacerdote da Casa da Água, e os olhos e vestes eram da cor azul profundo do oceano onde deixava o banco de areia e se alongava profundo na terra. O tecido das vestes oscilava e fluía em volta de seus pés, puxando e empurrando as folhas de grama seca. O cabelo cinza ondulado estava preso atrás das orelhas, os braços cruzados sobre o peito. O Círculo nunca escondeu o desdém da minha presença, mas temiam demais perturbar o Destino para recusarem a mim, ou a ele, quando requisitava um quórum. Acatava a governança das leis deles, e até o momento, Destino me permitira viver dentro das restrições. Era um equilíbrio precário de poder, as balanças estavam sempre oscilando de um lado para o outro levemente. Hoje, penderiam violentamente e não sabia se algum dia se acertariam. — Destino clamou pela vida de alguém que cruzará a fronteira hoje. A maior parte das bruxas acreditava que Destino era a Morte e que eu era sua mão, mas o Destino era exatamente o que seu nome implicava. Algumas vezes exigia que uma pessoa perdesse a vida. Outras, incitava uma pessoa para um caminho melhor ou mais próspero. Com frequência ponderava por que escolhia as pessoas que favorecia, mas raramente o questionava sobre as vidas que clamava para que tomasse ou me sentia culpada por ser sua mão. Talvez ele fosse misericordioso o suficiente para levar aquele sentimento. Ou talvez as ações requeressem a mão rápida da justiça. Os lábios de Bay franziram. — O Destino vai permitir que adie a execução até amanhã? Hoje é um dia sagrado. Dentro de horas, o Círculo estará cheio de pessoas de cada setor. — Ele não vai esperar. — Para ser honesta, não tinha mais forças o suficiente para conter os desejos do Destino. E ao que parece, ele queria que a multidão testemunhasse a morte dessa pessoa. Os olhos de Bay pousaram nos meus lábios azuis, depois nas mão congeladas. Deu-me um olhar compreensivo e inclinou de leve a cabeça. Era o único dos quatro que parecia ao menos tentar compreender minha posição e deveres. As outras não se importavam nem um pouco com o que significava ser a “filha” do Destino, menos ainda tê-lo dentro de si. Ela, minha avó, falou em seguida: — Terão muitos que cruzarão a fronteira hoje. Talvez não encontre a pessoa que procura. — Esperava que não encontrasse meu alvo, mas o faria. O Destino não cederia quanto a esta execução. — O Destino vai revelar a marca para mim — afirmei, meus dedos se curvando. Sempre me levava para os quais ansiava. Na minha mente, um céu laranja vibrante cortava pela parte mais densa da floresta perto da fronteira que separava o Setor Treze do Doze… — Devo cumprir sua sentença ao pôr do sol. Wayra arfou e uma rajada de vento passou pelo centro. Mechas pálidas do cabelo moviam-se de um lado para o outro, açoitando descontroladas. As vestes desbotaram de azul céu para branco nuvem em um instante. Lampejei um olhar de aviso para ela, e controlou-se rápido. Não temia nenhum deles, apesar da influência e poderes que possuíam, porque no fim, o Destino era mais poderoso do que todos juntos, e me fizera sua igual. — Não pode esperar até após a meia noite? — Ethne fervilhou, a pele enrubescendo para combinar com os tons inflamados do cabelo. — Não pode — retruquei afiada. Acham que gosto disso? Não pedi por esta maldição; não tinha escolha a não ser cumprir sua vontade. Mesmo quando entrava em conflito com a deles, mesmo quando conflitava com a minha. — Os cidadãos nos setores mais baixos sabem o que acontecem na Forca. É por isso que o Rei envia os criminosos pelo Treze até as terras exiladas. — Esperava que lidássemos com eles antes que alcançassem qualquer semblante de liberdade que pudessem conquistar para si. — Essa prática antiquada será encerrada em breve — Ela prometeu afiada, dando um passo ameaçador na minha direção. Bay esticou a mão como se para impedi-la de me alcançar, e com uma expressão calorosa e cautelosa, me ofereceu uma resposta mais gentil. — Saber é diferente de testemunhar. Os cidadãos dos Setores Baixos nunca viram alguém ser enforcado. Vovó Ela empurrou a mão de Bay e mostrou os dentes. — Faça o que precisar, Filha do Destino. Você claramente não está procurando nossa permissão para cumprir sua tarefa. Ethne e Wayra assentiram sua concordância, cada uma olhando para mim com partes iguais de medo e raiva. Bay permaneceu neutro, como sempre. Eles se viraram para ir, cada um encarando sua respectiva casa. Eu os impedi antes que fugissem. — Tem outro assunto que gostaria de discutir. Os chefes das Casas pararam e se viraram para me encarar outra vez. — Hoje é meu aniversário de dezessete anos. A mandíbula de Ela contraiu-se. Vovó sabia o que eu queria, e não queria que conseguisse. Contraí os músculos na minha barriga e costelas. — Reivindico a Casa do Destino. Ethne avançou na minha direção, impedida apenas pela mão estendida de Bay – mais uma vez. — A Casa do Destino não é ocupada desde a morte da sua mãe. É praticamente inabitável — rosnou. As vestes flamejantes açoitaram a mão de Bay, mas nunca o queimaram. — Tenho idade para reivindicá-la — afirmei —, e como a escolhida do Destino, agora que sou maior, é meu direito fazê-lo. Wayra pigarreou, empurrando o cabelo pálido para atrás das orelhas. — Reivindicar sua herança não vai garanti-la um lugar no Círculo. Ainda, eu queria acrescentar. Olhei feio para ela até que o vento silencioso ao seu redor rugiu. Ainda assim, recusava-me a vacilar. Virou-se para os pares. — Podemos proibir — sugeriu. — Podemos demolir a Casa. Bay deu um passo à frente, as vestes escuras oscilando na fúria tempestuosa das de Wayra. — Demolir a Casa enfraqueceria o Círculo. Extraímos algum poder do resíduo de feitiços dentro de suas paredes. Por essa razão, não podemos demolir. E, já que Sable é a herdeira legítima, está no direito de reivindicar a Casa como sua. — Ethne fervilhou e abriu a boca para cuspir o ódio como uma caldeira fazia com lava. Bay ergueu uma mão para impedi-la e continuou: — Mas, não precisamos reconhecê-la como nada além de uma estrutura, e continuar a colher os benefícios de manter a Casa intacta. A Casa do Destino foi estripada quando Cyril morreu, assim como o lugar da Casa no Círculo. É um prédio construído de madeira e pedra, nada mais. Esperava que Ela continuasse a relutar, mas fiquei surpresa quando disse: — Deixe que a reivindique, então. E que seja conhecido que a amaldiçoada não será mais bem-vinda em nenhuma das nossas Casas. Contive um sorriso. Nunca fui bem-vinda dentro delas e não era bem-vinda agora, então literalmente, nada mudaria. Vovó sentia que teria sido melhor se nunca tivesse nascido. Sempre vira a verdade em seus olhos. Esperava testemunhar o dia que o Destino se viraria contra mim e clamasse pela minha vida no lugar de me pedir para tomar ou mudar a de outra pessoa. Afinal, contara a história uma centena de vezes comigo por perto, do dia que Cyril traiu o Destino e como ele se ergueu contra ela. O jeito que pendera da corda que de alguma forma prendera e se erguera. Os olhos de mel da minha avó, mesmo com todos os tons calorosos que continham, estavam frios ao me dispensar, olhando para os pares em busca de suas opiniões sobre o assunto. No fim, o Círculo decretou que a Casa era minha. Poderia consertá-la conforme precisasse, decorá-la como quisesse, e moraria nela – sozinha. E sempre serviria apenas como uma residência. A Casa do Destino nunca mais seria representada no Círculo da Forca. Não que fizesse sentido. O que minha mãe poderia ter feito para enfurecer tanto o Destino que ele a mataria? E o que fez para o Círculo, para a própria mãe, para deixá-los tão bravos com ela? Bay chamou meu nome quando me virei para deixá-los no Centro. — Cuide para cumprir o plano do destino rapidamente esta noite. Não deveríamos macular o Equinócio por mais tempo do que o necessário. Nunca alonguei um enforcamento, e não o faria esta noite. Queria que terminasse tanto quanto qualquer outro. Bom, qualquer um exceto o que seria enforcado. No lugar dedizê-lo isso, inclinei a cabeça. Talvez pudesse convencer o Destino a permitir que enforcasse o jovem homem na floresta, longe dos olhos dos nossos visitantes. Com certeza, faria essa concessão. Uma jovem garota da Casa da Terra emergiu da floresta, a túnica erguida nos tornozelos, os passos alimentados pelo medo. Meu estômago afundou. — Sacerdotisa Ela! — gritou, a voz oscilando com os passos. — Sacerdotisa! Minha avó se virou para recebê-la de braços abertos, presenteando a jovem bruxa com a gentileza que nunca concedeu a mim. Quase derrubou Ela, mas jogou os braços trêmulos em volta da minha avó, ofegando conforme as lágrimas escorriam pelas bochechas. — Sacerdotisa, uma bruxa está morta. Na fronteira — gaguejou. — É Harmony, da Casa do Fogo. Ethne arfou, correndo logo acima da terra na direção da fronteira com o Doze. Náusea revirou meu estômago quando Destino confirmou que a garota que me visitara mais cedo ignorara seu aviso e tomara a decisão errada. Meu âmago sentia por ela. Fechei os olhos e sussurrei um desejo para sua alma separar-se e seguir em frente para a Deusa. Voltei a atenção para quem sabia ser responsável pela morte. O cabelo era da cor de areia molhada e tinha um par de covinhas que a garota assassinada não queria nada além de vê-las serem apontadas em sua direção. Nesta noite, as bruxas serão vingadas, Destino sussurrou. De repente, a ansiedade que sentia desde que me contara que precisaria executar alguém neste dia desapareceu em um ardor glorioso e satisfatório que sabia que logo seria apaziguado. Justiça seria feita esta noite. E não só o faria pagar, mas mandaria uma forte mensagem para qualquer outro nos setores que mesmo por um segundo considerassem machucar um dos nossos. três TODAS AS CASAS estavam sombrias conforme as preparações para a celebração do Equinócio começavam. A Batalha de Afinidades que deveria ser ressuscitada hoje para as festividades foi cancelada. O corpo da jovem bruxa foi preparado pela sua Casa. Por ser da Casa do Fogo, seria deitada em um altar de chamas, e o fogo a protegeria até que Ethne instruísse que fizesse outra coisa. As bruxas da Forca fariam vigília ao longo do dia, e depois as chamas consumiriam seu corpo ao raiar do sol. Tentei prestar meus respeitos a ela, mas Ethne, firme na sua palavra, se referiu a mim como a amaldiçoada e se recusou a me aceitar em sua casa. Então, observei dos degraus da Casa do Destino enquanto bruxas de cada Casa faziam fila e entravam na casa de Ethne para honrar a irmã falecida. Quando a última bruxa saíra e a porta da frente rangeu para fechar, fui para a cabana que foi minha casa desde que me lembrava e comecei a embalar minhas coisas. Só precisava levar o essencial e suprimentos. A Casa ainda continha todos os pertences da minha mãe. A cabana ficava solitária na floresta bem longe, atrás da Casa da minha mãe – minha Casa, tentei corrigir na minha mente. Os únicos sons pelo caminho gasto vinham dos esquilos fugindo, cigarras cantando, e pares de pássaros procurando minhocas na terra rica e escura. Eles esvoaçaram por aí conforme comecei a embalar as coisas. Enchi meus caldeirões com as velas e seus castiçais, junto com pequenas bolsas de juta de folhas de chá, maços apertados de sálvia branca, e minha coleção de cristais. Defumaria a Casa antes de levar meus pertences para dentro. Tinha energia negativa cercando a Casa o suficiente para sufocar uma bruxa se não tomasse cuidado. E quem sabia o que fora preso lá dentro? Envolvendo os ossos da sorte no tecido de feitiços, eu os coloquei no topo da pilha e peguei a vassoura. Depois que recolhi tudo o que queria levar, fechei os olhos e me espiritei para a varanda deformada dos fundos da Casa do Destino. Respirando fundo, eu me lembro outra vez, Esta é minha Casa agora. — Ei — uma voz grave chamou atrás de mim. Pulei e rodopiei, segurando o peito e soltando o caldeirão precariamente perto dos dedos. — Você me assustou. Brecan riu, vindo na minha direção com seu gingado fácil. Pegou o caldeirão pesado e abriu a porta gasta e rangente dos fundos para mim. — Depois de você. Afinal, esta é a sua Casa. Não pude evitar sorrir. — E voltando, não me aproximei de fininho. — Seus olhos lavanda brilharam com travessura. — Deveria prestar mais atenção aos arredores. Ele afastou a capa azul céu ao entrar na casa, instantaneamente à vontade. — O que mais você precisa da cabana? — chamou sobre o ombro enquanto rodopiava. — Nada de mais. O que acha? — perguntei. — Precisa de uma faxina — respondeu seco, passando um dedo sobre a superfície da mesa mais próxima. — Mas tem a mesma aparência de sempre, suponho. Era um rito de passagem para bruxinhas biscoitar nas janelas da antiga Casa do Destino – apesar que ninguém ousava se demorar muito. Diziam que uma maldição poderia passar para elas se absorvessem muito da energia sombria que possuía. Na verdade, a Casa parecia vazia para mim. Bay sugeriu que uma magia residual habitava aqui, mas não podia senti-la. A Casa era osso. Uma gaiola de costelas. E o coração que segurava há muito apodrecera. — Continuando — Brecan disse, batendo palmas —, estou à disposição. Faça o que quiser comigo. — Tinha mais do que a oferta de ajuda no seu tom. Decidi não responder. No lugar, voltei a atenção para o caldeirão. Planejara defumar a Casa antes de trazer meus pertences para dentro, mas isso foi quando pensava que negatividade pairava em cada canto. Agora que estava aqui dentro, a Casa parecia um vazio. Não estava certa da necessidade de defumar os quartos, mas a tradição pedia que fosse feito. Traria azar começar a vida em uma Casa que não fora purificada, só por via das dúvidas. — É o seguinte, já volto — Brecan enfim disse, marchando para fora da porta dos fundos. As únicas coisas mais que precisava eram minhas roupas, lençóis e cobertores, e potes e panelas. Precisaria colher do meu jardim na cabana até o inverno, e plantar um novo aqui no quintal na próxima primavera. Apertei o lábio inferior entre os dedos, olhando para o quintal coberto de vegetação. Em algum lugar sob a grama alta, na terra rica, estavam as raízes das ervas daninhas plantadas pela minha mãe. Apoiei a vassoura no canto vazio da cozinha e suspirei. Tinha muito trabalho a ser feito. Brecan reapareceu, jogando o longo cabelo loiro platinado sobre os ombros. As mechas eram lisas e brilhavam como seda. Esta noite, todas as garotas que se aventurassem no Treze dos setores mais baixos dariam olhares demorados e cheios de anseio na sua direção. Para elas, Brecan era exótico; um banquete para os olhos, no meio do que deveria ser uma grande escassez. — Como sabia que eu estaria aqui? — perguntei. Ele sorriu, pegando o topo do batente da porta e se inclinando na minha direção. — As notícias correm rápido. — Wayra o mandou para tentar me convencer a desafiar o Destino? Balançou a cabeça. — Nem a vi hoje. Além do mais, não estou preocupado com o que ela pensa; estou preocupado com você. Olhei para ele de soslaio. — Ela o exilaria por falar isso. Atravessou o recinto com dois passos largos. — Só se me ouvisse — inclinou-se para sussurrar no meu ouvido, brincando com uma mecha do meu cabelo. — Esta noite, vou enforcar o que tirou a vida da bruxa do Fogo. Os olhos de Brecan ficaram afiados. — Ótimo. Não só vai fazer justiça para nossa irmã falecida, vai aliviar um pouco da tensão crescendo entre as Casas. A tensão crescente… Talvez pudesse ajudar a aliviá-la, mas alguma coisa sequer alteraria a percepção das outras bruxas sobre mim? Brecan colocou uma mão reconfortante no meu ombro. — Hora de se acomodar. Voltarei com o resto das suas coisas, começando pelas roupas. Com seu toque, meu coração acelerou um pouco. Brecan e eu tínhamos um relacionamento estranho, um que era um pouco mais do que amizade, mas muito menos do que amor. Era um que todas as bruxas na Forca não entendiam nem aprovavam. Meu rosto não esquentou com o pensamento dele ver minhas roupas íntimas, mas o conhecia bem o bastante para saber que teria um brilho em seus olhosquando voltasse com elas em mãos. Valsou para fora com um sorriso nos lábios. Acendi a sálvia e seu aroma terroso encheu o recinto, rico e purificante. Guiei a fumaça, deixando que flutuasse em cada canto de cada quarto, em todos os cinco andares. Depois que terminei, enfim pude respirar mais fácil. Não porque a sálvia expulsou qualquer perigo, mas porque uma tarefa das muitas que listei na cabeça estava terminada e podia começar outra. Voltei para baixo, abrindo todas as janelas que não estavam presas nos caixilhos, e afastando todas as cortinas surradas para o lado. Uma camada grossa de poeira escondia os detalhes de todas as superfícies sólidas. Rajadas de fora não moviam nenhuma partícula que podia ver, mas o cheiro bolorento que se acomodara nas paredes começou a esvanecer pelo vento purificador. Na saleta, ergui os lençóis dos móveis, os empilhando no canto do recinto. Um sofá roxo profundo com almofadas fofas contra o encosto estava flanqueado por cadeiras gêmeas de mogno que não foram ocupadas desde antes do meu nascimento, mas pareciam novas em folha. Tudo parecia. Era como se Mamãe tivesse sussurrado um feitiço para preservar tudo como estava. Talvez tenha feito isso. Ou talvez o Destino tenha cuidado da minha herança até que pudesse reivindicá-la. Talvez fosse seu presente para mim. Ele me avisava para não espreitar pelas janelas como todas as outras bruxas ao longo dos anos, mas hoje, queria que eu tivesse isso. Queria que esta Casa e tudo nela fossem meus. Este é seu passado e futuro, eu me disse. Brecan voltou com minhas roupas, incluindo botas e pilhas de luvas, com o brilho malicioso que esperava ainda cintilando em seus olhos. — Qual é o seu quarto? — Ainda não tenho certeza. Apenas coloque tudo ali na cama — sugeri, acenando para o quarto mais próximo, localizado no final do corredor depois da sala de estar. Ele aquiesceu e voltou para fora. — Voltarei com mais — prometeu sobre o ombro. Se Brecan era alguma coisa, era honesto. Até o meio da tarde, a cabana estava vazia, tirando os móveis que não precisava mais. Meu único amigo pensou que trabalho o suficiente fora feito para um dia. Ou talvez estivesse tentando melhorar meu humor, considerando a promessa sombria dos eventos da noite. — Saia comigo — implorou. — Se formos para o Centro, todo mundo vai olhar para você. Ele deu um sorriso taciturno. — Não tenho problema com isso. — Wayra vai ter. Bufou. — Com tudo o que aconteceu, talvez não seja a hora de insistir — cedeu. — Me encontra depois? — Depois que encontrar e enforcar o jovem que o Destino quer, quis dizer. As sobrancelhas dele se ergueram com expectativa enquanto esperava minha resposta. Engoli. — Depois, vou voltar para cá. Preciso fazer algumas leituras. Brecan escondeu a careta. Ele e eu sabíamos que a probabilidade de uma única alma me procurar depois de enforcar um homem de um setor baixo seria absolutamente nula, mas Brecan era educado demais para falar. De qualquer maneira, precisava tentar. Esta era uma das poucas vezes no ano que as pessoas dos outros doze setores, que chamávamos de Baixos, eram permitidas na Forca, e precisava de todo e qualquer pagamento que conseguisse. Olhei pela casa e soltei um suspiro. Precisaria de uma fortuna e mais trezentos anos para restaurar esse lugar. Ele concordou com a cabeça. — Vou encontrá-la depois que as coisas se acalmarem, então. Quando beijou minha bochecha, os lábios se demoraram um pouco demais. Apertei os olhos fechados e me perguntei como seria amá-lo de verdade. Sentir o fogo nos meus ossos sempre que ele estivesse por perto. Existiam feitiços para isso. Eu o observei se afastar rápido da minha Casa na direção da sua, onde a Casa do Vento estava sendo decorada com faixas de tecido azul furta-cor, tão delicado e translúcido como o próprio ar. As bruxas mulheres usavam os melhores vestidos e capas combinando, presas no pescoço por broches de prata trabalhados para imitar o movimento rodopiante da brisa. Da janela, vi enquanto minha avó Ela supervisionava as decorações da Casa da Terra. As jovens bruxas incitavam trepadeiras de hera, as guiando conforme o novo broto se enrolava nas colunas e balaustradas. Grandes trepadeiras de flores em cascata se curvavam acima, lentamente fazendo chover pétalas que nunca acabariam. Ethne comandava as bruxas na Casa do Fogo enquanto formavam piras que mais tarde queimariam com chamas coloridas em todas as cores do arco-íris. No escuro, iluminariam o Centro inteiro com fogueiras verticais estrategicamente posicionadas, tão altas que obscureceriam a mais alta das árvores da floresta. Bruxas da Casa da Água manipulavam as fontes na frente da casa. Das profundezas das piscinas rugiam cavalos puxando bigas com cavaleiros raivosos e determinados nelas. Bay cumprimentou os primeiros dos visitantes dos setores baixos que se reuniram para assistir a batalha aquática se desenvolver. Os oohs e aahs ecoavam pela Forca. Mais pessoas emergiram da floresta e entraram no Centro. Eu me vesti rápido com o vestido mais fino, de veludo preto macio sem firulas. Alisando o cabelo, me apressei para reunir meus equipamentos. Carreguei uma pequena mesa para fora e a montei na frente da minha Casa, cobrindo com um pedaço de tecido preto. Organizei o tecido de feitiços por cima, colocando um cristal pesado em cada canto para segurá-lo contra as rajadas das bruxas do Vento. Citrino. Ametista. Obsidiana. Turmalina. O cristal de ametista que segurava o canto direto externo era do garoto que se segurou na árvore. Sua familiaridade estranha me incomodou outra vez, mas ainda não conseguia identificá-lo. Teimosa, afastei os pensamentos dele. Da minha Casa, trouxe um baralho de tarot, uma bola de cristal, e minha tigela prata de ossos da sorte. As cartas e a bola eram o que os cidadãos dos setores baixos esperavam, mas os ossos da sorte poderiam chamar alguém. Peguei um par de cadeiras da cozinha, posicionando-as em lados opostos da mesa. Não tinha um espetáculo aquático, nenhuma flora que chovia pétalas, nenhum tornado extraordinário ou coluna de fogo. Só a promessa de uma simples leitura da sorte e a esperança de que alguém – qualquer um – iria querer o que oferecia. E que a pessoa viesse logo até mim. Talvez pudesse encaixar algumas leituras antes do condenado entrar na Forca. Ao longo dos anos, bruxas me pagaram por leituras na forma de sobras. Plantas, quando tinham muitas para encaixar no jardim perfeitamente organizado em fileiras. Um retalho de tecido quando o corante ficou forte demais para representar de forma correta suas Casas. Pedaços de corda que não precisavam mais. Agora que morava na Casa, eu me perguntava se alguém arriscaria colocar o pé dentro, ou até mesmo no gramado na frente, e desafiaria a Sacerdotisa ou Sacerdote. A cabana estava localizada a uma distância discreta das Casas, mas aqui, estava entre eles, e privacidade não seria garantida. Não importa, eu me disse. O Destino não vai me deixar passar fome. Vai prover tudo o que preciso. O jardim da minha cabana floresceu. Poderia fazer um florescer aqui também. Homens, mulheres e crianças se espalhavam no Centro, correndo de Casa para Casa e de espetáculo para espetáculo. Logo, preencheriam tudo até se derramarem sobre os limites pontudos. Nos Equinócios e Solstícios anteriores, quando recepcionávamos todos e qualquer um que quisesse se juntar a nós no nosso Setor, teria feito uma grana. Ninguém sabia que era a “Filha do Destino”, ou que era diferente de todas as outras bruxas no Treze. E se soubessem os nomes que as outras bruxas me chamavam, presumiam que era parte do espetáculo. Apenas outra parte do clima mágico e eletrizante que criávamos. Deixava-os mais dispostos a pagar por uma leitura. Eles sorririam para a bola de cristal e se sentariam para ouvir o que poderia revelar, o tempo todo se perguntando se era real. No final, nunca se importavam de verdade. Queriam apenas serem encantados por uma tarde. Esta noite, nenhum sorriso lampejava na minha direção. Conforme o vazio no meu estômago começavaa arder e revirar, sabia que não teria tempo. Nenhuma leitura antes. Era hora. Eu me levantei da mesa. quatro FOGO SE CONTORCIA na minha barriga. O sol se punha lentamente, centímetro por centímetro, até as colinas o engolirem. Ele está aqui, Destino sussurrou. Encontre-o. Acabe com ele. Faça-o pagar. Segurei a barriga em uma tentativa fraca de apagar o fogo do Destino. O único gosto que sentia era de fumaça. Queimava as narinas, chamuscando o fundo da garganta. Nem mesmo pular nas fontes na frente da Casa da Água extinguiria as chamas do Destino. O único jeito de apagá-las era encontrar o garoto. O céu ardente me cegou por um segundo. Rodopiei em um círculo, pedindo para o Destino me direcionar. O Centro estava cheio de pessoas. — Me ajude — sussurrei. Destino respondeu, Ele está aqui. — Onde? Procurei em todos os rostos por covinhas gêmeas, ou a marca do Destino. Eu a encontraria estampada na testa do garoto. Músicos no Centro do pentagrama começaram uma canção jovial. Crianças gritavam enquanto uniam os braços e pulavam em círculos pela grama. Bruxas de cada Casa se reuniam em grupos, misturando-se quando costumavam se manter separadas. Os vestidos e ternos da cor de pedras preciosas eram os melhores que tinham. Eu me destacava entre elas como o peixe fora d'água que era, deslizando com um vestido de veludo preto da mesma cor que meu cabelo. As Sacerdotisas e Sacerdotes estavam observando e esperando ansiosos para que eu emergisse. Quando me viram no Centro, sabiam que a hora chegara. Vovó Ela assumiu o controle da situação, comandando a atenção da multidão. Explicou que uma das nossas fora encontrada morta na floresta esta manhã, e que o culpado estava entre nós e a justiça seria feita rapidamente. Avisou-os que isso não era ensaiado, não era uma sátira. Aqueles com crianças, ela disse, deveriam levá-las para trás das Casas para que não testemunhassem o enforcamento que estava prestes a ocorrer. Murmurinhos em pânico borbulhavam pela multidão. Apesar do aviso, alguns pensaram que era tudo parte das festividades, e esperavam segurando o fôlego para que algo acontecesse. Outros obedeceram na hora. Mães e pais seguiram o aviso, guiando as crianças para as varandas dos fundos das Casas. Devagar, as bruxas de cada Casa começaram a entoar um mantra, purificando a atmosfera e lançando um feitiço de proteção sobre os inocentes. Elas nunca me ajudariam em nada. Apesar que, para ser honesta, um deles nunca fora insensivelmente descartado. Meus olhos encontraram os de Brecan. Ele assentiu e eu soube que falou para Ethne que estava procurando o que matou Harmony, a bruxa do Fogo. Brecan sempre foi um amortecedor entre mim e os outros, e estava grata por sua presença reconfortante. Um círculo de homens jovens dos setores baixos estava parado na parte inferior do Centro. Um deles jogou a cabeça ruiva para trás ao rir, batendo nas costas dos dois companheiros de cabelo escuro. Os dois amigos viraram as garrafas, e aposto que as bebidas não eram as primeiras, dado as línguas soltas e maneirismos. — É uma piada, é tudo — um disse. — Uma pegadinha, e boa. Tomem cuidado… Escondam os olhos das crianças… — brincou, zombando do aviso legítimo da Ela. Ponderei o quanto estaria se divertindo se ela removesse sua língua, ou mesmo a habilidade de movê-la pela noite. Eles eram da idade e porte certos. Apesar de nenhum ter o cabelo da cor de areia molhada, mudar a cor de cabelo era simples o suficiente. Andei casualmente na direção deles só para ter certeza. Ao me aproximar com constância, a risada deles desapareceu. Os Baixos se cumprimentavam, não com mesuras, mas apertando as mãos. Poderia aprender muito com um simples aperto de mão. O único problema era que o resíduo do toque deles permaneceria por muito tempo após o contato inicial… O brincalhão de cabelo ruivo me viu primeiro e cutucou um dos garotos de cabelo escuro, que se virou para mim com um sorriso malandro. O nariz fora quebrado, mas não tinha covinhas nas bochechas. O cabelo era do mesmo tom escuro da água que o do amigo. Tinham o mesmo porte. Os mesmos maneirismos. Os olhos eram da cor de caramelo queimado, um tom estranho de âmbar que era ao mesmo tempo quente e frio. Percebi que os dois homens de cabelo escuro eram irmãos. Eu me virei para o outro irmão de cabelo escuro, notando que o cabelo era de um tom mais escuro, um marrom tão profundo que era quase preto. Quando enfim me notou, quase tropecei. Seus olhos eram dourados, os mais adoráveis que já vi. Falei bem ali para o Destino, que se fosse ele, eu me recusava a cumprir seu desejo esta noite. O Destino apenas riu em resposta. — Boa noite, Senhorita — o ruivo cumprimentou, estendendo a mão. — Obrigado por deixar que participemos da celebração. Dando um sorriso, peguei sua mão. — Somos nós que agradecemos. O lampejo de um escudo entrou na minha mente. Era um tipo de protetor. Um provável soldado. E um bom, também, já que o escudo que projetava tinha cicatrizes, mas nenhuma delas fatal. O irmão malandro abriu a mão e sorriu quando a toquei com a minha. — Prazer conhecê-la — falou formal. O irmão de olhos dourados observava em silêncio enquanto os outros me cumprimentavam, mas estendeu a mão. — Prazer conhecê-la — disse rouco. Quando peguei sua mão, não pude evitar o suspiro. Na minha mente, ele me beijava. Com fervor. Eu me perguntei se viu a mesma coisa, porque afastou a mão devagar, olhando para mim como se o tivesse enfeitiçado. Controlei rápido minha expressão, respirando fundo para me acalmar. Pela Deusa, o que foi isso? — Com licença — disse, andando rápido na direção da floresta atrás deles. Segurei a barriga. Meu estômago estava queimando. Destino finalmente decidiu aparecer e me ajudar. Bela hora que me deu esse favor só depois de me fazer de boba na frente daqueles jovens homens. Não que eu me importasse, decidi. Estava aliviada que sua marca não estava no garoto de olhos dourados. Se ele fosse o culpado, poderia ficar tentada a visitá-lo no Doze, assim como a jovem bruxa condenada que procurara o amante. Segurei as saias e corri para as árvores, deixando a floresta me engolir. Em volta da cintura estava um pedaço fino de corda preta, marcado com as últimas respirações daqueles que o Destino condenara e que eu enforcara para ele. Eu a soltei e amarrei um laço rápido. Destino sussurrou para mim, Você o encontrou. Agora faça-o pagar. Três homens jovens estavam juntos, circundando uma jovem bruxa da Casa da minha avó. O vestido verde e capa escureciam com o céu acima. Nenhum deles percebeu que eu estava atrás até que falei. — Noite adorável — observei, olhando para o céu pintado pela copa das árvores. Era assim como vira, assim como o Destino deliberou. — Hm, claro que é — um deles riu. — Conhece algum desses garotos? — perguntei para a bruxa da Terra. Madeline, Destino me contou. — Conhece eles, Madeline? Ela balançou rápido a cabeça, uma lágrima escorrendo do olho. — Nós conhecemos ela — o garoto de covinhas mentiu. A marca do Destino latejava sobre sua testa, o sigilo pulsando com a necessidade que eu o conquistasse. Sorri. — Você mente. — Acenei para a garota se aproximar de mim. — Madeline. — Ela hesitou por um segundo, o medo de mim substituído pelo medo dos homens, e caminhou na minha direção, se escondendo atrás de mim. — Vá encontrar a Sacerdotisa Ela. Fique ao seu lado. Está na hora. — Os olhos dela se arregalaram conforme o significado das minhas palavras era compreendido. Olhou de volta para o garoto de covinhas que não estava mais sorrindo. — Hora de quê? — Preparou-se. — Uma bruxa foi encontrada morta dentro da nossa fronteira esta manhã. O que a matou vai ser enforcado em alguns momentos. O músculo na sua bochecha contraiu. O covinha iria fugir. Podia vê-lo ponderar as opções, pensando em qual direção ir. — O que isso tem a ver com a gente? — o amigo alto perguntou. Não fazia ideia do que o amigo era capaz. — Daqui para frente, deveria tomar mais cuidado com suas companhias — avisei. Antes que minhas palavras tivessemchance de serem carregadas pelo vento, Covinhas saiu correndo na direção da fronteira. Eu o deixei correr, permitindo que sua confiança e suor crescessem e escorressem em rios pelo seu rosto e costas. Eu o deixei pensar que pudesse escapar enquanto mantinha um passo constante no seu encalço. Depois sussurrei um feitiço para fortalecer sua espinha para que não quebrasse prematuramente, enlacei a cabeça como se fosse um bezerro fujão, finquei os calcanhares no chão, e dei um puxão forte na corda. Insetos que estavam cantando um para o outro ficaram quietos conforme o puxava e começava a arrastá-lo de volta para o Centro. Os amigos covardes não estavam por perto. Há muito escafederam- se, e deviam estar cruzando a fronteira de volta para o Doze neste exato momento. Ofegou por ar, arranhando o pescoço. Destino o queria morto. Todas as bruxas no Treze queriam o mesmo. Incluindo eu. Quantas bruxas mais teriam morrido por suas mãos traiçoeiras? — Suponho que seria educado avisá-lo por que está prestes a morrer, mas acho que nós dois sabemos o motivo. Tentou responder, mas o laço já esmagara a laringe. Oops. Uma celebração normal de Equinócio estaria a todo vapor com sinos tilintando, címbalos estourando, e bruxas dançando em volta dos fogos que acenderam e manipulavam para o deleite da multidão, mas este não era um Equinócio normal. Pelas árvores, podia ver que os membros de todas as Casas formaram um círculo protetor em volta do pentagrama, cercando os cidadãos dos setores baixos e formando uma barreira humana entre eles e a forca de onde Covinhas seria pendurado. Os Baixos chamavam o Setor Treze de “Forca” por um motivo, apesar de poucos terem testemunhado um enforcamento aqui. Éramos o único setor que tinha uma, e que punia os que cometeram crimes contra nós, com enforcamento. Cidadãos dos Baixos nos chamavam de bárbaros e inumanos por isso, mas o Destino exigia, e mesmo que não o fizesse, as Sacerdotisas e Sacerdote o fariam. Sabia que as punições eram justas, mas me perguntei quão efetiva era a ameaça quando estava tão longe. Nenhum dos Baixos costumava testemunhar alguém ser morto, embora o jovem homem se contorcendo atrás de mim claramente conhecia nossos costumes. Apesar de saber mais do que a maioria, nem mesmo a ameaça da forca impediu o garoto bonito e de covinhas de asfixiar a jovem bruxa do Fogo. O garoto estava desesperado por ar, então sussurrei um feitiço para soltar o laço só um pouquinho. Tossiu e engasgou-se, respirando fundo e entrecortado. Parei e lhe dei a chance de recuperar o fôlego. — Achou que não o encontraríamos? — perguntei, curiosa para compreender a mente do garoto cruel. Os lábios tremiam com raiva. Se ele fosse mais forte… Eu vi a ameaça em seus olhos. As árvores afinaram e então pararam de supetão ao nos aproximarmos da forca. Os mantras das bruxas foram abafados pelos suspiros chocados das pessoas dos Baixos. Quando viram o quê, ou quem, arrastava atrás de mim, os pais que não seguiram o aviso de Ela cobriram rápido os olhos das crianças, ou as pegaram e carregaram para longe na direção dos fundos das Casas para se juntarem aos que deram ouvidos. As bocas dos homens e mulheres, velhos e jovens, abriram conforme carregava Covinhas para a forca de madeira erguida na base do pentagrama. Morte não era bem-vinda no círculo sagrado. Pairando sobre ele, esperei que se recuperasse. — Levante-se. Um inferno de ódio lampejou em seus olhos. Tentou falar, mas a laringe esmagada apenas provocou gritinhos átonos da sua boca. — Levante-se, ou vou arrastá-lo para cima da plataforma. Conseguiu erguer um joelho e ficar de pé, cabelo encharcado de suor obscurecendo a parte de cima do seu rosto. A corda áspera cortara a pele sensível do pescoço. Rios de sangue e suor se misturavam e escorriam sobre a pele do peito, desaparecendo sob o tecido abotoado da camisa. Ofegou, os lábios soprando cada respiração. — Agora ande — ordenei, puxando a corda ao subir as escadas. Embaixo, ele se firmou e resistiu, recusando-se a sair do lugar. — Pensei que tivéssemos um entendimento. Você iria cooperar, e eu iria considerar permitir que seu pescoço quebrasse quando o chão desaparecesse sob seus pés… mas agora, está me irritando. Os lábios dele se curvaram em um sorriso cruel. — Bruxa — moveu a boca, a garganta rangendo como uma dobradiça enferrujada. Foi minha vez de sorrir. — Sim, eu sou. Mas quer saber um segredo? Não sou uma mera bruxa. Sou a Filha do Destino. Esta noite, sou as mãos dele, e os dedos querem esganar sua vida, do jeito que você fez com nossa irmã. As mãos do Destino nunca fraquejam, nunca hesitam, e nunca falham. Sussurrei um feitiço para tirar os pés do assassino do chão. Gaguejou ao flutuar, conforme eu assumia o controle e o fazia pairar sobre os degraus enquanto andava ao seu lado, tão fácil quanto alguém guiaria um cachorro dócil. Colocando-o sob o maior poste, ordenei que o feitiço o soltasse. Caiu alguns centímetros, quase perdendo o equilíbrio. Eu o endireitei enquanto Destino me informava seu nome. Jenson. Jenson Renk. Balançando um braço no ar como alguém faria para limpar uma lousa, sussurrei um feitiço para extrair a memória de Jenson, projetando-a para a multidão, onde viram o que fizera pelo seu ponto de vista. Viram seus dedos ossudos envolverem o pescoço dela, o viram montar nela e esmagar o corpo sob o dele. Testemunharam-na relutar. O medo era tão vivo, quase podia sentir seu gosto. O desespero era palpável. Os Baixos suspiraram conforme ela se contorcia e depois ficava imóvel enquanto a luz e vida desapareciam dos seus lindos olhos âmbar. Os dedos dela enfraqueceram e soltaram suas mãos punitivas. A cabeça pendeu para o lado, mas ele segurou firme por mais um segundo para garantir que estava morta. — Jenson Renk, cidadão do Setor Doze — anunciei —, você assassinou Harmony, bruxa da Casa do Fogo, por asfixia. Você está sentenciado a morte por enforcamento. Destino escolheu não lhe mostrar nenhuma misericórdia, porque você não mostrou nenhuma para nossa irmã. Como pagamento pelo seu crime, exige sua morte. Olhei para ele ao enfeitiçar a corda em minhas mãos. A ponta desgastada se transformou na cabeça de uma cobra. Ela se enrolou em si, sibilando para o homem culpado antes de rastejar rápido para o poste e pela trava. Normalmente, o teria feito subir em um banquinho e erguido seu peso para ele, mas não faria nada para ajudar um assassino desse calibre. Nem me importei com as portas que se abririam, cedendo sob ele. Não, não teria misericórdia para ele. Não permitira que seu pescoço quebrasse. Estrangularia lentamente, do jeito que estrangulara Harmony. Bay me encarou de baixo com uma expressão inescrutável. Não devo ter feito rápido o suficiente para seu gosto, mas não ligava no momento. Brecan estava parado nos limites, a postura rígida um sinal de que ajudaria de bom grado se precisasse. Era um gesto gentil, mas nunca precisei da ajuda de ninguém para isso. Isso… era para isso que era feita. A cobra se enrolou cada vez mais apertada na madeira até os dedos do homem condenado se ergueram do chão. Chutou, tentando encontrar as tábuas sob si. O rosto de Jenson ficou vermelho e depois roxo enquanto se atrapalhava para forçar os dedos entre a pele e a serpente para aliviar a pressão. O coração bateu mais forte, mas o sangue não fluía para onde mais precisava. Os lábios incharam. Chutou em pânico cego, fazendo o corpo oscilar para frente e para trás até seus movimentos perderem a coordenação. As mãos debateram e os braços caíram moles ao seu lado, contraindo-se ocasionalmente. Os movimentos e o balanço diminuíram, e então Jenson parou de relutar. O grupo de homens jovens cujas mãos apertara estava parado logo dentro do conglomerado de bruxas, permanecendo o mais perto da plataforma. Com olhos arregalados e bocas abertas, a atenção estava fixa em Jenson Renk, encarando como se pudessem ver a alma deixar o corpo. Eles não podiam, mas eu sim. Uma névoa escura escapou da sua pele. Permaneceu enquanto eu sussurrava um feitiço transformandoa cobra de volta em corda. A última respiração remanescente se acomodou nas fibras ásperas, escurecendo a corda, e depois a vítima do Destino caiu no chão em um monte vazio, nada além de carne e osso. Teria um alvoroço nos setores baixos amanhã – esta noite, se alguns escolhessem ir embora para espalhar o que viram. Os que testemunharam esse enforcamento nunca o esqueceriam, mas Jenson Renk seria esquecido com o tempo, e isso era tudo o que importava. O Destino estava satisfeito. O fogo na minha barriga extinto. Meus dedos e lábios descongelaram. Desci as escadas e encontrei um par de olhos dourados no momento em que meus pés pisaram no chão. Desviei o olhar, sem conseguir aguentar as emoções queimando atrás deles, e atravessei a multidão que não perdeu tempo de se abrir para mim. cinco DOS DEGRAUS DA MINHA CASA, observei Ethne na plataforma da forca onde o corpo de Renk estava deitado nas tábuas acinzentadas pelo tempo. Moveu os braços sobre o corpo do assassino, fazendo um fogo branco consumi-lo antes do fedor chegar na multidão. Era mestre da sua habilidade, e podia manipular a chama com tanta precisão que não ficaria nem um chamuscado nas tábuas. Podia sentir o calor da sua raiva ondular sobre a grama. Ela subiu os degraus com cuidado para ficar ao seu lado. As vestes grossas, agora verde escuro como os pinheiros no meio da floresta, escondiam seu corpo que encolhia. Murchara desde esta manhã. O tempo foi gentil com ela por um longo tempo, mas começara a pagar o preço pela extensão sobrenatural da sua juventude. Parecia positivamente frágil. Os eventos desta noite a envelheceram significantemente, apesar de não ter certeza por que cobraram um preço tão alto. O cabelo desbotava mais e mais a cada segundo, esvaindo-se de cervo recém-nascido para branco prateado. A leve corcunda em suas costas se tornou um pico de montanha afiado. A pele enrugou conforme subia as escadas, e os músculos secaram. Até chegar na plataforma, mal podia lutar contra a atrofia assoberbando seu corpo para erguer o peso pelas escadas. Bufou e ofegou, e honestamente pensei que pudesse cair morta quando chegou no último degrau. Ficou claro na hora que apesar do preço devastador no corpo, a mente de Vovó não havia murchado nada. Nem sua postura. Mas enquanto pigarreava e sua voz fraca tentava acalmar a multidão, o Destino avisou em um sussurro gentil que os dias dela estavam contados. Como se pudesse ler minha mente, os olhos cor de mel encontraram os meus. Um silêncio pairou sobre a multidão. Não tinha certeza se ela os enfeitiçou, ou se genuinamente queriam ouvir o que tinha a dizer sobre o que testemunharam. As palavras trêmulas que pronunciou estavam enfeitiçadas para acalmar e reconfortar aqueles que as ouviam. Ela os tranquilizou que uma bruxa jamais machucaria um inocente. Os ombros dos membros da multidão relaxaram visivelmente, assim como a respiração. As marcas de preocupação nas testas desapareceram. Era como se tivessem inalado juntos e expirado devagar. Sentei-me à mesa depois que Bay ajudou Ela a descer os degraus da plataforma, e os músicos começaram a dedilhar uma melodia tranquilizadora. O círculo de bruxas que cercava o Centro se partiu, libertando os que estavam dentro. Procurei por cabelo escuro e olhos dourados, mas nunca o encontrei. Ethne acendeu as fogueiras. Um par de bruxas fazia malabarismos com tochas, enquanto outra dupla balançava correntes acesas em grandes arcos, cortando círculos brilhantes no céu crepuscular. O cheiro de fumaça encheu o ar conforme nossos convidados enfim começavam a formar grupos, conversando e até mesmo rindo entre si. As bruxas da Casa da Água fizeram nuvens de chuva em miniatura surgirem. Relâmpagos raiavam delas, criando pequenos e intensos lampejos de luz dentro das nuvens turbulentas. Os trovões que soavam complementavam as batidas dos tambores dos músicos. Flores cheirosas de todas as cores e formas emergiram do chão quando as bruxas da Casa da Terra foram apresentadas. Topiarias de trepadeiras retorcidas se formaram ao lado de uma família de três pessoas, um pai, mãe e filha, imitando perfeitamente as formas até o cabelo delicado da criança. Os membros da Casa do Vento mandaram uma doce e quente brisa passar pelo lugar, arrancando pétalas de caules e as fazendo rodopiar sobre os telhados próximos, além da copa das árvores e bem alto no céu, até desaparecerem de vista. Conforme abaixavam as mãos erguidas e abafavam qualquer traço de vento, pétalas suaves choviam dos céus. Dentro de minutos, a grama estava coberta de pétalas de todas as cores do arco-íris. Crianças juntavam as pétalas delicadas e as jogavam no ar, tentando imitar as bruxas do Vento. Esta noite, aqui neste lugar, ninguém as repreenderia. Amanhã seria diferente. Ouvi dizer que os que retornavam para o Setor Doze aconselhariam as crianças a não falarem sobre vir aqui, nem sobre a magia que testemunharam. Há alguns anos era quase chique frequentar, agora misturar-se com bruxas estava se tornando cada vez mais tabu com o passar as estações. Quando era criança, a floresta transbordava de convidados. Agora, o Centro mal estava cheio. Ser uma bruxa não é nada para se orgulhar, diriam a elas. Bruxas são criaturas perigosas. Não estavam errados, mas também não estavam certos. Crianças ignorariam as próprias experiências e sentimentos se adultos os pressionassem o suficiente para andar na linha. Era assim que preconceito e ignorância eram perpetuados ao longo de gerações. Mas contanto que fosse apenas uma noite no ano e escondessem suas poções e ervas adquiridas nos bolsos, cobrindo as cabeças e rostos com os capuzes das capas ao atravessarem as fronteiras e se esgueirarem de volta para suas casas, não tinha problema. Sussurrei um feitiço, acendendo a vela branca na mesa. Não possuía nenhuma afinidade elemental, mas aprendera a conjurar os elementos até certo ponto. Não podia chamar um tornado ou inundar um riacho, mas podia acender velas e encher minhas bacias se o poço secasse. E, contanto que cuidasse das minhas plantas, elas cresciam muito bem. Durante horas, sentei-me e observei. Qualquer um que se aproximasse da minha mesa rapidamente encontrava o caminho de volta para a anonimidade da multidão, colocando o máximo de distância possível entre eles e eu. Fiquei sentada em silêncio, sozinha, e observei as estrelas se moverem pelo céu azul-preto. Vinho de amora silvestre estava sendo distribuído para qualquer um que quisesse, e o clima pesado que levei para a celebração do Equinócio foi trocado por um mais alegre. O álcool provavelmente ajudava a amenizar os sentimentos dos Baixos, e estávamos servindo o suficiente para afogar um setor inteiro. Alguém usando uma capa pesada enfim cambaleou para minha mesa, puxou a cadeira na minha frente, e caiu nela sem cerimônia. O cheiro doce de amoras silvestres encheu o ar, junto com algo masculino e inebriante. Revirei os olhos. — Você está bêbado. Deveria encontrar a pessoa com quem veio e pedir para que o levem para casa. Mãos fortes afastaram o capuz para trás, e com um susto, percebi que era o homem bonito de mais cedo. Olhando em um par de olhos dourados avermelhados que tentavam em vão focar nos meus, notei detalhes que deixei passar antes. O cabelo castanho escuro estava recém cortado, ainda nem começara a crescer na nuca. Os ombros eram largos, e a capa os encobrindo era de um material denso e preto. Com um fio dourado, um símbolo estava bordado sobre o coração, mas estava enrugado e não conseguia identificá-lo. — Não vou a lugar nenhum — arrastou. Cruzei os braços e ergui as sobrancelhas. — Quer uma leitura? — Leitura? Não vejo nenhum livro. — Riu. — Leio destinos. — Futuros? — Riu e apontou um dedo para mim. — Você é uma bruxa. — E é óbvio que você é um gênio. — Um gênio bêbado, com olhos derretidos e bonitos. — Você deveria fazer poções do amor e bonecas de vodu — falou arrastado —, não enforcar as pessoas. — Precisa de uma poção do amor? É bonito o suficiente para encontrar alguém sozinho, imagino — falei comhonestidade. Recompensou o elogio com um sorrio largo que fez meus lábios se curvarem para cima em resposta. — Não esperava que ninguém tivesse coragem o bastante para se aproximar da minha mesa esta noite — disse. — E as pessoas raramente me surpreendem. Sorriu com orgulho e colocou a mão sobre o peito – a saudação da milícia do Reino. Deve ser um soldado. — Feliz por servir, Madame. Talvez devesse oferecer uma leitura para você, no lugar. Ele era ridículo e… doce. — Olha, posso ajudá-lo. Acha que pode subir as escadas? Tenho algo que vai ajudar a limpar sua mente, mas vai precisar ficar alguns minutos sentado depois de beber. Analisou as escadas levando para minha porta da frente, e com uma expressão determinada, assentiu. — Sim. Sim, posso fazer isso. Hm, bom. São apenas degraus. Apaguei a vela e recolhi tudo no tecido de feitiços, decidindo que organizaria tudo mais tarde. Estava claro que o Destino destruíra qualquer oportunidade que pudesse ter de fazer algum dinheiro esta noite, não que me importasse, para ser honesta. Matar Jenson Renk valeu a pena. Eu me perguntei se ainda me sentiria assim daqui um mês quando não tivesse poupança para prover o que não podia, e o que as outras Casas não dariam. Ainda assim, era óbvio que esse jovem homem tinha dinheiro. Talvez se sentiria grato depois que a poção que estava prestes a preparar cumprisse sua magia. Ofereci a mão caso ele caísse, mas conseguiu subir as escadas e passar a soleira e entrar na minha casa. Até onde sabia, era o primeiro forasteiro a colocar o pé entre estas paredes. Coloquei as coisas em uma cadeira e apontei na direção do sofá enquanto ia procurar os ingredientes que precisava na cozinha. Brecan deixara a maior parte das minhas ervas em um saco na bancada. Separando rápido as folhas que precisava, eu as coloquei em um saco de chá e peguei uma caneca. Murmurei um feitiço para enchê-la com água, e para que esquentasse mas não fervesse. Estava com pressa. Algo me dizia para ajudá-lo e tirá-lo daqui o mais rápido possível. Por esse motivo, fiquei grata quando os aromas de sálvia, alecrim, lavanda e menta encheram o ar. Enquanto andava na direção do sofá com a caneca, o jovem sentou-se atrapalhado, tirando os pés da mesa oval na sua frente, pedindo desculpas tímido e colocando-os de volta no chão. Esfregou a mão no rosto conforme entregava a caneca a ele. — Beba. Deve fazê-lo sentir-se melhor. Ele olhou para do líquido fumegante para mim e de volta. — Como sei que é seguro? Sorri. — Por que não seria? — Você matou aquele jovem esta noite — respondeu baixo. Meus pulmões se expandiram com uma respiração funda. Algo no jeito que falou me fez desejar que tivesse controlado o Destino de alguma maneira até depois das festividades, só para que não tivesse visto o tipo de magia que eu praticava. — Aquele homem era um assassino. — Vapor da xícara subiu no seu rosto e vi seus olhos começarem a clarear. Mudando de assunto, perguntei: — Estava com mais dois. Onde eles estão? — Nos separamos. Não sei onde estão. — Não tenho intenção de feri-lo — afirmei com honestidade. — O chá não vai fazer nada além de deixá-lo sóbrio. Depois pode encontrar seus amigos. Os dedos dele apertaram na alça da caneca. — Espero não estar cometendo um erro ao confiar em você. — Levou a caneca aos lábios e deu um gole hesitante. As sobrancelhas escuras se ergueram. — Isso… isso é delicioso. Tentei sorrir. — Que bom que gostou. Dentro de minutos, a caneca estava vazia, o feitiço funcionara e meu convidado estava sóbrio. Colocou a caneca na mesa de centro e esfregou a mão no rosto, soltando um suspiro reprimido. — Obrigado outra vez. Espero que não tenha feito ou dito nada para ofendê-la. Sinto muito por ter me intrometido. — Não se intrometeu. Eu o convidei. Não fazia ideia do porquê, mas o fiz. E agora que estava aqui, tinha a sensação mais estranha formigando por mim. Meus dedos coçavam com o desejo de tocá-lo. Estava quieto, o olhar focado, mas gentil. E então me surpreendeu ao soltar: — Não fazia ideia até esta noite que mulheres bonitas enforcavam homens feitos. Inclinei a cabeça para trás. — E quem presumiu que fizesse isso? Deu um sorriso genuíno. — Não quis ofender. É só… meus amigos me convenceram a vir esta noite para relaxar um pouco. Minha vida está prestes a mudar drasticamente. — Passou a mão rápida pelo cabelo. — Como? O joelho dele pulou com a pergunta. — Aprecio a hospitalidade, mas deveria ir. — Mamãe e papai não sabem que você saiu escondido? — Dei risada enquanto ele se levantava. — Algo assim. — Os olhos se prenderam na minha tigela de prata. Alguns ossos da sorte que não levara para fora ainda estavam no fundo. — Por que você tem isso? — Ossos da sorte são a melhor maneira para eu ler alguém. — Isso é incomum. Esperava cartas ou uma bola de cristal. — Posso usá-los, mas não os prefiro. — Os ossos me chamaram quando era apenas uma garotinha. Ossos da sorte, em particular, e recolhera todos os que pude desde então. — É difícil ler o destino de uma pessoa? — Ele remexeu as mãos. — Depende da pessoa. Alguns destinos são mais complexos do que outros. Encarou os ossos delicados, depois voltou a atenção para mim. — Leria o meu? — Por um preço. — Fale e é seu — prometeu. Olhei para ele outra vez, analisando suas roupas finas e asseio. Tinha dinheiro. — Um saco de moedas. — Feito — falou alegre, esfregando as mãos. Isso foi mais fácil do que esperava. Pensei que fosse regatear. Quando a maioria das pessoas eram fáceis de ler, mesmo ao longe, este homem não era. Não podia definir nada a seu respeito com firmeza, o que me afetava mais do que admitiria. — Sente-se à mesa — instrui, apontando para uma pequena mesa quadrada no canto da sala. Talvez fosse eu. Ainda estava perturbada com os eventos da noite? Ele removeu o lençol cobrindo a mesa e cadeiras e sentou-se em uma, virando-se para observar enquanto pegava a tigela de ferro de ossos da sorte. — Mudando-se? — adivinhou. — Hoje, sim. — Por sorte levara minhas roupas para um quarto próximo. Não perdi tempo com o tecido de feitiços. Não era necessário para uma leitura, só acrescentava um clima; clima que a maior parte dos Baixos precisava para deixar a leitura mais divertida do que verdadeira. Sentando-me à sua frente, coloquei a tigela entre nós. Estudou as inscrições gravadas na borda da tigela. — Escolha um osso. Antes de quebrá-lo, deseje conhecer seu futuro. Pegou um osso do fundo da pilha e fechou os olhos. Com uma quebra rápida, o osso se partiu em dois, mas algo estava muito errado. Suspirei com a visão. Os olhos dourados se abriram. Minha boca abriu e arquejei chocada. Gotas de sangue carmesim pingavam da maior parte do osso, espirrando na mesa. Senti uma gotícula atingir minha bochecha e limpei o sangue com o polegar. O pedaço menor também sangrava, mas em menor quantidade. Leio destinos há anos, e nunca vi um osso da sorte sangrar. Mais três grandes gotas caíram antes que algum de nós falasse, e foi ele quem conseguiu: — Por que está sangrando? — perguntou, olhando para mim com expectativa. — Me dê sua mão. — Soltou os dois pedaços de osso e limpou as mãos nas calças antes de oferecer as duas. Coloquei a palma da mão direita contra a dele e fechei os olhos. Cenas lampejaram na minha mente. A primeira era uma visão dele deitado de costas, um rastro de sangue espumoso borbulhando da sua boca e as pupilas dilatadas e imóveis. Outra cena apareceu rápido, de mãos o empurrando de uma varanda ou janela… algum lugar alto… e o barulho doentio que veio quando atingiu o chão lá embaixo. Outra visão dele caindo no chão, uma fonte de sangue escorrendo dos lábios e a pele pálida como gelo. Aquela visão foi apagada por outra, anunciada por uma onda de dor afiada enquanto olhava para baixo para encontrar a ponta de uma lâmina saindo do peito… Cada um dos destinos mostrava uma coisa. Pedi para o Destino confirmar e senti o calor do seu aviso fluir por minhas veias. O osso não mentia. Não havia erro. — Muito em breve, alguém vai tentar matá-lo. Soltou