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Quando a sorte sangra Casey L Bond


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quando a sorte sangra
CAPRICHOS DO DESTINO
LIVRO 1
CASEY L BOND
TRADUÇÃO
ERIKA ROBLES
Copyright © 2019 Casey L. Bond
Título Original: When Wishes Bleed
Preparação: Thátia Gonçalves
Capa, mapa e carta de tarô: Melissa Stevens – The Illustrated Author
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares, organizações e
situações são produtos da imaginação do autor ou usados como ficção.
Qualquer semelhança com fatos reais é mera coincidência.
Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, no todo ou em partes,
através de quaisquer meios. Os direitos morais do autor foram contemplados.
Todos os direitos desta edição reservados à:
DL BOOKS EDITORA
contents
Untitled
Untitled
Untitled
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Untitled
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Untitled
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Epílogo
Outros Livros da Autora
Sobre a Autora
Notes
Quando a Sorte Sangra
Casey L. Bond
Tradução
Erika Robles
Dedicatória:
Para Misty,
Por me mostrar a magia na amizade.
Os Setores
1 até 4 — Os Setores Centrais
5 e 6 — As Artes
7 e 8 — Industriais
9 até 10 — Agropecuária
12 — Madeira
13 — Forca
PARTE UM: Quando a Sorte Sangra
um
AS PONTAS DOS MEUS DEDOS, até unhas, estavam azul
gelo apesar do ar quente e seco do outono. Elas doíam e latejavam
conforme bombeava água em uma chaleira e formigavam enquanto
a carregava de volta para dentro e pendurava sobre o fogo. Nada
além da morte as traria de volta a vida a esta altura.
Passei os dedos congelados pela cintura e esperei
pacientemente que ela chegasse. Estava quase aqui, ainda bem.
Tinha negócios importantes para resolver hoje, mas as duas leituras
que o Destino exigia eram prioridade.
Peguei as folhas de chá e as empilhei em um montinho na
bancada, depois coloquei três xícaras atrás. Para as bruxas para
quem fazia a leitura, deviam parecer idênticas, mas cada uma tinha
uma marca própria e segredos que só ela poderia revelar.
Hoje era meu aniversário, e meu poder e eu agora éramos
considerados maduros. Destino, eu sabia muito bem, era real. Não
era um conceito obscuro da sorte, ou um sonho do que o futuro
poderia trazer. E com certeza não era a sorte ou um poço dos
desejos. Era senciente e muito vivo. Eu era a filha do Destino, e ele
vivia dentro de mim.
Quando era criança, era gentil com suas exigências, mas hoje
não restava nenhuma gentileza. Os sussurros fáceis se tornaram
gritos, e ultimamente, os cutucões de orientação se tornaram
empurrões bruscos.
Destino me empurrava agora, evidenciado pelos congelados e
necróticos dedos e a rigidez se apoderando das articulações, mas
aprendera a revidar. Quase sempre escutava quando prometia fazer
o que ele queria a tempo, mas hoje estava impaciente. Queria que
um homem balançasse na forca, e que eu o colocasse ali.
Eu queria enforcá-lo, para ser honesta. Queria que a pontada de
agulha da dor desaparecesse, ser capaz de alongar os ossos, e que
a sensação retornasse por completo para as partes que pareciam
adormecidas. A única coisa me segurando era o fato que nenhum
crime havia sido cometido, ainda. Sempre confirmava para garantir.
Destino me avisava que uma ofensa aconteceria, e que se
esperasse, o que fosse que acontecesse chatearia todas as bruxas
da Forca, mas me recusava a enforcar alguém quando ainda existia
a menor chance que o delinquente escolhesse um caminho
diferente. E eu acreditava piamente que até um limite ser
ultrapassado, existia esperança.
Destino… discordava.
Hoje não era um dia que podia enforcar alguém a não ser que
quisesse ser exilada. Era o Equinócio. Macular um dia tão reverente
e sagrado, até para o Destino, era imprudente. Ele precisaria
segurar sua raiva por um curto período, e eu teria que aprender
melhor a tolerar a dor.
Soltei ar quente no meio dos punhos enrijecidos.
A garota pisou na soleira, as tábuas gastas rangendo sob o
peso. Empurrou a porta aberta, se demorando ligeiramente para
dentro ao analisar minha pequena e abarrotada cabana. Da cabeça
aos pés, usava vermelho. O vestido, capa, e até os sapatos
representavam a cor ardente da sua Casa. No braço estava uma
pequena cesta, de onde o cheiro de alho fresco flutuava na minha
direção: o pagamento.
— Coloque a cesta no banco ao seu lado.
Pulou e olhou para a cesta como se tivesse esquecido que
estava pendurada no braço. Ela a colocou delicadamente na antiga
relíquia de madeira, tomando cuidado para que o desnível não
fizesse o fundo virar e espalhar os bulbos cheirosos. Depois, se
empertigou e alisou a saia, ansiosa. Remexeu a capa até estar
satisfeita com a posição, os lados jogados por cima dos ombros.
— Chá, cera, ou ossos? — perguntei, esperando a resposta que
já sabia que daria.
A garota mordiscou o lábio inferior ao considerar as três opções.
O punhado de sardas sobre o nariz e bochechas a fazia parecer
mais jovem do que era, mas a indecisão foi o que mostrou sua
verdadeira imaturidade. Toda bruxa na Forca sabia o que eu preferia
ler. A garota não era exceção.
O tom avermelhado do seu cabelo era da mesma nuance do
monte de folhas de chá soltas sobre o balcão. Do outro lado do
recinto, a chaleira soltava fumaça. Fios soltos e lentos que se
curvavam e enlaçavam um ao outro. Poderia me perder na sua
dança sedosa se olhasse tempo o suficiente, então voltei o olhar
para ela para recuperar o foco.
A água não estava aquecendo para ela; estava aquecendo para
o garoto no bosque. Ele estava parado atrás da minha cabana,
segurando-se à casca grossa de uma árvore, tentando
desesperadamente se convencer de bater em minha porta e pedir
para que lesse seu destino, e se repreendendo por considerar ir
embora antes de consegui-lo.
Uma hora, reuniria iniciativa o bastante para se aproximar e me
pedir o favor que cobiçava, mas não antes de testemunhar a saída
apressada da garota. Ele surgiria da floresta enquanto ela saía pela
porta dos fundos, provavelmente para evitar arruinar sua reputação
caso alguém o veja aqui. E escolheria uma leitura de folhas de chá
pois temia a cor da vela que pudesse escolhê-lo, e que os ossos
pudessem dizer algo que não estava preparado para ouvir, guiá-lo
para onde ainda tinha medo de pisar.
Ele era um garoto que lutava contra uma incerteza intensa. Um
garoto que preferia grudar em uma árvore a soltar. Eu o afastei da
minha mente e observei conforme a garota entrava aos poucos no
recinto, como se estivesse entrando em um lago de água gelada.
Não havia muito para se ver no pequeno espaço aberto. Um sofá à
esquerda, e uma mesa quadrada simples e cadeiras no canto mais
distante. A cozinha estava à sua direita. Ali estavam apenas alguns
armários, e as bancadas manchadas e meio deformadas estavam
cheias de pedras preciosas e ervas em vasos. Os olhos dela se
demoraram na lareira com o fogo tremeluzente, e as ondas mais
densas de vapor se derramando da chaleira.
Ela se virou para longe da lareira e do chá.
Os pálidos olhos âmbar se prenderam no tecido esticado sobre o
tampo da mesa. Viu os ossos da sorte empilhados em uma tigela de
prata, desejando desesperadamente que não fosse tão fraca. Não
podia ouvir suas palavras na minha cabeça, mas segui o jeito que
as feições delicadas revelaram uma onda de emoções que cresceu
e quebrou sobre seu semblante.
— O Destino não favorece os fracos — avisei a garota conforme
ela mudava o peso de um lado para o outro, os dedos inquietos.
Seus olhos encontraram os meus. Nas profundezas nadavam culpa
e confusão. Elaborei para ela. — Não deveria temer os ossos.
Podem revelar coisas que a cera e as folhas de chá não podem.
Ela era uma garota que não aceitaria conselhos mesmo quando
fosse de seu interesse, uma garota que dava ao medo domínio
sobre suas decisões. Os olhos foram para uma prateleira próxima e
as velas incolores que ali estavam. Ela se recusava a desviar o
olhar dospavios pálidos, com medo que os ossos a atraíssem outra
vez. Sempre atraíam.
— Escolho cera, por favor — falou com a voz trêmula. A ratinha
estava apavorada, não pelo chá ou cera, ou mesmo pelos ossos…
mas por mim.
Dei um sorriso para tranquilizá-la, ciente que poderia fazer o
inverso, e fui até a prateleira, recolhendo o monte de velas delgadas
e as levando para a mesa.
— Poderia remover o tecido?
Hesitou, mas segurou gentilmente os cantos do quadrado de
seda escura com as pontas dos dedos e o puxou da superfície de
madeira. Acomodei as velas, as firmando para que nenhuma saísse
rolando, depois peguei o tecido. Durante a troca, o tremor em seus
dedos passou pelo tecido até os meus.
Os olhos foram para a bandeja de ossos da sorte de novo,
depois voltaram para mim. Não os ofereceria a ela outra vez. Fizera
sua escolha, e meu tempo era tão valioso quando minha leitura. Não
o perderia com sua indecisão ou medo.
Dobrei o tecido de feitiços escuro, coloquei no largo bolso do
vestido, e removi a tigela de ossos da visão. Tensão exalou dos
músculos da garota assim que desapareceram. Peguei uma cesta
de candelabros aleatórios das prateleiras, entregando a ela.
— Coloque uma vela em cada, e os posicione em um círculo.
Ela mudou o peso do pé esquerdo para o direito, depois de volta.
— Começo por qual? Todas parecem iguais.
— Vai descobrir que a sensação não é a mesma. Segure cada
uma, e depois as coloque onde sente que pertence. O padrão é seu
para formar.
Os lábios dela se apertaram.
— Pense em uma pergunta para a qual gostaria de saber a
resposta. Foque nela e a sensação da vela em sua mão, depois a
posicione. Se permitir, a cera vai mostrar a resposta no padrão que
formar. Avise-me quando estiver satisfeita com o círculo. As cores
se revelarão, e vou decifrá-las para você.
Engoliu em seco e depois pegou uma vela, fechando o punho ao
redor e fechando os olhos por um breve segundo antes de abri-los.
Colocou a primeira vela no castiçal localizado na posição de doze
horas. Devagar, formou um círculo, guiando cada vela pela
circunferência em posições variadas até cada castiçal estar cheio.
Ela não podia ver além da cera opaca até a cor interna, mas eu
conhecia cada uma como a palma da minha mão. Sua organização
me surpreendeu. Continha combinações chocantes de amarelo e
preto, violeta e verde, laranja e branco. Quando completou o círculo,
olhou para cima com expectativa.
— Satisfeita? — perguntei.
Olhou para o círculo que fez e assentiu.
— A sensação é correta.
— Não esperava isso de você — revelei, passando as mãos
sobre o círculo sagrado. As velas se ergueram dos castiçais e
começaram a rodopiar no ar. As cores verdadeiras foram absorvidas
na cera branca da ponta de cada pavio até a base. Esperava ler o
padrão, mas outra vez, ela me surpreendeu. Ou melhor, seu futuro.
Uma vela em particular a escolheu, o que era um poder raro.
Os olhos dela lutavam para acompanhar enquanto as velas
perdiam a velocidade, e observava desconfiada conforme uma única
vela deixou sua posição na roda e pairou para o centro. A cera da
cor de beringela, ou um profundo e demorado hematoma – uma
sorte infeliz para qualquer bruxa colher, mas uma bruxa esperta
acataria o aviso e poderia mudar seu destino…
— O que significa?
— É um aviso.
Engoliu em seco.
— Previsão é um dom do Destino. Se acatar seu aviso, pode
tomar decisões para evitar uma catástrofe.
Os lábios mal se moveram, mas os vi formar um inaudível
“catástrofe”.
— O que vai acontecer comigo? — perguntou.
Sussurrei um encanto. Fogo queimou o pavio, ficando alto e
oscilante. Fumaça escura pairou na direção do teto. Ela observou a
chama, o elemento e fonte do seu poder. O reflexo do fogo brilhou
em seus olhos.
— Apague-a — falei baixo.
Fechou os olhos e a chama morreu na hora.
— Fique longe da fronteira.
— Por quanto tempo? — foi rápida em perguntar. Rápida
demais.
Arqueei uma sobrancelha. Ela não deveria estar indo lá
desacompanhada, de qualquer maneira.
— Por que está saindo sem permissão?
A garota engoliu.
Segurando a vela, li o sopro remanescente que exalara no pavio.
— Um garoto no Doze? Você está se esgueirando pela fronteira
há meses.
Os olhos dela se arregalaram.
— Por favor, não conte para a Sacerdotisa. Serei banida da
Casa.
— O coração do jovem homem é tão preto quanto suas palavras
são doces. Está atraindo-a para uma rede de mentiras. Nunca
deveria vê-lo outra vez.
O lábio começou a tremer.
Ah, não. Já podia sentir o impacto de emoções em rebuliço por
ela. Não tinha nada que podia fazer para impedir um sentimento tão
forte quanto o amor, mas se pudesse convencê-la, fazê-la ver que
era um amor que nunca fora reciprocado…
— Você o ama?
— Sim — coaxou.
— Ele não ama você. — Uma lágrima gorda escorreu por sua
bochecha. Olhou para os sapatos. Envergonhada. — Bem no fundo,
você já sabe disso.
Uma segunda lágrima escapou do seu olho. Esta espirrou na
ponta da bota de couro.
— O encontro casual pode ser relevado, mas você sabe que
estar com qualquer um fora da Forca significa que nunca poderá
retornar. Sem a Casa, seu poder irá diminuir. Deseja perder sua
chama?
Balançou a cabeça. Ela precisava saber que qualquer casinho
que estivesse tendo com o garoto não poderia durar, mas o fruto
proibido era uma tentação que alguns não poderiam se forçar a
ignorar.
Suavizei a voz, esperando que visse lógica.
— E a sua vida? Deseja que seja extinta?
A garota começou a chorar por completo. Sabia que não poderia
e não iria mentir para ela, mas os sentimentos que guardava pelo
jovem homem malicioso eram tão fortes quanto a vontade dele de
parti-la.
— Posso ver a vontade dele — revelei —, e seu único propósito
é machucá-la. — A verdade com frequência doía.
Seus olhos encontraram com os meus.
— Ele não faria isso.
— Ele vai matá-la. Se o vir outra vez, ele a matará.
Balançou a cabeça em desafio e limpou o nariz.
— Ele nunca me machucaria.
— É a verdade. Agora, você deve tomar uma decisão
importante. A mais urgente da sua vida. Vai acatar meu aviso, ou
aceitará seu destino?
Ela me empurrou para passar e abriu a porta dos fundos com
tudo. Uma batida alta chacoalhou as paredes. Quase a repreendi
pela grosseria, mas em sua defesa, a leitura foi bem chocante. A
maior parte do tempo, tinha uma faísca de esperança que a pessoa
para quem lia pudesse mudar seu destino, mas não acho que isso
se concretizaria no caso dela.
Se fosse até ele esta noite como planejado, este momento – e
eu – seriamos uma das últimas coisas das quais se lembraria antes
que a morte a reivindicasse.
Não havia terminado de guardar as velas antes do garoto do lado de
fora entrar na cabana. A capa e a túnica refletiam a cor ardente da
Casa do Fogo, mas as roupas não eram dele. Não tinha chama.
Que estranho… Nunca o vira antes, e pensei que tivesse visto todas
as bruxas em um momento ou outro. Ainda assim, havia algo
familiar nele, apesar de não poder identificar. Seus olhos estavam
baixos ao perscrutarem minha cabana.
— Gostaria de algo afiado para tirar a casca da árvore de baixo
das suas unhas? — perguntei, voltando a cera e a cesta de castiçais
para seu lugar correto.
Ele se eriçou.
— Quero que leia meu destino.
— Qual pagamento oferece?
Colocou a mão no bolso esquerdo da capa e tirou um cristal.
— Ametista.
Tirei a pedra roxa pálida da sua mão. Era tão grande quanto
minha palma. Nunca recusaria um cristal dessa beleza.
— Chá, cera, ou ossos?
— Chá — respondeu rápido. — Pode se apressar? Preciso voltar
logo.
— Antes que alguém descubra que veio até mim?
— Exatamente. — Os olhos dele foram de um item para outro na
cozinha esparsa conforme me movia pelo espaço.
Acenei para o balcão.
— Escolha uma xícara e um pires, depois coloque três colheres
cheias de folhas de chá na xícara. Vou verter a água.
Ele se moveu para a bancada e rapidamente colocou três
montes de folhas em uma xícara. Seus olhos lampejaram para mim.
As pupilas eram estranhas. Não redondas, mas verticais… como as
de uma cobra.
Cruzei os braços e apoiei o quadril na bancada.
— Por que você veio aqui?
— Desculpa?— perguntou, a testa franzida.
— Está claro que não quer estar aqui.
— Preciso do meu destino. Rápido. Nada mais. E não lhe devo
uma explicação além disso, Filha do Destino.
Com a chaleira na mão, parei sobre a xícara.
— Seria inteligente ser mais respeitoso.
Inclinou a cabeça e murmurou uma desculpa.
— É só que tenho sido afligido recentemente. Sonhos estranhos.
Vozes…
Deixei a água fluir para a xícara branca simples que ele
escolhera. Todas as minhas xícaras eram brancas para o olhar
comum, assim como as velas. Mas cada uma tinha uma asa distinta,
e cada uma escolhia o recipiente da sorte com a mesma distinção.
Esta xícara refletia mudança. Sua vida estava prestes a ser
dramaticamente alterada.
Observou a superfície conforme as folhas rodopiavam,
afundavam, e subiam. Seus olhos lampejaram para mim, mas se
desviaram rápido.
— E agora?
— Pense na pergunta para a qual precisa de respostas ao
assoprar o vapor.
— Todo ele? — perguntou.
— Todo.
— Já fui chamado de saco de vento, mas nem mesmo eu
poderia assoprar todo esse vapor. Está fumegando.
Dei-lhe um olhar feio até que segurasse a borda da bancada,
enrugasse os lábios e assoprasse. O vapor desapareceu, e com ele,
a água também. O padrão de folhas que restou no fundo e nas
laterais começou a se transformar em imagens.
— Como…? — perguntou.
— Observe. Não desvie a atenção.
Seguiu minhas instruções, observando até as folhas se
acomodarem. Formaram uma linha reta que iam do leste para oeste,
dele para mim.
— Como eu o conheço? — perguntei.
Abriu a boca.
— Eu não deveria ter vindo.
— O que está escondendo? Sei que a túnica que usa foi
roubada. Não posso pressentir uma afinidade, ainda assim sinto
algo poderoso em você. Algo sombrio. — Algo que poderia ser lindo
ou mortal, não o disse.
— O que vê nas folhas? — exigiu firme.
— Seu mundo inteiro está prestes a ser virado de cabeça para
baixo, e de alguma forma, isso está relacionado a mim. Vai precisar
de mim para alguma coisa. E este não é apenas o seu destino.
Algo… terrível vai acontecer.
Murmurou algo ininteligível.
— O quê? — perguntei, erguendo uma sobrancelha.
— Só… esqueça.
Isso estava ficando entediante.
— As escolhas que está prestes a fazer são as mais importantes
da sua vida. Escolha bem.
O garoto saiu tempestuoso pela porta dos fundos assim como a
garota fizera, a capa vermelha roubada oscilando atrás de si.
dois
PONTADAS de dor perpassavam por todos os músculos
conforme subia os degraus de pedra de trezentos anos da Casa da
Terra. No patamar, fortaleci minhas costelas e encarei a porta. As
pontas frígidas dos meus dedos ergueram a aldrava e bati contra a
porta. Uma. Duas. Três vezes.
Virei-me ao esperar uma resposta, escondendo as mãos nos
bolsos da saia, mas não era possível disfarçar o igual tom azul dos
lábios. Parecia como se tivesse uma forca na cintura, me puxando
na direção da Casa do Destino do outro lado do gramado aparado
do Centro. Não tenho muito tempo para analisar a estrutura, porque
gritinhos soam dentro da casa recém-pintada de verde musgo,
anunciando a resposta da minha convocação.
Gêmeas com cabelo castanho cervo escancaram a porta, apesar
das risadinhas e sorrisos desaparecerem quando me veem. Além
delas, maços de ervas secando estavam pendurados em vigas de
madeira suspensas do teto. As paredes atrás tão verdes quanto
suas vestes.
Os olhos percorrem minha roupa, tão diferente delas. Apesar da
idade, meu vestido é preto como piche, e um pouco apertado agora.
Desconforto exalou entre nós e se tornou aparente que nenhuma
das jovens bruxas iria me recepcionar.
Dei um passo à frente e ergui o queixo.
— Gostaria de conversar com sua Sacerdotisa, por favor.
Não fui convidada para entrar e a porta se fechou com um
baque, parando a um centímetro do meu rosto. Dei um passo para
trás e esperei pacientemente para que abrisse outra vez, virando-
me para olhar para o coração da Forca.
O tom terroso do verão se esvaía da grama do Centro mais e
mais a cada dia. Era triturada sob os pés das bruxas andando por
ela. Para o sul estava a forca. Um laço acinzentado balançava ao
vento como se estivesse dançando, como se tivesse esperança de
que logo seria útil mais uma vez.
Não seria. Preferia minha própria corda. A acinzentada era de
minha mãe. Foi com aquela que fora enforcada.
Eu me recusava a tocá-la.
A porta se abriu atrás de mim e a Alta Sacerdotisa da Casa da
Terra parou do outro lado da soleira. Ela era mais velha do que a
própria casa, velha o suficiente para ter visto três delas serem
erguidas e demolidas.
Era minha avó materna, apesar de ter deserdado minha mãe
antes que eu nascesse e por extensão, me deserdou antes que
inalasse minha primeira respiração.
— Filha do Destino — cumprimentou rígida, curvando-se de leve
na cintura. As vestes verde sálvia estavam presas na cintura larga
por um cinto simples trançado com contas de barro, cada uma
gravada com uma runa de proteção diferente. A estampa de
trepadeiras no tecido da túnica se contorcia, alongava, e retrocedia,
se acomodando outra vez ao falar.
Retribui a mesura.
— Sacerdotisa, Destino requer um quórum. E enquanto
estivermos reunidos, tenho um assunto pessoal para discutir com o
Círculo.
A testa envelhecida franziu e os olhos ficaram afiados.
— Certamente os dois assuntos podem esperar até o Equinócio
passar.
Flexionei os dedos no bolso. Teria sido menos doloroso se
alguém tivesse espetado milhares de alfinetes.
— Temo que não possam. — As palavras saíram mais
engasgadas do que esperei, cheias da dor que me atravessava,
junto com a sensação de derrota. Não podia mais segurar o Destino.
Empertigou a coluna corcunda o máximo que pode, as vértebras
estalando em sucessão. Os dedos ossudos se curvaram sobre as
tábuas de madeira lacada do chão.
— Muito bem. Vou reunir o Círculo.
— Vou esperar no Centro.
Ao fechar a porta, menos rude do que as garotas da sua Casa
fizeram, o olor fragrante de ervas e terra foi carregado pela brisa
fresca e quente. Rodopiei, sentindo olhos em mim. Quando olhei
sobre o ombro, a cortina da janela frontal balançou.
O Centro da Forca era entrecruzado por caminhos gastos e
convergentes que formavam um pentagrama. Situada no ápice de
cada ponta da estrela estava uma das Casas. Terra e Ar à
esquerda, e Fogo e Água à direita. As pontas das minhas botas
gastas apontavam na direção do que eu mais queria, como se
fossem uma bússola mostrando o norte.
Na ponta da estrela, a Casa do Destino estava vazia e
dilapidada. Esvaía-se cada dia que passava desocupada e
indesejada. Os últimos dezessete anos não foram gentis com ela.
Pedaços de telhas onduladas estavam ausentes. O revestimento
externo desbotara de preto para um branco fantasmagórico, de vez
em quando interrompido por manchas de alga verde vivo. Cada
tábua recuperável precisava ser lixada e repintada. E isso era
apenas do lado de fora.
Pisei no gramado do Centro e virei o rosto para o sol quente. Os
raios infiltraram-se na pele. Estava fazendo o que pedira, mas o
Destino não ansiava por me libertar dos sempre presentes
lembretes do seu poder… incluindo o fato que sempre conseguia o
que queria, de um jeito ou de outro. Os ossos dos meus dedos
pareciam que poderiam se quebrar a qualquer momento. Pareciam
friáveis, tão gastos quanto a decrépita Casa do Destino.
O som de grama triturando veio das quatro direções atrás de
mim conforme os membros do Círculo se aproximavam. Eu me virei
e cumprimentei cada um com uma leve mesura.
— Requisitou um quórum? — disse Wayra, Alta Sacerdotisa da
Casa do Vento, a mais jovem dos quatro membros do Círculo.
Nunca foi de enrolação. A brisa que a acompanhava por todos os
lugares agitou a túnica e longo cabelo branco. Flanqueando-a
estavam minha avó Ela e Ethne, Alta Sacerdotisa da Casa do Fogo.
As vestes dela eram feitas de fogo vivo. Azuis na barra e laranja
profundo na cintura, com labaredas amarelas no colarinho. Sons de
estalidos e chiados acompanhavam cada passo.
O único Alto Sacerdote me encarava de uma distância
respeitosa, alguns passos atrás das companheiras femininaspara
honrá-las. Bay era o Sacerdote da Casa da Água, e os olhos e
vestes eram da cor azul profundo do oceano onde deixava o banco
de areia e se alongava profundo na terra. O tecido das vestes
oscilava e fluía em volta de seus pés, puxando e empurrando as
folhas de grama seca. O cabelo cinza ondulado estava preso atrás
das orelhas, os braços cruzados sobre o peito.
O Círculo nunca escondeu o desdém da minha presença, mas
temiam demais perturbar o Destino para recusarem a mim, ou a ele,
quando requisitava um quórum. Acatava a governança das leis
deles, e até o momento, Destino me permitira viver dentro das
restrições. Era um equilíbrio precário de poder, as balanças estavam
sempre oscilando de um lado para o outro levemente.
Hoje, penderiam violentamente e não sabia se algum dia se
acertariam.
— Destino clamou pela vida de alguém que cruzará a fronteira
hoje.
A maior parte das bruxas acreditava que Destino era a Morte e
que eu era sua mão, mas o Destino era exatamente o que seu nome
implicava. Algumas vezes exigia que uma pessoa perdesse a vida.
Outras, incitava uma pessoa para um caminho melhor ou mais
próspero. Com frequência ponderava por que escolhia as pessoas
que favorecia, mas raramente o questionava sobre as vidas que
clamava para que tomasse ou me sentia culpada por ser sua mão.
Talvez ele fosse misericordioso o suficiente para levar aquele
sentimento. Ou talvez as ações requeressem a mão rápida da
justiça.
Os lábios de Bay franziram.
— O Destino vai permitir que adie a execução até amanhã? Hoje
é um dia sagrado. Dentro de horas, o Círculo estará cheio de
pessoas de cada setor.
— Ele não vai esperar. — Para ser honesta, não tinha mais
forças o suficiente para conter os desejos do Destino. E ao que
parece, ele queria que a multidão testemunhasse a morte dessa
pessoa. Os olhos de Bay pousaram nos meus lábios azuis, depois
nas mão congeladas. Deu-me um olhar compreensivo e inclinou de
leve a cabeça.
Era o único dos quatro que parecia ao menos tentar
compreender minha posição e deveres. As outras não se
importavam nem um pouco com o que significava ser a “filha” do
Destino, menos ainda tê-lo dentro de si.
Ela, minha avó, falou em seguida:
— Terão muitos que cruzarão a fronteira hoje. Talvez não
encontre a pessoa que procura. — Esperava que não encontrasse
meu alvo, mas o faria. O Destino não cederia quanto a esta
execução.
— O Destino vai revelar a marca para mim — afirmei, meus
dedos se curvando. Sempre me levava para os quais ansiava. Na
minha mente, um céu laranja vibrante cortava pela parte mais densa
da floresta perto da fronteira que separava o Setor Treze do Doze…
— Devo cumprir sua sentença ao pôr do sol.
Wayra arfou e uma rajada de vento passou pelo centro. Mechas
pálidas do cabelo moviam-se de um lado para o outro, açoitando
descontroladas. As vestes desbotaram de azul céu para branco
nuvem em um instante. Lampejei um olhar de aviso para ela, e
controlou-se rápido. Não temia nenhum deles, apesar da influência
e poderes que possuíam, porque no fim, o Destino era mais
poderoso do que todos juntos, e me fizera sua igual.
— Não pode esperar até após a meia noite? — Ethne fervilhou, a
pele enrubescendo para combinar com os tons inflamados do
cabelo.
— Não pode — retruquei afiada. Acham que gosto disso?
Não pedi por esta maldição; não tinha escolha a não ser cumprir
sua vontade. Mesmo quando entrava em conflito com a deles,
mesmo quando conflitava com a minha.
— Os cidadãos nos setores mais baixos sabem o que
acontecem na Forca. É por isso que o Rei envia os criminosos pelo
Treze até as terras exiladas. — Esperava que lidássemos com eles
antes que alcançassem qualquer semblante de liberdade que
pudessem conquistar para si.
— Essa prática antiquada será encerrada em breve — Ela
prometeu afiada, dando um passo ameaçador na minha direção.
Bay esticou a mão como se para impedi-la de me alcançar, e
com uma expressão calorosa e cautelosa, me ofereceu uma
resposta mais gentil.
— Saber é diferente de testemunhar. Os cidadãos dos Setores
Baixos nunca viram alguém ser enforcado.
Vovó Ela empurrou a mão de Bay e mostrou os dentes.
— Faça o que precisar, Filha do Destino. Você claramente não
está procurando nossa permissão para cumprir sua tarefa.
Ethne e Wayra assentiram sua concordância, cada uma olhando
para mim com partes iguais de medo e raiva. Bay permaneceu
neutro, como sempre. Eles se viraram para ir, cada um encarando
sua respectiva casa. Eu os impedi antes que fugissem.
— Tem outro assunto que gostaria de discutir.
Os chefes das Casas pararam e se viraram para me encarar
outra vez.
— Hoje é meu aniversário de dezessete anos.
A mandíbula de Ela contraiu-se. Vovó sabia o que eu queria, e
não queria que conseguisse.
Contraí os músculos na minha barriga e costelas.
— Reivindico a Casa do Destino.
Ethne avançou na minha direção, impedida apenas pela mão
estendida de Bay – mais uma vez.
— A Casa do Destino não é ocupada desde a morte da sua mãe.
É praticamente inabitável — rosnou. As vestes flamejantes
açoitaram a mão de Bay, mas nunca o queimaram.
— Tenho idade para reivindicá-la — afirmei —, e como a
escolhida do Destino, agora que sou maior, é meu direito fazê-lo.
Wayra pigarreou, empurrando o cabelo pálido para atrás das
orelhas.
— Reivindicar sua herança não vai garanti-la um lugar no
Círculo.
Ainda, eu queria acrescentar.
Olhei feio para ela até que o vento silencioso ao seu redor rugiu.
Ainda assim, recusava-me a vacilar. Virou-se para os pares.
— Podemos proibir — sugeriu. — Podemos demolir a Casa.
Bay deu um passo à frente, as vestes escuras oscilando na fúria
tempestuosa das de Wayra.
— Demolir a Casa enfraqueceria o Círculo. Extraímos algum
poder do resíduo de feitiços dentro de suas paredes. Por essa
razão, não podemos demolir. E, já que Sable é a herdeira legítima,
está no direito de reivindicar a Casa como sua. — Ethne fervilhou e
abriu a boca para cuspir o ódio como uma caldeira fazia com lava.
Bay ergueu uma mão para impedi-la e continuou: — Mas, não
precisamos reconhecê-la como nada além de uma estrutura, e
continuar a colher os benefícios de manter a Casa intacta. A Casa
do Destino foi estripada quando Cyril morreu, assim como o lugar da
Casa no Círculo. É um prédio construído de madeira e pedra, nada
mais.
Esperava que Ela continuasse a relutar, mas fiquei surpresa
quando disse:
— Deixe que a reivindique, então. E que seja conhecido que a
amaldiçoada não será mais bem-vinda em nenhuma das nossas
Casas.
Contive um sorriso. Nunca fui bem-vinda dentro delas e não era
bem-vinda agora, então literalmente, nada mudaria.
Vovó sentia que teria sido melhor se nunca tivesse nascido.
Sempre vira a verdade em seus olhos. Esperava testemunhar o dia
que o Destino se viraria contra mim e clamasse pela minha vida no
lugar de me pedir para tomar ou mudar a de outra pessoa. Afinal,
contara a história uma centena de vezes comigo por perto, do dia
que Cyril traiu o Destino e como ele se ergueu contra ela. O jeito
que pendera da corda que de alguma forma prendera e se erguera.
Os olhos de mel da minha avó, mesmo com todos os tons
calorosos que continham, estavam frios ao me dispensar, olhando
para os pares em busca de suas opiniões sobre o assunto.
No fim, o Círculo decretou que a Casa era minha. Poderia
consertá-la conforme precisasse, decorá-la como quisesse, e
moraria nela – sozinha. E sempre serviria apenas como uma
residência. A Casa do Destino nunca mais seria representada no
Círculo da Forca.
Não que fizesse sentido. O que minha mãe poderia ter feito para
enfurecer tanto o Destino que ele a mataria? E o que fez para o
Círculo, para a própria mãe, para deixá-los tão bravos com ela?
Bay chamou meu nome quando me virei para deixá-los no
Centro.
— Cuide para cumprir o plano do destino rapidamente esta noite.
Não deveríamos macular o Equinócio por mais tempo do que o
necessário.
Nunca alonguei um enforcamento, e não o faria esta noite.
Queria que terminasse tanto quanto qualquer outro. Bom, qualquer
um exceto o que seria enforcado.
No lugar dedizê-lo isso, inclinei a cabeça. Talvez pudesse
convencer o Destino a permitir que enforcasse o jovem homem na
floresta, longe dos olhos dos nossos visitantes. Com certeza, faria
essa concessão.
Uma jovem garota da Casa da Terra emergiu da floresta, a túnica
erguida nos tornozelos, os passos alimentados pelo medo. Meu
estômago afundou.
— Sacerdotisa Ela! — gritou, a voz oscilando com os passos. —
Sacerdotisa!
Minha avó se virou para recebê-la de braços abertos,
presenteando a jovem bruxa com a gentileza que nunca concedeu a
mim. Quase derrubou Ela, mas jogou os braços trêmulos em volta
da minha avó, ofegando conforme as lágrimas escorriam pelas
bochechas.
— Sacerdotisa, uma bruxa está morta. Na fronteira — gaguejou.
— É Harmony, da Casa do Fogo.
Ethne arfou, correndo logo acima da terra na direção da fronteira
com o Doze.
Náusea revirou meu estômago quando Destino confirmou que a
garota que me visitara mais cedo ignorara seu aviso e tomara a
decisão errada. Meu âmago sentia por ela. Fechei os olhos e
sussurrei um desejo para sua alma separar-se e seguir em frente
para a Deusa.
Voltei a atenção para quem sabia ser responsável pela morte. O
cabelo era da cor de areia molhada e tinha um par de covinhas que
a garota assassinada não queria nada além de vê-las serem
apontadas em sua direção.
Nesta noite, as bruxas serão vingadas, Destino sussurrou.
De repente, a ansiedade que sentia desde que me contara que
precisaria executar alguém neste dia desapareceu em um ardor
glorioso e satisfatório que sabia que logo seria apaziguado. Justiça
seria feita esta noite. E não só o faria pagar, mas mandaria uma
forte mensagem para qualquer outro nos setores que mesmo por
um segundo considerassem machucar um dos nossos.
três
TODAS AS CASAS estavam sombrias conforme as preparações
para a celebração do Equinócio começavam. A Batalha de
Afinidades que deveria ser ressuscitada hoje para as festividades foi
cancelada.
O corpo da jovem bruxa foi preparado pela sua Casa. Por ser da
Casa do Fogo, seria deitada em um altar de chamas, e o fogo a
protegeria até que Ethne instruísse que fizesse outra coisa. As
bruxas da Forca fariam vigília ao longo do dia, e depois as chamas
consumiriam seu corpo ao raiar do sol.
Tentei prestar meus respeitos a ela, mas Ethne, firme na sua
palavra, se referiu a mim como a amaldiçoada e se recusou a me
aceitar em sua casa. Então, observei dos degraus da Casa do
Destino enquanto bruxas de cada Casa faziam fila e entravam na
casa de Ethne para honrar a irmã falecida.
Quando a última bruxa saíra e a porta da frente rangeu para
fechar, fui para a cabana que foi minha casa desde que me
lembrava e comecei a embalar minhas coisas. Só precisava levar o
essencial e suprimentos. A Casa ainda continha todos os pertences
da minha mãe.
A cabana ficava solitária na floresta bem longe, atrás da Casa da
minha mãe – minha Casa, tentei corrigir na minha mente. Os únicos
sons pelo caminho gasto vinham dos esquilos fugindo, cigarras
cantando, e pares de pássaros procurando minhocas na terra rica e
escura. Eles esvoaçaram por aí conforme comecei a embalar as
coisas.
Enchi meus caldeirões com as velas e seus castiçais, junto com
pequenas bolsas de juta de folhas de chá, maços apertados de
sálvia branca, e minha coleção de cristais. Defumaria a Casa antes
de levar meus pertences para dentro. Tinha energia negativa
cercando a Casa o suficiente para sufocar uma bruxa se não
tomasse cuidado. E quem sabia o que fora preso lá dentro?
Envolvendo os ossos da sorte no tecido de feitiços, eu os
coloquei no topo da pilha e peguei a vassoura. Depois que recolhi
tudo o que queria levar, fechei os olhos e me espiritei para a
varanda deformada dos fundos da Casa do Destino. Respirando
fundo, eu me lembro outra vez, Esta é minha Casa agora.
— Ei — uma voz grave chamou atrás de mim.
Pulei e rodopiei, segurando o peito e soltando o caldeirão
precariamente perto dos dedos.
— Você me assustou.
Brecan riu, vindo na minha direção com seu gingado fácil. Pegou
o caldeirão pesado e abriu a porta gasta e rangente dos fundos para
mim.
— Depois de você. Afinal, esta é a sua Casa.
Não pude evitar sorrir.
— E voltando, não me aproximei de fininho. — Seus olhos
lavanda brilharam com travessura. — Deveria prestar mais atenção
aos arredores.
Ele afastou a capa azul céu ao entrar na casa, instantaneamente
à vontade.
— O que mais você precisa da cabana? — chamou sobre o
ombro enquanto rodopiava.
— Nada de mais. O que acha? — perguntei.
— Precisa de uma faxina — respondeu seco, passando um dedo
sobre a superfície da mesa mais próxima. — Mas tem a mesma
aparência de sempre, suponho.
Era um rito de passagem para bruxinhas biscoitar nas janelas da
antiga Casa do Destino – apesar que ninguém ousava se demorar
muito. Diziam que uma maldição poderia passar para elas se
absorvessem muito da energia sombria que possuía.
Na verdade, a Casa parecia vazia para mim. Bay sugeriu que
uma magia residual habitava aqui, mas não podia senti-la. A Casa
era osso. Uma gaiola de costelas. E o coração que segurava há
muito apodrecera.
— Continuando — Brecan disse, batendo palmas —, estou à
disposição. Faça o que quiser comigo. — Tinha mais do que a oferta
de ajuda no seu tom.
Decidi não responder. No lugar, voltei a atenção para o caldeirão.
Planejara defumar a Casa antes de trazer meus pertences para
dentro, mas isso foi quando pensava que negatividade pairava em
cada canto. Agora que estava aqui dentro, a Casa parecia um vazio.
Não estava certa da necessidade de defumar os quartos, mas a
tradição pedia que fosse feito. Traria azar começar a vida em uma
Casa que não fora purificada, só por via das dúvidas.
— É o seguinte, já volto — Brecan enfim disse, marchando para
fora da porta dos fundos.
As únicas coisas mais que precisava eram minhas roupas,
lençóis e cobertores, e potes e panelas. Precisaria colher do meu
jardim na cabana até o inverno, e plantar um novo aqui no quintal na
próxima primavera. Apertei o lábio inferior entre os dedos, olhando
para o quintal coberto de vegetação. Em algum lugar sob a grama
alta, na terra rica, estavam as raízes das ervas daninhas plantadas
pela minha mãe. Apoiei a vassoura no canto vazio da cozinha e
suspirei. Tinha muito trabalho a ser feito.
Brecan reapareceu, jogando o longo cabelo loiro platinado sobre
os ombros. As mechas eram lisas e brilhavam como seda. Esta
noite, todas as garotas que se aventurassem no Treze dos setores
mais baixos dariam olhares demorados e cheios de anseio na sua
direção. Para elas, Brecan era exótico; um banquete para os olhos,
no meio do que deveria ser uma grande escassez.
— Como sabia que eu estaria aqui? — perguntei.
Ele sorriu, pegando o topo do batente da porta e se inclinando na
minha direção.
— As notícias correm rápido.
— Wayra o mandou para tentar me convencer a desafiar o
Destino?
Balançou a cabeça.
— Nem a vi hoje. Além do mais, não estou preocupado com o
que ela pensa; estou preocupado com você.
Olhei para ele de soslaio.
— Ela o exilaria por falar isso.
Atravessou o recinto com dois passos largos.
— Só se me ouvisse — inclinou-se para sussurrar no meu
ouvido, brincando com uma mecha do meu cabelo.
— Esta noite, vou enforcar o que tirou a vida da bruxa do Fogo.
Os olhos de Brecan ficaram afiados.
— Ótimo. Não só vai fazer justiça para nossa irmã falecida, vai
aliviar um pouco da tensão crescendo entre as Casas.
A tensão crescente… Talvez pudesse ajudar a aliviá-la, mas
alguma coisa sequer alteraria a percepção das outras bruxas sobre
mim?
Brecan colocou uma mão reconfortante no meu ombro.
— Hora de se acomodar. Voltarei com o resto das suas coisas,
começando pelas roupas.
Com seu toque, meu coração acelerou um pouco. Brecan e eu
tínhamos um relacionamento estranho, um que era um pouco mais
do que amizade, mas muito menos do que amor. Era um que todas
as bruxas na Forca não entendiam nem aprovavam. Meu rosto não
esquentou com o pensamento dele ver minhas roupas íntimas, mas
o conhecia bem o bastante para saber que teria um brilho em seus
olhosquando voltasse com elas em mãos.
Valsou para fora com um sorriso nos lábios.
Acendi a sálvia e seu aroma terroso encheu o recinto, rico e
purificante. Guiei a fumaça, deixando que flutuasse em cada canto
de cada quarto, em todos os cinco andares. Depois que terminei,
enfim pude respirar mais fácil. Não porque a sálvia expulsou
qualquer perigo, mas porque uma tarefa das muitas que listei na
cabeça estava terminada e podia começar outra.
Voltei para baixo, abrindo todas as janelas que não estavam
presas nos caixilhos, e afastando todas as cortinas surradas para o
lado. Uma camada grossa de poeira escondia os detalhes de todas
as superfícies sólidas. Rajadas de fora não moviam nenhuma
partícula que podia ver, mas o cheiro bolorento que se acomodara
nas paredes começou a esvanecer pelo vento purificador.
Na saleta, ergui os lençóis dos móveis, os empilhando no canto
do recinto. Um sofá roxo profundo com almofadas fofas contra o
encosto estava flanqueado por cadeiras gêmeas de mogno que não
foram ocupadas desde antes do meu nascimento, mas pareciam
novas em folha. Tudo parecia. Era como se Mamãe tivesse
sussurrado um feitiço para preservar tudo como estava. Talvez
tenha feito isso. Ou talvez o Destino tenha cuidado da minha
herança até que pudesse reivindicá-la.
Talvez fosse seu presente para mim. Ele me avisava para não
espreitar pelas janelas como todas as outras bruxas ao longo dos
anos, mas hoje, queria que eu tivesse isso. Queria que esta Casa e
tudo nela fossem meus.
Este é seu passado e futuro, eu me disse.
Brecan voltou com minhas roupas, incluindo botas e pilhas de
luvas, com o brilho malicioso que esperava ainda cintilando em seus
olhos.
— Qual é o seu quarto?
— Ainda não tenho certeza. Apenas coloque tudo ali na cama —
sugeri, acenando para o quarto mais próximo, localizado no final do
corredor depois da sala de estar.
Ele aquiesceu e voltou para fora.
— Voltarei com mais — prometeu sobre o ombro. Se Brecan era
alguma coisa, era honesto. Até o meio da tarde, a cabana estava
vazia, tirando os móveis que não precisava mais.
Meu único amigo pensou que trabalho o suficiente fora feito para
um dia. Ou talvez estivesse tentando melhorar meu humor,
considerando a promessa sombria dos eventos da noite.
— Saia comigo — implorou.
— Se formos para o Centro, todo mundo vai olhar para você.
Ele deu um sorriso taciturno.
— Não tenho problema com isso.
— Wayra vai ter.
Bufou.
— Com tudo o que aconteceu, talvez não seja a hora de insistir
— cedeu. — Me encontra depois? — Depois que encontrar e
enforcar o jovem que o Destino quer, quis dizer. As sobrancelhas
dele se ergueram com expectativa enquanto esperava minha
resposta.
Engoli.
— Depois, vou voltar para cá. Preciso fazer algumas leituras.
Brecan escondeu a careta. Ele e eu sabíamos que a
probabilidade de uma única alma me procurar depois de enforcar
um homem de um setor baixo seria absolutamente nula, mas
Brecan era educado demais para falar. De qualquer maneira,
precisava tentar. Esta era uma das poucas vezes no ano que as
pessoas dos outros doze setores, que chamávamos de Baixos,
eram permitidas na Forca, e precisava de todo e qualquer
pagamento que conseguisse.
Olhei pela casa e soltei um suspiro. Precisaria de uma fortuna e
mais trezentos anos para restaurar esse lugar.
Ele concordou com a cabeça.
— Vou encontrá-la depois que as coisas se acalmarem, então.
Quando beijou minha bochecha, os lábios se demoraram um
pouco demais. Apertei os olhos fechados e me perguntei como seria
amá-lo de verdade. Sentir o fogo nos meus ossos sempre que ele
estivesse por perto. Existiam feitiços para isso.
Eu o observei se afastar rápido da minha Casa na direção da
sua, onde a Casa do Vento estava sendo decorada com faixas de
tecido azul furta-cor, tão delicado e translúcido como o próprio ar. As
bruxas mulheres usavam os melhores vestidos e capas
combinando, presas no pescoço por broches de prata trabalhados
para imitar o movimento rodopiante da brisa.
Da janela, vi enquanto minha avó Ela supervisionava as
decorações da Casa da Terra. As jovens bruxas incitavam
trepadeiras de hera, as guiando conforme o novo broto se enrolava
nas colunas e balaustradas. Grandes trepadeiras de flores em
cascata se curvavam acima, lentamente fazendo chover pétalas que
nunca acabariam.
Ethne comandava as bruxas na Casa do Fogo enquanto
formavam piras que mais tarde queimariam com chamas coloridas
em todas as cores do arco-íris. No escuro, iluminariam o Centro
inteiro com fogueiras verticais estrategicamente posicionadas, tão
altas que obscureceriam a mais alta das árvores da floresta.
Bruxas da Casa da Água manipulavam as fontes na frente da
casa. Das profundezas das piscinas rugiam cavalos puxando bigas
com cavaleiros raivosos e determinados nelas. Bay cumprimentou
os primeiros dos visitantes dos setores baixos que se reuniram para
assistir a batalha aquática se desenvolver. Os oohs e aahs ecoavam
pela Forca.
Mais pessoas emergiram da floresta e entraram no Centro.
Eu me vesti rápido com o vestido mais fino, de veludo preto
macio sem firulas. Alisando o cabelo, me apressei para reunir meus
equipamentos.
Carreguei uma pequena mesa para fora e a montei na frente da
minha Casa, cobrindo com um pedaço de tecido preto. Organizei o
tecido de feitiços por cima, colocando um cristal pesado em cada
canto para segurá-lo contra as rajadas das bruxas do Vento. Citrino.
Ametista. Obsidiana. Turmalina.
O cristal de ametista que segurava o canto direto externo era do
garoto que se segurou na árvore. Sua familiaridade estranha me
incomodou outra vez, mas ainda não conseguia identificá-lo.
Teimosa, afastei os pensamentos dele.
Da minha Casa, trouxe um baralho de tarot, uma bola de cristal,
e minha tigela prata de ossos da sorte. As cartas e a bola eram o
que os cidadãos dos setores baixos esperavam, mas os ossos da
sorte poderiam chamar alguém.
Peguei um par de cadeiras da cozinha, posicionando-as em
lados opostos da mesa. Não tinha um espetáculo aquático,
nenhuma flora que chovia pétalas, nenhum tornado extraordinário
ou coluna de fogo. Só a promessa de uma simples leitura da sorte e
a esperança de que alguém – qualquer um – iria querer o que
oferecia. E que a pessoa viesse logo até mim.
Talvez pudesse encaixar algumas leituras antes do condenado
entrar na Forca.
Ao longo dos anos, bruxas me pagaram por leituras na forma de
sobras. Plantas, quando tinham muitas para encaixar no jardim
perfeitamente organizado em fileiras. Um retalho de tecido quando o
corante ficou forte demais para representar de forma correta suas
Casas. Pedaços de corda que não precisavam mais.
Agora que morava na Casa, eu me perguntava se alguém
arriscaria colocar o pé dentro, ou até mesmo no gramado na frente,
e desafiaria a Sacerdotisa ou Sacerdote. A cabana estava localizada
a uma distância discreta das Casas, mas aqui, estava entre eles, e
privacidade não seria garantida.
Não importa, eu me disse. O Destino não vai me deixar passar
fome. Vai prover tudo o que preciso. O jardim da minha cabana
floresceu. Poderia fazer um florescer aqui também.
Homens, mulheres e crianças se espalhavam no Centro,
correndo de Casa para Casa e de espetáculo para espetáculo.
Logo, preencheriam tudo até se derramarem sobre os limites
pontudos.
Nos Equinócios e Solstícios anteriores, quando
recepcionávamos todos e qualquer um que quisesse se juntar a nós
no nosso Setor, teria feito uma grana. Ninguém sabia que era a
“Filha do Destino”, ou que era diferente de todas as outras bruxas
no Treze. E se soubessem os nomes que as outras bruxas me
chamavam, presumiam que era parte do espetáculo. Apenas outra
parte do clima mágico e eletrizante que criávamos. Deixava-os mais
dispostos a pagar por uma leitura. Eles sorririam para a bola de
cristal e se sentariam para ouvir o que poderia revelar, o tempo todo
se perguntando se era real. No final, nunca se importavam de
verdade. Queriam apenas serem encantados por uma tarde.
Esta noite, nenhum sorriso lampejava na minha direção.
Conforme o vazio no meu estômago começavaa arder e revirar,
sabia que não teria tempo. Nenhuma leitura antes.
Era hora.
Eu me levantei da mesa.
quatro
FOGO SE CONTORCIA na minha barriga. O sol se punha
lentamente, centímetro por centímetro, até as colinas o engolirem.
Ele está aqui, Destino sussurrou. Encontre-o. Acabe com ele.
Faça-o pagar.
Segurei a barriga em uma tentativa fraca de apagar o fogo do
Destino. O único gosto que sentia era de fumaça. Queimava as
narinas, chamuscando o fundo da garganta. Nem mesmo pular nas
fontes na frente da Casa da Água extinguiria as chamas do Destino.
O único jeito de apagá-las era encontrar o garoto.
O céu ardente me cegou por um segundo. Rodopiei em um
círculo, pedindo para o Destino me direcionar.
O Centro estava cheio de pessoas.
— Me ajude — sussurrei.
Destino respondeu, Ele está aqui.
— Onde?
Procurei em todos os rostos por covinhas gêmeas, ou a marca
do Destino. Eu a encontraria estampada na testa do garoto.
Músicos no Centro do pentagrama começaram uma canção
jovial. Crianças gritavam enquanto uniam os braços e pulavam em
círculos pela grama. Bruxas de cada Casa se reuniam em grupos,
misturando-se quando costumavam se manter separadas. Os
vestidos e ternos da cor de pedras preciosas eram os melhores que
tinham. Eu me destacava entre elas como o peixe fora d'água que
era, deslizando com um vestido de veludo preto da mesma cor que
meu cabelo.
As Sacerdotisas e Sacerdotes estavam observando e esperando
ansiosos para que eu emergisse. Quando me viram no Centro,
sabiam que a hora chegara.
Vovó Ela assumiu o controle da situação, comandando a atenção
da multidão. Explicou que uma das nossas fora encontrada morta na
floresta esta manhã, e que o culpado estava entre nós e a justiça
seria feita rapidamente. Avisou-os que isso não era ensaiado, não
era uma sátira. Aqueles com crianças, ela disse, deveriam levá-las
para trás das Casas para que não testemunhassem o enforcamento
que estava prestes a ocorrer.
Murmurinhos em pânico borbulhavam pela multidão. Apesar do
aviso, alguns pensaram que era tudo parte das festividades, e
esperavam segurando o fôlego para que algo acontecesse. Outros
obedeceram na hora. Mães e pais seguiram o aviso, guiando as
crianças para as varandas dos fundos das Casas.
Devagar, as bruxas de cada Casa começaram a entoar um
mantra, purificando a atmosfera e lançando um feitiço de proteção
sobre os inocentes.
Elas nunca me ajudariam em nada.
Apesar que, para ser honesta, um deles nunca fora
insensivelmente descartado.
Meus olhos encontraram os de Brecan. Ele assentiu e eu soube
que falou para Ethne que estava procurando o que matou Harmony,
a bruxa do Fogo. Brecan sempre foi um amortecedor entre mim e os
outros, e estava grata por sua presença reconfortante.
Um círculo de homens jovens dos setores baixos estava parado
na parte inferior do Centro. Um deles jogou a cabeça ruiva para trás
ao rir, batendo nas costas dos dois companheiros de cabelo escuro.
Os dois amigos viraram as garrafas, e aposto que as bebidas não
eram as primeiras, dado as línguas soltas e maneirismos.
— É uma piada, é tudo — um disse. — Uma pegadinha, e boa.
Tomem cuidado… Escondam os olhos das crianças… — brincou,
zombando do aviso legítimo da Ela.
Ponderei o quanto estaria se divertindo se ela removesse sua
língua, ou mesmo a habilidade de movê-la pela noite.
Eles eram da idade e porte certos. Apesar de nenhum ter o
cabelo da cor de areia molhada, mudar a cor de cabelo era simples
o suficiente. Andei casualmente na direção deles só para ter
certeza.
Ao me aproximar com constância, a risada deles desapareceu.
Os Baixos se cumprimentavam, não com mesuras, mas
apertando as mãos. Poderia aprender muito com um simples aperto
de mão. O único problema era que o resíduo do toque deles
permaneceria por muito tempo após o contato inicial…
O brincalhão de cabelo ruivo me viu primeiro e cutucou um dos
garotos de cabelo escuro, que se virou para mim com um sorriso
malandro. O nariz fora quebrado, mas não tinha covinhas nas
bochechas. O cabelo era do mesmo tom escuro da água que o do
amigo. Tinham o mesmo porte. Os mesmos maneirismos. Os olhos
eram da cor de caramelo queimado, um tom estranho de âmbar que
era ao mesmo tempo quente e frio.
Percebi que os dois homens de cabelo escuro eram irmãos.
Eu me virei para o outro irmão de cabelo escuro, notando que o
cabelo era de um tom mais escuro, um marrom tão profundo que
era quase preto. Quando enfim me notou, quase tropecei. Seus
olhos eram dourados, os mais adoráveis que já vi. Falei bem ali para
o Destino, que se fosse ele, eu me recusava a cumprir seu desejo
esta noite.
O Destino apenas riu em resposta.
— Boa noite, Senhorita — o ruivo cumprimentou, estendendo a
mão. — Obrigado por deixar que participemos da celebração.
Dando um sorriso, peguei sua mão.
— Somos nós que agradecemos.
O lampejo de um escudo entrou na minha mente. Era um tipo de
protetor. Um provável soldado. E um bom, também, já que o escudo
que projetava tinha cicatrizes, mas nenhuma delas fatal.
O irmão malandro abriu a mão e sorriu quando a toquei com a
minha.
— Prazer conhecê-la — falou formal.
O irmão de olhos dourados observava em silêncio enquanto os
outros me cumprimentavam, mas estendeu a mão.
— Prazer conhecê-la — disse rouco. Quando peguei sua mão,
não pude evitar o suspiro. Na minha mente, ele me beijava. Com
fervor. Eu me perguntei se viu a mesma coisa, porque afastou a
mão devagar, olhando para mim como se o tivesse enfeitiçado.
Controlei rápido minha expressão, respirando fundo para me
acalmar. Pela Deusa, o que foi isso?
— Com licença — disse, andando rápido na direção da floresta
atrás deles. Segurei a barriga. Meu estômago estava queimando.
Destino finalmente decidiu aparecer e me ajudar.
Bela hora que me deu esse favor só depois de me fazer de boba
na frente daqueles jovens homens.
Não que eu me importasse, decidi.
Estava aliviada que sua marca não estava no garoto de olhos
dourados. Se ele fosse o culpado, poderia ficar tentada a visitá-lo no
Doze, assim como a jovem bruxa condenada que procurara o
amante. Segurei as saias e corri para as árvores, deixando a
floresta me engolir. Em volta da cintura estava um pedaço fino de
corda preta, marcado com as últimas respirações daqueles que o
Destino condenara e que eu enforcara para ele. Eu a soltei e
amarrei um laço rápido.
Destino sussurrou para mim, Você o encontrou. Agora faça-o
pagar.
Três homens jovens estavam juntos, circundando uma jovem
bruxa da Casa da minha avó. O vestido verde e capa escureciam
com o céu acima.
Nenhum deles percebeu que eu estava atrás até que falei.
— Noite adorável — observei, olhando para o céu pintado pela
copa das árvores. Era assim como vira, assim como o Destino
deliberou.
— Hm, claro que é — um deles riu.
— Conhece algum desses garotos? — perguntei para a bruxa da
Terra. Madeline, Destino me contou. — Conhece eles, Madeline?
Ela balançou rápido a cabeça, uma lágrima escorrendo do olho.
— Nós conhecemos ela — o garoto de covinhas mentiu. A marca
do Destino latejava sobre sua testa, o sigilo pulsando com a
necessidade que eu o conquistasse.
Sorri.
— Você mente. — Acenei para a garota se aproximar de mim. —
Madeline. — Ela hesitou por um segundo, o medo de mim
substituído pelo medo dos homens, e caminhou na minha direção,
se escondendo atrás de mim. — Vá encontrar a Sacerdotisa Ela.
Fique ao seu lado. Está na hora. — Os olhos dela se arregalaram
conforme o significado das minhas palavras era compreendido.
Olhou de volta para o garoto de covinhas que não estava mais
sorrindo.
— Hora de quê? — Preparou-se.
— Uma bruxa foi encontrada morta dentro da nossa fronteira
esta manhã. O que a matou vai ser enforcado em alguns momentos.
O músculo na sua bochecha contraiu.
O covinha iria fugir. Podia vê-lo ponderar as opções, pensando
em qual direção ir.
— O que isso tem a ver com a gente? — o amigo alto perguntou.
Não fazia ideia do que o amigo era capaz.
— Daqui para frente, deveria tomar mais cuidado com suas
companhias — avisei.
Antes que minhas palavras tivessemchance de serem
carregadas pelo vento, Covinhas saiu correndo na direção da
fronteira. Eu o deixei correr, permitindo que sua confiança e suor
crescessem e escorressem em rios pelo seu rosto e costas. Eu o
deixei pensar que pudesse escapar enquanto mantinha um passo
constante no seu encalço. Depois sussurrei um feitiço para
fortalecer sua espinha para que não quebrasse prematuramente,
enlacei a cabeça como se fosse um bezerro fujão, finquei os
calcanhares no chão, e dei um puxão forte na corda.
Insetos que estavam cantando um para o outro ficaram quietos
conforme o puxava e começava a arrastá-lo de volta para o Centro.
Os amigos covardes não estavam por perto. Há muito escafederam-
se, e deviam estar cruzando a fronteira de volta para o Doze neste
exato momento.
Ofegou por ar, arranhando o pescoço.
Destino o queria morto. Todas as bruxas no Treze queriam o
mesmo. Incluindo eu. Quantas bruxas mais teriam morrido por suas
mãos traiçoeiras?
— Suponho que seria educado avisá-lo por que está prestes a
morrer, mas acho que nós dois sabemos o motivo.
Tentou responder, mas o laço já esmagara a laringe. Oops.
Uma celebração normal de Equinócio estaria a todo vapor com
sinos tilintando, címbalos estourando, e bruxas dançando em volta
dos fogos que acenderam e manipulavam para o deleite da
multidão, mas este não era um Equinócio normal. Pelas árvores,
podia ver que os membros de todas as Casas formaram um círculo
protetor em volta do pentagrama, cercando os cidadãos dos setores
baixos e formando uma barreira humana entre eles e a forca de
onde Covinhas seria pendurado.
Os Baixos chamavam o Setor Treze de “Forca” por um motivo,
apesar de poucos terem testemunhado um enforcamento aqui.
Éramos o único setor que tinha uma, e que punia os que cometeram
crimes contra nós, com enforcamento. Cidadãos dos Baixos nos
chamavam de bárbaros e inumanos por isso, mas o Destino exigia,
e mesmo que não o fizesse, as Sacerdotisas e Sacerdote o fariam.
Sabia que as punições eram justas, mas me perguntei quão
efetiva era a ameaça quando estava tão longe. Nenhum dos Baixos
costumava testemunhar alguém ser morto, embora o jovem homem
se contorcendo atrás de mim claramente conhecia nossos
costumes. Apesar de saber mais do que a maioria, nem mesmo a
ameaça da forca impediu o garoto bonito e de covinhas de asfixiar a
jovem bruxa do Fogo.
O garoto estava desesperado por ar, então sussurrei um feitiço
para soltar o laço só um pouquinho. Tossiu e engasgou-se,
respirando fundo e entrecortado. Parei e lhe dei a chance de
recuperar o fôlego.
— Achou que não o encontraríamos? — perguntei, curiosa para
compreender a mente do garoto cruel.
Os lábios tremiam com raiva. Se ele fosse mais forte… Eu vi a
ameaça em seus olhos.
As árvores afinaram e então pararam de supetão ao nos
aproximarmos da forca. Os mantras das bruxas foram abafados
pelos suspiros chocados das pessoas dos Baixos. Quando viram o
quê, ou quem, arrastava atrás de mim, os pais que não seguiram o
aviso de Ela cobriram rápido os olhos das crianças, ou as pegaram
e carregaram para longe na direção dos fundos das Casas para se
juntarem aos que deram ouvidos. As bocas dos homens e mulheres,
velhos e jovens, abriram conforme carregava Covinhas para a forca
de madeira erguida na base do pentagrama.
Morte não era bem-vinda no círculo sagrado.
Pairando sobre ele, esperei que se recuperasse.
— Levante-se.
Um inferno de ódio lampejou em seus olhos. Tentou falar, mas a
laringe esmagada apenas provocou gritinhos átonos da sua boca.
— Levante-se, ou vou arrastá-lo para cima da plataforma.
Conseguiu erguer um joelho e ficar de pé, cabelo encharcado de
suor obscurecendo a parte de cima do seu rosto. A corda áspera
cortara a pele sensível do pescoço. Rios de sangue e suor se
misturavam e escorriam sobre a pele do peito, desaparecendo sob o
tecido abotoado da camisa. Ofegou, os lábios soprando cada
respiração.
— Agora ande — ordenei, puxando a corda ao subir as escadas.
Embaixo, ele se firmou e resistiu, recusando-se a sair do lugar. —
Pensei que tivéssemos um entendimento. Você iria cooperar, e eu
iria considerar permitir que seu pescoço quebrasse quando o chão
desaparecesse sob seus pés… mas agora, está me irritando.
Os lábios dele se curvaram em um sorriso cruel.
— Bruxa — moveu a boca, a garganta rangendo como uma
dobradiça enferrujada.
Foi minha vez de sorrir.
— Sim, eu sou. Mas quer saber um segredo? Não sou uma mera
bruxa. Sou a Filha do Destino. Esta noite, sou as mãos dele, e os
dedos querem esganar sua vida, do jeito que você fez com nossa
irmã. As mãos do Destino nunca fraquejam, nunca hesitam, e nunca
falham.
Sussurrei um feitiço para tirar os pés do assassino do chão.
Gaguejou ao flutuar, conforme eu assumia o controle e o fazia pairar
sobre os degraus enquanto andava ao seu lado, tão fácil quanto
alguém guiaria um cachorro dócil. Colocando-o sob o maior poste,
ordenei que o feitiço o soltasse. Caiu alguns centímetros, quase
perdendo o equilíbrio. Eu o endireitei enquanto Destino me
informava seu nome.
Jenson. Jenson Renk.
Balançando um braço no ar como alguém faria para limpar uma
lousa, sussurrei um feitiço para extrair a memória de Jenson,
projetando-a para a multidão, onde viram o que fizera pelo seu
ponto de vista. Viram seus dedos ossudos envolverem o pescoço
dela, o viram montar nela e esmagar o corpo sob o dele.
Testemunharam-na relutar. O medo era tão vivo, quase podia sentir
seu gosto. O desespero era palpável. Os Baixos suspiraram
conforme ela se contorcia e depois ficava imóvel enquanto a luz e
vida desapareciam dos seus lindos olhos âmbar. Os dedos dela
enfraqueceram e soltaram suas mãos punitivas. A cabeça pendeu
para o lado, mas ele segurou firme por mais um segundo para
garantir que estava morta.
— Jenson Renk, cidadão do Setor Doze — anunciei —, você
assassinou Harmony, bruxa da Casa do Fogo, por asfixia. Você está
sentenciado a morte por enforcamento. Destino escolheu não lhe
mostrar nenhuma misericórdia, porque você não mostrou nenhuma
para nossa irmã. Como pagamento pelo seu crime, exige sua morte.
Olhei para ele ao enfeitiçar a corda em minhas mãos. A ponta
desgastada se transformou na cabeça de uma cobra. Ela se enrolou
em si, sibilando para o homem culpado antes de rastejar rápido para
o poste e pela trava. Normalmente, o teria feito subir em um
banquinho e erguido seu peso para ele, mas não faria nada para
ajudar um assassino desse calibre.
Nem me importei com as portas que se abririam, cedendo sob
ele. Não, não teria misericórdia para ele. Não permitira que seu
pescoço quebrasse. Estrangularia lentamente, do jeito que
estrangulara Harmony.
Bay me encarou de baixo com uma expressão inescrutável. Não
devo ter feito rápido o suficiente para seu gosto, mas não ligava no
momento. Brecan estava parado nos limites, a postura rígida um
sinal de que ajudaria de bom grado se precisasse. Era um gesto
gentil, mas nunca precisei da ajuda de ninguém para isso. Isso…
era para isso que era feita.
A cobra se enrolou cada vez mais apertada na madeira até os
dedos do homem condenado se ergueram do chão. Chutou,
tentando encontrar as tábuas sob si.
O rosto de Jenson ficou vermelho e depois roxo enquanto se
atrapalhava para forçar os dedos entre a pele e a serpente para
aliviar a pressão. O coração bateu mais forte, mas o sangue não
fluía para onde mais precisava. Os lábios incharam.
Chutou em pânico cego, fazendo o corpo oscilar para frente e
para trás até seus movimentos perderem a coordenação. As mãos
debateram e os braços caíram moles ao seu lado, contraindo-se
ocasionalmente.
Os movimentos e o balanço diminuíram, e então Jenson parou
de relutar.
O grupo de homens jovens cujas mãos apertara estava parado
logo dentro do conglomerado de bruxas, permanecendo o mais
perto da plataforma. Com olhos arregalados e bocas abertas, a
atenção estava fixa em Jenson Renk, encarando como se
pudessem ver a alma deixar o corpo.
Eles não podiam, mas eu sim.
Uma névoa escura escapou da sua pele. Permaneceu enquanto
eu sussurrava um feitiço transformandoa cobra de volta em corda.
A última respiração remanescente se acomodou nas fibras ásperas,
escurecendo a corda, e depois a vítima do Destino caiu no chão em
um monte vazio, nada além de carne e osso.
Teria um alvoroço nos setores baixos amanhã – esta noite, se
alguns escolhessem ir embora para espalhar o que viram. Os que
testemunharam esse enforcamento nunca o esqueceriam, mas
Jenson Renk seria esquecido com o tempo, e isso era tudo o que
importava.
O Destino estava satisfeito.
O fogo na minha barriga extinto. Meus dedos e lábios
descongelaram.
Desci as escadas e encontrei um par de olhos dourados no
momento em que meus pés pisaram no chão. Desviei o olhar, sem
conseguir aguentar as emoções queimando atrás deles, e
atravessei a multidão que não perdeu tempo de se abrir para mim.
cinco
DOS DEGRAUS DA MINHA CASA, observei Ethne na
plataforma da forca onde o corpo de Renk estava deitado nas
tábuas acinzentadas pelo tempo. Moveu os braços sobre o corpo do
assassino, fazendo um fogo branco consumi-lo antes do fedor
chegar na multidão. Era mestre da sua habilidade, e podia
manipular a chama com tanta precisão que não ficaria nem um
chamuscado nas tábuas. Podia sentir o calor da sua raiva ondular
sobre a grama.
Ela subiu os degraus com cuidado para ficar ao seu lado. As
vestes grossas, agora verde escuro como os pinheiros no meio da
floresta, escondiam seu corpo que encolhia. Murchara desde esta
manhã. O tempo foi gentil com ela por um longo tempo, mas
começara a pagar o preço pela extensão sobrenatural da sua
juventude. Parecia positivamente frágil. Os eventos desta noite a
envelheceram significantemente, apesar de não ter certeza por que
cobraram um preço tão alto.
O cabelo desbotava mais e mais a cada segundo, esvaindo-se
de cervo recém-nascido para branco prateado. A leve corcunda em
suas costas se tornou um pico de montanha afiado. A pele enrugou
conforme subia as escadas, e os músculos secaram. Até chegar na
plataforma, mal podia lutar contra a atrofia assoberbando seu corpo
para erguer o peso pelas escadas. Bufou e ofegou, e honestamente
pensei que pudesse cair morta quando chegou no último degrau.
Ficou claro na hora que apesar do preço devastador no corpo, a
mente de Vovó não havia murchado nada. Nem sua postura. Mas
enquanto pigarreava e sua voz fraca tentava acalmar a multidão, o
Destino avisou em um sussurro gentil que os dias dela estavam
contados.
Como se pudesse ler minha mente, os olhos cor de mel
encontraram os meus.
Um silêncio pairou sobre a multidão. Não tinha certeza se ela os
enfeitiçou, ou se genuinamente queriam ouvir o que tinha a dizer
sobre o que testemunharam.
As palavras trêmulas que pronunciou estavam enfeitiçadas para
acalmar e reconfortar aqueles que as ouviam. Ela os tranquilizou
que uma bruxa jamais machucaria um inocente. Os ombros dos
membros da multidão relaxaram visivelmente, assim como a
respiração. As marcas de preocupação nas testas desapareceram.
Era como se tivessem inalado juntos e expirado devagar.
Sentei-me à mesa depois que Bay ajudou Ela a descer os
degraus da plataforma, e os músicos começaram a dedilhar uma
melodia tranquilizadora. O círculo de bruxas que cercava o Centro
se partiu, libertando os que estavam dentro.
Procurei por cabelo escuro e olhos dourados, mas nunca o
encontrei.
Ethne acendeu as fogueiras. Um par de bruxas fazia
malabarismos com tochas, enquanto outra dupla balançava
correntes acesas em grandes arcos, cortando círculos brilhantes no
céu crepuscular. O cheiro de fumaça encheu o ar conforme nossos
convidados enfim começavam a formar grupos, conversando e até
mesmo rindo entre si.
As bruxas da Casa da Água fizeram nuvens de chuva em
miniatura surgirem. Relâmpagos raiavam delas, criando pequenos e
intensos lampejos de luz dentro das nuvens turbulentas. Os trovões
que soavam complementavam as batidas dos tambores dos
músicos.
Flores cheirosas de todas as cores e formas emergiram do chão
quando as bruxas da Casa da Terra foram apresentadas. Topiarias
de trepadeiras retorcidas se formaram ao lado de uma família de
três pessoas, um pai, mãe e filha, imitando perfeitamente as formas
até o cabelo delicado da criança.
Os membros da Casa do Vento mandaram uma doce e quente
brisa passar pelo lugar, arrancando pétalas de caules e as fazendo
rodopiar sobre os telhados próximos, além da copa das árvores e
bem alto no céu, até desaparecerem de vista. Conforme abaixavam
as mãos erguidas e abafavam qualquer traço de vento, pétalas
suaves choviam dos céus. Dentro de minutos, a grama estava
coberta de pétalas de todas as cores do arco-íris. Crianças juntavam
as pétalas delicadas e as jogavam no ar, tentando imitar as bruxas
do Vento.
Esta noite, aqui neste lugar, ninguém as repreenderia.
Amanhã seria diferente. Ouvi dizer que os que retornavam para
o Setor Doze aconselhariam as crianças a não falarem sobre vir
aqui, nem sobre a magia que testemunharam. Há alguns anos era
quase chique frequentar, agora misturar-se com bruxas estava se
tornando cada vez mais tabu com o passar as estações. Quando
era criança, a floresta transbordava de convidados. Agora, o Centro
mal estava cheio.
Ser uma bruxa não é nada para se orgulhar, diriam a elas.
Bruxas são criaturas perigosas.
Não estavam errados, mas também não estavam certos.
Crianças ignorariam as próprias experiências e sentimentos se
adultos os pressionassem o suficiente para andar na linha. Era
assim que preconceito e ignorância eram perpetuados ao longo de
gerações. Mas contanto que fosse apenas uma noite no ano e
escondessem suas poções e ervas adquiridas nos bolsos, cobrindo
as cabeças e rostos com os capuzes das capas ao atravessarem as
fronteiras e se esgueirarem de volta para suas casas, não tinha
problema.
Sussurrei um feitiço, acendendo a vela branca na mesa. Não
possuía nenhuma afinidade elemental, mas aprendera a conjurar os
elementos até certo ponto. Não podia chamar um tornado ou
inundar um riacho, mas podia acender velas e encher minhas bacias
se o poço secasse. E, contanto que cuidasse das minhas plantas,
elas cresciam muito bem.
Durante horas, sentei-me e observei. Qualquer um que se
aproximasse da minha mesa rapidamente encontrava o caminho de
volta para a anonimidade da multidão, colocando o máximo de
distância possível entre eles e eu.
Fiquei sentada em silêncio, sozinha, e observei as estrelas se
moverem pelo céu azul-preto. Vinho de amora silvestre estava
sendo distribuído para qualquer um que quisesse, e o clima pesado
que levei para a celebração do Equinócio foi trocado por um mais
alegre. O álcool provavelmente ajudava a amenizar os sentimentos
dos Baixos, e estávamos servindo o suficiente para afogar um setor
inteiro.
Alguém usando uma capa pesada enfim cambaleou para minha
mesa, puxou a cadeira na minha frente, e caiu nela sem cerimônia.
O cheiro doce de amoras silvestres encheu o ar, junto com algo
masculino e inebriante.
Revirei os olhos.
— Você está bêbado. Deveria encontrar a pessoa com quem
veio e pedir para que o levem para casa.
Mãos fortes afastaram o capuz para trás, e com um susto,
percebi que era o homem bonito de mais cedo. Olhando em um par
de olhos dourados avermelhados que tentavam em vão focar nos
meus, notei detalhes que deixei passar antes. O cabelo castanho
escuro estava recém cortado, ainda nem começara a crescer na
nuca. Os ombros eram largos, e a capa os encobrindo era de um
material denso e preto. Com um fio dourado, um símbolo estava
bordado sobre o coração, mas estava enrugado e não conseguia
identificá-lo.
— Não vou a lugar nenhum — arrastou.
Cruzei os braços e ergui as sobrancelhas.
— Quer uma leitura?
— Leitura? Não vejo nenhum livro. — Riu.
— Leio destinos.
— Futuros? — Riu e apontou um dedo para mim. — Você é uma
bruxa.
— E é óbvio que você é um gênio. — Um gênio bêbado, com
olhos derretidos e bonitos.
— Você deveria fazer poções do amor e bonecas de vodu —
falou arrastado —, não enforcar as pessoas.
— Precisa de uma poção do amor? É bonito o suficiente para
encontrar alguém sozinho, imagino — falei comhonestidade.
Recompensou o elogio com um sorrio largo que fez meus lábios se
curvarem para cima em resposta. — Não esperava que ninguém
tivesse coragem o bastante para se aproximar da minha mesa esta
noite — disse. — E as pessoas raramente me surpreendem.
Sorriu com orgulho e colocou a mão sobre o peito – a saudação
da milícia do Reino. Deve ser um soldado.
— Feliz por servir, Madame. Talvez devesse oferecer uma leitura
para você, no lugar.
Ele era ridículo e… doce.
— Olha, posso ajudá-lo. Acha que pode subir as escadas?
Tenho algo que vai ajudar a limpar sua mente, mas vai precisar ficar
alguns minutos sentado depois de beber.
Analisou as escadas levando para minha porta da frente, e com
uma expressão determinada, assentiu.
— Sim. Sim, posso fazer isso.
Hm, bom. São apenas degraus.
Apaguei a vela e recolhi tudo no tecido de feitiços, decidindo que
organizaria tudo mais tarde. Estava claro que o Destino destruíra
qualquer oportunidade que pudesse ter de fazer algum dinheiro esta
noite, não que me importasse, para ser honesta. Matar Jenson Renk
valeu a pena. Eu me perguntei se ainda me sentiria assim daqui um
mês quando não tivesse poupança para prover o que não podia, e o
que as outras Casas não dariam.
Ainda assim, era óbvio que esse jovem homem tinha dinheiro.
Talvez se sentiria grato depois que a poção que estava prestes a
preparar cumprisse sua magia.
Ofereci a mão caso ele caísse, mas conseguiu subir as escadas
e passar a soleira e entrar na minha casa. Até onde sabia, era o
primeiro forasteiro a colocar o pé entre estas paredes.
Coloquei as coisas em uma cadeira e apontei na direção do sofá
enquanto ia procurar os ingredientes que precisava na cozinha.
Brecan deixara a maior parte das minhas ervas em um saco na
bancada. Separando rápido as folhas que precisava, eu as coloquei
em um saco de chá e peguei uma caneca. Murmurei um feitiço para
enchê-la com água, e para que esquentasse mas não fervesse.
Estava com pressa. Algo me dizia para ajudá-lo e tirá-lo daqui o
mais rápido possível.
Por esse motivo, fiquei grata quando os aromas de sálvia,
alecrim, lavanda e menta encheram o ar.
Enquanto andava na direção do sofá com a caneca, o jovem
sentou-se atrapalhado, tirando os pés da mesa oval na sua frente,
pedindo desculpas tímido e colocando-os de volta no chão.
Esfregou a mão no rosto conforme entregava a caneca a ele.
— Beba. Deve fazê-lo sentir-se melhor.
Ele olhou para do líquido fumegante para mim e de volta.
— Como sei que é seguro?
Sorri.
— Por que não seria?
— Você matou aquele jovem esta noite — respondeu baixo.
Meus pulmões se expandiram com uma respiração funda. Algo
no jeito que falou me fez desejar que tivesse controlado o Destino
de alguma maneira até depois das festividades, só para que não
tivesse visto o tipo de magia que eu praticava.
— Aquele homem era um assassino. — Vapor da xícara subiu no
seu rosto e vi seus olhos começarem a clarear. Mudando de
assunto, perguntei: — Estava com mais dois. Onde eles estão?
— Nos separamos. Não sei onde estão.
— Não tenho intenção de feri-lo — afirmei com honestidade. —
O chá não vai fazer nada além de deixá-lo sóbrio. Depois pode
encontrar seus amigos.
Os dedos dele apertaram na alça da caneca.
— Espero não estar cometendo um erro ao confiar em você. —
Levou a caneca aos lábios e deu um gole hesitante. As
sobrancelhas escuras se ergueram. — Isso… isso é delicioso.
Tentei sorrir.
— Que bom que gostou.
Dentro de minutos, a caneca estava vazia, o feitiço funcionara e
meu convidado estava sóbrio. Colocou a caneca na mesa de centro
e esfregou a mão no rosto, soltando um suspiro reprimido.
— Obrigado outra vez. Espero que não tenha feito ou dito nada
para ofendê-la. Sinto muito por ter me intrometido.
— Não se intrometeu. Eu o convidei.
Não fazia ideia do porquê, mas o fiz. E agora que estava aqui,
tinha a sensação mais estranha formigando por mim. Meus dedos
coçavam com o desejo de tocá-lo.
Estava quieto, o olhar focado, mas gentil. E então me
surpreendeu ao soltar:
— Não fazia ideia até esta noite que mulheres bonitas
enforcavam homens feitos.
Inclinei a cabeça para trás.
— E quem presumiu que fizesse isso?
Deu um sorriso genuíno.
— Não quis ofender. É só… meus amigos me convenceram a vir
esta noite para relaxar um pouco. Minha vida está prestes a mudar
drasticamente. — Passou a mão rápida pelo cabelo.
— Como?
O joelho dele pulou com a pergunta.
— Aprecio a hospitalidade, mas deveria ir.
— Mamãe e papai não sabem que você saiu escondido? — Dei
risada enquanto ele se levantava.
— Algo assim. — Os olhos se prenderam na minha tigela de
prata. Alguns ossos da sorte que não levara para fora ainda
estavam no fundo. — Por que você tem isso?
— Ossos da sorte são a melhor maneira para eu ler alguém.
— Isso é incomum. Esperava cartas ou uma bola de cristal.
— Posso usá-los, mas não os prefiro. — Os ossos me
chamaram quando era apenas uma garotinha. Ossos da sorte, em
particular, e recolhera todos os que pude desde então.
— É difícil ler o destino de uma pessoa? — Ele remexeu as
mãos.
— Depende da pessoa. Alguns destinos são mais complexos do
que outros.
Encarou os ossos delicados, depois voltou a atenção para mim.
— Leria o meu?
— Por um preço.
— Fale e é seu — prometeu.
Olhei para ele outra vez, analisando suas roupas finas e asseio.
Tinha dinheiro.
— Um saco de moedas.
— Feito — falou alegre, esfregando as mãos.
Isso foi mais fácil do que esperava. Pensei que fosse regatear.
Quando a maioria das pessoas eram fáceis de ler, mesmo ao
longe, este homem não era. Não podia definir nada a seu respeito
com firmeza, o que me afetava mais do que admitiria.
— Sente-se à mesa — instrui, apontando para uma pequena
mesa quadrada no canto da sala.
Talvez fosse eu. Ainda estava perturbada com os eventos da
noite?
Ele removeu o lençol cobrindo a mesa e cadeiras e sentou-se
em uma, virando-se para observar enquanto pegava a tigela de ferro
de ossos da sorte.
— Mudando-se? — adivinhou.
— Hoje, sim. — Por sorte levara minhas roupas para um quarto
próximo. Não perdi tempo com o tecido de feitiços. Não era
necessário para uma leitura, só acrescentava um clima; clima que a
maior parte dos Baixos precisava para deixar a leitura mais divertida
do que verdadeira.
Sentando-me à sua frente, coloquei a tigela entre nós. Estudou
as inscrições gravadas na borda da tigela.
— Escolha um osso. Antes de quebrá-lo, deseje conhecer seu
futuro.
Pegou um osso do fundo da pilha e fechou os olhos. Com uma
quebra rápida, o osso se partiu em dois, mas algo estava muito
errado.
Suspirei com a visão.
Os olhos dourados se abriram.
Minha boca abriu e arquejei chocada. Gotas de sangue
carmesim pingavam da maior parte do osso, espirrando na mesa.
Senti uma gotícula atingir minha bochecha e limpei o sangue com o
polegar. O pedaço menor também sangrava, mas em menor
quantidade. Leio destinos há anos, e nunca vi um osso da sorte
sangrar. Mais três grandes gotas caíram antes que algum de nós
falasse, e foi ele quem conseguiu:
— Por que está sangrando? — perguntou, olhando para mim
com expectativa.
— Me dê sua mão. — Soltou os dois pedaços de osso e limpou
as mãos nas calças antes de oferecer as duas. Coloquei a palma da
mão direita contra a dele e fechei os olhos.
Cenas lampejaram na minha mente. A primeira era uma visão
dele deitado de costas, um rastro de sangue espumoso borbulhando
da sua boca e as pupilas dilatadas e imóveis. Outra cena apareceu
rápido, de mãos o empurrando de uma varanda ou janela… algum
lugar alto… e o barulho doentio que veio quando atingiu o chão lá
embaixo. Outra visão dele caindo no chão, uma fonte de sangue
escorrendo dos lábios e a pele pálida como gelo. Aquela visão foi
apagada por outra, anunciada por uma onda de dor afiada enquanto
olhava para baixo para encontrar a ponta de uma lâmina saindo do
peito…
Cada um dos destinos mostrava uma coisa.
Pedi para o Destino confirmar e senti o calor do seu aviso fluir
por minhas veias. O osso não mentia. Não havia erro.
— Muito em breve, alguém vai tentar matá-lo.
Soltou