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PENSAR A VIOLÊNCIA NA FAVELA O PIONEIRISMO DE CAROLINA MARIA DE JESUS 1914-1977 EM QUARTO DE DESPEJO (1960)

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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO 
CAMPUS PETROLINA 
LICENCIATURA PLENA EM HISTÓRIA 
 
 
 
 
JOSÉ CARLOS DA SILVA FERREIRA 
 
 
 
 
PENSAR A VIOLÊNCIA NA FAVELA: O PIONEIRISMO DE CAROLINA 
MARIA DE JESUS (1914-1977) EM QUARTO DE DESPEJO (1960) 
 
 
 
 
 
 
Paper apresentado para avaliação final da 
disciplina de História da Literatura e da 
Arte, ministrada pelo prof. Dr. Carlos 
Romeiro Pinho, do curso de História da 
UPE. 
 
 
 
 
 
 
PETROLINA 
FEVEREIRO, 2024 
 
 
 
 
A literatura acompanha a humanidade desde o período do surgimento da escrita. Não 
se sabe ao certo quando começou, mas o fato é que a literatura é tão antiga quanto as 
primeiras civilizações humanas. Ainda na Grécia, ela contava feitos de grandes heróis com 
relatos míticos. Assim também na Mesopotâmia e no Antigo Egito. Durante o período 
clássico, a filosofia utilizou dela para o desenvolvimento do pensamento metafísico. A 
religiosidade tomou de conta da literatura durante boa parte da Idade Média, salvo em casos 
como o Decameron e outros escritos da época. O século XIX também viu nascer a literatura 
de diversos temas, como o existencialismo de Dostoievski e a melancolia de Edgar Allan 
Poe. 
Este trabalho, no entanto, discorre sobre uma obra que não bebe dessas fontes 
eloquentes e marcantes da literatura mundial. O Quarto de Despejo, escrito pela autora 
Carolina Maria de Jesus, trata-se, na verdade, de um relato autobiográfico que retrata, em 
primeiro lugar, a vida cotidiana da autora, as mazelas da sociedade em que ela estava 
inserida, seu ponto de vista de diversos acontecimentos políticos e sociais e por fim, 
ressignifica a tradicional ideia de literatura que se costuma pensar. 
Com isso, é possível dizer que Carolina foi pioneira no seu modo de escrever. A 
literatura do seu livro deixa explicito a quase inexistente preocupação com as regras que 
julgam um escrito ser considerado literatura. A linguagem coloquial, as expressões utilizadas 
no dia-dia da favela, as considerações feitas por ela sobre os mais variados acontecimentos 
corriqueiros e extraordinários fazem sua literatura quase um artigo de opinião. Suas 
impressões emocionais nos lembram do relato biográfico que ela construiu. 
Ela fala no seu livro sobre diversos temas passiveis de análise. No entanto, este trabalho 
se restringiu a falar sobre a violência. Tema recorrente no livro, falar sobre a violência é 
sobre algo que está em alta. As discussões sobre violência geram reflexão em que está lendo 
este trabalho. Isso é um objetivo de carater subjetivo, mas também social. No livro, de modo 
geral, a autora fala sobre os casos de violência que ocorrem no seu convívio social. Antes de 
adentrar, propriamente, ao tema, nos cabe fazer uma contextualização. 
Carolina Maria de Jesus nasceu em Minas Gerais. Teve contato com as letras ainda 
jovem. Por ser mulher negra, a vida sempre foi carregada de dificuldades. Ela se mudou para 
São Paulo e depois de algumas desavenças (tanto pessoais quanto sociais), acabou indo morar 
na Favela do Canindé. O espaço é de extrema pobreza. Normalmente são encontradas 
pessoas que vieram de outros estados, como os nordestinos. O contexto histórico é São Paulo 
dos anos 1950 e 1960. É um momento de grande efervescência industrial e urbanística. O 
 
 
 
espaço da favela como lugar de sub-humanidade é muito recorrente no livro. É um estado de 
quase incivilidade, de barbárie. 
Ainda, esses espaços sofreram com as inúmeras reformas eugenistas do início do 
século XX, no Brasil. Os anos 1950/1960 carregavam os resquícios das ideias de 
branqueamento e higienização da população. Os mais ricos, têm suas casas em locais com 
bastantes privilégios. Estamos falando de melhores localização, oferta de serviços 
(principalmente básicos e públicos). A favela, pelo contrário, não recebe a visita do poder 
público, salvo pela Radio Patrulha1. A violência policial, a truculência, e o descaso é a 
principal característica. A Igreja Católica se fazia mais presente, oferecendo sopas e roupas 
que os moradores careciam. Essa teologia social católica foi bastante marcante naquelas 
décadas. 
O livro foi construído, como supracitado, em forma de um diário. A Carolina era uma 
catadora de reciclagem, termo da época. Ela estava sempre em contato com a vida da cidade, 
de modo mais intenso, no horário da manhã. Era uma tarefa de subsistência. Tudo que ela 
conseguia acumular, trocava pelo dinheiro que comprava a comida daquele dia. No outro 
dia, relata ela, não se sabia se iria ter comida. Ela também tinha 3 filhos. O livro só foi 
formado quando o jornalista Audálio Dantas fez o processo para que os escritos se tornassem 
um “códice”. O título do livro é muito sagaz. O Palácio do governador, na metáfora da autora, 
se trata da grande sala de visitas de uma casa. A prefeitura é a grande cozinha dessa casa, 
onde as pessoas estão reunidas. E a favela se trata do quarto da bagunça, a dispensa da casa, 
onde se coloca tudo que não tem mais validade. Em suma, é o quarto de despejo, onde se 
deposita as coisas sem utilidades. Foi exatamente isso que o Estado fez com as pessoas que 
ficavam sem moradia pelo centro da cidade, despejou elas nas favelas. 
Analisando a violência em sua origem, entenderemos que ela está ligada diretamente 
à noção de desejo, pois este carrega o caráter mimético, ou seja, repetitivo, segundo a origem 
grega, de fomentar a rivalidade entre os indivíduos. De forma sucinta, a violência surge como 
uma “derivação” de caráter mimético2 do desejo. Sendo assim, qualquer objeto que resulta 
do desejo pode gerar rivalidade entre pares, causando conflitos. Mais do que isso, em sua 
forma extrema “A violência do homem é revelada pelo que se passa hoje, e, uma vez que 
transcende as possibilidades humanas, coloca ao mesmo tempo a espécie em perigo” 
(GIRARD, 2008, p. 5)2. 
 
1 Rádio Patrulha ou polícia. 
2 Ver a Violência e o Sagrado, Renè Girard. Pela mesma ótica, a hipótese mimética; 
 
 
 
No livro da Carolina de Jesus são narrados vários momentos de violência que 
acontecem dentro da favela na qual ela mora. Com agressões físicas, verbais, espancamentos 
e até assassinatos, Carolina e seus três filhos convivem em meio a esses acontecimentos que 
habitam, corriqueiramente, a favela do Canindé. Porém, com seu passatempo favorito3, ela 
descreve as várias situações de brigas e agressões, tudo isso de forma franca, citando os 
nomes dos envolvidos, os motivos aparentes e como se acabou aquele conflito. Por vezes, 
ela, intervém na medida do seu alcance, ligando para a Rádio Patrulha ou aconselhando 
àqueles indivíduos. 
Nesse sentido, é preciso analisar esses conflitos e suas causas a partir da perspetiva de 
um contexto espacial de aglomerados, onde residem pessoas com pouco grau de instrução 
e, de certo modo, desamparadas pelas autoridades governamentais das décadas de 1950/60, 
período em que o diário foi escrito e publicado. Um dos primeiros casos que ela relata é a briga 
de um casal, onde o esposo espanca a sua esposa. Tudo isso é presenciado pelos filhos da 
Carolina, e pela favela em geral, onde toda a trama é paramentada de palavrões. Porém, no 
decorrer do livro, são inúmeros os casos de brigas entre casais, sobretudo da violência com 
teor machista. 
Um caso que merece ser destacado aconteceu entre a Carolina e um personagem que ela 
chama de Alexandre. Em resumo, o homem discorre várias agressões verbais e a autora vai até 
a delegacia. Ao chegar lá, não recebe a devida atenção e ao voltar para sua casa, o homem 
continua as ofensas. Na continuidade da história, vamos observar que ela reage ao homem e 
até joga água. Mas a realidade no geral é que as mulheres, tanto naquela época quanto na 
atualidade, quando sofriam ou sofrem agressões, não eram/são ouvidas. São colocadas em 
dúvidas e descredibilizadas. Isso é o reflexo de um sistema que enaltece a superioridade 
masculina, bem comosua impunidade. 
Dentre os inúmeros casos de agressões, no dia 17 de julho, ela relata que ao chegar na 
sua casa, encontra uma mulher de nome Silvia e o esposo brigando na rua. Ela descreve como 
um espancamento que a mulher está sendo vítima do seu marido. A preocupação da autora é 
com os filhos. Ela diz que os meninos escutam palavras de baixo calão. É a maneira de dizer 
que o ambiente não propicio para o desenvolvimento de uma infância com dignidade. No 
entanto, o interessante nesse caso, é a impunidade de um homem estar espancando uma mulher 
e não haver nenhuma mobilização para salvar a mulher. 
 
3 Ela tinha o hábito corriqueiro de escrever ao amanhecer, durante o dia ou à noite. 
 
 
 
O relato da autora chega a ser assustador. Quando se analisa a frequência e a intensidade 
da ocorrência da violência, observa-se uma complexa relação de impunidade e indiferença. Ao 
escrever sobre as noites dentro da favela, a autora discorre sobre os gritos de socorro que 
mulheres clamavam. Carolina Maria de Jesus diz que enquanto isso, ela escuta “valsas 
vienenses”, ouviam-se gritos de socorro do lado de fora da sua casa. Além disso, as casas, na 
maioria das vezes, eram construídas de tabuas e madeira, o que facilitava a destruição na hora 
da violência. Violência doméstica, violência patrimonial e perturbação do sossego, era a rotina 
da favela do Canindé na década de 1955. 
Um episódio recorrente é o fato de as vizinhas da Carolina jogavam água e ofensas contra 
os filhos da Carolina. São incontáveis as vezes em que a autora relata ter voltado para seu 
barraco, nas palavras dela, e encontrar seus filhos molhados. Alguns vizinhos jogavam fezes 
nos filhos dela. Está em voga, nessas situações, em primeiro lugar a violência contra crianças, 
haja vista que o mais velho não ultrapassava dos 14 anos. Em segundo lugar, é importante 
novamente frisar os desdobramentos que uma infância convivida em meio a esse ambiente de 
violência pode gerar traumas e futuramente mais violência, causado pelo sentimento de revolta 
e de insuficiência que a criança grava na sua consciência. 
As brigas aconteciam inclusive entre familiares. O próximo relato de violência mostra a 
desavença entre dois irmãos. Segundo a autora, trata-se de dois irmãos, que ela chama de 
baianos. O engraçado está na narrativa de que essas brigas geravam entretenimento para os 
“favelados”, termo bastante utilizado pela autora. O movimento do local girava em torno de 
brigas e desavenças, fosse de casos extraconjugais, fosse de desavenças familiares. A violência, 
de fato, era corriqueira na favela do Canindé daquela época. 
Duas ocorrências também são totalmente graves. Na primeira, a autora explica que dez 
pernambucanos querem bater em um paraibano. O relato quase etnográfico mostra os 
nordestinos como descendentes de Lampião e descreve os autores da briga como sendo homens 
mal-encarados e bastante violentos. O segundo relato, narra a briga de um casal que segundo a 
autora, rolava no assoalho brigando. Certo dia, deixam o filho recém-nascido cair no chão e 
pisam a criança, em uma das brigas. Logo depois de poucos dias, a criança morreu pelas 
consequências das pisoadas. Isso evidencia a gravidade das agressões e dos conflitos entre as 
pessoas. O tema da violência, durante o livro é bastante recorrente. 
Outro aspecto da violência é relacionado a questão da sexualidade. Nesse sentido, a 
autora utiliza do caso da moradora Pitita, onde esta sempre que briga com o marido, sai de sua 
 
 
 
casa seminua e vai para as ruas da favela. Na briga, fala coisas pornográficas. Carolina Maria 
de Jesus afirma que seus filhos tomaram conhecimento de como acontece uma relação sexual 
entre um homem e uma mulher, através das brigas dessa mulher. 
Caso parecido, acontece na briga entre duas mulheres que ela chama de Nair e Meiry. 
Uma briga considerada comum pela autora. Ela também diz que é um tipo de agressão que 
anima a favela. Os filhos dela aplaudiam fervorosos a briga entre duas mulheres. De lâminas 
cortantes e puxões de cabelo, tudo quanto for violento é utilizado. O mais cênico são as 
mulheres brigando nuas, sem roupas nenhuma. Ela narra que uma plateia assistia atenta a briga 
das duas, onde havia muita gargalhada. Em suma, estava acontecendo a naturalização da 
violência, sobretudo entre duas mulheres. Nesses casos, não existia um filtro do que era moral 
ou não moral dentro das condições de favela. O descaso do poder público não dá chance de as 
pessoas questionarem o que é o moral ou imoral perante a opinião da sociedade geral. 
Prova disso pode ser observado no relato que a autora traz sobre sua vizinha Leila e o 
falecimento da filha dela. No próprio velório, houve bate-boca e violência. Logo depois, 
estavam realizando uma pequena festa, ainda durante o velório. O fato é que não existe o 
padrão de moralidade que outra localidade comumente seria construída. A Carolina Maria de 
Jesus teve o olhar extremamente aguçado em observar que esses acontecimentos não partiam 
de uma premissa de normalidade. Ela sabia que havia algo de errado nisso. Aquelas pessoas 
estavam inseridas em uma realidade que para eles faziam bastante sentido. Era como elas 
enxergavam o local. 
Um dos inúmeros motivos que levam a emergência da violência naquela favela é o vício 
do álcool que está ligado também à falta de oportunidade de trabalho, já que o desalento social 
e moral levava os indivíduos a buscarem refúgio emocional e econômico em drogas, como 
relata a autora: “a bebida aqui é o paliativo. Nas épocas funestas e nas alegrias” (JESUS, 1963, 
p. 122). Mais do que isso, a falta de um serviço social fomentava famílias não planejadas nas 
quais os filhos que conseguiam sobreviver a precariedade das condições sub-humanas dos 
primeiros anos de vida, quando chegassem à fase adulta estariam mais propícios a encontrarem 
o mundo da criminalidade e da violência. 
As relações extraconjugais, os convívios familiares conflituosos e o machismo também 
podem ser vistos, no livro da Carolina Maria, como expoentes da violência, sobretudo no 
âmbito familiar e doméstico. No caso do machismo, o sentimento de superioridade dos homens 
em relação às mulheres é perceptível quando a violência contra elas acontece de forma gratuita 
pois: “Contra toda afronta, contra toda tentativa de reduzi-lo a objeto, tem o homem o recurso 
de bater, de se expor aos golpes [...]” (BEAUVOIR, 1967, p. 69). Nos escritos é possível, 
ainda, encontrar situações desse tipo de comportamento, quando, por exemplo, é narrado o caso 
 
 
 
de uma mulher que se encontrava em uma festa e se recusa a dançar com um pernambucano e 
ele tenta lhe matar à facada dizendo: “hoje eu mato, hoje corre sangue na favela” (JESUS, 
1963, p. 68). 
Ainda assim, muitas das mulheres que hoje sofrem com a violência doméstica ou não 
têm para onde ir, ou não querem sair daquela situação. Seja por questão econômicas ou 
culturais. Muito embora, segundo dados do Instituto Brasileiros de Geografia e Estatística 
(IBGE) de 2010, 40,9% das mulheres contribuam para a renda das famílias do país, os 
homens ainda se acham no direito de oprimi-las pela questão da subsistência ou pela questão 
cultural advinda da família, característico de uma sociedade ainda patriarcal, como a 
brasileira. 
Esse mesmo tipo de comportamento pode ser visto em um trecho do livro, quando 
acontece uma briga entre um casal, os populares, um soldado e a Carolina tentam apaziguar 
a situação, mas o marido responde: “Leve a minha mulher para você! Mulher depois que casa 
é para suportar o marido e eu não admito soldado dentro da minha casa [...]” (JESUS, 
1963, p. 86). Fica evidente, portanto, que a violência contra a mulher e o machismo, visto na 
década de 50, ainda hoje é presente na sociedade e embora alguns homens não admitam, 
explicitamente, frases desse tipo, é assim que muitos deles pensam e agem, perpetuando a 
violência que acada momento cria filhos sem mães e mães sem filhas. 
Por fim, as pessoas que moravam na favela sempre chamavam a Rádio Patrulha para a 
resolução de conflitos desse tipo. Mas nem sempre era de forma pacífica. Às vezes, os 
impasses eram resolvidos de forma mais violenta. A favela parecia o “Velho Oeste”, onde os 
mais fortes e violentes sobreviviam. Porém, quando a polícia ia à favela, podemos analisar 
que enfim o sistema judiciário4 agia como mediador de conflitos. 
Nesse sentido, é entendido hoje que a polícia deve agir como órgão intermediador para 
o fim dos conflitos, pois a violência, por uma noção mimética, vai se propagar cada vez mais 
forte como forma de vingança, o que vai gerar um ciclo sem fim e, consequentemente, a 
desmoralização das instituições pacificadoras, podendo ir mais longe, pois, o ato de: 
 
Vingar-se é devolver ao adversário a violência que ele já nos prodigalizou. É, 
portanto, o assassinato. A vingança transcende os indivíduos uma vez que os 
parentes, os familiares a retomam. De certo modo, a vingança transcende o tempo 
 
4 No conceito de Renè Girard (2008), o sistema judiciário é o órgão que intervém nos conflitos da sociedade 
afim de cessá-los, por exemplo, a polícia. 
 
 
 
 
e o espaço o que já lhe dá, de alguma maneira, qualquer coisa de religioso. Se, nas 
sociedades, a vingança fosse tolerada, é bem evidente que a espécie humana se 
destruiria rapidamente. (GIRARD, 2008, p. 5). 
 
 
Desse modo, a violência, agora institucionalizada, seria algo sem fim e com objetivo 
de cada vez mais se propagar até o momento em que os envolvidos não saberiam nem mais 
qual teria sido o real motivo do início daquele conflito. Estariam, por noção cultural, apenas 
reproduzindo de forma acrítica a violência. E no livro, a autora narra ser contrária à violência 
exatamente por esse motivo cíclico da agressividade. Ainda no livro, ela narra o papel 
repressivo que o Estado, às vezes, toma. 
Ao escrever sobre o dia 11 de agosto, diz: “Eu estava pagando o sapateiro e 
conversando com um preto que estava lendo um jornal. Ele estava revoltado com um guarda 
civil que espancou um preto e amarrou numa arvore. O guarda civil é branco.” (JESUS, 
1963, p. 96). Nesse trecho, percebe-se a presença da força bruta do Estado com seus 
instrumentos repressivos e em algumas vezes até racista, algo visto até hoje, pois segundo 
o IBGE (2017), 67% dos moradores de favelas do Brasil são negros e 7 em cada 10 
homicídios têm o negro como vítima. 
Nesse sentido, ainda, podemos estabelecer um paralelo entre a pobreza e a 
emergência da violência. Não que a violência está ligada diretamente à pobreza, mas que é 
na pobreza e na miséria que os instintos humanos de subsistência entram em ação e obriga, 
quase que biologicamente, o indivíduo a procurar meios de sobrevivência, nem que para isso 
ele tenha que roubar ou matar. Há, no entanto, aqueles que são exceções a essa regra da 
instintividade humana, mas estes servem tão somente para confirmar a regra de que a fome 
e a miséria são mais fortes do que o senso moral. Matar ou morrer de fome não parece ser 
uma escolha difícil para quem não tem outro caminho a não ser viver. 
No livro, são inúmeras as vezes em que a Carolina acorda indisposta e sem 
perspectiva, causas visíveis da fome e da falta de oportunidade. O pensamento de suicídio 
também é relatado no seu diário e nos dá a dimensão de extrema pobreza em que ela vivia 
com seus filhos. O desejo de sair da favela e ter, ao menos, uma casa de alvenaria faz parte 
do pensar e do falar da Carolina de Jesus. Não apenas dela, mas de todos aqueles que 
moravam ali. O desejo de ter a dignidade humana para viver é o objeto que pode suscitar a 
violência, pois, como supracitado, ele pode fomentar a violência na medida em que se faz de 
tudo para alcançar determinado objeto. Carolina Maria de Jesus não tinha o interesse em 
 
 
 
discutir política, pois suas “prioridades” e “preocupações” eram pela sua sobrevivência. 
Ao fim deste trabalho, observamos a presença claramente multifacetada da violência 
dentro da Favela do Canindé. São inúmeros os casos relatados pela autora. Violência de 
gênero é a mais recorrente. Essa realidade ainda faz parte do Brasil atual. A Carolina Maria 
de Jesus teve um olhar crítico para os acontecimentos que cerceavam sua vida naquele lugar. 
É fato que ainda assim, ela deixasse explicito seus valores, que se encontravam dentro do seu 
contexto e de sua vida. Isso é observado quando ela é indiferente ao sofrimento de algumas 
mulheres que eram agredidas pelos seus maridos. Tudo isso está dentro de uma construção 
social, onde o machismo está impregnado no pensamento de todos que compõem a 
sociedade, inclusive as mulheres. 
Observando esse enredo, é importante fazer reflexões que devem guiar na construção 
de uma identidade e de uma cidadania. O livro tem sua função social. Ele pode e deve gerar 
algum tipo de reflexão. É isso que Quarto de Despejo faz de melhor: ajuda o individuo a 
pensar melhor as relações sociais e de sociabilidade entre pessoas de mesma classe social ou 
classes distintas. Nos faz pensar em conceitos como o da fome e da violência. Novamente, 
faço a colocação de que os altos índices de violência naquele contexto tinham relação direta 
com o proposital desamparo estatal. Não se pensava nas pessoas que viviam em favelas. As 
políticas públicas eram escassas e até inexistentes. Em muitos casos, a indiferença era até 
projeto, como aquele que realocou várias famílias para as favelas na década de 1950 em São 
Paulo. 
Por fim, podemos dizer que Quarto de Despejo é uma obra prima, ainda que quase 
não pensada nos moldes que normalmente se costuma pensar em um livro. É um relato de 
uma mulher, negra, favelada e com leitura. São especificações que sozinha já carecem de 
destaque. Mas o relato em sim, continua vivido. Se não fosse citado a data, qualquer leitor 
pensaria que estariam lendo um texto jornalístico de 2024, em qualquer favela ou periferia 
menos favorecida dos grandes centros urbanos. Isso mostra que a ideia da subalternidade é 
resistente ao tempo. A política, no sentido amplo do conceito, pode oferecer soluções 
melhores para essa situação. 
Carolina morreu pobre, depois de um leve reconhecimento pela mídia brasileira e 
algumas estrangeiras. Não pôde aproveitar de uma vida luxuosa, como tantos outros 
escritores podem até hoje. Seu legado, no entanto, continua. Ela foi pioneira nesse diário 
escrito por pessoas da favela, que tiveram voz, como ela. O livro se trata da consciência 
histórica que a autora teve sobre sua existência e sobre suas relações com o mundo externo. 
Se trata também de como ela via o mundo e acatava, ou não, as suas inquietações. Ela 
 
 
 
encontrou na leitura e na escrita sua forma de protestar contra as perversidades de um Estado 
que não devolvia o mínimo necessário para a própria sobrevivência. Por isso, é supracitado 
que ela não tinha outros interesses políticos, apenas sua subsistência e escrever sobre sua 
realidade. 
 
 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo: As Experiências Vividas. Trad. Sérgio Milliet. 
São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. 
GIRARD, René. O Bode Expiatório e Deus. Trad. Márcio Meruje. Covilhã, LusoSofia. 
2008. GIRARD, René. A Violência e o Sagrado. Trad. Martha Conceição Gambini. São 
Paulo, Editora UNESP, 1990. 
JESUS, C. M. Quarto de Despejo. São Paulo, Edição Popular, 1963. 
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/09/politica/1533834219_933937.amp.html [Acesso 
em 27/11/18]

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