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FACULDADE DE INHUMAS CENTRO DE EDUCAÇÃO SUPERIOR DE INHUMAS CURSO DE DIREITO CLOVIS VINÍCIUS DE ALMEIDA HONORATO A AFETIVIDADE COMO ALICERCE DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: análise sob o viés da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva INHUMAS - GO 2022 CLOVIS VINÍCIUS DE ALMEIDA HONORATO A AFETIVIDADE COMO ALICERCE DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: análise sob o viés da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Faculdade de Inhumas (FACMAIS) como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Professora orientadora: Sirlene Fernandes Montanini. INHUMAS - GO 2022 CLOVIS VINÍCIUS DE ALMEIDA HONORATO A AFETIVIDADE COMO ALICERCE DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: análise sob o viés da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva AVALIAÇÃO DE DESEMPENHO DO(S) ALUNO(S) Monografia apresentada ao Curso de Direito, da Faculdade de Inhumas (FACMAIS) como requisito para a obtenção do título de Bacharel em Direito. Inhumas, 31 de maio de 2022. BANCA EXAMINADORA _____________________________________________________ Prof.ª Sirlene Fernandes Montanini – FacMais (orientadora e presidente) _____________________________________________________ Prof.ª Elisabeth Maria de Fátima Borges – FacMais (Membro) Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) BIBLIOTECA FACMAIS H774a HONORATO, Clovis Vinícius de Almeida A AFETIVIDADE COMO ALICERCE DO DIREITO DE FAMÍLIA CONTEMPORÂNEO: análise sob o viés da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva/Jorge Augusto de Moraes. – Inhumas: FacMais, 2022. 51 f.: il. Orientador (a): Sirlene Fernandes Montanini. Monografia (Graduação em Direito) - Centro de Educação Superior de Inhumas - FacMais, 2022. Inclui bibliografia. 1. Dignidade humana; 2. afetividade; 3. parentalidade socioafetiva; 4. multiparentalidade; 5. reconhecimento. I. Título. CDU: 34 RESUMO Trata-se de monografia jurídica cuja problemática reside em examinar a viabilidade jurídica da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva, assunto que mais tem despertado o interesse da doutrina e da jurisprudência nos últimos tempos. A pesquisa bibliográfica consubstanciou-se em doutrinas, legislações, artigos jurídicos, websites e jurisprudências atualizadas pertinentes ao tema. Dividida em três partes, no primeiro instante esboça os princípios norteadores do direito de família. Descreve o princípio da dignidade humana e demais correlatos à relação paterno-filial, com destaque ao princípio da afetividade. A segunda parte apresenta as diretrizes do reconhecimento voluntário e judicial dos filhos. A terceira parte exibe a problemática do estudo. Examina os elementos necessários à configuração da posse de estado de filho e da parentalidade socioafetiva, bem como a (im)possibilidade da sua desconstituição. Ao final, analisa os contornos da multiparentalidade, sua aceitação cronológica pelo judiciário e como o mesmo tem se posicionado antes e depois da tese de Repercussão Geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2016. Empregou-se o método hipotético-dedutivo na abordagem do tema. Palavras-chave: dignidade humana; afetividade; parentalidade socioafetiva; multiparentalidade; reconhecimento. ABSTRACT It is a legal monograph whose problem lies in examining the legal feasibility of multi parenting and socio-affective parenting, a subject that has most aroused the interest of doctrine and jurisprudence in recent times. The bibliographic research was based on doctrines, legislation, legal articles, websites and updated jurisprudence relevant to the topic. Divided into three parts, at first it outlines the guiding principles of family law. It describes the principle of human dignity and other correlates of the paternal-filial relationship, with emphasis on the principle of affection. The second part presents the guidelines for voluntary and judicial recognition of children. The third part shows the problem of the study. It examines the elements necessary for the configuration of the possession of a child's status and socio-affective parenting, as well as the (im)possibility of its deconstitution. In the end, it analyzes the contours of multi parenthood, its chronological acceptance by the judiciary and how it has positioned itself before and after the General Repercussion thesis signed by the Federal Supreme Court in 2016. The hypothetical-deductive method was used to approach the theme. Keywords: human dignity; affectivity; socio-affective parenting; multi parenting; recognition. SUMÁRIO INTRODUÇÃO 6 1. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA 8 1.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA 8 1.2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE JURÍDICA DOS FILHOS 10 1.3 PRINCÍPIO DO PLANEJAMENTO FAMILIAR E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL 11 1.4 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE 12 1.5 RECONHECIMENTO DE UM NOVO PRINCÍPIO NO DIREITO DE FAMÍLIA: O DA AFETIVIDADE 15 2. DA FILIAÇÃO 18 2.1 RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DOS FILHOS 19 2.2 RECONHECIMENTO JUDICIAL DOS FILHOS 23 2.3 RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DOS FILHOS 25 3. DA MULTIPARENTALIDADE E DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA 27 3.1 POSSE DE ESTADO DE FILHO E FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA 27 3.2 (IM)POSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO 300 3.3 A MULTIPARENTALIDADE COMO REFLEXO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES 32 CONSIDERAÇÕES FINAIS 43 REFERÊNCIAS 46 6 INTRODUÇÃO A presente monografia jurídica tem por escopo avaliar aspectos referentes ao Direito de Família contemporâneo, com destaque a um de seus alicerces: a afetividade. O estudo tem por objetivo responder a seguinte indagação: qual a viabilidade jurídica para o reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva como modelos de composição familiar? A hipótese reside na valorização da dignidade humana como principal fundamento jurídico para o reconhecimento dos vínculos socioafetivos e multiparentais contemporâneos. A justificativa para o tema adotado se dá em face de conhecer os pormenores da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva, novos paradigmas familiares, assim como os fundamentos utilizados pelo aplicador do direito acerca de sua viabilidade jurídica. O objetivo geral consiste em examinar os contornos da afetividade e de sua aceitação como valor jurídico, a fim de confirmar a viabilidade do reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva. O estudo foi dividido em três capítulos, onde, o capítulo 1 delineia os princípios que envolvem o Direito de Família, podendo serem observados no ordenamento jurídico, sendo classificados em respeito à dignidade da pessoa humana, a igualdade jurídica dos filhos, ao planejamento familiar, à paternidade responsável e ao melhor interesse da criança e do adolescente. Ao final, o capítulo aborda a afetividade como um novo fundamento do Direito de Família. O capítulo 2 dispõe sobre a filiação e o seu reconhecimento voluntário, que se dá por intermédio da presunção de paternidade; e o judicial, que acontece a partir das ações de investigação ou negatória de paternidade ou maternidade. Enquanto que na primeira espécie tem-se o fundamento de que “o marido é o pai”, devendo o filho espontaneamente ser reconhecido, em face da relação matrimonial ou de convivência estabelecida; na segunda, o exame de Ácido Desoxirribonucleico (DNA) atuará como elemento decisivo no reconhecimento do filho. O capítulo 3 destaca as relações socioafetivas, onde pais e filhosnão biológicos vivem, perante o grupo familiar e social, uma relação calcada no carinho, amor e afeição. Vê-se os caracteres da posse do estado de filho e da viabilidade da 7 desconstituição da parentalidade socioafetiva. O capítulo traz, ainda, o entendimento sobre o reconhecimento judicial da multiparentalidade, com reflexo na dupla paternidade/maternidade do assentamento de registro civil e como o judiciário tem se posicionado sobre a multiparentalidade antes e após a tese de Repercussão Geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 2016. A pesquisa bibliográfica teve como parâmetro doutrinas sobre o tema, com ênfase à obra Multiparentalidade e parentalidade socioafetividade: efeitos jurídicos, de autoria de Christiano Cassettari, de 2017. Em conjunto, artigos jurídicos, websites, dispositivos de leis e jurisprudências atualizadas de tribunais de variados Estados brasileiros, além de precedentes do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e do Supremo Tribunal Federal (STF). Desde já, a análise não pretende exaurir todas as pesquisas sobre o tema, tão somente constituir um norte para aqueles que tenham interesse no assunto em comento. Empregou-se o método hipotético-dedutivo, onde, a partir da racionalização e interpretação do material coletado, tornou-se possível apresentar um raciocínio hipotético que caminha do geral para o particular. 8 1. DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DO DIREITO DE FAMÍLIA Os princípios que envolvem o Direito de Família podem ser observados no ordenamento jurídico e serão destacados a seguir, sendo classificados em respeito à dignidade da pessoa humana, à igualdade jurídica dos filhos, ao planejamento familiar, à paternidade responsável e ao melhor interesse da criança e do adolescente. Ao final, o capítulo aborda a afetividade como um novo fundamento do Direito de Família. 1.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA O princípio do respeito à dignidade da pessoa humana está elencado no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988, que diz: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos [...] III - a dignidade da pessoa humana” (BRASIL, 1988). Pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana está diretamente relacionada ao dever imposto ao Estado de assegurar a cada um de seus cidadãos uma condição de vida honrada, com os meios necessários à sua sobrevivência e o respeito condizente à qualidade de ser humano único que é. Desse modo, “a dignidade humana somente é preservada na medida em que se garante o respeito à dimensão existencial do indivíduo, não apenas em sua esfera pessoal, mas, principalmente, no âmbito das suas relações sociais” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020). Immanuel Kant trouxe importantes considerações sobre a concepção de dignidade. Segundo seu pensamento, a dignidade confere ao homem autonomia especial, que o diferencia dos demais objetos, não podendo, assim, ser tratado como tal (SARLET In: CANOTILHO, 2013). O principal documento internacional de proteção aos direitos humanos, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu art. 1º, reconhece a dignidade da pessoa humana: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade” (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). 9 O preceito em referência constitui fundamento do Estado brasileiro sendo, portanto, de extrema importância a sua obediência. O Direito de Família está entre os ramos jurídicos sobre os quais o princípio da dignidade da pessoa humana mais se aplica. Entretanto, trazer à baila um conceito estrito de dignidade da pessoa humana não é tarefa simples, pois, por tratar-se de cláusula geral, são muitas as possibilidades de interpretação (TARTUCE, 2017a). Conforme Diniz (2015, p. 37), o referido princípio “constitui base da comunidade familiar, garantindo, tendo por parâmetro a afetividade, o pleno desenvolvimento e a realização de todos os seus membros, principalmente a criança e o adolescente.” O judiciário eleva a dignidade da pessoa humana ao mais alto patamar, em suas decisões. A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) confirmou a igualdade entre casais héteros e homossexuais: [...]. 2. Há possibilidade jurídica de reconhecimento de união estável homoafetiva pelo ordenamento jurídico brasileiro por realizar os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, aplicando-se, por analogia, a legislação atinente às relações estáveis heteroafetivas, tendo em vista a caracterização dessa relação como modelo de entidade familiar (STF, ADI nº 4.277/DF, Relator Ministro AYRES BRITTO, DJe 5/5/2011). 3. Assentando o Tribunal local restar comprovada a existência de união afetiva entre pessoas do mesmo sexo, é de se reconhecer o direito do companheiro sobrevivente à meação dos bens adquiridos a título oneroso ao longo do relacionamento, independentemente da prova do esforço comum, que nesses casos, é presumida, conforme remansosa jurisprudência do STJ. 4. [...]. (BRASIL, 2014). Para o Egrégio Superior Tribunal de Justiça, a possibilidade jurídica da união homoafetiva é plenamente possível, em respeito ao preceito da dignidade da pessoa humana. Entende-se que, como seres humanos livres físico e psicologicamente, detém do livre arbítrio de decidirem, de per si, como conduzirão suas vidas íntimas e as escolhas que farão para suas vidas. Desse modo, aceitar que um novo modelo de entidade familiar se estabeleceu no seio social, conferindo aos homossexuais os mesmos direitos estabelecidos aos casais heteroafetivos, é respeitar a vida que cada um tomou para si. 1.2 PRINCÍPIO DA IGUALDADE JURÍDICA DOS FILHOS 10 A igualdade jurídica dos filhos foi elencada no artigo 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, in verbis: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” A isonomia dos filhos constitui umas das principais novidades trazidas pela Carta Constitucional de 1988. Antes de sua promulgação, somente poder-se-iam ser reconhecidos os filhos concebidos na constância do casamento. Estes eram tidos como filhos legítimos; os demais, ilegítimos, importando em proeminente discriminação. A inovação constitui reflexo do pensamento esboçado pela doutrina e pela jurisprudência, sempre atentas à realidade social. A sociedade, paulatinamente, deixou de seguir os padrões tradicionais, em relação ao modo de composição familiar. A pluralidade de entidades familiares tornou- se cada vez mais presente e não poderia, tão pouco deveria deixar de receber o devido reconhecimento jurídico (PEREIRA, 2014). Felizmente, hoje, não importa como se deu a origem dos filhos. A Constituição da República determina que sejam tratados de modo igualitário. Ainda que não tenha sido concebido no seio do matrimônio, em igualdade, os filhos têm direito a um nome, a receber alimentos, a ser parte legítima da sucessão e demais prerrogativas destinadas à filiação. O estado de filho pode ser reconhecido a qualquer tempo, ainda que o genitor se encontre morto. Nas palavras de Lisboa (2012, p. 57): “O direito pós-moderno confere uma tutela jurídica diferenciada e mais protetiva à criança, ao adolescente e ao idoso, em comparação com os demais membros da entidade familiar.” Destarte, conforme o princípio em comento, não deve existir diferenciações entre os filhos, sejam eles biológicos, adotivos ou constituídos fora da relação matrimonial. Todos são, portanto, iguais. 1.3 PRINCÍPIO DO PLANEJAMENTO FAMILIAR E DA PATERNIDADE RESPONSÁVEL 11 Consubstanciadonos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar encontra-se disposto no artigo 226, § 7º, da Constituição da República, que possibilita ao casal o planejamento familiar de forma livre. Ao Estado incumbe a tarefa de prover os meios necessários para que esse direito seja exercido. Art. 226 [...] § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O conceito de “planejamento familiar” pode ser extraído do art. 2º, da Lei nº 9.263/1996, responsável por regular os contornos do planejamento familiar, in verbis: “o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal” (BRASIL, 1996). A mencionada lei traduz uma preocupação do legislador em que exista planejamento populacional a ser realizado pelo próprio casal, não pelo poder público, com vista a satisfazer grupos sociais diversos. O planejamento familiar constitui verdadeira autonomia conferida pelo Estado aos indivíduos (NERY JUNIOR; NERY, 2014). No Código Civil de 2002, o planejamento familiar é salvaguardado como princípio insculpido no § 2º, do art. 1.565: Art. 1.565. [...] § 2º O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas. A redação do artigo é praticamente uma repetição do texto presente no art. 226, § 7º, da Constituição Federal de 1988. Ressalta-se que o preceito não é destinado, apenas, aos casados; é extensível aos companheiros. De acordo com o Enunciado nº 99, da I Jornada de Direito Civil de 2002: 12 Art. 1.565, § 2º: o art. 1.565, § 2º, do Código Civil não é norma destinada apenas às pessoas casadas, mas também aos casais que vivem em companheirismo, nos termos do art. 226, caput, §§ 3º e 7º, da Constituição Federal de 1988, e não revogou o disposto na Lei n. 9.263/96 (SILVA, 2016). Afere-se que aos pares é destinado o direito de constituir família no momento que lhes for oportuno, nos moldes que desejar. Nenhuma instituição pública ou privada detém autonomia para inferir na vida privada de seus cidadãos para dizer-lhes como conduzirão seu núcleo familiar (LISBOA, 2012). Entretanto, é preciso ressaltar que a liberdade conferida pelo planejamento familiar traz consigo um outro princípio: o da paternidade responsável, que confere a todos a liberdade para constituírem suas famílias quando desejarem. Todavia, a concepção dos filhos traz aos pais as obrigações relativas ao poder familiar. Como fundamento à paternidade responsável, tem-se o art. 229 da Constituição da República de 1988, que estatui: “Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores, e os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade.” Assim, a criança e o adolescente não possuem condições de sozinhas proverem os meios indispensáveis ao seu crescimento. Os pais são livres para gerar filhos quando desejarem, todavia obrigados a oferecer os meios materiais e morais aos filhos, a partir de sua concepção. 1.4 PRINCÍPIO DO MELHOR INTERESSE DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE A Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada em 20 de novembro de 1989 pela Assembleia Geral das Nações, representa um marco na proteção internacional da criança e do adolescente. A referida Convenção foi ratificada no Brasil pelo Decreto n° 99.710/1990 e dispõe no seu artigo 3º sobre o melhor interesse do menor e de sua proteção pelo Estado: Art.3º: 1 – Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades 13 administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança. 2 – Os Estados Partes comprometem-se a assegurar à criança a proteção e o cuidado que sejam necessários ao seu bem-estar, levando em consideração os direitos e deveres de seus pais, tutores ou outras pessoas responsáveis por ela perante a lei e, com essa finalidade, tomarão todas as medidas legislativas e administrativas adequadas. 3 – Os Estados Partes certificar-se-ão de que as instituições, os serviços e os estabelecimentos encarregados do cuidado ou da proteção das crianças cumpram os padrões estabelecidos pelas autoridades competentes, especialmente no que diz respeito à segurança e à saúde das crianças, ao número e à competência de seu pessoal e à existência de supervisão adequada (BRASIL, 1990a). O princípio do melhor interesse da criança e do adolescente está diretamente relacionado à doutrina da proteção integral, onde todos, Estado, sociedade e família, devem zelar pelo saudável crescimento do menor, em todos os aspectos. Nesse sentido, a Constituição da República de 1988 em seu art. 227, caput, anuncia: Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Confirma-se, portanto, a obrigação constitucional recaída sobre todos, indistintamente, de salvaguardar os direitos do menor, por sua especial condição de sujeito em desenvolvimento. Do mesmo modo, o art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) preconiza que a proteção ao menor tem prioridade absoluta, sendo todos responsáveis pela efetivação do direito “à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (BRASIL, 1990b). Os direitos acima relacionados são fundamentais da pessoa humana, ou seja, interligados à personalidade do homem. É o direito que a pessoa tem de viver, ser livre, possuir um nome, ter seu corpo, sua imagem, sua honra e aquilo que crê preservados. Tais direitos não se descartam nem são destacados da personalidade humana. São inalienáveis, irrenunciáveis e tão pouco transmissíveis a outrem. Por conseguinte, constituem 14 direitos que não podem ser vendidos, cedidos, abdicados ou transferidos para outras pessoas (NUCCI, 2017). O princípio do melhor interesse dita ao legislador e ao intérprete da norma jurídica o modo pelo qual deve-se orientar nos casos cujo envolvendo crianças e adolescentes, buscando resguardar o respeito à dignidade e os demais direitos fundamentais do menor: Trata-se de princípio orientador tanto para o legislador como para o aplicador, determinando a primazia das necessidades da criança e do adolescente como critério de interpretação da lei, deslinde de conflitos, ou mesmo para elaboração de futuras regras. Assim, na análise do caso concreto, acima de todas as circunstâncias fáticas e jurídicas, deve pairar o princípio do melhor interesse, como garantidor do respeito aos direitos fundamentais titularizados por crianças e jovens. Ou seja, atenderá o princípio do melhor interesse toda e qualquer decisão que primar pelo resguardo amplo dos direitos fundamentais, sem subjetivismos do intérprete. Melhor interesse não é o que o julgador entende que é melhor para a criança, mas sim o que objetivamente atende à sua dignidade como criança, aos seus direitos fundamentais em maior grau possível (AMIM in: MACIEL,2019). Pelo princípio do melhor interesse do menor, todas as ações relativas ao poder familiar devem estar consubstanciadas nos aspectos positivos que trarão à criança e o adolescente. Na relação familiar, os direitos do menor se sobrepõem aos dos pais. Logo, o bem-estar da criança e do adolescente deve ser um ideal a ser alcançado pelos pais continuamente. Somente assim, poderão proporcionar a estes menores um desenvolvimento satisfatório. O princípio supra “permite o integral desenvolvimento de sua e é diretriz solucionadora de questões conflitivas advindas da separação judicial ou divórcio dos genitores, relativas à guarda, ao direito de visita etc.” (DINIZ, 2015, p. 37). 1.5 RECONHECIMENTO DE UM NOVO PRINCÍPIO NO DIREITO DE FAMÍLIA: O DA AFETIVIDADE O afeto é elemento espontâneo nas relações familiares. Por ele, as famílias são constituídas e mantidas. Pode-se dizer que na convivência encontra-se o ponto de partida dos sentimentos, o elo que vai além do parentesco biológico. Para Bordallo 15 (In: MACIEL, 2019), “a finalidade da família moderna não é a procriação, mas a criação de um local onde a afetividade seja exercida.” Gagliano e Pamplona Filho (2020) aduzem ser a afetividade o elemento sobre o qual o Direito de Família moderno se erige. Consoante os autores: “a afetividade tem muitas faces e aspectos e, nessa multifária complexidade, temos apenas a certeza inafastável de que se trata de uma força elementar, propulsora de todas as nossas relações de vida.” Inexiste na legislação constitucional e infraconstitucional dispositivo que trate expressamente da afetividade. O que se tem, por dedução lógica, é que esta se encontra intrinsecamente enraizada nas relações familiares, devendo receber especial atenção (TARTUCE, 2017b). Pereira (2014) entende ser a afetividade um princípio jurídico, em face de existir “um anseio social à formação de relações familiares afetuosas, em detrimento da preponderância dos laços meramente sanguíneos e patrimoniais.” Na Convenção sobre os Direitos da Criança encontra-se o alicerce da proteção integral da criança e do adolescente, reconhecendo-os como sujeitos de direito, portanto, carecendo de atenção especial por parte do Estado, da família e da sociedade em geral. A afetividade vem insculpida logo em seu preâmbulo, quando se lê: Convencidos de que a família, como grupo fundamental da sociedade e ambiente natural para o crescimento e bem-estar de todos os seus membros, e em particular das crianças, deve receber a proteção e assistência necessárias a fim de poder assumir plenamente suas responsabilidades dentro da comunidade; Reconhecendo que a criança, para o pleno e harmonioso desenvolvimento de sua personalidade, deve crescer no seio da família, em um ambiente de felicidade, amor e compreensão (grifo nosso). O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), principal diploma de proteção à pessoa do infanto-juvenil vigente no Brasil, tem o seu texto consubstanciado na Convenção sobre os Direitos da Criança. Desse modo, ainda que a afetividade não esteja explicitamente apresentada em seu seio normativo, subtende-se que os seus objetivos buscam, em primazia, oferecer as condições necessárias à plenitude do desenvolvimento do infanto-juvenil, que somente acontecerá nesses termos, se encontrar no seio familiar, dentre outros elementos, um ambiente de felicidade, amor e compreensão. 16 Consoante já exposto, em seu art. 4º, caput, o ECA impõe à família, à sociedade geral, à comunidade e ao Poder Público a salvaguarda dos direitos fundamentais do menor, neles abarcados o respeito à sua dignidade e à convivência familiar. Observa-se que o dispositivo protecionista do menor efetivou o 6º Princípio da Declaração Universal dos Direitos das Crianças, de 1959, que igualmente traz em seu bojo a afetividade, ao dispor que o menor deve se desenvolver num ambiente de afeto e de segurança, sob a proteção dos pais: 6º Princípio – A criança tem direito ao amor e à compreensão, e deve crescer, sempre que possível, sob a proteção dos pais, num ambiente de afeto e de segurança moral e material para desenvolver a sua personalidade. A sociedade e as autoridades públicas devem propiciar cuidados especiais às crianças sem família e àquelas que carecem de meios adequados de subsistência. É desejável a prestação de ajuda oficial e de outra natureza em prol da manutenção dos filhos de famílias numerosas. No art. 5º do ECA, tem-se delineada ampla proteção ao menor, prevendo a punição daquele que, por ação ou omissão, violar os seus direitos fundamentais. Nenhuma criança ou adolescente, portanto, poderá padecer abusos físicos ou pressão psicológica, negligência, discriminação, atos de crueldade, opressão etc. Com a valoração pela Constituição de 1988 dos princípios da dignidade, igualdade, liberdade e solidariedade, a essência de querer ser, pensar ser, dar e receber assistência no âmbito de relações familiares está mais centrada em laços de afetividade do que propriamente em vínculo biológico. Atualmente, nos mais variados artigos, doutrinas e jurisprudências vê-se o primado da afetividade prevalecendo sobre a ligação biológica. A nova família encontra-se estruturada na convergência de vontades em atender as necessidades de seus membros no decurso de tempo em que há ou houve mútua assistência. Portanto, existe, hoje, uma consideração da vida em comum (CASSETTARI, 2015). A afetividade, consoante Lôbo (2017), “é o princípio que fundamenta o direito de família na estabilidade das relações socioafetivas e na comunhão de vida, com primazia sobre as considerações de caráter patrimonial ou biológico.” Paralelamente, tem-se o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente, o princípio da proteção integral e o princípio da convivência familiar. 17 Todos convergindo no que representa ser o melhor para criança ou adolescente desenvolver-se com dignidade. No conflito de interesses, cujo objeto envolve menores, sempre que possível, aplica-se a proteção integral, fazendo prevalecer o princípio do melhor interesse da criança ou adolescente, o que normalmente converge com a afetividade. Destarte, a família, seja a biológica ou a socioafetiva, tem a afetividade como pressuposto de existência (CASSETTARI, 2015). Os pais, detentores do poder familiar, devem oferecer à prole os meios indispensáveis ao seu salutar crescimento, sendo imprescindível, para tanto, que a afetividade esteja presente em suas relações e que estes acompanhem de perto cada etapa de seu desenvolvimento. Somente assim, estarão cumprindo com maestria o papel legal a si atribuído a partir da concepção dos filhos. No capítulo a seguir serão objetos de estudo os aspectos tecnocientíficos, doutrinários e jurisprudenciais referentes ao conceito contemporâneo de filiação. 18 2. DA FILIAÇÃO O progresso da tecnologia trouxe a solução das dúvidas referente à paternidade biológica. Muitos dos conflitos e das incertezas relativas à origem dos filhos eram solucionáveis pelo sistema de presunções. O direito utilizou muito desta ferramenta para atribuir a relação de filiação, por haver dificuldade técnica de verificação de paternidade biológica. A comprovação da maternidade baseava-se nas visíveis alterações físicas no corpo da mulher e no parto. Daí a presunção de que a mãe é sempre certa, mater semper certa est. Quanto à paternidade, a presunção pater is est, pai é o marido, fundava-se na dificuldade de apurar quem era o pai biológico (VENOSA, 2020). Por filiação, entende-se o laço jurídico que liga os filhos às pessoas dos pais, independentemente de como se deu a sua origem: pelo matrimônio, fora do matrimônio ou pela via da adoção. Conforme Pereira (2018), a filiação “designa a relação de parentesco na linha reta e em primeiro grau, do filho em relação aos pais.Sob a ótica do pai, dá-se o nome de paternidade; sob a ótica da mãe, maternidade.” Todos são detentores dos mesmos direitos e qualificações, restando proibido qualquer ato discriminatório em razão do estado de filiação, por força do art. 1.596 do Código Civil: Esse preceito coroou uma longa e árdua evolução da sociedade e do direito, já que, durante muito tempo, filhos havidos fora do casamento não tinham os mesmos direitos dos oriundos de matrimônio civil, sendo excluídos da “cidadania jurídica”, em favor de uma falsa harmonia nas relações matrimoniais (SILVA, 2016). Assim, a disciplina presente no art. 1.596 do Código Civil nada mais é que o retrato fiel do texto da Constituição Federal de 1988, que em seu art. 227, § 6º, dispõe: “os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.” Uma vez que a Lei Maior trata a filiação de modo isonômico, todos os demais diplomas ordinários devem seguir os seus ditames. 19 A seguir será discorrido no que concerne ao reconhecimento voluntário, judicial e extrajudicial dos filhos. 2.1 RECONHECIMENTO VOLUNTÁRIO DOS FILHOS Por estarem os filhos juridicamente unidos aos pais, uma série de circunstâncias foram previstas pelo legislador ordinário, para demonstrar em quais situações a filiação seria reconhecida, a partir da presunção de paternidade, que são “deduções que se tiram de um fato certo para provar um fato desconhecido” (DIAS, 2016). Conforme citado anteriormente, a maternidade é praticamente incontestável, em função da máxima mater semper certa est, sendo possibilitada em casos extraordinários. O mesmo não ocorre com a paternidade, ainda que impere a dedução de que o marido da mãe é o pai de seus filhos (TARTUCE, 2017b). Desse modo, “qualquer que seja a origem, o filho é do marido; certeza que induz (presume, pressupõe) a segurança para aqueles a quem se transferirá a propriedade privada em caso de sucessão” (DIAS, 2016). Gagliano e Pamplona Filho (2020) lecionam que o reconhecimento voluntário dos filhos se dá, geralmente, pela via cartorária. Em complemento, é destinado aos filhos contraídos fora do matrimônio, vez que os concebidos em sua constância, como se viu, são considerados “filhos do cônjuge”, por presunção legal. Cinco são as situações descritas pelo art. 1.597 do Código Civil que determinam a presunção legal de paternidade, a saber: Os filhos nascidos 180 dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal. Nesse caso, a presunção de paternidade se inicia assim que a relação de convivência se estabelece. Silva (2016) esclarece porque o casamento (incluindo-se, também, a união por convivência), gera a presunção de paternidade: O casamento gera a presunção da paternidade — pater is est quem nuptiae demonstrant — por presunção da coabitação e da fidelidade da mulher, ou, por outras palavras, porque a lei supõe relações sexuais entre os cônjuges e que a mulher as tenha tido somente com o marido. 20 Trata-se de presunção relativa, sendo o exame de DNA (método utilizado para analisar as informações genéticas dos indivíduos) o principal instrumento pelo qual a verdade real do parentesco será declarada, em casos de dúvida: Toda a cultura, a construção doutrinária, a jurisprudência, enfim, toda a concepção sobre a prova nas ações de filiação, que tinha por base a circunstância de que a paternidade era um mistério impenetrável, sendo impossível obter-se a prova direta da mesma, passou, recentemente, por radical transformação, e um entendimento de séculos teve de ser inteiramente revisto. Como o progresso científico e a invenção do teste DNA (ácido desoxirribonucleico), a paternidade pode ser determinada como absoluta certeza (VELOSO apud TARTUCE, 2017b, p. 249). Pontua-se, portanto, que, diferentemente do que acontecia até a vigência da atual Constituição Federal, a presunção de paternidade, hoje, não serve como parâmetro para a qualificação de filho legítimo ou ilegítimo, até mesmo em razão da CF/88 ter elevado todos os filhos ao mesmo patamar, independentemente de como concedeu concepção (TARTUCE, 2017b). Os filhos nascidos nos 300 dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento. Aqui, ao contrário da presunção que se estabelece do início da relação de convivência, o prazo para a presunção de paternidade começa a fluir a partir do rompimento da sociedade conjugal, pela morte ou nulidade e anulação do casamento. Ao descreverem a utilidade da norma contida no art. 1.597, II, do Código Civil, Nery Junior e Nery aduzem ser o dispositivo importante à proteção dos direitos de filiação e de sucessão destinados ao concepto: Remanesce a importância do artigo para, aprioristicamente, fixar regras de filiação e de sucessão que interessam ao concepto, como medida necessária ao resguardo dos direitos do nascituro (CC 2.º) e para imputar ao presumido pai responsabilidades (inclusive de alimentos) em face do ser concebido (NERY JUNIOR; NERY, 2014, p. 649). Mais uma vez, a presunção a que se refere é iuris tantum (relativa), sendo o exame de DNA a via necessária para que a paternidade biológica seja confirmada. O exame de DNA tornou ineficazes todos os métodos e presunções para o reconhecimento da filiação utilizados até a sua instituição, em face da precisão do resultado emitido. 21 Para Veloso (apud GONÇALVES, 2021), “a comparação genética através do DNA é tão esclarecedora e conclusiva quanto às impressões digitais que se obtêm na datiloscopia, daí afirmar-se que o DNA é uma impressão digital genética.” Com a exceção de prova em contrário, se a mulher viúva ou que teve o casamento anulado, que antes de completar dez meses após o início de qualquer uma das circunstâncias mencionadas contrair novo casamento e sobrevier o nascimento de algum filho, presumir-se-á do primeiro marido, caso o nascimento se dê até 300 dias, contados da data de seu falecimento; do segundo marido, se o nascimento se der após o transcurso dos 300 dias mencionados ou 180 dias do início do segundo casamento (art. 1.598 c/c 1.523, I e II do Código Civil). Os filhos havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido. Primeiramente, tem-se por fecundação artificial homóloga aquela realizada com material genético do marido e de sua esposa. Assim, ainda que o marido já tenha falecido, se o seu material genético (congelado em banco de sêmen) for utilizado juntamente com o óvulo da mulher viva, será tomado como pai da criança que nascer (TARTUCE, 2017b). Sobre o tema, o Conselho de Justiça Federal (CJF), por seu Enunciado nº 106, impõe à mulher que deseja submeter-se à fecundação com o material genético do falecido a comprovação de seu estado de viuvez e apresentação de autorização expressa deixada pelo marido para realização do ato, após sua morte: Para que seja presumida a paternidade do marido falecido, será obrigatório que a mulher, ao se submeter a uma das técnicas de reprodução assistida com o material genético do falecido, esteja na condição de viúva, sendo obrigatório, ainda, que haja autorização escrita do marido para que utilize seu material genético após sua morte. Ainda sobre fecundação artificial homóloga, o Código Civil estabelece a presunção de paternidade dos filhos havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários. A filiação, nesse caso, é decorrente de embriões criados e conservados em clínicas de reprodução assistida. A técnica empregada é a de reprodução in vitro, por meio da manipulação do material genético do homem e da mulher e de fecundação realizada numa proveta, fora do corpo materno (TARTUCE, 2017b). 22 Importante frisar que, na situação legalprevista, os embriões deverão, necessariamente, ser constituídos de material genético obtido a partir dos excedentes da reprodução artificial homóloga realizada pelo homem e pela mulher, casados ou conviventes em união estável. Lôbo (2017) destaca estar “proibida a utilização de embrião excedentário por homem e mulher que não sejam os pais genéticos ou por outra mulher titular de entidade monoparental.” A vedação encontra respaldo no fato de não ser permitida no Brasil a famosa barriga de aluguel, ou barriga solidária, onde uma terceira mulher oferta o seu útero para abrigar a combinação genética do pai e mãe casados ou de homem solteiro que com aquela não tenha qualquer vínculo (GONÇALVES, 2021). Se, porventura, ocorrer a situação descrita, juridicamente, o filho será da mulher que o gerou e concebeu, em decorrência da presunção de maternidade estabelecida pelo do parto. O pai, por sua vez, independentemente se casado ou solteiro, será o homem que cedeu o sêmen para a reprodução. Logo, ainda que o óvulo fecundado não seja da mulher que o gerou, o filho resultante, por força da lei, será (GONÇALVES, 2021). Insta observar, nesse sentido, que a Resolução nº 1.957/2010, do Conselho Federal de Medicina (CFM), determina que todos os estabelecimentos de reprodução assistida somente realizem o procedimento conhecido como gestação de substituição se, comprovadamente, mediante laudos médicos, a doadora genética restar impedida de gestar o embrião (GONÇALVES, 2021). Mesmo assim, o CFM prescreve que somente poderão doar temporariamente os seus úteros, para a gestação, mulheres que pertençam à família da doadora genética, com parentesco confirmado até o segundo grau. Casos diferentes do citado precisarão, primeiramente, de autorização do CFM, à sua realização (GONÇALVES, 2021). Conforme verificado na situação anterior, o material genético manipulado in vitro somente poderá ser usado após a morte dos doadores, se estes manifestarem, por escrito, a possibilidade do feito. Por fim, terão a presunção de paternidade os filhos havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. Ao contrário das situações anteriores, o material genético, aqui, é doado por outro homem (doador anônimo) e será implantado no óvulo da mulher. 23 Tal situação somente poderá ser aceita se houver prévio consentimento do marido para o ato, uma vez que, apesar de o sêmen utilizado na fecundação ser de outra pessoa, a filiação e seus efeitos jurídicos recairão sobre si. A concordância do marido impede que a filiação concebida por inseminação heteróloga seja desconstituída, salvo a comprovação de que o filho é resultado da infidelidade da mulher (GONÇALVES, 2021). Importante consideração a ser feita, é no que diz respeito à verdade real como requisito à presunção de paternidade. Nos casos de fecundação artificial heteróloga, a presunção juris et de jure (absoluta) é calcada na verdade afetiva, tão somente, haja vista a verdade da filiação biológica restar comprometida, pelo material genético ser pertencente a doador anônimo (DIAS, 2016). 2.2 RECONHECIMENTO JUDICIAL DOS FILHOS A ação negatória de paternidade é de uso exclusivo do marido/pai registral e tem por objeto romper o liame civil de filiação, de filho havido de sua esposa, em face de dúvida existente sobre o vínculo biológico entre as partes. Pereira (2014) esclarece que a referida ação é o meio pelo qual pai ou mãe pode, judicialmente, “negar a existência de um vínculo de filiação que se formou por força de uma presunção legal (art. 1597, CC) ou mesmo por espontânea declaração de vontade.” Por força do art. 1.601 do Código Civil, compete ao marido contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher. A ação possui natureza personalíssima e é imprescritível. Cumpre ainda dizer que, se o pai deu início ao processo de negatória de paternidade, vier a falecer no decurso da demanda, poderão os seus herdeiros suceder-lhe, para dar continuidade ao feito. Monteiro e Silva complementam: Se o marido não chegou a iniciar a ação, aceitando o filho como seu, inexiste a legitimidade do herdeiro para propô-la em seu nome. Destarte, não pode a mulher ajuizar ação propugnando a anulação da paternidade ocorrida na vigência do casamento a fim de atribuí-la a terceiro (MONTEIRO; SILVA, 2012). 24 Sobre o tema, a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul entendeu prevalecer a verdade biológica sobre a registral, diante de situação em que o pai registrou filho que acreditava ser biologicamente seu, todavia com este não mantinha laços afetivos. Uma vez não constituída a parentalidade socioafetiva, e diante da comprovação de que o filho era de outrem, a negatória de paternidade com retificação no registro civil tornou-se medida imperativa: APELAÇÃO CÍVEL. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE C/C RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL. VERDADE BIOLÓGICA QUE PREVALECE SOBRE A VERDADE REGISTRAL. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SOCIOAFETIVA. 1. O estado de filiação é a qualificação jurídica da relação de parentesco entre pai e filho que estabelece um complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados. 2. Constitui-se em decorrência da lei (artigos 1.593, 1.596 e 1.597 do Código Civil, e 227 da Constituição Federal), ou em razão da posse do estado de filho advinda da convivência familiar. 3. Se o autor registrou demandado como filho, sem saber que não era o pai biológico, e não possui maior relação socioafetiva com ele, a ação negatória de paternidade é medida que se impõe, pois, neste caso, a verdade biológica deve prevalecer sobre a verdade registral. Apelo não provido (BRASIL, 2007, grifo nosso). Em sentido contrário, quem registrou como seu sabendo ser filho de outro, não pode alegar a falsidade do registro, visto que é um ato de vontade de declaração unilateral. Portanto, não é dado ao declarante alegar a própria falsidade no intento de desconstituir o ato e fugir das responsabilidades contraídas. A situação configura o que a doutrina e a jurisprudência denominam de adoção à brasileira. Aplica-se, no caso, o princípio venire contra factum proprium, onde não pode ser desconstituído o estado de filiação do indivíduo que, por longos anos, acreditou ser aquele o seu pai/mãe. O pedido será negado, se o requerente agiu de má-fé, ao registrar filho que, sabidamente, não era seu (LÔBO, 2017). O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul manteve posicionamento sobre a impossibilidade de desconstituição do registro civil. Se o reconhecimento foi feito de modo espontâneo, ainda que o pai registral tivesse ciência de que não era genitor biológico dos filhos, não deve prevalecer a intenção de rompimento legal do estado de filiação criado. Nesse caso, a verdade cartorária deve prevalecer, não apenas pela manifestação voluntária, mas, principalmente, pelo relacionamento afetivo 25 estabelecido entre as partes, o que coloca a paternidade socioafetiva acima da biológica: CIVIL - FAMÍLIA - AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE - REGISTRO DE NASCIMENTO REALIZADO DE FORMA ESPONTÂNEA - AUSÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO - VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO DEMONSTRADO - PEDIDO JULGADO IMPROCEDENTE - SENTENÇA MANTIDA. 1. O reconhecimento espontâneo da paternidade somente pode ser desfeito quando comprovada a presença de vício de consentimento, isto é, para que haja possibilidade de anulação do registro de nascimento é necessária prova robusta no sentido de que o "pai registral" foi, por exemplo, induzido a erro. 2. Assim, se o "pai registral", mesmo ciente de que não possuía vínculo biológico, realiza o registro de nascimento dos menores em cartório, inviável se mostra o pedido de desconstituição da paternidade, mantendo-se incólume a relação de parentesco declarada anteriormente, ainda que realizado exame de DNA a posteriori atestando que os réusnão são filhos biológicos do autor, mormente quando os laços de afetividade já se apresentam estreitos e a relação de pai e filho fortalecida, merecendo relevância a paternidade socioafetiva consolidada. 3. Recurso conhecido e não provido (BRASIL, 2010). Sobre a negatória de maternidade, o art. 1.608 do Código Civil profere que o registro civil materno somente poderá ser contestado se restar comprovada a falsidade do termo ou das declarações ali presentes. Se a mãe, portanto, foi induzida a erro, no momento do registro civil, ao acreditar que o filho era seu, quando, na verdade, não era, a lei civil lhe possibilitou a contestação da maternidade. Entretanto, se houve o reconhecimento espontâneo de filho que não era seu, restará configurada adoção à brasileira, de caráter irrevogável, diante de posterior arrependimento (SILVA; PELUSO, 2010). 2.3 RECONHECIMENTO EXTRAJUDICIAL DOS FILHOS Sobre o reconhecimento extrajudicial dos filhos, o Provimento nº 63, de 14 de novembro de 2017, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), configura um grande avanço sobre filiação socioafetiva. A partir de sua vigência, o reconhecimento da multiparentalidade e da parentalidade socioafetiva podem ocorrer, em todo o território nacional, diretamente no cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais. Dentre os apontamentos feitos, considera o Provimento: “a ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os 26 princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamento da filiação civil” (BRASIL, 2017). Em 14 de agosto de 2019, pelo Provimento nº 83, o CNJ alterou a Seção II do Provimento nº 63/2017, que dispõe sobre a paternidade socioafetiva. Das regras atualmente vigentes sobre o tema, destacam-se: a) o reconhecimento voluntário da parentalidade socioafetiva de menor com idade superior a 12 anos será autorizada perante os oficiais de registro civil; b) o reconhecimento se dará em caráter irrevogável; c) o reconhecimento poderá ser requerido pelos filhos maiores de 18 anos; d) fica vedado o reconhecimento entre irmãos e ascendentes; e) exige-se a diferença mínima de dezesseis anos entre o pretenso pai/mãe e o filho reconhecido; f) a posse de estado de filho deve ser estável e socialmente conhecida; g) a socioafetividade deve ser provada pelos meios admissíveis no direito; h) menores de 18 anos somente podem ter a parentalidade socioafetiva reconhecida mediante o seu consentimento; i) necessário submissão do reconhecimento ao Ministério Público para que emita parecer sobre o feito; j) o registro civil está limitado ao nome de dois pais e/ou duas mães (BRASIL, 2019). Os aspectos doutrinários e jurisprudenciais referentes à multiparentalidade e parentalidade socioafetiva são objetos de estudo do capítulo a seguir. 27 3. DA MULTIPARENTALIDADE E DA PARENTALIDADE SOCIOAFETIVA O presente capítulo destaca as relações socioafetivas, aquelas onde pais e filhos não biológicos vivem, perante o grupo familiar e social, uma relação calcada no carinho, amor e afeição. Ver-se-á, nesse sentido, os caracteres da posse do estado de filho e da viabilidade da desconstituição da parentalidade socioafetiva. Traz, ainda, o entendimento sobre o reconhecimento judicial da multiparentalidade, com reflexo na dupla paternidade/maternidade no assentamento de registro civil e como o judiciário tem se posicionado sobre o tema antes e após a tese de Repercussão Geral firmada pelo Supremo Tribunal Federal, em 2016 3.1 POSSE DE ESTADO DE FILHO E FILIAÇÃO SOCIOAFETIVA A parentalidade ligada pelo afeto resulta da espontânea vontade dos membros de um núcleo familiar em dispensar amor, respeito, consideração e cumplicidade uns para com os outros dentro e fora do ambiente doméstico. Nesses termos, a posse do estado de filho diz respeito ao elo de afetividade criado entre pais e filhos que não possuem vínculo biológico. Ainda que, juridicamente, a relação de parentesco não seja reconhecida, a sociedade compreende aqueles sujeitos como um grupo familiar, por se apresentarem socialmente como tal. Há quem não concorde com a expressão “posse de estado de filho” utilizada pela doutrina. O adequado seria “Estado de Filho Afetivo”, posto a Constituição Federal de 1988 haver priorizado a busca pela felicidade comum entre pais e filhos, alcançada através do amor e da ternura, não da posse e do domínio (WELTER apud PEREIRA, 2016). Embora inexista determinação legal para o reconhecimento jurídico da pessoa que se encontra sob posse de estado de filho, este é um fato levado em consideração na definição contenciosa da filiação. Entende-se que constitui elemento gerador da parentalidade socioafetiva, valendo-se do art. 1.605, II, do Código Civil como fundamentação legal, por estabelecer que, diante inexistência ou defeito do termo de nascimento, a filiação poderá ser provada por outro modo admissível pelo Direito, sempre que existirem veementes presunções provenientes de fatos já certos (CASSETTARI, 2017). 28 Cumpre dizer que, na posse de estado de filho, o liame entre pais e filhos é, tão somente, a afetividade. A parentalidade socioafetiva surge a partir dos estreitos laços sociais e de carinho formados entre determinadas pessoas, que se apresentam para si e para o mundo como entidade familiar, ainda que inexista o laço de sangue ou de assento de nascimento. A relação familiar consolidada pela afeição configura o que se concebe, hoje, como família socioafetiva, onde a posse do estado de filho se dá a partir do cumprimento, por parte dos pais, de todos os deveres legalmente estabelecidos e, sobretudo, pelo vínculo afetivo. O filho é tomado como tal para o núcleo familiar, para a família extensiva e perante toda a sociedade, que claramente identifica e respeita cada um dos sujeitos da relação familiar como se apresentam. Essa relação, que não é biológica ou civil, todavia aparentemente verdadeira para os que convivem ao redor daqueles concebidos como pais e filhos, deve ter sua importância reconhecida. Conforme Dias (2016), “a tutela da aparência acaba emprestando juridicidade a manifestações exteriores de uma realidade que não existe.” Não se pode desconsiderar a construção gradual do relacionamento socioafetivo, que perfeitamente se assemelha à relação paterno-filial, juridicamente estabelecida. Na família socioafetiva, ocorre uma transcendência do afeto, que evolui para uma relação social de amplo conhecimento. O direito contemporâneo tem resguardado o afeto, por vê-lo cada dia mais sedimentados nas relações familiares (BARROS apud PEREIRA, 2016). A parentalidade socioafetiva deve ser levada em consideração à seara jurídica, não apenas pelo vínculo afetivo formado entre os envolvidos, mas principalmente pela solidez que a relação calcada no afeto apresenta à comunidade: A maternidade e a paternidade biológica nada valem frente ao vínculo afetivo que se forma entre a criança e aquele que trata e cuida dela, lhe dá amor e participa da sua vida. A afeição tem valor jurídico. Na medida em que se reconhece que a paternidade se constitui pelo fato, a posse do estado de filho pode entrar em conflito com a presunção pater est. E, no embate entre o fato e a lei, a presunção precisa ceder espaço ao afeto (DIAS, 2016). A configuração da posse de estado de filho requer a observância dos seguintes requisitos: o tratamento como filho; o uso do nome da família; o 29 reconhecimento perante a sociedade como membro da família a qual se diz pertencer (DIAS, 2016). Para Cassettari (2017), uma vez caracterizada a posse do estado de filho, o Código Civil de 2002 a reconhece como modalidade de parentesco civil, haja vista o enunciado do art. 1.593 informar que o parentesco se dará de modo natural ou civil, variante do vínculo sanguíneo ou de outra origem. Éjustamente na expressão “outra origem” que se compreende o reconhecimento da filiação socioafetiva. Perfaz-se possível fundamentar a socioafetividade, também, a partir da interpretação do princípio constitucional da proteção integral da criança e do adolescente, presente no art. 227 da Constituição Federal de 1988 e arts. 4º e 6º do Estatuto da Criança e do Adolescente. Nery Junior e Nery, ao comentarem o art. 1.593 do diploma civil, explicam o valor jurídico da afetividade no reconhecimento da filiação não consanguínea: A afetividade “se institucionaliza” como conceito legal indeterminado e, como tal, necessita de interpretação integrativa do juiz, de modo a completar o sentido da norma no caso concreto e, por conseguinte, criar laço de parentesco por outra origem. Essa integração pode dar-se, também, por ato de vontade das partes, como ocorre quando se dá o reconhecimento de filho que não tem laços de sangue com aquele que manifesta a vontade de declarar-se pai ou mãe, ou que se conduziu em sua vida privada de maneira a criar esse vínculo de outra origem (NERY JUNIOR; NERY, 2014). Não se pode olvidar que o direito está atrelado ao mundo dos fatos, sendo que estes estão em constante mutação. Por esta razão, não se pode deixar de dar validade às situações que criam, extinguem ou modificam situações jurídicas já existentes. Contudo, são as circunstâncias inerentes a cada caso que auxiliarão o magistrado no momento de estabelecer o vínculo legal de parentesco em face da afetividade, haja vista a socioafetividade não vir explicitamente descrita nos termos do art. 1.593 do Código Civil. Assim, no caso do parentesco por “outra origem”, o reconhecimento legal se dará pela via judicial ou de modo espontâneo pelas partes (NERY JUNIOR; NERY, 2014). A paternidade socioafetiva ou parentalidade socioafetiva refere-se ao pai/mãe que desempenha todas as atribuições pertinentes ao poder familiar sobre aquele que não é seu filho biológico. Costuma-se ouvir que pai é aquele que cria, não o que faz. O dito popular enquadra-se perfeitamente ao que se estabeleceu como paternidade pela via da afeição (DIAS, 2016). 30 Destaca-se, por oportuno, que a “adoção à brasileira” constitui espécie de filiação socioafetiva. Apesar do registro de filho alheio como próprio constituir crime, não se pode permitir que os efeitos do parentesco sejam desfeitos. A entidade familiar socioafetiva é assim denominada pela ligação de afeto que se estabeleceu, liame que não poderá ser rompido, ainda que haja separação dos pais logo após o registro civil do filho. Nesse sentido, o Enunciado nº 519 do CFJ estabeleceu que a comprovação judicial da posse de estado de filho gera o parentesco socioafetivo, produzindo efeitos pessoais e patrimoniais: Enunciado no 519: Art. 1.593: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais. Pelo teor do art. 1.610 do Código Civil, o reconhecimento voluntário da filiação é de caráter irrevogável. Dessa maneira, independentemente da origem do filho, se natural, por adoção ou socioafetivo, os efeitos jurídicos pertinentes ao estado de filiação não poderão ser desfeitos. Tem-se como regra, portanto, o não desarranjo da relação paterno-filial constante no registro civil de nascimento. A exceção reside nos casos de erro ou falsidade do registro. A exceção da exceção, por sua vez, daí retorna-se à regra principal, é no sentido de que o registro civil não pode ser alterado, mesmo diante de vício de consentimento, nos casos em que a socioafetividade entre os envolvidos resta-se configurada (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2020). 3.2 (IM)POSSIBILIDADE DE DESCONSTITUIÇÃO DO VÍNCULO SOCIOAFETIVO Não são raros os casos em que mãe e/ou pai biológico entrega o filho para outra pessoa, que o registra como seu, incorrendo em falsidade no assentamento de registro civil do menor, consistindo em adoção à brasileira, prática vedada pela legislação pátria no art. 242 do Código Penal Brasileiro: Art. 242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil: Pena - reclusão, de dois a seis anos. 31 Existem, também, situações em que o genitor sequer sabia da existência do filho, todavia a mãe permitiu que o menor fosse registrado em nome de outrem, seja diante da dúvida da paternidade, seja por razões particulares. É possível considerar, ainda, a ocorrência do filho proveniente de adoção à brasileira desejar recompor sua relação de parentesco biológico. Diante das circunstâncias apresentadas, questiona-se a possibilidade da reversão da paternidade socioafetiva. Nesses casos, assim da descoberta do vício de manifestação no registro, busca-se o judiciário para que o estado jurídico de filiação seja desfeito. Todavia, apesar de ser considerado irrevogável, não se pode deixar de observar que a relação afetiva, a depender da duração e da qualidade da convivência, pode ter sido construída, o que obsta a desconstituição da paternidade civil. A regra é que não se desconstitui. Porém, ninguém está impedido de recorrer ao judiciário para pleitear direitos. E, nesse sentido, os artigos 1.601, 1.604 e 1.608 do Código Civil de 2002 possibilitam a exceção à regra, permitindo a reversão do estado de filiação quando comprovado o erro, dolo, coação, simulação ou fraude. Dessa forma, a reversão da filiação registral a partir da afetividade poderá ser encontrada em algumas situações específicas, como as citadas por Tomaszewski e Leitão (2005): 1) Se o(s) pai(s) registral alegar a própria falsidade. Está pacificado na jurisprudência que quem registrou sabendo ser filho de outrem não pode alegar a falsidade do registro, visto que é um ato de vontade de declaração unilateral e, portanto, não é dado ao declarante alegar a própria falsidade para desconstituir o ato e fugir às responsabilidades. É a aplicação do princípio venire contra factum proprium. Uma vez impedido de alegar este motivo, restará tentar provar que nunca houve convivência não se configurando a socioafetividade. 2) Se o(s) pai(s) registral alegar erro, este terá que ser comprovado. Ainda assim, será aferido o princípio da afetividade e do melhor interesse da criança. E até mesmo o filho poderá entrar com ação pedindo reconhecimento de paternidade socioafetiva, desde que comprove a posse de estado de filho. 32 3) O fundamento para que outros que tenham legítimo interesse de impugnar reside, igualmente, em provar o erro ou a falsidade. No entanto, no caso concreto, o juiz fará uma avaliação principiológica e, se restar configurado a posse de estado de filho, a socioafetividade, o melhor interesse da criança, a regra é a não reversão. 4) Se o filho com pai registral buscar constituir outra relação de parentesco, terá que provar a ausência de vínculo socioafetivo, para isso há obrigatoriedade de litisconsórcio passivo necessário. Por ser o filho a parte vulnerável da relação familiar, o Estado impõe e observa o princípio do melhor interesse da criança, o princípio da afetividade e o da dignidade humana. Na existência de conflito de interesses dos adultos e dos filhos, devem prevalecer, em tese, os direitos do filho. 3.3 A MULTIPARENTALIDADE COMO REFLEXO DOS NOVOS ARRANJOS FAMILIARES Em um cenário onde a sociedade tem se apresentado aberta a novos paradigmas de constituição familiar, surge a ideia da multiparentalidade no direito de família. Inicialmente, é de conhecimento comum que a filiação decorre da junção de material genético de um homem e uma mulher, tomados, a partir de então, como pai e mãe biológicos. Entretanto, vê-se, cada vez mais,o surgimento de relações familiares constituídas por dois pais e/ou duas mães, denominadas pela doutrina e pela jurisprudência como família multiparental ou pluriparental, formada a partir da constituição de novas relações conjugais dos pais biológicos. A possibilidade para a multiplicidade de pais e mães de um mesmo filho, nesse caso, se dá pela coexistência da parentalidade biológica com a socioafetiva. No seu Dicionário de Direito de Família e Sucessões, Pereira assim define multiparentalidade: É a família que tem múltiplos pais/mães, isto é, mais de um pai e/ou mais de uma mãe. Geralmente, a multiparentalidade se dá em razão de constituições de novas vínculos conjugais, em que padrastos e madrastas assumem e exercem as funções de pais e mães, paralelamente aos pais biológicos e/ou 33 registrais, ou em substituição a eles e também em casos de inseminação artificial com material genético de terceiros (PEREIRA, 2018). A multiparentalidade constitui forma de reconhecimento judicial dos filhos, através da doutrina e do entendimento jurisprudencial, pois inexiste legislação específica que disponha sobre o assunto. A verdade é que o legislador dificilmente consegue acompanhar as transformações sociais no mesmo passo que elas acontecem, em face das suas complexidades. “Neste compasso, é necessário que os operadores de Direito se socorram de outras fontes do Direito para solução de conflitos de forma mais justa” (LOPES In: SOUZA, 2015, p. 26). É preciso dar atenção àquilo que tem sido recorrente não apenas no Brasil, mas no mundo. E a jurisprudência, quase sempre à frente do legislador, tem buscado acompanhar o desenvolvimento social, neste sentido, conforme se verá nos casos apresentados a seguir (CASSETTARI, 2017). Uma das primeiras decisões que reconheceu a multiparentalidade foi proveniente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por sua Primeira Câmara de Direito Privado e datada de 2012, conferiu a possibilidade de inclusão da mãe socioafetiva no registro civil do filho, sendo mantida a maternidade biológica. Acontece que a genitora veio a falecer três dias após o parto, situação em que o infante passou a ser criado pela madrasta que, anos depois, requereu ao judiciário o reconhecimento da filiação socioafetiva. O pedido de coexistência com o nome materno-biológico no registro civil se deu em razão das particularidades do caso: a morte precoce da genitora e o abalo gerado na comunidade local. Portanto, era importante que o filho mantivesse resguardadas as lembranças da mãe, sendo detentor, também, dos direitos relativos à filiação socioafetiva judicialmente reconhecida. Para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), a socioafetividade tem como pilar os preceitos da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, devendo, portanto, ser reconhecida civilmente aquela que criou e apresentou à sociedade filho como seu, numa relação de afeto e respeito mútuos: 34 EMENTA: MATERNIDADE SOCIOAFETIVA. Preservação da Maternidade Biológica Respeito à memória da mãe biológica, falecida em decorrência do parto, e de sua família - Enteado criado como filho desde dois anos de idade. Filiação socioafetiva que tem amparo no art. 1.593 do Código Civil e decorre da posse do estado de filho, fruto de longa e estável convivência, aliado ao afeto e considerações mútuos, e sua manifestação pública, de forma a não deixar dúvida, a quem não conhece, de que se trata de parentes - A formação da família moderna não consanguínea tem sua base na afetividade e nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade. Recurso provido. (BRASIL, 2012, grifo nosso). Nesse sentido, demonstrou-se o posicionamento atual de que a paternidade socioafetiva prevalece sobre a biológica. Contudo, como se extrai da decisão, já se vislumbra a possibilidade de coexistência da paternidade biológica e socioafetiva, o que configura o reconhecimento judicial da multiparentalidade e os efeitos jurídicos dela inerentes. Também em 2012, houve decisão pelo reconhecimento da multiparentalidade fruto da relação de padrasto. Ainda gestante, a mãe da menor passou a conviver com outra pessoa, que assumiu a criança, quando de seu nascimento, e a registrou como filha. Pouco tempo depois, a relação conjugal chegou ao fim, todavia a relação paterno-filial manteve-se (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). Acontece que a genitora, representando a menor, recorreu ao judiciário para alterar o seu registro de nascimento, a fim de fazer constar o nome do pai biológico. O exame de DNA foi realizado e a paternidade genética confirmada. A partir de então o genitor passou a manter contato com a menor, que também mantinha estreita relação com o pai registral (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). Em seu julgamento, a Justiça rondoniense verificou que tanto o pai socioafetivo quanto o biológico nutriam o desejo de exercer a paternidade. Ao consultar a menor, constatou-se que ficaria muito feliz se pudesse conviver com os dois pais. Diante desse desejo, a Primeira Vara Cível da Comarca de Arquimedes (RO) entendeu que a desconstituição do vínculo parental com o pai registral não atendia ao preceito da primazia do interesse da criança e do adolescente. Além do mais, no caso em tela, não era possível desconsiderar a relação socioafetiva formada (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). O Estado não pode deixar de respeitar e tutelar a relação onde um pai, embora ciente de que o filho não seja seu e já tendo desfeito o liame afetivo com a genitora, decide ofertar assistência moral e material ao filho reconhecido. 35 Desta feita, a sentença proferida foi pela inclusão do nome do pai biológico no registro civil, ao lado do socioafetivo: É mister considerar a manifestação de vontade da autora no sentido de que possui dois pais, aliada ao fato de que o pai registral não deseja negar a paternidade afetiva e o biológico pretende reconhecer a paternidade consanguínea, motivo pelo qual deve ser acolhida a proposta ministerial de reconhecimento da dupla paternidade registral da autora, sendo, dessa forma, julgada procedente a demanda para manter a paternidade registral e determinar a inclusão do pai biológico no assento do nascimento (BRASIL apud CASSETTARI, 2017, p. 121). Em 2013, a Vara da Infância e Juventude da Comarca de Cascavel (PR) reconheceu a multiparentalidade. O caso é interessante, pois retrata a realidade de muitas famílias, reconstituídas após o desfazimento da relação conjugal. Os filhos biológicos passam a conviver com padrastos e madrastas, numa relação estreita, onde as responsabilidades legais relativas ao poder familiar e de titularidade do pai/mãe biológico são exercidas, espontaneamente, pelos seus novos companheiros. O pleito atendido pela justiça paranaense era de adoção de enteado com manutenção do nome do pai biológico no registro civil. Buscava-se o reconhecimento da paternidade socioafetiva do padrasto, sem, contudo, desfazer o vínculo legal entre o pai natural e o menor, haja vista o bom entrosamento entre as partes (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). O pai registral consentia com a adoção, nesses termos, o parecer do Ministério Público foi pela procedência do pedido e o menor demonstrava afeto com ambos os pais. Porém, tratava-se de um fato inédito para o tribunal local e de complexa resolução, uma vez que, de um lado, inexistia na legislação amparo para o pleito; do outro, o caso refletia situações corriqueiras na sociedade contemporânea que precisam de respostas que atendam às necessidades primárias do menor (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). Eis a interpretação dada para o posicionamento do juiz: Não se trata, segundo ele, de criar situações jurídicas inovadoras, fora da abrangência dos princípios constitucionais e legais, mas de um fenômeno de nossos tempos, da pluralidade de modelos familiares, das famílias reconstituídas,que precisa ser enfrentado também pelo Direito, pois são situações em que crianças e adolescentes acabam, na vida real, tendo 36 efetivamente dois pais ou duas mães (BRASIL apud CASSETTARI, 2017, p. 123). Em casos onde o pai natural e o socioafetivo desempenham magistralmente o seu papel, não é justo que o menor tenha que decidir qual dos dois deverá constar no registro civil. É uma situação desconfortável, já que mantém relação íntima de afeto com ambos. Ademais, embora consinta o genitor com a adoção, em seu âmago não deve ser tão simples anuir com o feito de ter a paternidade preterida (CASSETTARI, 2017). Desse modo, tão somente reconhecer a paternidade socioafetiva poderia ocasionar o distanciamento do filho com o pai natural e sua parentela. Aplicar a multiparentalidade no caso foi maneira de conferir a manutenção dos laços afetivos e jurídicos entre os envolvidos e tornar válida, aos olhos do Direito, a realidade fática- social em que o menor é criado pelos genitores genéticos e socioafetivos (BRASIL apud CASSETTARI, 2017). Três casos referentes à multiparentalidade foram decididos em 2014. Em todos foi decretada a inclusão do pai/mãe socioafetivo ao lado do biológico no assentamento de registro civil do filho. Pelo reconhecimento da dupla paternidade/maternidade, foram atribuídos os mesmos direitos e deveres inerentes à filiação aos pais/mãe naturais e afetivos (TARTUCE, 2017b). O primeiro caso foi julgado em fevereiro de 2014 pela Décima Quinta Vara da Família da Capital do Rio de Janeiro; o segundo foi decidido em maio de 2014, pela Terceira Vara Cível de Santana do Livramento (RS); a terceira decisão adveio da Vara da Família de Sobradinho (DF), em junho de 2014 (TARTUCE, 2017b). Em 16 de julho de 2015, a Oitava Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS) reconheceu a multiparentalidade formada por padrasto e enteada, em um pedido de adoção com a manutenção do pai biológico no assentamento de registro civil. O reconhecimento se deu em face da autora ter sido criada pelo padrasto, tendo o pai natural, constante em seu registro de nascimento, falecido quando ainda era criança. A manutenção não apenas do genitor biológico, como também do patronímico deste, seria um modo de alimentar as lembranças do pai. O recurso foi provido e o padrasto pôde então adotar a enteada e acrescentar o seu sobrenome ao nome da filha, ao lado do sobrenome do pai natural: 37 Apelação cível. Ação de adoção. Padrasto e enteada. Pedido de reconhecimento da adoção com a manutenção do pai biológico. Multiparentalidade. Observada a hipótese da existência de dois vínculos paternos, caracterizada está a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade. Deram provimento ao apelo (BRASIL, 2015). A multiparentalidade foi objeto da decisão emanada em 03 de fevereiro de 2016, pela Terceira Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJDFT). Conforme o tribunal, o interesse da criança deve estar acima de quaisquer outros, razão pela qual, mesmo diante da vontade do pai biológico de assumir a responsabilidade paternal, a paternidade constituída pelo afeto não deve ser desconsiderada. De modo semelhante, o pai que, induzido a erro, não pode exercer o seu devido papel, e, a posteriori, confirmar o parentesco natural, não deve ser impedido de fazê-lo. Para o desembargador Flávio Rostirola, a multiparentalidade surge como instrumento a contrabalancear os casos em que a socioafetividade tornou-se elemento de ligação entre pai/mãe e filho, mas existe o interesse da convivência, dos direitos e também dos deveres por parte do pai/mãe biológico. Nesse mister, não há que se escolher a paternidade registral em detrimento da afetiva, ou vice-versa. Se ambas representam o melhor para o menor, ambas devem coexistir: [...]. 2. O direito de família deve ser sempre regulamentado em face dos interesses do menor, vulnerável na relação familiar, a fim de lhe propiciar bem-estar e bom desenvolvimento não somente físico, mas moral e psicológico, elementos integrantes da dignidade da pessoa humana, princípio fundamental do ordenamento jurídico pátrio. 3. O mero vínculo genético, por si só, não é suficiente para afastar a paternidade de cunho afetiva. Em algumas situações, a filiação afetiva pode-se sobrelevar à filiação biológica, em razão da relação de carinho e afetividade construída com o decorrer do tempo entre pai e filho. 4. Há que se enaltecer a importância da convivência tanto materna quanto paterna, ao passo em que o direito do menor de conviver com seu pai afetivo mostra-se de fundamental relevância para o desenvolvimento e formação da criança, máxime quando inexiste qualquer motivo que não a recomende. 5. O reconhecimento da paternidade biológica fundamentado em exame de DNA, sobretudo, em caso de o pai biológico haver incidido em erro quanto à verdadeira paternidade biológica da criança, merece ser reconhecida quando o pai demonstra interesse em exercer o seu papel em relação ao filho, dispensando-lhe cuidado, sustento e afeto. 6. O conceito de multiparentalidade exsurge, pois, como uma opção intermediária em favor do filho que ostenta vínculo de afetividade com o pai afetivo e com o pai registral, sem que se tenha de sobrepor uma paternidade à outra. Não há critério que possa definir preferência entre as duas formas de paternidade, 38 sobretudo, quando há vínculo afetivo do menor tanto com o pai registral, como em relação ao pai biológico. 7. Rejeitou-se a preliminar. Negou-se provimento aos apelos (BRASIL, 2016a, grifo nosso). Em 21 de setembro de 2016, um grande passo foi dado em relação à viabilidade jurídica da multiparentalidade. O STF reconheceu a Repercussão Geral do tema do Recurso Extraordinário 898060/SC. Nos exatos termos, “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.” Para o Colendo Tribunal, é preciso reconhecer os novos arranjos sociais, nem sempre harmônicos aos tradicionais, em respeito à dignidade humana dos indivíduos. O direito à busca pela felicidade inclui a aceitação e a proteção das relações fundadas no afeto. Não deve subsistir, desta feita, a prevalência de determinada espécie de paternidade, se o caso concreto confirma que ambas configuram o que de melhor pode ser ofertado para a criança e o adolescente. Enquanto o legislador mantiver-se omisso sobre o tema, a pluriparentalidade deve ser aceita, gozando os seus sujeitos de todos os efeitos jurídicos decorrentes do vínculo de filiação. Na votação do recurso em apreço, restou vencido o voto do ministro Edson Fachin, a quem a parentalidade socioafetiva reveste-se da mesma dignidade do vínculo estabelecido por adoção judicial. Assim, constatada a socioafetividade, o parentesco biológico deve ser afastado. Não muito diferente foi o também voto vencido do ministro Teori Zavascki, que manifestou-se pela inaplicabilidade dos efeitos jurídicos decorrentes da paternidade biológica, se a paternidade socioafetiva já se estabelecera, posto não ser esta última menos importante que a primeira. A decisão consta no Informativo STF n. 840, de 26 de setembro de 2016, assim transcrita: REPERCUSSÃO GERAL. Vínculo de filiação e reconhecimento de paternidade biológica. A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios. Com base nesse entendimento, o Plenário, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário em que se discutia a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. No caso, a autora, ora recorrida, é filha biológica do recorrente, conforme demonstrado por exames de DNA. Por 39
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