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belicoso Marte, quanto do brando e doce Apolo, apenas os campeões da "antiga glória" podem cantar vitória, e o fazem brandindo com mestria o ornato poético. Na defesa conduzida por Clio, o ornato, longe de supérfluo, é a primeira condição e estímulo dos feitos históricos, o que certamente está de acordo com os principais modelos da poesia seiscentista. Desta sorte, derrotado pelo discurso da musa histórica, Momo é ainda novamente condenado pela sentença final de Apolo que, para máximo castigo seu e honra da poesia, manda que os deuses ali presentes reúnam e publiquem as obras admiráveis do passado que o tempo "gastador e furibundo pretendera acabar entre os humanos". Ou seja, os esforços de produção das antologias da Fênix Renascida e do Postilhão de Apolo são concebidos por seus organizadores como atos que devem "servir de defensivo" contra os adeptos modernos de Momo, "invejoso e vingativo", que reduzem a poesia a uma verdade escrita "sem suspeita", "sem lisonja", "claramente", como propõe o programa ilustrado que começa a ganhar corpo, mesmo em Portugal. É, portanto, nos termos da produção de uma resistência à iconoclastia de novos paradigmas, ou de uma defesa da herança seiscentista sob ataque recente que as duas antologias são organizadas. Isto dito, nada faz supor que tal ato de resistência, que se apropria da poesia dos seiscentos, ainda faça sentido ou seja necessário neste início de século XXI que, bem ao contrário, vive quase uma euforia do barroco. Partilham-na pós-colonialistas internacionalistas (supondo o "barroco" como linguagem sem doutrina, capaz de sustentar as diferenças culturais de um mundo globalizado), neobarrocos ou latinoamericanistas tardios (que vêem nele uma identidade do resistente oprimido frente à despersonalização do imperialismo capitalista opressor), nacionalistas e concretistas (para aos quais a produção colonial do período 'barroco' deve ser admitida como obra de arte nativa, capaz de definir precocemente um processo de autonomização da poesia brasileira, que não precisaria esperar pelos românticos ou pela semana de 22), regionalistas de vária procedência (segundo os quais a produção 'barroca' seria signo da riqueza do passado baiano- mineiro, senão também do carioca-pernambucano) etc. etc. O mais curioso de tudo, entretanto, é que tamanha euforia do "barroco" ocorre a despeito da leitura ou do simples conhecimento particular da poesia produzida no período. No Brasil, essa poesia é menos do que pouco lida: está praticamente zerada, a não ser por uns poucos e inevitáveis trechos de Gregório. Em geral, não passa de referência vaga em histórias literárias cuja espinha dorsal a supõe apenas como uma etapa inevitável, burocrática ou mal sofrida de uma formação autônoma superior, seja em termos intelectuais, seja especificamente poéticos. 150