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REGÊNCIA DE BANDA, CORO E ORQUESTRA AULA 1 Prof. José Luis Manrique 2 CONVERSA INICIAL Os grupos musicais como as bandas, os coros e as orquestras são espaços que promovem a socialização entre cantores e instrumentistas e contribuem para o desenvolvimento musical e humano de cada pessoa. No meio destas formações, a figura do regente aparece como elemento norteador da prática do conjunto. Alguns cantores e instrumentistas ficarão entusiasmados com a ideia de algum dia estar à frente de um grupo musical, coisa que é muito salutar, mas para isso é necessária uma preparação específica. Algumas pessoas demonstrarão, pela sua vivência pessoal, maior ou menor facilidade ao desempenhar esta função, o que não exime ninguém do dever de aprimorar sua própria percepção estética e seus gestos, eliminando ruídos, buscando uma interpretação verdadeiramente artística, contribuindo com seu meio cultural e promovendo uma atividade musical saudável e frutuosa. Para iniciar com este aprimoramento direcionado à regência, nesta aula exploraremos os principais elementos, a emissão e recepção do capital artístico, os cenários vocais e instrumentais brasileiros e os passos sugeridos para a preparação de uma interpretação musical. TEMA 1 – ELEMENTOS DA REGÊNCIA A história da regência, como conhecida globalmente hoje, tem seu desenvolvimento na cultura ocidental. Embora muitos povos ao redor do mundo dentro da sua prática musical possuam um líder que conduza a outros na prática musical coletiva, é no contexto europeu que aparece a figura do regente propriamente. Nesse sentido, é importante para o regente conhecer este desenvolvimento que passa por diversas épocas, cada uma com as suas necessidades particulares. Brevemente pode-se apontar que a necessidade da figura do regente nasce na Antiguidade com duas possibilidades: a marcação sonora por meio de batidas ou canto, e a condução por meio de gestos, conhecida como quironômica. Na Figura 1, mostra-se um exemplo de canto gregoriano em notação quadrada, com sua transcrição em notação moderna assinalando a regência quironômica com linhas curvas que acompanham a melodia da partitura. 3 Figura 1 – Exemplo de movimentos de regência quironômica gregoriana Fonte: Carrol, 1955, p. 28. Na Idade Média estes líderes de grupos musicais passaram a ser também os educadores, caraterística enfatizada nos momentos de ensaio e preparação. Depois, na Renascença e no Barroco, aparecem como peças-chave também nos momentos interpretativos, dividindo a atenção entre dirigir a interpretação musical do grupo e participar como instrumentistas, geralmente no cravo ou no violino (Zander, 2003, p. 30-44). É só no período clássico que, “pelas inovações instrumentais introduzidas por Mannheim1 e pelo sinfonismo clássico de Haydn e Mozart”, a regência passa a ser necessária e exclusivamente dedicada a uma pessoa específica, a quem hoje chamamos de regente (Lago, 2008, p. 25). Com este breve resumo da origem da regência, destaca-se que esta atividade não foi inventada do dia para a noite, pelo contrário, obedece a um longo processo evolutivo da prática musical ocidental e com a colaboração de várias gerações de músicos. Uma vez que o regente é líder, educador e intérprete, ele precisa explorar as possibilidades que a fruição da arte propõem desde a reflexão estética. Assim, o regente é chamado, no seu fazer artístico, a assimilar que “a arte não é somente executar, produzir, realizar, e o simples “fazer” não basta para definir sua essência. A arte é também invenção” (Pareyson, 2001, p. 25). Isto quer dizer que o regente não se limita a executar um plano consagrado de regência para cada obra já existente, mas que ele precisa estudar, inovar, ou inventar novas abordagens a partir de novos contextos inseridos numa determinada cultura. 1 A Escola de Mannhein foi uma importante escola alemã que surgiu mais ou menos pela metade do século XVIII. (Zander, 2003, p. 44-45) 4 Desta forma, a arte se mantém viva por meio das infinitas possibilidades de interpretação de uma mesma obra, nas mãos de regentes que não apenas desenvolvem um bom artesanato musical, mas que inventam novas formas de aprofundar nas próprias obras com base em uma vivência particular e concreta. Complementarmente a estar situado historicamente e possuir um pensamento estético aprimorado, a pessoa do regente precisa ser um bom músico. Ou seja, conhecer profundamente sobre o artesanato da música, também chamado de técnica musical, teórica e prática. Nas palavras do maestro Emanuel Martinez, o regente precisa de quatro atributos essenciais: “a) percepção musical acurada, b) discernimento auditivo de intervalos melódicos e harmônicos, c) sentido rítmico firme e constante, ser um comunicador e até certo ponto um pedagogo” (Martinez, 2000, p. 38). O seguinte elemento a ser trabalhado nesta atividade musical é a comunicação. Por um lado, possuir um vocabulário linguístico verbal apropriado, conciso e assertivo com os cantores e instrumentistas, por outro, desenvolver um repertório gestual e corporal que permita uma expressão artística eficiente de acordo com cada obra e estilo musical. Aqui aparece claramente a importância do corpo como instrumento de comunicação e seus devidos cuidados. O maestro Jorge Geraldo, na sua tese de doutorado em música, estuda este aspecto dos cuidados: As evidências apontam que o regente está sob riscos associados aos movimentos repetitivos, postura, uso excessivo da voz e aspectos ambientais que podem ser minimizados através da conscientização dos profissionais e oferecimento de informações sobre prevenção. Muitos dos problemas podem ser evitados de forma relativamente simples o que reduz custos econômicos com o afastamento das atividades de trabalho e ações de reabilitação nos casos em que houve lesão grave ou acometimento por doença. (Geraldo, 2019, p. 117) Nesse sentido, nesta mesma tese, intitulada “Evidências do impacto ocupacional da atividade da regência e sugestões de prevenção”, aparecem algumas sugestões de aquecimento (warm-up) para regentes, com a intenção de que estas lesões e doenças não apareçam e acabem colocando em risco a carreira profissional de qualquer regente. Na Figura 2 mostram-se alguns dos exercícios incluídos no material citado. 5 Figura 2 – Alongamento de membros inferiores Créditos: Elias Aleixo. Esta série de exercícios sugeridos consta de 11 passos a serem realizados antes das apresentações e dos ensaios. Inclusive, alguns deles são recomendados para fazer durante o intervalo de ensaios mais longos ou no final das atividades. Finalmente, para complementar esta visão ampla da regência, é necessário dizer que o regente não só se ocupa das questões musicais, mas também das extramusicais. Um regente à frente de um grupo artístico também precisa se preocupar de questões administrativas, como o número de cadeiras e estantes para seu grupo, especificidades de transporte de instrumentos em caso de viagem ou até o tipo de alimento que os cantores vão consumir na recepção do teatro na qual serão acolhidos. TEMA 2 – EMISSÃO E RECEPÇÃO DE CAPITAL ARTÍSTICO Na introdução da tese de doutorado “O amor pela música”, o regente e trompetista Jorge Scheffer inicia o discurso questionando o motivo pelo qual as pessoas decidem sair de casa para assistir uma apresentação ao vivo. Nesta abordagem, percebe-se que a música, entendida como sons organizados pelo 6 ser humano, é permeada por um campo maior de relações humanas, entre indivíduos que fazem parte de uma coletividade, em que a prática sonora é significativa na sociedade na qual está inserida, despertando emoções e impactando na vida das pessoas. Assim, nesse estreitamento e ampliação do relacionamento entre seres humanos que a música propõe,o regente não deve se preocupar apenas pela qualidade da música, mas também incluir todas as ações que envolvem as pessoas na participação de uma performance. Alargando o conceito de música no seu fazer musical, amplo e coletivo, a experiência musical não é elaborada apenas com os intérpretes e compositores das obras, mas também com o público, na sua tarefa de decodificação prazerosa dos códigos linguísticos e com o importante trabalho dos agentes culturais encarregados de toda a administração e logística envolvida (Cf. Scheffer, 2019, p. 23-26). Figura 3 – O regente como articulador da prática musical Todos estes atores presentes na Figura 3, incluindo o regente, estão articulados para que exista uma emissão e uma recepção de elementos musicais os quais diferenciam uma determinada obra de outras. Aqui entendemos que emissão é “atualização de um processo de interlocução entre vários discursos, manifestações de diálogos, entre os mais diversos gêneros e [...] épocas”, enquanto recepção é uma ressignificação do que se “ouve, vê ou lê, apropriando- se daquilo a partir da sua cultura, do universo de sua classe, para incorporar ou não a suas práticas” (Baccega citado por Scheffer, 2019, p. 41). Assim, os elementos musicais e traços estilísticos que uma obra carrega são chamados de capital artístico. Isto quer dizer que o papel do regente implica em cuidar e colaborar com que este fluxo de capital artístico aconteça da melhor maneira 7 entre todos os envolvidos: compositores, intérpretes, público e agentes culturais (Scheffer, 2019, p. 36-37). Em termos práticos, é possível que esse fluxo artístico não aconteça por falta de codificação ou decodificação. Quando o regente lê ou decodifica uma partitura para revelar a música contida nela, precisa de um estudo maior do que simplesmente tocar o que está escrito musicalmente, pois a partitura não é suficiente para codificar o que uma obra é por completo. Ao estudar a época, a vida do autor e as características interpretativas, é possível ter uma visão mais ampla da obra, o que vai proporcionar informações importantes para uma interpretação verdadeiramente artística e que colaboram com a experiência musical como um todo, na relação entre as pessoas e sua coletividade no momento da apresentação. A segunda parte do esforço é munir o público com as capacidades necessárias para poder decodificar estas informações, envolvendo-o no fluxo do capital artístico e oportunizando uma fruição da arte plena. Será que o público de determinado contexto conseguirá diferenciar uma obra de Mozart de uma de Debussy dentro do repertório da música erudita ocidental? Ou uma salsa de um merengue entre os ritmos latino-americanos? Ou ainda um forró de um samba, falando de música brasileira? Tudo isto vai depender da realidade cultural do público para o qual o regente vai preparar determinado repertório, e terão que ser propostos meios pelos quais o público seja capaz de entrar e envolver-se no fluxo do capital artístico, afetando-o cognitiva, sensorial e espiritualmente. TEMA 3 – O CENÁRIO VOCAL BRASILEIRO A prática coral no Brasil é amplamente difundida e apoiada por diversas instituições, públicas e privadas. Isto se deve não só ao simples gosto pela música, mas também por toda a articulação humana e social que traz tal capital artístico. Não significa que a música vocal/coral nestes casos seja um interesse secundário, pelo contrário, afirma-se que sua prática intrinsecamente afeta aos grupos humanos de maneira particular. Isto fica evidente nas palavras do maestro Carlos Alberto Figueiredo: Cantar em coro deveria ser sempre uma experiência de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo: o desenvolvimento da musicalidade e da capacidade de se expressar através de sua voz; a possibilidade de vir a executar obras que tocam 8 tanto no cognitivo quanto no coração, ensejando o crescimento intelectual e afetivo do cantor e de outros agentes envolvidos; o desenvolvimento da sociabilidade e da capacidade de exercer uma atividade em conjunto, onde existem os momentos certos para se projetar e se recolher, para dar e receber. (Lakschevitz, 2006, p. 9) Percebe-se também um alerta, ao dizer que o coro nem sempre é uma experiência de desenvolvimento e crescimento, individual e coletivo. Isto pode ser provocado pela condução do próprio regente, com posturas muito rígidas e autoritárias, ou colocando padrões estéticos e/ou repertórios não adequados para as capacidades dos coralistas, gerando rejeição, sensação de incapacidade e frustração. O que deve ser uma oportunidade ímpar, pode chegar a ser uma mortificação, principalmente quando os integrantes não estão ali por uma vontade inicial própria, mas por uma exigência de plano curricular, laboral, prática religiosa ou outra forma de necessidade. Numa entrevista2 com a maestrina Haydée Gorosito, ao ser questionada sobre o que a prática do coral traz às pessoas, ela responde que uma coisa fundamental é a alegria. É ali que começa toda a disponibilidade de espírito de uma pessoa para o que se lhe apresente como desafio. Por outro lado, “a atividade coral é associativa por excelência, sendo um trabalho de equipe, que, bem conduzido, prepara indivíduos para uma convivência positiva em sociedade” (Lakschevitz, 2006, p. 17). Desta forma, escolas, universidades, empresas, municípios, grupos de pessoas idosas, confissões religiosas e outras formas de coletividade apostam na prática coral como uma ferramenta de desenvolvimento humano integral; e cada um destes espaços apresentará desafios e especificidades diferentes, demandando do regente uma capacitação específica para cada entorno. Gorosito, nesta entrevista mencionada anteriormente, também afirma que o coral é um espaço privilegiado para a musicalização de uma pessoa que nunca teve estudos formais de música. Figueiredo, por sua vez, complementa que além da musicalização, a prática coral promove o desenvolvimento do cantor em questões de afinação, emissão vocal, leitura e percepção de forma; elementos valiosíssimos para um crescimento gradativo na capacidade interpretativa de repertórios cada vez mais exigentes (Lakschevitz, 2006, p. 16-25). As interações humanas dentro do coral também provocam interações macro com outros coros, que se expandem envolvendo a sociedade toda. Os 2 A entrevista está disponível em: <https://youtu.be/GWw7uk0ohMs>. Acesso em: 2 ago. 2021. 9 encontros de coros e festivais a nível regional, estatal, nacional e internacional são motores propulsores no âmbito social e econômico das cidades, promovendo valores humanos universais e uma cultura de irmandade e paz. Como exemplo, podemos mencionar na cidade de Curitiba/PR a Semana de Canto Coral Henrique de Curitiba e o Festival Internacional de Corais de Curitiba (Cantoritiba)3. TEMA 4 – O CENÁRIO INSTRUMENTAL BRASILEIRO O cenário da prática instrumental em conjunto no Brasil também é bastante apreciado, embora possua especificidades que se diferenciam com os da experiência coral. Uma primeira diferença para poder oportunizar esta prática é o investimento econômico, que é envolvido para chegar a resultados plausíveis. Diferentemente do cantor, a prática instrumental logicamente demanda a compra de instrumentos, em que sua qualidade está diretamente relacionada com o valor monetário, escapando muitas vezes do orçamento dos próprios instrumentistas iniciantes e dos projetos sociais e institucionais. No caso de propostas culturais com instrumentistas profissionais, a questão econômica também repercute no caso da manutenção de orquestras numerosas e suas necessidades. Scheffer comenta esta questão e expande: No caso das orquestras – que necessitam de um alto investimento estatal ou privado para a sua manutenção, bem como, que constroem as temporadas com programas de concerto que privilegiamem grande parte a música escrita nos últimos cinco séculos – existem significativas preocupações na elaboração de novas estratégias que permitam uma adaptação aos novos conceitos relacionados ao gosto musical, às formas de se relacionar com a percepção musical e, principalmente, na busca da renovação do público que frequenta as salas de concerto. (Scheffer, 2019, p. 31) Outra diferença que aparece aqui, e que impacta diretamente no fluxo do capital artístico, é que a música puramente instrumental não conta com a mediação da linguagem verbal dentro da sua expressão de sensações e emoções, dando mais liberdade e possibilidades ao imaginário das pessoas, mas, por outro lado, demandando maior compromisso estético e uma escuta mais aprimorada por parte do ouvinte comum; isto para poder decodificar as 3 Um vídeo institucional do V Festival Internacional de Corais de Curitiba está disponível aqui: <https://youtu.be/rOIf5y74qXE>. Acesso em: 2 ago. 2021. 10 informações sensoriais e fazer parte ativa da experiência instrumental. Este ponto é reforçado com a visão de Scheffer sobre o gosto e percepção musical. Assim como acontece com a música coral, no meio cultural brasileiro existem diversas propostas de festivais e congressos que promovem o encontro dos instrumentistas segundo suas famílias instrumentais, gêneros musicais e outros vínculos de interesse comum. Como exemplo, pode-se mencionar o Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão4, dentro da especialidade de música sinfônica e de câmara. TEMA 5 – PREPARAÇÃO DE UMA INTERPRETAÇÃO MUSICAL O material inicial da preparação para uma interpretação musical geralmente é uma partitura. Nela encontramos os elementos básicos que foram possíveis capturar segundo as possibilidades e tendências de cada época. Mas na partitura não estão contidos todos os elementos necessários para a interpretação. Por esse motivo, o regente está obrigado a investigar sobre a vida da obra, ou seja, o contexto em que ela foi composta, as tendências estilísticas da época, de seu contexto cultural e a vida e pensamento do compositor. Todos esses dados repercutirão na capacidade interpretativa do regente no momento de tomar decisões estéticas e planejar a emissão e recepção do capital artístico da obra. Esta investigação prévia também servirá inclusive na escolha da edição da partitura a ser utilizada, procurando uma interpretação historicamente informada. Quanto mais antiga uma obra musical, maior a probabilidade de esta ter sofrido modificações na sua escrita musical ao longo do tempo. O maestro Figueiredo alerta sobre a questão: Nesse processo de transmissão a obra vai, inevitavelmente, sofrendo modificações, já que em cada etapa do processo há agentes modificadores – copistas e editores – que interpretam os dados escritos, segundo as convenções de escrita, auditivas e de execução válidas para esses agentes e seu meio cultural. (Lakschevitz, 2006, p. 31) Agora, focando mais na parte técnico-musical, o professor e maestro Joseph A. Labuta sugere três passos básicos para o estudo de uma partitura. O 4 Um vídeo institucional do 49º Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, que inclui depoimentos dos participantes, está disponível aqui: <https://youtu.be/Of4LGHYQSIg>. Acesso em: 2 ago. 2021. 11 primeiro passo é explorar a partitura, tendo uma ideia geral da estrutura da obra com base em sua escrita, identificando, por exemplo, a forma musical, motivos rítmicos e melódicos, tonalidade, modalidade ou atonalidade, formação instrumental, tessitura das vozes etc. O segundo passo é antecipar os desafios de regência, pontos em que a técnica de regência precise ser aprimorada e/ou o repertório gestual precise ser incrementado ante uma estética musical ainda não explorada. Aqui sugere-se estabelecer uma linha de regência que é a criação de uma linha melódica/rítmica adicional, criada com base nos materiais musicais mais importantes da obra. Finalmente, o terceiro passo consiste em identificar os desafios para o grupo, momento no qual é possível pensar em exercícios para serem propostos ao grupo e assim facilitar a assertividade de um determinado trecho, como parte das estratégias de ensaio (cf. Labuta, 2008, p. 74-76). Uma vez que já exploramos todos os itens acima mencionados, é salutar procurar referências interpretativas em áudio ou vídeo. Esta procura de referências nunca se faz com a intenção de copiar uma interpretação, mas de comparar a nossa investigação musical e preparação técnica com as abordagens de outros regentes, enriquecendo o processo interpretativo com outros olhares diferentes do próprio. NA PRÁTICA Como exemplo prático, retomaremos a reflexão sobre o capital artístico. Um dos subsídios mais comuns com o qual o público consegue entrar na dinâmica do fluxo do capital artístico é o programa de concerto. O programa de concerto, comumente impresso e distribuído a cada pessoa na entrada do evento, é um folheto que reúne informações relevantes sobre as músicas que serão executadas, seus respectivos compositores e dados do grupo artístico, o projeto, os agentes culturais e os patrocínios. 12 Figura 4 – Recorte de programa de concerto Fonte: Sesi, 2015. No exemplo da Figura 4, que mostra parte de um programa de concerto, encontramos informações sobre o projeto e a poética que o sustenta, a numeração das músicas e seus compositores na ordem em que serão apresentadas e os intérpretes que executarão as peças. Na seção seguinte da íntegra do programa, aparece o descritivo de cada peça e compositor, dos quais pode-se apreciar um exemplo na parte direita da figura exposta. Este descritivo é particularmente importante ao tratar-se de um concerto de obras inéditas, estreias, peças que serão apreciadas pela primeira vez por uma audiência pública. No caso da música Ayllu ruru5, de estética contemporânea, especifica- se o nome do autor e procedência da letra extraída de um poema, que na sequência é apresentado junto com a sua tradução por estar numa língua ancestral. Por último, aparece um breve resumo sobre o compositor. Este exemplo permite compreender melhor a função do programa de concerto e como este contribui com o fluxo do capital artístico. Apenas com a audição da obra, que aconteceu em Curitiba, Paraná, seria muito difícil que o 5O registro audiovisual da estreia da obra no qual foi utilizado este programa de concerto encontra-se disponível em: <https://youtu.be/IKCtzFWbwoA>. A cesso em: 2 ago. 2021. 13 ouvinte brasileiro médio se conectasse com a ancestralidade de uma obra em idioma quéchua6 de um povoado dos Andes peruanos, numa releitura contemporânea feita por um compositor peruano radicado na cidade da estreia com referências estilísticas da sua própria cultura. Qualquer mediação cultural, seja ela próxima ou afastada da realidade cultural do público, precisa deste tipo de subsídios para promover a participação da plateia, em diferentes níveis, da experiência coletiva do fazer musical. FINALIZANDO Uma regência consolidada na sua base histórica, respeitando a saúde do corpo, interessada pelos processos cognitivos e afetivos do seu grupo, comunicando eficientemente suas ideias, atendendo as demandas logísticas da prática musical, com uma devida imersão estética e cumprindo seu papel no fluxo do capital artístico, será uma regência que contribui com o atual cenário vocal e instrumental da comunidade, do país e do mundo. O desafio está posto para aqueles que, com alma caridosa e aberta, aceitem trabalhar em prol da experiência musical das pessoas sem emitir o mínimo som, em que toda sua carreira estará submetida aos resultados sonoros dos outros. Quando os resultados são bons, músicos e plateia sabem reconhecer e expressar muito bem sua gratidão. Quando os resultados não chegam ao esperado, é tempode rever os passos trilhados, revisar e melhorar. Sem poder escapar destas duas situações necessárias no crescimento de um regente, é possível afirmar que a regência brinda intermináveis momentos de alegria e deleite estético. 6 Idioma oficial do Império Inca pré-colombiano, utilizado até nossos dias pelas comunidades andinas de América do Sul. 14 REFERÊNCIAS CANTORITIBA. Festival Internacional de Corais de Curitiba. Disponível em: <https://youtu.be/rOIf5y74qXE>. Acesso em: 30 jul. 2021. CARROL, J. The Technique of Gregorian Chironomy. Ohio: Gregorian Institute of America, 1955. FCC. Inscrições abertas para as oficinas da Semana de Canto Coral. Fundação Cultural de Curitiba. Disponível em: <http://www.fundacaoculturaldecuritiba.com.br/musica/noticias/inscricoes- abertas-para-as-oficinas-da-semana-de-canto-coral>. Acesso em: 30 jul. 2021. 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Amor pela música: sobre o fluxo do capital artístico entre a orquestra e o público. Tese de doutorado em música – Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2019. 15 SESI. Cinco Líricas Imaginárias. Núcleo de compositores SESI-EMBAP. Programa de concerto. Curitiba: Centro Cultural Sesi Heitor Stockler de França, 2015. ZANDER, O. Regência coral. 5. ed. Porto Alegre: Movimento, 2003.