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1 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 2 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 3 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz Alba Krishna Topan Feldman Ruan Fellipe Munhoz Organizadores PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS: IRROMPENDO A LITERATURA CONVENCIONAL 4 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS FICHA CATALOGRÁFICA F312 Feldman, Alba Krishna Topan; Munhoz, Ruan Fellipe (Org.) Perspectivas multiculturais e pós-coloniais: irrompendo a literatura convencional / Alba Krishna Topan Feldman; Ruan Fellipe Munhoz (Org.) - Maringá: Editora Trema, 2019. 226 p.: 15x21 cm ISBN 978-65-80781-05-8 1. Estudos literários. 2. Multiculturalismo. 3. Pós-colonialismo. I. Título CDU 82.091 DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução por qualquer processo mecânico, eletrônico, reprográfico, etc., sem a autorização, por escrito, dos autores. PRODUÇÃO EDITORIAL Claudine Lisboa Delgado CONSELHO EDITORIAL Prof. Dr. Tiago Valenciano - Presidente do Conselho Editorial Prof. Dra. Adriana Dalla Vecchia Prof. Dra. Alba Krishna Topan Feldman Prof. Dra. Annelise Nani da Fonseca Prof. Dra. Elaine De Moraes Santos Prof. Dra. Érica Daniele Silva Prof. Dra. Franciele Monique Scopetc dos Santos Prof. Dra. Juliana da Silveira Prof. Dr. Marcelo Augusto Pirateli Prof. Dr. Marcus Vinicius Araujo Batista de Matos Prof. Dra. Maria Carolina de Godoy Prof. Dr. Michel de Lucena Costa Prof. Dr. Rodrigo Pedro Casteleira Prof. Dr. Rones de Deus Paranhos Prof. Dra. Rosângela Jovino Alves Prof. Dr. Samilo Takara Prof. Dra. Viviane Cristina Poletto Lugli PROJETO GRÁFICO Tiago Valenciano REVISÃO Fernanda Garcia Cassiano Marcele Aires CAPA Leonardo Boff Rodrigues IMPRESSÃO Gráfica Midiograf 5 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 6 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 7 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz Ao professor Thomas Bonnici, pois sem seu legado de pesquisa e inspiração esta obra não seria possível. 8 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 9 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz PREFÁCIO Thomas Bonnici.................................................................................................13 APRESENTAÇÃO Alba Krishna Topan Feldman Ruan Fellipe Munhoz........................................................................................21 ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA E CONTINUIDADE NO DISCURSO DE GRUPOS ÉTNICOS COLONIZADOS: REFLEXÕES TEÓRICAS Alba Krishna Topan Feldman Nelci Alves Coelho Silvestre.............................................................................31 RESISTÊNCIA NO EPÍLOGO DE CROSSING THE RIVER, DE CARYL PHILLIPS Geniane Diamante Ferreira Ferreira...............................................................57 MULHERES, ESTEREÓTIPOS E METAFICÇÃO NA OBRA A RESPOSTA (2015), DE KATHRYN STOCKETT Luiz H. Santos Cordeiro....................................................................................81 A PERSONAGEM MITOLÓGICA FEMININA FORMADORA DA IDENTIDADE DA MULHER INDIANA Luiz Sérgio Alzair Alzão..................................................................................101 SUMÁRIO 10 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS MOÇAMBIQUE MULTICULTURAL EM NIKETCHE: UMA HISTÓRIA DE POLIGAMIA Thamiris Alves da Silva..................................................................................123 O SOM DO SILÊNCIO: OS SILÊNCIOS E SILENCIAMENTOS DE GERALDINE NA OBRA THE ROUND HOUSE, DE LOUISE ERDRICH Marcos Vinicius Rodrigues da Costa............................................................143 A IMPOSIÇÃO E A SIGNIFICAÇÃO DO SILÊNCIO DE UMA MULHER NEGRA EM VIAJE AL OTRO BRASIL Ruan Fellipe Munhoz......................................................................................165 CULTO À IMAGEM E ENVELHECIMENTO FEMININO EM MILAMOR, DE LIVIA GARCIA-ROZA Marcela Gizeli Batalini....................................................................................177 O HUMANO E O ANIMAL NA PERSONAGEM MARTIM DO ROMANCE A MACÃ NO ESCURO, DE CLARICE LISPECTOR Adriana Gomes Cardozo de Andrade Evely Vânia Libanori.......................................................................................191 LEITURA E AFRO-BRASILIDADE: UM PERCURSO DO AFETO EM NARRATIVAS DA LITERATURA INFANTOJUVENIL Profa. Dra. Maria Carolina de Godoy (UEL)...............................................207 SOBRE OS AUTORES...................................................................................221 11 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 12 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 13 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz O convite para escrever o prefácio de uma obra desta natureza, a envolver vários professores do Depar- tamento de Línguas e Literaturas Modernas, da Uni- versidade Estadual de Maringá, que versa sobre temas diversos de Literatura, ao mesmo tempo integrados, como Multiculturalismo, Pós-colonialismo, Gênero, Resistência, Racismo e outros, é uma honra e uma res- ponsabilidade. Perspectivas Multiculturais e Pós-colo- niais é um livro que demonstra o dinamismo do Grupo de Trabalho envolvido e seu engajamento na formação de estudantes de graduação e de pós-graduação, em ní- veis diversos. É de grande valia perceber que a UEM foi a alma mater dos autores, aqui, amadurecidos por conteúdos, investigações e experiências, a proporcionar aos leitores os produtos de suas pesquisas. Quando, em 1984, o Prof. Silvestre Böing con- vidou-me para integrar o pequeno grupo de professo- res de Literatura Inglesa e Norte-Americana, junto à Universidade Estadual de Maringá, após o derrame fa- tal do Prof. Giovanni Bonardelli, aceitei o convite, mas PREFÁCIO 14 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS fiquei perplexo em como enfrentaria o ensino das disciplinas do currículo no complexo estágio sócio-político no qual o Brasil estava no momento, bem como a ensinar a alunos latino-americanos em uma língua e com li- teraturas alheias à sua cultura, sem perpetuar o colonialismo cultural. É um tema que vem sendo investigado desde os trabalhos pioneiros do nige- riano Achebe e do queniano Ngugi. Neste livro, em específico, a discussão é introduzida e aprofundada nos capítulos escritos por Topan Feldman, Coelho Silvestre e Diamante Ferreira, as quais demonstram o dilema e a ambiguidade do professor consciente de sua missão crítica e da resistência dos grupos étnicos colonizados. A complexidade de meu dilema inicial foi ainda maior porque, na universidade estrangeira em que me formei, a Teoria Literária, como tal, era incipiente e a Crítica Literária era algo subjetivo e não sustentada em princípios científicos. Demorariam décadas para a gramática da narrativa conhecer a luz e enveredar pelos assuntos de gênero, diversidade e digni- dade humana. Precisamente é isso que os capítulos de Rodrigues da Cos- ta e de Alzair Alzão ensejam: aprofundam a quebra da personalidade da mulher pelo estupro e a tentativa de reconstruir a identidade pelo silêncio, pelo recurso a arquétipos e pela mitologia. Num viés diferente, os capítulos de Santos Cordeiro, Alves da Silva e Munhoz versam sobre a mulher ne- gra (brasileira, estadunidense e moçambicana), seu fascínio à rebeldia, sua resistência à domesticação, sua penetração por caminhos desconhecidos para compreender a diferença. A investigação desses textos é realmente um desafio a abrir veredas para pesquisas mais aprofundadas sobre a mulher negra. Um tema novo, desconcertante e atual apresenta-se no capítulo as- sinado por Batalini sobre o envelhecimento da mulher, a solidão, o aban- dono, a saudade equivocada e o amor cada vez esquivo. Em Milamor, tal investigação da vida privada da idosa, nesse foco específico, é algo raro na literatura. Merece ser explorado e comparado com outros romances que 15 Alba Krishna Topan Feldman | RuanFellipe Munhoz versam sobre o mesmo assunto. Assunto novo, atualmente, é a recuperação da identidade masculina, já preconizado por Lispector no capítulo assina- do por Cardozo de Andrade e Libanori. Esse tema também deve ser explo- rado diante do seu declínio na contemporaneidade. Mas a pergunta que me afligia, no processo da docência, persistia. Num Brasil multirracial, fervendo de ideias democráticas e com atitudes politicamente corretas, como poderia ensinar a lírica apresentada pelo tra- dicionalismo de The Golden Treasury of English Songs and Lyrics, os roman- ces britânicos imbuídos de narrativas de supremacia europeia, branca e racista, assim como a obra The Tempest, de Shakespeare, como meramente o último testamento do Bardo? Qual seria o meu papel de professor para a formação de conceitos de cidadania nos alunos, ávidos por conhecimen- tos novos e de grande potencial multiplicador? O grande empecilho foi o princípio, baseado em Aristóteles e Kant, de a literatura ser ars gratis artis, meramente estética, sem nenhum compromisso social, político ou ético. Percebo que a resposta à angústia delineada se encontra refletida nas discussões dos capítulos de Perspectivas Multiculturais e Pós-coloniais. O amadurecimento da pesquisa atual, com temas sobre resistência, multi- culturalismo, dignidade do Negro e da Mulher Negra, feminismo, culturas negras, supera e até anula o conceito da necessidade de literatura branca e europeia para ser viável. Essas investigações revelam também a atual pri- mazia da mulher crítica e da interpretação da literatura pela mulher. Rea- ding as a woman! Jonathan Culler diria mais tarde! Basta olhar o elenco das autoras. O produto é outro, diferente e instigante! O surgimento de uma consciência sócio-política na literatura bri- tânica começou a enveredar por caminhos que nenhum Byron, Conrad ou Hemingway haviam preconizados. Autores africanos, caribenhos e india- nos, experimentados nos meandros sutilmente castradores da educação britânica ensejada por sua literatura, começaram a retrucar ao Império, a denunciar a falsidade da supremacia europeia, o aprofundamento do ra- 16 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS cismo na sua estada em países estrangeiros, a ilegitimidade da imposição da cultura em detrimento às culturas locais, plenamente amadurecidas, a falácia da perpetuação de preconceitos de gênero e a capacidade intelectual e organizacional da população em geral. Uma literatura diferente começou a surgir, a qual mostrava o caminho da rebeldia, da emancipação, da auto- nomia no pensar e agir. Mais uma vez, os temas abordados por Feldman e Silvestre, Godoy e Alves da Silva implodem o conceito do cânone branco, exclusivo, único e supremo, como queria Macaulay em seu projeto de edu- cação para as colônias britânicas. Os nossos autores colocam as literaturas africana, brasileira e indiana como autônomas para expor o Outro dife- rente. Em termos históricos, essa emancipação literária já havia ocorrido na América Latina, especialmente com seu conceito de antropofagia, mas, como sempre acontece, abafado, não divulgado e restrito a pouquíssimos críticos, os quais frequentemente subestimavam sua potencialidade no en- sino literário. Ademais, os temas de multiculturalismo e pluralismo na literatura em Perspectivas Multiculturais e Pós-coloniais começaram a ser veiculados na literatura nacional e estrangeira. São temas engajadores, reveladores, conscientizadores, a provocar os alunos a questionar-se, debater, investi- gar e aprofundar pesquisas sobre, por exemplo, o racismo, a convivência, a dignidade humana, os direitos das pessoas. Nesse sentido, a literatura, em suas versões antiga e atual, representava essas propostas. O que faltava era sua crítica! É claro que muitas definições e pesquisas sobre assimilação, integração, multiculturalismo e antirracismo, que a literatura apresentava, estavam repletas de equívocos e impraticabilidade, porém constituíam um caminho na direção correta. Por exemplo, a literatura pré-1950 elogiava a convivência populacional, porém, na modalidade de e pluribus unum, um caminho de mão única, o descartar da diversidade, do Outro diferente e do desenvolvimento emancipador. O famoso cadinho de Crèvecoeur e as noções semelhantes só faziam crescer a inferioridade, a discriminação so- 17 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz cial, a fossilização das pessoas nos níveis sociais de sempre, a negação de ascensão no futuro. O papel do professor universitário de Literatura, que percebo, materializar-se agora pelos assuntos abordados neste livro, seria a exposição e a denúncia da ideologia de supremacia branca e masculina, do racismo de todos os tipos - especialmente no contexto do Brasil ne- gro - da aceitação da conformidade como um fator legítimo e construtor da sociedade. No contrário, o professor de Literatura estaria a perpetuar o sentimento de sermos estranhos uns aos outros, a relegar as comunidades ao isolamento no contexto nacional e regional. Acredito que a Literatura, de modo particular, o professor de Lite- ratura, tem o enorme potencial para agir na educação da cidadania através da resistência e da rebeldia. O primeiro capítulo de Perspectivas Multicul- turais e Pós-coloniais, intitulado ‘Estratégias de resistência’, é um excelente programa para o caminho da cidadania pelos fundamentos da literatura pós-colonial. No Brasil atual, que, a meu ver, está numa profunda reversão educacional, a perder posicionamentos conquistados com suor e lágrimas, a favorecer a monocracia e o autoritarismo, a menosprezar os direitos funda- mentais das pessoas, o debate conceitual sobre a cidadania através da Lite- ratura deve ser continuado e aprofundado. Pela interpretação da Literatura, preconizada nos capítulos de Perspectivas Multiculturais e Pós-coloniais, os nossos alunos aprendem a diversidade como um fator básico da cidadania, que é multiplicado nas escolas de ensino básico. O desenvolvimento profis- sional e a educação continuada na Literatura aprofundam não somente o multiculturalismo e a diversidade, como também as teorias críticas de raça e de igualdade para igual oportunidade para todos os brasileiros. Embora a Literatura não seja uma panaceia, a educação para a cidadania pela Litera- tura capacita os jovens, que preparamos, com o conhecimento, as habilida- des e a compreensão para assumirem um papel mais efetivo na vida públi- ca. A cidadania fomenta seu interesse em problemas tópicos e controversos, a engajar-se em discussões e debates, tão ausentes entre nós. Monitorados 18 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS e conduzidos adequadamente, os estudantes universitários de Literatura conheceriam responsabilidades, deveres, liberdades, justiça e democracia, particularmente em tomadas de decisões e modalidades diferentes de ação nas comunidades onde atuam. A literatura é um grande fator de exposição no que diz respeito às identidades nacionais, religiosas, étnicas e de gênero e capacita professores e estudantes a se engajar criticamente com ideias, crenças, culturas e identidades diferentes e os valores que compartilhamos com outros brasileiros. Acredito que o leitor, especialmente o estudante de Letras, alicer- çado nos princípios de Alteridade, Diversidade, Dignidade Humana, Re- sistência ao racismo e à unicidade, representados nas obras ficcionais aqui investigadas e interpretadas, possa atingir um nível de cidadania que enter- raria os esqueletos do passado e, como diz Shelley, inauguraria algo novo, consoante à nossa época. Thomas Bonnici 28/10/2019 19 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 20 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 21 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz A crítica literária pós-colonial nasceu junta- mente com movimentos que buscavam observar as pro- duções discursiva e artística de populações colonizadas. Essa empreitada se desenvolveu com o intuito de rever- ter aimagem de objeto atribuída ao sujeito colonizado, buscando reconstituir a sua identidade transformada pelo colonialismo. Nesse sentido, precisamos ressaltar que os habitantes das colônias precisam conviver com o colonizador em seus diferentes personagens, o que faz emergir questões como a hibridização de raças e de cul- turas, diáspora e globalização. Porém, longe de ser uma utopia em que pessoas e culturas híbridas convivem pa- cificamente, esses espaços contam com conflitos, jogos de poder, hierarquização e opressão de grupos que se consideram herdeiros das classes e etnias dominantes. O período pós-colonial marca o esforço das nações afetadas pelos diferentes tipos de colonização não apenas para sobreviverem, mas para encontrarem e firmarem uma identidade nacional, étnica, grupal ou APRESENTAÇÃO 22 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS cultural. Para tanto, há uma reavaliação da cultura da qual fazem parte, incluindo a língua, a religião e diversos comportamentos e pontos de vistas herdados ou modificados durante o período colonial. Porém, esse processo não ocorre homogeneamente e nem tranquilamente, uma vez que popu- lações estão em permanente movimentação gerada pela diáspora, que é a movimentação forçada ou voluntária de grupos sociais de um país a outro, causando deslocamentos físicos e psicológicos, entre outros. Aspectos como a globalização e o desenvolvimento de meios de transporte e comunicação, provocaram um entrelaçamento de culturas e uma convivência, seja imposta pela colonização, seja por meios mais sutis como o comércio e interesses políticos e econômicos. Não podemos afirmar que esse movimento seja algo recente, mas é evidente que a aproximação cultural foi levada a outro patamar com a quebra das fronteiras promovida pela globalização. As produções literárias dessas sociedades multiculturais representam essa diversidade e precisam ser avaliadas pela perspectiva da globalização, considerando também a intersecção entre classes sociais, gê- neros, raças, etnias, aspectos de identidade, diversidade, hibridização, con- vivialidade, estudos do sujeito e de sua representação. O estudo de obras literárias e artísticas sob a ótica dos estudos mul- ticulturais em contexto pós-colonial traz em si questões que podem ser res- pondidas por intermédio de uma visão holística do processo das relações assimétricas de gêneros, classe, etnias e culturas diferentes. O estudo de tal corpus evidencia a justaposição e imposição de culturas sobre as outras, que podem originar um sistema de subalternidade e objetificação que pre- cisa ser analisado, não apenas em nível de identidades individual e nacio- nal, mas também em nível de sociedade e grupos sociais. Portanto, a análise de estratégias narrativas que representam a identidade e suas formas de resistência e o embate entre tradição e moder- nidade em um contexto transcultural são temas bastante pertinentes, pois possibilitam a reflexão e a atitude, que são esperados como resultado do 23 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz desenvolvimento científico. Essa reorientação na interpretação das interco- nexões sujeito/objeto não só diz respeito ao colonizador/colonizado, mas também a todas as sociedades minorizadas de alguma maneira, como, por exemplo, o homem/mulher (patriarcalismo). Isso evidencia a preocupação com a construção de formas de pensamento que possam viabilizar um de- senvolvimento de uma nova atitude e como isso é constituído nas obras literárias. Considerando o papel da pesquisa no momento atual de delimitar e apresentar modelos representativos para a melhor compreensão da pro- blemática e dos conflitos apresentados, que não mais se restringem somen- te a sujeitos individuais, mas também a interesses coletivos e sociais, não se delimitando a momentos históricos ou limites geográficos, acreditamos que a mudança de perspectiva proposta pela crítica literária pós-colonial e multicultural assinala importantes aspectos para que se compreendam mais claramente as relações identitárias e culturais dos povos no mundo globalizado da atualidade e suas complexidades. Para estudar obras literárias e outros artefatos culturais não-hege- mônicos sob a luz das teorias já mencionadas, foi criado, em 2011, o gru- po de estudos com o título Estudos Pós-Coloniais: perspectivas e dimensões. Esse coletivo, de 2014 a 2016, passou a utilizar o nome de Pós-colonialismo em Perspectivas Multiculturais. A partir de 2016, ele foi renomeado Grupo de estudos em Multiculturalismo e Pós-Colonialismo (GEMUP). O grupo tem reunido professores e alunos de diversos cursos da Universidade Esta- dual de Maringá (UEM) e da comunidade externa. Esse movimento de reflexão e construção coletiva do conhecimen- to dá origem ao livro que agora apresentamos. Por intermédio de uma vi- são multidisciplinar, os textos aqui apresentados trabalham com obras de diferentes procedências culturais e étnicas no sentido de mediar diferen- tes realidades e experiências estéticas e literárias, fomentando a pesquisa e os saberes na área de estudos da literatura, teoria da literatura e literatura 24 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS comparada. Nesse contexto, passamos a descrever cada um dos dez capítu- los que compõem este livro. Inicialmente, as professoras Alba Krishna Topan Feldman e Nelci Alves Coelho Silvestre apresentam o texto intitulado Estratégias de resis- tência, sobrevivência e continuidade no discurso de grupos étnicos coloni- zados: reflexões teóricas, com o objetivo de discutir aspectos de resistência pós-colonial e de outras estratégias de lutas de minorias étnico-raciais-cul- turais contra seus aparatos de opressão. As profissionais se baseiam, so- bretudo, na classificação dos tipos de resistência elaborados por Ashcroft (2001). Ademais, também discorrem sobre estratégias como a mímica, de acordo com o conceito desenvolvido por Homi Bhabha (1998); além da resistência escrita, analisada em aspectos como a reescrita, a releitura e a paródia, embasados em Hutcheon (1989); uma estratégia de sobrevivência e de continuidade fundamentada em Gerald Vizenor (2008), a partir dos estudos indígenas estadunidenses, como o conceito de survivance (tradu- zido por sobrevidade), buscando paralelos em sua aplicação no estudo das escritas literárias de grupos considerados minorias étnicas, sociais, cultu- rais, religiosas, entre outros. O segundo capítulo apresenta um estudo sobre a Resistência no epílogo de Crossing the river, de Caryl Phillips realizado por Geniane Diamante Ferreira Ferreira. O livro estudado é dividido em seis partes que podem ser lidas separadamente, já que a ligação entre elas é metonímica, realizada apenas pelo Prólogo e pelo Epílogo. No último capítulo, é possível analisar a resistência que permeia toda a obra, já que as personagens são representativas de todos os negros ao longo dos tempos, desde a escravidão até os dias de hoje. A divisão do trabalho conta com uma biografia do autor, o conceito de resistência e a análise do capítulo, seguida de uma conclusão e bibliografia para pesquisas ulteriores, verificando que, graças a todos os tipos de resistência, temos hoje uma sociedade cada vez menos discrimina- tória, mas que ainda está longe do ideal. 25 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz O terceiro capítulo é intitulado Mulheres, estereótipos e metaficção na obra A resposta (2015), de Kathryn Stockett. A contribuição de Luiz H. Santos Cordeiro conta com uma análise da representação das mulheres na obra literária em questão, buscando apontar os estereótipos socialmen- te desenvolvidos e as formas de resistência presentes no objeto analisado. Com a pesquisa, é possível observar como empregadas domésticas negras, num período segregacionista da história estadunidense, conseguem sair de uma situação de marginalização, criada e reiterada pela elite da sociedade em que se encontram, através de uma obra anônima, metaficcional, que narra sobresua própria vivência. O quarto capítulo apresenta A personagem mitológica feminina formadora da identidade da mulher indiana. Nele, Luiz Sérgio Alzair Al- zão discute a forma como o épico indiano O Mahabharata foi utilizado pe- los invasores Arianos para construir a identidade feminina daquela nação por milhares de anos. Com o objetivo de analisar como as histórias dos heróis e deuses transmitidas oralmente através de gerações permanecem no imaginário do povo da Índia, o autor discute a forma como Draupadi, uma personagem mitológica feminina do clássico, desempenhou um papel relevante na construção da identidade, tanto da mulher subalterna quanto da identidade patriarcal opressora, além de refletir se um evento ocorrido com essa semideusa pode ser percebido como uma “autorização” para os estupros coletivos que se tem naquela sociedade. Abordando aspectos culturais em um contexto pós-colonial a par- tir da obra da escritora moçambicana Paulina Chiziane, publicada em 2004, Thamiris Alves da Silva colabora com o capítulo intitulado Moçambique multicultural em Niketche: uma história de poligamia. Tendo como espa- ço narrativo o país natal da autora, o romance mostra a história de Rami e seu infiel esposo Tony, que mantém relações extraconjugais com outras quatro mulheres precedentes de diversas regiões de Moçambique. Após descobrir as aventuras do esposo, a protagonista une-se às suas supostas 26 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS rivais e exige que o homem legalize a poligamia. Nesse contexto, é possível notar suas relações com as imposições imperiais a partir do colonialismo, assim como observar variados mecanismos de resistência e reafirmação de tradições do país e a construção identitária das mulheres representadas no texto literário. O sexto capítulo é intitulado O som do silêncio: os silêncios e si- lenciamentos de Geraldine na obra The round house, de Louise Erdrich. Produzido por Marcos Vinicius Rodrigues da Costa, esse texto apresenta um estudo sobre o silêncio e o isolamento da personagem como ato de co- municação e seu silenciamento como um ato de violência. Após sofrer um abuso sexual, Geraldine se refugia no silêncio por medo e como tentativa de proteção e de neutralização das ações de seu marido e de seu filho. O silenciamento pode ser considerado, além de um ato comunicativo, uma forma de violência, uma vez que o sujeito é impedido de se expressar e se comunicar, estando condicionado ao dizer imposto pelo opressor. Como referencial teórico, o autor se apoia principalmente nos estudos de Žižek (2009, 2010), Judith Butler (2015), Germanie Greer (2001) e Eni Puccinelli Orlandi (2007). O sétimo capítulo apresenta um estudo sobre A imposição e a sig- nificação do silêncio de uma mulher negra em Viaje al otro Brasil, relato de viagens publicado em 2002 pelo espanhol Javier Nart. O autor, Ruan Fellipe Munhoz, trabalha especificamente com o silenciamento imposto sobre uma mulher negra brasileira descrita durante a passagem do viajante por Bonito, cidade situada no interior do Mato Grosso do Sul. Para dinami- zar o processo de análise, ele utiliza, fundamentalmente, as contribuições de Tacca (1983) sobre o narrador, as questões pós-coloniais levantadas por Bonnici (2007), as noções de ideologia trabalhadas por Belsey (1982), para, por fim, chegar ao tema proposto por Orlandi (2011) a respeito das marcas significativas do silêncio no texto. Culto à imagem e envelhecimento feminino em Milamor, de Livia 27 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz Garcia-Roza é a contribuição de Marcela Gizeli Batalini. A análise presente nesse oitavo capítulo está centrada na representação da mulher idosa no citado romance, mais especificamente nos ideais com relação à aparência difundidos socialmente e o reflexo dessas construções em seu cotidiano. Baseada, sobretudo, em Guita Debert (1999), Joana Novaes (2009, 2011) e Junia Vilhena (2009), a autora reflete sobre as angústias frente ao processo de envelhecimento, além dos sinais do tempo impressos no corpo da mu- lher, que se intensificam diante da possibilidade de um novo relacionamen- to amoroso. A contribuição de Adriana Gomes Cardozo de Andrade e Evely Vânia Libanori está disposta no nono capítulo sob o título O humano e o animal na personagem Martim do romance A macã no escuro de Clarice Lispector. Após cometer um crime, o personagem citado empreende fuga e, à medida que a deixa o universo civilizado e ruma à natureza menos poluída, inicia um processo de autorreconhecimento e reconstrução de si. Os animais não humanos que ele encontra nessa jornada são fundamentais nesse processo, em especial, as vacas, que com sua mansidão, seu caráter maternal e de renovação, colaboram na promoção de importantes mudan- ças em Martim. Baseadas em Michel de Montaigne (1972), Greg Garrard (2006), John Berger (2009) e Maria Esther Maciel (2016), encontramos, nesse trabalho, uma análise do processo de animalização e humanização da personagem. O último capítulo, intitulado Leitura e afro-brasilidade: um per- curso do afeto em narrativas da literatura infantojuvenil, tem, como au- tora, a professora Maria Carolina de Godoy, da Universidade Estadual de Londrina na área de literaturas afro-brasileiras, especialmente convidada para contribuir para esta obra. Especificamente nesse trabalho, ela analisa a literatura infantojuvenil afro-brasileira para discutir de que modo essas narrativas desconstroem estereótipos e afirmam uma poética da resistên- cia, sem perder de vista o tom lúdico e a beleza das descobertas do universo 28 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS infantil, traçando um percurso do afeto. Para tanto, a autora se baseia em Betina (2009), de Nilma Lino Gomes; Os tesouros de Monifa, de Sonia Rosa; Bruna e a galinha d´Angola (2009), de Gercilga Almeida; Lendas da África Moderna (2010), de Heloisa Pires Lima e Rosa Maria Tavares Andrade e Uma princesa nada boba (2011), de Luiz Antonio. Como discutido anteriormente, este livro surge das reflexões re- alizadas pelos integrantes do Grupo de estudos em Multiculturalismo e Pós-Colonialismo (GEMUP) e também por convidados especiais que tra- balham com produções culturais e literárias de diversas origens, sob a égi- de da crítica pós-colonial e multicultural, evidenciando a necessidade de apresentar uma pequena parcela das discussões promovidas coletivamente. Ademais, é necessário ressaltar que todos os trabalhos aqui dispostos são fruto de dissertações, teses, entre outras pesquisas realizadas ao longo dos anos de reuniões para ampliação do conhecimento acerca das teorias na área, auxiliando a formação crítica e científica dos profissionais das áreas de humanidades, contribuindo para a consolidação da abordagem das citadas teorias. Aproximando-nos das nossas palavras finais, agradecemos a todas as autoras e a todos os autores que contribuíram para a produção deste li- vro, pois, sem o desejo e o empenho em compartilhar conhecimentos, este empreendimento não seria possível. Por fim, esperamos que esta produção possa ser lida por diferentes profissionais da educação e que contribua para o conhecimento das leitoras e dos leitores, tanto quanto o fez conosco, seus autores e organizadores. Desejamos uma proveitosa leitura! Alba Krishna Topan Feldman Ruan Fellipe Munhoz 29 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 30 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS 31 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz 1. Estratégia de Resistência De acordo com Ashcroft (2001), resistência é uma palavra que se adapta a uma grande variedade de circunstâncias, por isso a descreve como sinônimo de qualquer tipo de luta política. O autor pondera ainda que, se pensarmos em “resistência como qualquer for- ma de defesa através da qual o ‘invasor’ é rechaçado, as formas sutis e não verbalizadas de resistência social e cultural têm sido muito mais frequentes1” (ASH- CROFT, 2001, p. 20). Dessa forma,o revide ou resis- tência é um modo de ir contra a dominação do poder imperial, de não aceitar as imposições colonialistas e de procurar reverter a situação para que os povos oprimi- dos possam resgatar sua subjetividade. Há diversas maneiras de se resistir ao poder imperial, ou a qualquer poder dominante. Segundo 1“resistance as any form of defence by which an invader is ‘kept out’, the subtle and sometimes even unspoken forms of social and cultural re- sistance have been much more common” (ASHCROFT, 2001, p. 20). ESTRATÉGIAS DE RESISTÊNCIA, SOBREVIVÊNCIA E CONTINUIDADE NO DISCURSO DE GRUPOS ÉTNICOS COLONIZADOS: REFLEXÕES TEÓRICAS Alba Krishna Topan Feldman Nelci Alves Coelho Silvestre 32 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS Ashcroft (2001), a questão da Resistência é parte essencial de uma análise, pois está no centro da luta entre poderes. Porém, resistir é muito mais que criar um “outro” e lutar contra ele, tem a ver com o poder e a afirmação de uma identidade pós-colonial. No entanto, mais que uma ideia de oposição binária, a resistência pode assumir formas tão sutis quanto efetivas para minar, questionar a cultura dominante e até mesmo ressignificar a cultura dominada. O primeiro tipo de resistência que Ashcroft aborda é a resistência pacífica. No entanto, acrescentaríamos uma subdivisão a essa classificação em direta e indireta. A resistência pacífica indireta não é abertamente oposi- tora ao poder dominante, mas pode ser feita de pequenos atos de revide por parte dos povos oprimidos, como as mulheres e os escravos serem morosos ou raivosos ao realizarem seus trabalhos, o fato de provocarem pequenos atos, como realizar, propositadamente, um mau trabalho, o murmúrio ou o xingamento de Calibã, entre outros. Trata-se de uma forma indireta de resistência, pois o opositor não sabe claramente que está sendo enfrentado. Isso ocorre, geralmente, devido ao fato de o oprimido não possuir outras formas de lutar ou enfrentar diretamente o opositor com o uso de armas e técnicas. A segunda forma de resistência pacífica seria a direta, quando o opressor sabe que está sendo enfrentado, mas o oprimido não se utiliza de armas ou outros tipos de instrumentos similares de ataque. Exemplos desse tipo de resistência pacífica direta foram os movimentos de desobedi- ência civil, representados por Gandhi e Martin Luther King. A mais primitiva forma de resistência ocorre por meio da luta, da resistência física, o revide direto: trata-se da luta armada, das guerras e guerrilhas, manifestações civis violentas. No período inicial da colonização e no período pré-independência, essa forma era a única possível pela qual os nativos indígenas lutavam contra os colonizadores por suas terras, suas culturas e por suas vidas. Posteriormente, os africanos também se utiliza- ram da resistência física em sua luta contra seus escravizadores. Porém, os 33 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz sujeitos coloniais não estavam preparados para combater os colonizadores e por isso não tinham muitas chances contra eles e suas armas mais avan- çadas, aperfeiçoadas em séculos de guerras. Esse tipo de revide por meio de lutas e guerras foi uma boa tentativa de resistência, mas pouco serviu na quebra da hegemonia europeia, pois gerou ainda mais opressão por par- te do império e mais violência nas guerras civis no período pós-colonial. Atualmente, a resistência armada aparece nas lutas pela independência de países da África, entre outros territórios antes colonizados. As lutas moder- nas pela independência são extremamente complexas e, quando amparadas por aspectos legais, difusão da mídia e negociação, são mais efetivas. Ao fiarem-se apenas no conflito armado, há a obrigatoriedade da existência de um “inimigo”, que se torna um ser mítico, ideológico, sempre mau, e que deve ser combatido. O último tipo de resistência e o mais importante para os estudos literários, de cultura e artes em geral, é o revide discursivo, empregado pelo colonizado para fazer ruir a sistemática monolítica do colonizador. A de- finição de Ashcroft de resistência discursiva também pode ser dividida em direta e indireta. A resistência discursiva direta trata, por exemplo, de pan- fletos subversivos que têm um opositor nomeado. Falamos de textos ou dis- cursos escritos com o objetivo de denunciar, questionar um acontecimento ou uma situação específica. Assim, a preocupação prioritária é o discurso contra algo ou alguém abertamente identificado. Então, tal resistência dis- cursiva se torna mais uma arma na resistência armada, uma vez que sua efetividade é para alertar sobre um problema setorizado e, uma vez que o opositor ou o problema cessam, o discurso perde sua razão. A resistência discursiva indireta é feita pelas artes, pela literatura, principalmente. Nesse tipo de literatura resistente, pessoas conseguem de- nunciar, questionar a história, mas isso é feito por meio da arte, da estética das palavras, das histórias de vida que, por meio do trabalho com a lingua- gem, passa a atingir um público muito mais amplo, afirmar identidades e 34 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS gerar identificações. Dessa forma, a literatura se torna um tipo de resistên- cia discursiva indireta. Muito efetiva na defesa do colonizado, a resistên- cia discursiva indireta consiste em resistir sem fazer uso da violência, em empregar táticas para se defender dos moldes europeus impostos ao colo- nizado utilizando sua própria linguagem e cultura. Isso posto, trataremos, agora, das estratégias discursivas como formas de resistência: a mímica, a paródia e a cortesia dissimulada. 2. Formas de Resistência: Mímica e Cortesia Dissimulada Como estamos trabalhando com imitação e com representações artísticas, é importante que discutamos três aspectos relevantes para a aná- lise de obras literárias: a mímica, a paródia e a cortesia dissimulada. No dicionário Houaiss (2004), mímica “é o ato de se expressar por gestos; pantomima” (HOUAISS, 2004, p. 497). Pelo dicionário Collins (2006), “mímica é a ação de imitar alguém ou alguma coisa2” (COLLINS, 2006, p. 908). Já o Dicionário de Termos Literários (1997) explica que o ter- mo “caracteriza-se pela sequência de gestos, movimentos e expressões, de- sacompanhados de palavra ou de música que visam a transmitir toda sorte de emoção e sentimento ao expectador, e mesmo sugerir uma ação dramá- tica completa” (MOISÉS, 1997, p. 338). Na literatura pós-colonial, a mímica é uma das estratégias de resis- tência ao poder imperial. Nas palavras de Bonnici (2009), A mímica e a paródia são estratégias de resistência pelas quais o sujeito colonial imita o colonizador. Como o processo resulta uma condição igual e, ao mesmo tempo, não exata- mente igual, a centralidade do colonizador é questionada e subvertida (BONNICI, 2009, p. 172). A mímica consiste na cópia das características do colonizador pelo 2 “Mimicry is the action of mimicking someone or something” (COLLINS, 2006, p. 908). 35 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz colonizado, ou seja, ao assumir os mesmos valores, os mesmos hábitos do colonizador, o colonizado consegue imitar o colonizador, mas não exata- mente. Uma vez que a imitação coloca em destaque as hierarquias e o do- mínio colonial, as diferenças sociais, raciais, entre outras, a representação se torna uma falsificação, muitas vezes caricata e grosseira, do “original”, o que coloca em evidência e ridiculariza o poder a partir de seu questiona- mento: “O escárnio, a ridicularização e a ameaça, feitos pelo colonizado, existem na mímica da cultura, do comportamento e dos valores dominan- tes” (BONNICI, 2009, p. 40). Isso também ocorre com o uso da linguagem europeia “misturada”, híbrida, o pidgin, o dialeto, as marcações culturais que se apropriam da língua, mas não na forma exigida pelo “bom padrão” europeu. Portanto, podemos dizer que a mímica provoca uma fenda na cer- teza do colonizador, já que este acreditaque o colonizado está sob seu com- pleto domínio. No entanto, ao ser copiado, o comportamento e os valores do colonizador são ridicularizados. Bhabha (1998, p. 129) assinala o caráter ambivalente da mímica que “reforça a autoridade colonial e a ameaça” ao mesmo tempo. Ainda de acordo com o autor, o sujeito colonial é “quase o mesmo, mas não exatamente” (BHABHA, 1998, p. 131), ou seja, ele não é uma reprodução exata das características do colonizador, trata-se de uma cópia aparentemente igual, mas que revela uma fissura na certeza das po- tências de domínio. Analisando a mímica empregada pelo sujeito pós-colonial, Bhabha (1998, p. 133) registra que ela “não esconde presença ou identidade atrás de sua máscara”, mas sua dupla visão, ao revelar a ambivalência do discur- so colonial, pode quebrar sua autoridade. Assim, a mímica é uma forma de resistência do sujeito colonizado, de iludir o colonizador, que vê nessa atitude a imitação, a subserviência do colonizado, mas que, ao salientar as diferenças, faz uma crítica ao poder dominante. Portanto, a imitação sugere uma identidade que não é idêntica à do colonizador, mas uma reprodução 36 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS subversiva. A partir desse cenário, também vemos uma sub-representação do colonizado feito pelo colonizador: a reprodução de estereótipos pela mídia, homens vestidos de mulheres, brancos caracterizados de negros etc. Essa imitação reforça, por exemplo, a visão que os colonizadores têm de que os negros sejam selvagens, primitivos, preguiçosos, ou que as mulheres seriam objetos sexuais ou megeras. No entanto, a imitação, em primeiros tempos de dominação, era uma obrigatoriedade para os povos dominados, uma vez que a única cul- tura considerada válida era a cultura europeia. Ashcroft afirma que “a visão europeia do processo de civilização não foi nada mais que a imitação for- çada – as culturas coloniais deveriam simplesmente imitar os ocupantes da metrópole3” (ASHCROFT, 2001, p. 3). A mímica inversa é uma maneira de o público branco mostrar seu interesse pela cultura negra de forma segura, ou seja, disfarçada sob o ridí- culo racial. A mímica do negro, operada pelos ingleses, remete-nos à trans- culturação. A transculturação é mais uma forma de quebra do binarismo, pois, pelo contato entre diferentes culturas, ocorre uma troca cultural entre colonizador e colonizado, branco e negro. Trata-se de um processo pelo qual as duas culturas se tangenciam e se modificam ao entrarem em con- tato, enfatizando as diferenças e ao mesmo tempo colocando em evidência as relações assimétricas de poder. A resistência na transculturação pode estar presente na mímica da linguagem, dos comportamentos, do modo de pensar e viver dos opressores. Já a diferença refere-se à coexistência, ao passado no presente, ao mesmo no outro. Dessa forma, a figura do colonizador emerge como uma constituição histórica necessária para o colonizado, pois nela repousa a possibilidade de mudança, de diferença. No entanto, a mímica mostra que o caminho inverso também ocorre, ou seja, da mesma forma que o coloni- 3 “the European view of the civilizing process was nothing less than enforced emulation – co- lonial cultures should simply imitate their metropolitan occupiers” (ASHCROFT, 2001, p. 3). 37 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz zado é construído a partir do colonizador, o colonizador se constrói a partir da imagem do colonizado. Figuras históricas como Xica da Silva, La Ma- linche (Doña Marina, que auxiliou a conquista da América espanhola por Cortez), assim como King Philip (Metacomet, chefe indígena Wampano- ag que auxiliou os primeiros colonizadores nos EUA) e Pocahontas, eram lembretes ao colonizador de que outros grupos sociais poderiam imitá-los. Mesmo sem serem completamente iguais, tinham poder e transitavam no mundo europeu, colocando, assim, a hegemonia europeia em xeque. Bonnici (2009, p. 61) confirma que “a mímica é uma resistência contínua e mostra o sujeito colonial constantemente pronto para continuar subverten- do a autoridade colonial”. Outra forma de resistência, consoante Bhabha (1998, p. 147), em sua obra O Local da Cultura, é a sly civility, “cortesia dissimulada” em por- tuguês, tática que consiste na “recusa nativa a satisfazer a demanda narra- tiva do colonizador”. Nesse tipo de resistência, o sujeito não enfrenta o co- lonizador de forma direta, mas se utiliza de elementos da cultura europeia a seu favor. Por meio de uma falsa sujeição à imposição do colonizador, de uma suposta aceitação por parte do colonizado, o sujeito parece se subme- ter à influência hegemônica, mas, na verdade, vai eliminando de forma sutil a suposta autoridade colonial. Dessa forma, o fato de não querer contradizer o colonizador é uma estratégia de resistência pacífica indireta face às suas imposições. Ao fingir aceitar as normas impostas, o colonizado assume os hábitos alheios como forma de proteção. Nesse sentido, a estratégia da cortesia dissimulada se mostra eficaz justamente porque o colonizado, fingindo submissão, não contradiz o discurso do colonizador diretamente. Assim, a imposição co- lonial torna-se cada vez mais ineficaz, impedindo que o colonizador reaja de forma violenta contra o nativo, porque ele não deixa de se submeter às ordens que lhe são dadas. Porém, sua submissão está longe da verdade e da confiança, que quebra os princípios naturais da civilidade/cortesia. Exem- 38 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS plos disso são as conversões forçadas ao cristianismo no início do processo de colonização. Na resistência discursiva, a escrita irônica, cheia de elogios dúbios e falsas alegações de humildade ou desconhecimento por parte do grupo oprimido, pode ser considerada uma cortesia dissimulada, enquanto possibilita que ele continue transitando em junto ao poder. Em consonância com o exposto por Bonnici (2009, p. 62) sobre a cortesia dissimulada, percebemos que essa estratégia de resistência “dá ao colonizado maior agência e autonomia porque se apropria das estratégias ambivalentes do poder colonial”. Nesse contexto, as formas de resistência vistas até agora existem no terreno da escrita e do discurso propriamente dito. Em seguida, passaremos a analisar as formas de resistência discursiva propriamente dita. 3. Paródia, Ab-rogação e Apropriação, Releitura e Reescrita A paródia, assim como a mímica, também é uma espécie de imi- tação, só que consiste na cópia do discurso do colonizador por meio da escrita. Semelhantemente à mímica, a paródia expressa a não aceitação dos valores ocidentais impostos, subvertendo-os. Pela escrita, o sujeito coloni- zado resiste discursivamente ao jugo imperial. Bonnici (2009) enuncia que “Paródia vem do grego paroidia, canto ou discurso alternativo, e atualmen- te significa um discurso burlesco que imita o discurso sério para o subver- ter” (BONNICI, 2009, p. 60). De acordo com o autor, os termos mímica e paródia são sinônimos no contexto pós-colonial. A paródia nesse contexto consiste na estratégia por meio da qual um texto dialoga com outro anterior a ele, objetivando desconstruir o dis- curso ideológico. Trata-se de uma escrita que dá voz ao excluído. Segundo o filósofo francês Gérard Genette, paródia é um termo cuja origem remon- ta à Grécia Antiga. Em sua obra Palimpsestos (1997), o autor registra que o prefixo “para” tanto pode significar “ao lado de” como “contra”. O primeiro 39 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz sentido é mais utilizado, já o segundo indica uma “sugestão de um acordo ou intimidade, em vez de um contraste” (HUTCHEON, 1989, p. 48). O su- fixo “odia” (ode) significa “canto”, ou, como indica Sant’Anna, em Paródia, Paráfrase & Cia, “um poema para ser cantado” (SANT’ANNA, 1985, p. 12), de modo que a paródia pode ser entendida como uma espécie de “contra- canto” ou “canto paralelo”. Sua origem, portanto, é musical. No que tange à definição, o dicionário Houaissde Língua Portu- guesa (2004) registra o termo paródia como imitação cômica de um texto, de uma peça de teatro (HOUAISS, 2004, p. 550). O dicionário Collins de Língua Inglesa (2006), por seu turno, registra que “Uma paródia é uma peça humorística de teatro, drama, ou música que imita o estilo de uma pessoa bem conhecida ou representa uma situação familiar de uma forma exagerada4” (COLLINS, 2006, p. 1045). Já Massaud Moisés define a paródia como uma [...] composição literária que imita, cômica ou satiricamente, o tema ou/e a forma de uma obra séria. O intuito da paródia consiste em ridicularizar um estilo que, por qualquer motivo, se torna conhecido e dominante. No geral o texto parodiado ostenta características relevantes, que o distinguem facilmen- te dos outros (MOISÉS, 1997, p. 388). Nas palavras do autor, a paródia é vista como ridicularização e cen- sura. Sendo assim, é possível depreender que o texto original é tão marcan- te a ponto de ser imitado, mesmo em forma de sátira. Genette (1997) declara que a paródia normalmente se refere a uma produção anterior à que foi parodiada, ela se relaciona com outro texto. Além disso, o autor limita a paródia a textos curtos como poemas, provér- bios, trocadilhos, títulos e aos modos satíricos e recreativos, pois em seu entendimento ela é a transformação mínima de um texto. Diante desses apontamentos, Hutcheon, que discorda do teórico francês, escreve o livro 4 “A parody is a humorous piece of writing, drama, or music which imitates the style of a well-known person or represents a familiar situation in an exaggerated way” (COLLINS, 2006, p. 1045). 40 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS Uma teoria da paródia (1985). Nele, a autora trabalha a partir de conceitos que englobam a concepção clássica e moderna de paródia, além de desmiti- ficar a crença de que se trata de um gênero ligado ao cômico ou ao ridículo. Para a estudiosa, a paródia é “repetição com distância crítica, que marca a diferença em vez da semelhança” (HUTCHEON, 1989, p. 17). Mesmo sendo uma forma de expressão bastante atual, a paródia não é uma invenção recente. Segundo Sant’Anna (1985), ela já existia na Grécia, em Roma, na Idade Média. Em Aristóteles já há menção à palavra. Na visão aristotélica, a origem do termo data do século V A.C. com o poeta Hegemon de Thaso. Entretanto, alguns autores apontam Hipponax de Éfe- so como “pai da paródia”. Massaud Moisés (1997) acrescenta que os autores anônimos de Magites e Batrachomiomachia (Batalha das Rãs e dos Ratos) foram os responsáveis pela introdução das obras de natureza paródica. Hutcheon (1989) confirma o fato de que o fenômeno paródico não é recente. A autora retoma Bakhtin para quem a paródia é “um híbrido dialogístico intencional”. Ou seja, a paródia funde discursos da prosa e do verso, o que a coloca como um gênero híbrido. Sant’Anna (1985), ancorado na obra de Bakhtin, explica que a paródia, se comparada à versão original do texto, é uma espécie de “filha rebelde” porque possui efeito deformador. Partindo desse conceito, é possível afirmar que a mímica e a paródia se en- trelaçam já que o ponto de referência de ambas é a deformação, a exemplo da máscara que também deforma. Nesse sentido, Sant’Anna (1985, p. 30), ao relacionar paródia com representação, comenta que a paródia tem uma prática teatral interessante já que possui “função complementar nas peças dramáticas”. Para o autor, “a paródia tem uma função catártica, funcionando como contraponto com os momentos de muita dramaticidade” (SANT’ANNA, 1985, p. 30). A paródia nos interessa por fazer parte de uma estratégia discur- siva de resistência: ao se apropriar da linguagem do colonizador (ou do dominador), os dominados podem ter acesso a instrumentos para sua au- 41 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz toexpressão. Há então paródias com relação ao gênero literário, como, por exemplo, Darcy Ribeiro, que parodia cenas de uma missa para recuperar parte da cultura indígena do Amazonas, no seu romance Maíra (1989). Também há paródias como o Auto da Compadecida (1990), de Ariano Su- assuna, que recupera o gênero de teatro europeu medieval para problema- tizar a situação do sertanejo brasileiro. Portanto, a afirmação de Sant’Anna (1985) de que a paródia pode ser entendida como algo mais que uma representação parece oportuna. Segundo ele, a recuperação do vocábulo no sentido psicanalítico define a paródia como uma re-apresentação. Aquilo que ficou recalcado em seu sub- consciente pode emergir, acrescido de informações outrora ocultas. Para o autor, o texto parodístico cumpre exatamente esse papel, pois é uma forma diferente e inteiramente nova de ler o convencional. Trata-se de adquirir consciência crítica pela liberação do discurso. Ainda nesse campo, o estudioso sustenta que a compreensão de paródia se associa à imagem no espelho consoante a teoria lacaniana. Nessa teoria, segundo especialistas, a criança, ao se olhar no espelho, não sabe que a imagem que vê é dela mesma. Ela pode pensar que se trata da imagem de outra pessoa. Daí a analogia da paródia com o espelho. Ainda segundo Sant’Anna (1985, p. 32), a paródia “pode ser um espelho, mas um espelho invertido”. Por essa razão, o autor opta pela imagem da “lente”, pois através dela é possível visualizar os exageros, o que possibilita a conversão do que foi focado em algo ou alguém dominante, ou seja, a inversão do que está refletido. Diante do exposto, concordamos com a afirmação de Hutcheon (1989) de que a paródia é uma “imitação com diferença crítica” (HUT- CHEON, 1989, p. 53). Retomando o seu estudo, observamos que a autora considera a natureza e a função da paródia como expressão da pós-moder- nidade. Para tanto, resgata as forças antirrenascentistas do século XVIII a fim de consolidar o significado como ridicularização e negação do texto 42 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS parodiado. Aliada à ironia, a paródia, no afã de alcançar efeito cômico, traz em seu bojo o elemento ridículo. Nesse percurso, Hutcheon (1989) retoma a concepção de paródia de Genette (1997) para explicar suas duas conceituações distintas: a clás- sica e a moderna. Enquanto a clássica indica reverência e homenagem ao alvo da paródia, a moderna implica em sátira e escárnio. Então, a paródia assume a perspectiva da imitação com distanciamento crítico. Nas pala- vras da autora, “Os seus antecedentes históricos são as práticas clássicas e renascentistas da imitação, se bem que com maior ênfase na diferença e na distância do texto original ou conjunto de convenções” (HUTCHEON, 1989, p. 128). A paródia não é apenas uma “homenagem ao original”, mas uma forma de crítica e reescrita de certos aspectos históricos e ideológicos que reproduzem o ponto de vista do marginalizado, recolocando-o como marca positiva e construtora da história. Hutcheon (1989, p. 39) aponta, ainda, que o caráter ideológico da paródia é tênue, pois ela “é, fundamentalmente, dupla e dividida; a sua ambivalência brota dos impulsos duais de forças conservadoras e revolu- cionárias que são inerentes à sua natureza, como transgressão autorizada” (HUTCHEON, 1989, p. 39). Assim, a dupla estrutura do termo (repetição e diferença) não só reforça pela repetição como desmascara pela diferença, ou seja, conecta o passado ao presente, trazendo à tona discussões de ten- sões históricas, que são renovadas pelo texto parodiado. Portanto, [...] a paródia é, pois, repetição, mas repetição que inclui di- ferença; é imitação com distância crítica, cuja ironia pode beneficiar e prejudicar ao mesmo tempo. Versões irónicas de “transcontextualização” e inversão são os seus principais operadores formais, e o âmbito de ethos pragmático vai do ridículo desdenhoso à homenagem reverencial (HUTCHE- ON, 1989, p. 54). Na teoria pós-colonial, os discursos dominantes assumem novos 43 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz significados, visto que são readaptados pelo processo paródico.Hutcheon (1989) afirma que, na reapropriação dos textos anteriores, a paródia man- tém uma relação simultânea de diferença e de dependência com o texto parodiado, pois “Não se trata de uma questão de imitação nostálgica de modelos passados: é uma confrontação estilística, uma recodificação mo- derna que estabelece a diferença no coração da semelhança” (VODICKA, 1964, p. 90 apud HUTCHEON, 1989, p. 19). Dessa maneira, consoante a pesquisadora, os textos parodiados não serão reconhecidos como imitação se não forem apreendidos e inter- pretados pelo leitor: “Sem a existência implícita de um leitor, os textos es- critos não passam de acumulação de marcas pretas em páginas brancas” (HUTCHEON, 1989, p. 35). Em outras palavras, o texto parodiado só atin- ge o status de paródia quando o leitor consegue identificar a conexão com o texto anterior e as diferenças significativas em relação a ele. Hutcheon (1989, p. 48) assinala ainda que “Está implícita uma dis- tanciação crítica entre o texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância geralmente assinalada pela ironia”. Nesse sentido, a paródia, a partir do pós-modernismo, faz referências a estruturas irônicas com os intuitos de recontar e recontextualizar a obra literária bem como outras obras de arte. A estudiosa aponta também que “A paródia é, pois, uma via importante para que os artistas modernos cheguem a acordo com o passado – através da recodificação irônica [...]” (HUTCHEON, 1989, p. 128). Desse modo, Hutcheon designa a paródia como uma das principais formas modernas de autorreflexão. Frente a tais apontamentos, é possível afirmar que o caráter desconstrutivo da paródia se encarrega de modelos e propósitos que vão do ridículo à seriedade respeitosa. A última é bastante evidente na literatura pós-colonial, pois nela a paródia atua como revisão ou releitura do passado no sentido de confirmar ou de subverter o poder representativo da história. O termo ab-rogação significa a recusa do colonizado em aceitar 44 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS os conceitos normativos da língua europeia ou da inferiorização da língua nativa, ou seja, pela ab-rogação o sujeito colonizado repudia a estética da cultura imperial, recusando-se a fazer o uso correto ou o uso padrão da língua, além de desprezar os significados fixos das palavras. Já o termo apropriação refere-se à língua europeia que é adaptada para se descrever o ambiente não europeu. Pela apropriação o colonizado assume a linguagem do colonizador e a utiliza para seu próprio serviço. A adaptação da língua imposta, para descrever o contexto do colonizado, não é uma estratégia aceita por todos os autores pós-coloniais. Em alguns mo- mentos de sua carreira, Ngugi Wa Thiong’o, por exemplo, escreveu em sua língua materna porque acreditava que essa era uma forma de subversão ao poder colonial e de valorização de sua cultura, ab-rogando, assim, a língua europeia. Para ele, usar a língua imposta pelo colonizador seria refletir uma cultura da qual não faz parte. Por sua vez, Chinua Achebe acreditava que o fato de se apropriar da língua inglesa, de subvertê-la e de utilizá-la para descrever suas experi- ências de povo colonizado, era uma boa forma de propagar suas obras e, ao mesmo tempo, de denunciar a realidade colonial. No entanto, ao assumir a língua do colonizador, Achebe trabalhou a língua inglesa sem abrir mão de vocábulos e expressões próprias da cultura Igbo, da qual o autor faz parte, e também não deixou de problematizar a situação de seu grupo social pe- rante a colonização em suas obras, o que caracteriza a sobrevidade, assunto que trataremos posteriomente. A apropriação da língua inglesa ou qualquer outra língua domi- nante, seu uso para contar a experiência colonial e pós-colonial ocorrem no plano literário também por meio das práticas discursivas da releitura e da reescrita. A releitura é uma forma que os autores pós-coloniais utilizam para demonstrar resistência às imposições imperiais. Bonnici (2005, p. 49) ar- gumenta que “A releitura é uma maneira de ler os textos literários para 45 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz revelar suas implicações no processo colonial”. Por intermédio da releitura, é possível desconstruir a ideologia colonialista de textos escritos pelos colo- nizadores. A releitura da peça de Shakespeare, A tempestade, por exemplo, permite desvendar o discurso cultural e ideológico dominante a respeito do nativo. Assim, a personagem Calibã seria a representação dos nativos afrocaribenhos com todos os estereótipos criados pelos europeus. No caso da obra de Jane Austen, Mansfield Park (1814), alguns momentos do livro mostram que o trabalho escravo era a base da riqueza britânica. O processo de releitura, nesse viés, colabora para a possibilidade de uma nova premissa de construção social e cultural, colocando em evidência fatos e vozes antes desconhecidos ou obscurecidos pelos narradores da história. A reescrita é outro recurso que os autores pós-coloniais utilizam para se apropriar da linguagem do dominador e apresentar um contra- discurso efetivo, podendo ser considerado um passo à frente da releitura, pois a primeira se configura em uma nova interpretação da obra original, enquanto a segunda seria uma resposta em forma de literatura feita nos interstícios ou uma nova perspectiva do evento histórico representado pela obra original, o que consistiria em uma resposta ou questionamento dos estereótipos e imagens geradas pelo texto original. Bonnici (2005) assinala que [...] a reescrita tornou-se uma prática discursiva pós-colonial através da qual, e aproveitando-se de lacunas, silêncios, ale- gorias, ironias e metáforas do texto ‘canônico’, surge um novo texto que subverte as bases literárias, os valores e os pressu- postos históricos do primeiro (BONNICI, 2005, p. 48-49). Em outras palavras, a reescrita de textos canônicos é a própria ma- terialização da paródia, pois seu intento é a subversão dos valores. Bonnici (2005) aponta alguns romances como exemplos de reescrita fundados na paródia. Um deles é Foe, do autor sul-africano J.M. Coetzee, reescrita de Robinson Crusoe. Segundo ele, o romance 46 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS [...] retoma as lacunas deixadas pelo silêncio da mulher e o tema do ‘feliz encontro’ de Friday com o europeu. Portanto constrói um novo texto, problematizando a possibilidade da fala dos colonizados: esse novo texto interroga o texto ‘canô- nico’ e, ao mesmo tempo, se constrói como discurso legítimo (BONNICI, 2005, p. 49). Outro exemplo é a narrativa de Jean Rhys, Wide Sargasso Sea, re- escrita de Jane Eyre, de Charlote Brontê. Nessa obra, Antoinette, outrora Bertha Antoinette Mason (a louca do sótão), em Jane Eyre, assume a voz feminina e conta sua versão dos fatos. Nessa linha de raciocínio, a paródia se configura na retomada do romance canônico, fato que permite que as personagens, antes objetificadas, tenham vez e voz, alcançando a subjetifi- cação. Desse modo, a reescrita e a releitura são estratégias utilizadas para se repensar o cânone literário, uma vez que não só repensam as relações imperialistas, contidas nas obras canônicas, como também reconsideram a literatura contemporânea. Além disso, é importante destacar que o recurso da paródia faz parte da reescrita de várias obras no cenário literário inter- nacional, sendo que as que se baseiam na teoria pós-colonial são as que mais se dedicam a essa tipologia. A reescrita paródica de obras de registro histórico serve para descortinar uma falsa ideologia que, se não for denun- ciada, difundida, propagada, eternizar-se-á, exatamente como as ideias ra- cistas de que o negro era inferior ao branco. 4. Survivance ou sobrevidade Somos sombras, silêncio, pedras, histórias, nunca uma si- mulação morta da luz na distância. Pedras do embusteiro e histórias pós-indígenas são minhas sombras, os traços natu- rais de libertação e sobrevidade nas ruínasda representação (VIZENOR, 1994, p. 64).5 5 We are shadows, silence, stones, stories, never dead simulation of light in the distance. Trickster stones 47 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz O termo survivance definia sobrevivência a algum evento ou so- breviver a uma pessoa no inglês jurídico até o século XVIII. Derrida (2011) utilizou o termo para significar um estado, que não seria nem vida, nem morte, algo como uma existência inexistente. Gerald Vizenor, escritor in- dígena Anishinaabe, baseado em Derrida, ampliou o sentido da palavra em seu livro Manifest Manners: Narratives on Postindian Survivance (1994). Nesse livro, ele descreve a literatura indígena, explicando o termo da se- guinte forma: “Survivance é um senso ativo de presença, a continuidade das histórias nativas, e não apenas uma reação, ou um nome que sobrevive. Histórias de survivance indígena são renúncias à dominação, tragédia e vi- timização”. Apesar de ser deliberadamente impreciso, estudiosos da fortuna crítica sobre a escrita indígena encaram o termo como uma aglutinação de survival e endurance, ou resistance. Ou seja, algo em português que poderia ser traduzido como sobrevidade, uma mistura de sobrevivência com con- tinuidade. Trata-se de uma sobrevivência ativa, na qual os povos indíge- nas são representados além das ruínas de suas comunidades e das culturas decretadas mortas, ou restritas a reservas, os índios estereotípicos da raça extinta, ou em vias de extinção. Também retrata o questionamento dos es- tereótipos do indígena selvagem assassino e o nobre selvagem, subserviente aos colonizadores. Os indígenas, mais do que meramente subsistirem nas ruínas de sua cultura tribal ou cumprirem os papeis de vítimas geralmente destinados a eles, estão herdando e reconfigurando suas culturas para a era pós-moderna, adaptando-se, negociando, apropriando-se dos instru- mentos hegemônicos da dominação para garantir sua continuidade, muitas vezes, como uma cultura híbrida, mas questionadora. O uso de Vizenor para Sobrevidade é a oposição de vitimização, que coloca as populações de indígenas como meros sobreviventes dos and postindian stories are my shadows, the natural traces of liberation and survivance in the ruins of representation. (VIZENOR, 1994, p. 64) 48 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS ataques genocidas que vieram sofrendo desde o início da colonização das Américas. Depois, esse passa a ser um termo de arte, ou uma estratégia de retórica, empregada por muitos críticos e autores indígenas. Stromberg (2006) pergunta: porque survivance e não sobrevivência – survival? Ele afirma que, enquanto a ideia de sobrevivência traz imagens de prender-se a um tênue fio de existência, survivance vai além da mera sobrevivência, em direção ao reconhecimento da natureza criativa da re- tórica indígena. Stromberg ainda afirma que essa estética vai transparecer na música, na arte, na literatura, em todas as formas de expressão linguís- tica e cultural que podem transferir uma nova representação da vida do “povo dominado”, nesse caso, dos indígenas. Trata-se, então, de reivindicar e reforçar a perspectiva indígena dentro de um espaço cultural contestado, no qual os indígenas estão em desvantagem histórica, política e cultural. Isso não significa vender-se, ou entregar-se à cultura dominante, mas um discurso que permita a resistência adaptativa que reafirme a existência e a identidade do indígena. A sociedade se utiliza de estratégias para anular a existência do indígena, como, por exemplo, negar a identidade cultural pelo fato do indí- gena não utilizar o tempo todo trajes tradicionais ou o uso de outros mar- cadores culturais, como pintura corporal. Dessa forma, o indígena seria apenas uma figura seminua, analfabeta e distante da chamada “civilização”. Porém, autores indígenas se valem dos mesmos estereótipos para questio- ná-los com ironia, símbolos e metáforas, exatamente para reafirmar a exis- tência desse indígena culto, que se adapta ao novo mundo, e que reivindica para si sua cultura e sua voz. A sobrevidade permite a resistência e a continuidade enquanto houver sobrevivência. Tratam-se de técnicas adaptativas mostrando que a cultura indígena tem capacidade de se desenvolver e se recriar, adaptan- do-se pelo contato com outras culturas imigrantes. Caso permanecessem como eram, tais culturas teriam desaparecido. 49 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz Vizenor, para se referir aos indígenas americanos em geral, uma vez que indians descreve os habitantes da Índia, e nativos é um termo gené- rico, cunhou o termo varionativo (varionative), lembrando a diversidade de etnias (nações) que compõem o quadro de indígenas das Américas. Tam- bém cria o termo transmotion (transmovimento), definindo-o da seguinte forma: O varionativo é uma curva incerta de antecedência nativa; noções obscuras de lembrança nativa e presença. Os traços varionativos de ancestrais são escriturais, episódicos e irôni- cos nas narrativas. (…) A memória nativa é aquele senso de presença na lembrança, aquele traço da criação e da razão natural nas histórias; antes um nome obscuro, a conotação de memória é uma presença nativa nesses ensaios, não o roman- ce de uma ausência estética ou da vitimização. As conota- ções de transmovimento, aquele senso de movimento nativo e uma presença ativa, é soberania sui generis. O transmo- vimento é sobrevidade, um uso recíproco da natureza, não uma soberania monoteística, territorial. Histórias nativas de sobrevidade são as marcas de transmovimento e soberania6(- VIZENOR, 1998, p. 15). Como estética literária, críticos começam a verificar como os as- pectos culturais e narrativos de indígenas passam a fazer parte de suas his- tórias de vida e sua literatura que assume formas específicas, tanto indivi- duais quanto tribais, e diferenciadas. A partir da crítica, o termo também é incorporado em obras literárias escritas por autores indígenas, como esse poema da escritora da etnia Cherokee, Diane Glancy. 6 “The varionative is an uncertain curve of native antecedence; obscure notions of native sovenance and presence. The I’arionative traces ofancestors are scriptural, episodic, and ironic in narratives. The pene- natil’e is the autoposer, the autobiographical poseur, or the almost native by associations and institutive connections. Native sovenance is that sense of presence in remembrance, that trace of creation and na- tural reason in native stories; once an obscure noun, the connotation of sovenance is a native presence in these essays, not the romance of an aesthetic absence or victimry. The connotations of transmotion are creation stories, totemic visions, reincarnation, and sovenance; transmotion, that sense of native motion and an active presence, is sui generis sovereignty. Native transmotion is survivance, a reciprocal use of nature, not a monotheistic, territorial sovereignty. Native stories of survivance arc the creases of transmotion and sovereignty” (VIZENOR, 1998, p. 15). 50 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS Diane Glancy – Cherokee O poema Reverbera Uma virada da escrita Sobre – uma sobrevivência além da sobrevivência Vidade – a vitalidade disto7 Como característica, a estética da sobrevidade vale-se da ironia, do quebrar de regras, das brincadeiras da linguagem para enganar a pró- pria ideologia dominante, trazendo formas de expressão específicas, como o tricksterismo, ou seja, a utilização da figura do trickster indígena como personagem (a exemplo dos brasileiros Saci-Pererê e Macunaíma) ou como linguagem (o próprio uso de ironias, aspectos orais, entre outras caracterís- ticas). A estética de sobrevidade na literatura é representada principal- mente pela escrita do Trickster, o embusteiro, aquela figura mítica de di- versas etnias indígenas, incluindo Coyote, Corvo, Iktomi (a Aranha), entre outros. Trata-se de um ser que fica nas fronteiras entre o humano, o animale o divino e, ao mesmo tempo, auxilia e atrapalha nas histórias de criação do mundo vistas pelos indígenas. Na linguagem, o Trickster engloba a am- biguidade e a ironia que afirma a identidade indígena dentro do mundo não-indígena, utilizando-se dos instrumentos construídos para negá-la. Na literatura indígena estadunidense, autores como Sherman Ale- xie, Joy Harjo, Leslie Marmon Silko e Scott Momaday utilizam-se da língua inglesa para falar dos problemas indígenas, mas executam uma releitura dos gêneros. Por exemplo, podem transformar um memoir, uma história de vida em romance em um gênero híbrido, com características que lem- bram, por exemplo, o realismo fantástico, colocar poesia, letras de música, palavras e aspectos culturais de suas etnias, trabalhando com diversos gê- 7 Poetry is Rebound. A turn of writing. Sur- a survival outside survival. Vivance – the vitality of it 51 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz neros numa mesma obra. Outros autores, como Thomas King e Zitkala-Sa recontam as lendas e mitos, assim como recuperam a tradição de suas et- nias, embora as escolham e reescrevam de maneira que também possam ser inscritas nos problemas atuais dos indígenas, situando-as no limite entre o real e o imaginário, entre a tradição e a contemporaneidade. Assim, a sobrevidade garantiu aos indígenas estadunidenses a for- mação de um cânone próprio e, não só isso, uma estética própria, que mis- tura gêneros, trabalha com a linguagem e desafia muitos críticos e autores literários que ainda afirmam que a literatura indígena é menor, produzida por incultos: Os novos nacionalistas denigririam o individualismo nati- vo, as narrativas visionárias, oportunidades, razão natural, e sobrevidade, pois as ideologias negam quaisquer distinções de estética nativa e arte literária. Michael Dorris, o falecido romancista argumentava contra as distinções estéticas da li- teratura indígena. Outros autores e intérpretes de literatura resistiram à ideia de uma estética indígena singular8(VIZE- NOR, 2008, p. 17). Mesmo com as teorias e teóricos presos aos processos mais formais de criação literária negando a estética da sobrevidade, podemos observar que aspectos de resistência e de sobrevidade também na literatura brasilei- ra, como veremos no próximo tópico. 5. Sobrevidade e aspectos de resistência na literatura brasileira Seguindo muitos dos aspectos de resistência e sobrevidade, no Bra- sil temos autores como Daniel Munduruku, autor da etnia Munduruku, que escreveu dezenas de livros nas últimas décadas, que variam desde his- 8 “The new nationatists would denigrate native individualism, visionary narratives, chance, natural reason, and survivance for the ideologies that deny the distinctions of native aesthetics and literary art. Michael Dorris, the late novelist, argued against the aesthetic distinctions of native literature. Other authors and interpreters of literature have resisted the idea of a singular native literary aesthetic” (VI- ZENOR, 2008, p. 17). 52 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS tórias de vida, crônicas, contos, literatura infantil, até estudos científicos e sócio-históricos da cultura indígena. Outro exemplo é Eliane Potiguara, da etnia Potiguara, cuja obra Metade cara, metade máscara (2004) torna-se um livro inclassificável, pois contém uma narrativa poética épica ficcional, his- tórias da vida da autora, poemas avulsos e, também símiles e transcrições de notícias de jornais. Com essa configuração estética, ela problematiza a situação do indígena desde o início da colonização das Américas até a atu- alidade. Outros autores indígenas como Kaká Werá Jekupê e Olívio Jecupê, ambos Guaranis, também escrevem suas histórias de vida, poemas, lite- ratura infantojuvenil e adulta. Também são autores de diversas obras que problematizam a situação indígena desde a recuperação de suas histórias tradicionais até a crítica política, feita de forma direta, com textos ensa- ísticos ou crônicas, ou de forma indireta, dentro das obras de ficção, nas metáforas, na simbologia, nas ironias e nas narrativas de vida. No Brasil, podemos ver a literatura de sobrevidade existindo tam- bém em outros grupos sociais além dos indígenas, como Blogueiras Negras, as escritas de periferia das grandes cidades, ligadas não apenas à estética das favelas e das comunidades carentes, mas também a questões sociais, étnicas, todas com uma nova proposta de estética. Ainda nesse contexto, podemos citar Conceição Evaristo como exemplo de autora negra, que em poesia e prosa problematiza e liriciza a narrativa, transformando a realida- de dura de ser mulher, negra e pobre no Brasil, em algo descrito de forma poética, singular e nova. Carolina Maria de Jesus também denuncia a condição da mulher negra, oprimida, favelada de forma poética e autobiográfica. Sua escrita carregada de lirismo apresenta denúncias e testemunhos de uma favela- da, catadora de papel que busca o pertencimento por meio da escrita. Da mesma forma, Ana Maria Gonçalves denuncia a condição de uma mulher negra, ex-escrava, de forma subjetiva, poética e autobiográfica. As vozes 53 Alba Krishna Topan Feldman | Ruan Fellipe Munhoz das ancestrais femininas presentes em seu romance Um defeito de cor reco- locam o negro na (e reescrevendo assim a) história. Solano Trindade, poeta e dramaturgo, ativista pelas causas negras, também utilizou a resistência discursiva e a sobrevidade em suas poesias carregadas de lirismo e denúncia social, por meio da valorização da cultura e do resgate da história dos seus antepassados, como as religiões e costumes africanos e afro-brasileiros. Os escritores e escritoras citados são apenas alguns exemplos tra- zendo inovações que confrontam a estética canônica, ao mesmo tempo em que denunciam os sofrimentos de suas etnias, raças, classes ou grupos sociais distintos, negociando e afirmando identidades. Além deles, há di- versos outros que publicam cada vez mais, muitas vezes originando-se em outros grupos sociais não citados neste capítulo, que se utilizam do discur- so literário para criarem uma estética nova, desafiadora e engajada, enri- quecendo, assim, a literatura brasileira. 6. Considerações Finais Mesmo com as vitimizações, explorações e imposições de hierar- quia do poder colonial e de outras forças dominantes, como o capitalismo, a hegemonia cultural europeia, escritores, utilizando-se de diversos aspectos da resistência discursiva, não apenas sobrevivem, questionam e reescrevem suas histórias, mas também garantem a criatividade, a produção de uma nova estética que se utiliza das ferramentas da tradição e da modernidade em seu trabalho. Este capítulo mostrou apenas algumas dessas estratégias, que vão desde ações físicas, como a resistência pacífica (à qual acrescentamos a sub- divisão de direta e indireta à classificação de Ashcroft), passando pela resis- tência armada ou violenta e chegando, finalmente, à resistência discursiva (à qual também subdividimos em direta e indireta). Quanto à resistência 54 PERSPECTIVAS MULTICULTURAIS E PÓS-COLONIAIS discursiva indireta, mostramos que pode ser feita pela paródia, a releitura, e a reescrita, a ab-rogação da dominação, e a apropriação dos bens culturais do dominante, não apenas para imitá-lo, mas, principalmente, com o obje- tivo não só da sobrevivência de uma cultura, etnia, modo de pensamento, mas também para sua continuidade, adaptação, ou seja, a sobrevidade. Destacamos que a estética da sobrevidade, observada e apontada primeiramente por Gerald Vizenor na literatura indígena, pode muito bem ser demonstrada em outros grupos considerados minorias étnicas, sociais, culturais, religiosas, entre outros, tanto na literatura brasileira feita por esses grupos, quanto em outras literaturas mundiais de natureza similar. Além disso, buscamos fazer um painel exemplificando alguns autores que se utilizam dessas técnicas no Brasil. Todas as formas de resistência discursiva