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Os Sofrimentos do Jovem Werther

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Prefácio
Marcelo Backes
A literatura alemã divide-se em antes e depois de Werther. Se na lírica a
Alemanha setecentista tinha Klopstock e no drama tinha Lessing,*[1] no
romance ainda não havia produzido nenhuma obra viva, moderna,
verdadeiramente atual. Se Klopstock dignificava a literatura com seus versos
nobres e bem talhados, no teatro Lessing tornara-se um nome universal,
conduzindo a dramaturgia alemã a alturas jamais vistas. No romance,
contudo, ainda faltava o grande autor e, com ele, a grande obra. Antes de
Werther, de Goethe...
Ao escrever Werther, em 1774, Johann Wolfgang Goethe (1749-1832)
alcançava sua primeira obra de sucesso e, de quebra, dava início à prosa
moderna na Alemanha e antecipava a entrada da Europa no romance
oitocentista e burguês. Foi logo depois do Werther, também, que os alemães
deram à Literatura Universal algumas de suas maiores obras, talvez o maior
número delas, tornando-se uma das literaturas mais imponentes do mundo.
Werther não é, simplesmente, um romance em cartas assim como A
nova Heloísa de Rousseau ou Pamela de Richardson, modelos deste tipo de
romance antes da empreitada goetheana. Nessas obras, embora haja uma
personagem principal nítida, são as missivas de vários correspondentes que
forjam a narrativa. A obra de Goethe é – no entanto e muito antes – o
romance de uma alma, uma história interior, que antecipa, inclusive, a
opulência psicológica de Afinidades eletivas, uma das obras-primas do autor.
O “eu” mostra-se tão forte, o sujeito se evidencia tão vigoroso no romance,
que não permite a aparição escrita dos correspondentes e se assegura tão
somente na sua própria opinião. Em Werther todas as cartas são escritas pelo
herói e apenas emendadas por um suposto editor.
Guilherme, o destinatário das cartas, faz o papel do leitor, e Goethe
conduz o romance de maneira magistral. Se Werther se dirige de maneira
indireta ao leitor através de Guilherme, o editor-personagem – que intervém
no início do livro para explicar a compilação das cartas, um punhado de
vezes nas notas de rodapé e ao final, para arredondar a história – o faz de
maneira direta. Ele interrompe para estipular fatos, esclarecer dúvidas e o faz
de maneira objetiva – embora ame o personagem –, opondo-se à
subjetividade fogosa da narração de Werther.
Tudo no romance é construído para afirmar o sujeito. As cartas de
Werther o fazem – desta vez – de maneira direta. O amor do “editor” ao
personagem, assim como a natureza em todo seu fulgor – a natureza ajusta-
se, em sua beleza e fúria, à alma de Werther – o fazem de maneira indireta. E
Werther torna-se, assim, o primeiro romance da História da Literatura
Univeral em que um personagem vai em busca do absoluto através de suas
próprias experiências e vivências íntimas neste mundo, através do amor ao
próximo e do amor à natureza.
Em Os sofrimentos do jovem Werther há muito de autobiografia e uma
boa dose de estranhas relações entre o romance e a vida real de seu autor e
um círculo de amigos de Wetzlar, cidade alemã que Goethe habitava à época
em que escreveu o livro. Goethe estava de fato apaixonado por Carlota
(Charlotte) Buff, mulher de Johann Kestner. O autor manteve
correspondência assídua com o casal, mesmo depois de publicado o livro, e
chegava a afrontar a união dos dois com declarações – nem tão sutis – de
amor, endereçadas a Charlotte. A primeira parte do romance é a história dessa
paixão, o que é reconhecido pelo próprio Kestner (ver Adendo, ao final).
A segunda parte – e o desenlace – é a história e a tragédia de Karl
Wilhelm Jerusalem. O moço também fazia parte do círculo de amigos e,
apaixonado pela mulher dum outro membro do grupo (secretário Herd), teve
a mesma sorte – sem tirar nem pôr quase nada – do Werther de Goethe. O
interessante é que Goethe ficou sabendo da história do desgraçado através de
uma carta do próprio Kestner – o marido de sua Charlotte –, que, por
fatalidade, emprestara as pistolas a Jerusalem, a quem só tinha visto um par
de vezes. Assim, Werther, que era Goethe, incorporou Jerusalem, para morrer
como este e deixar o autor – também em transe de paixão – vivo. As pistolas,
na realidade e na ficção, foram dadas por Kestner-Alberto. A história é
intrincada e o escritor Theodor Fontane, um dos maiores romancistas alemães
do século XIX, manifestou seu pasmo e sua admiração pelo fato de Goethe
ter alcançado, com a junção de tantos elementos diferentes – da vida e da arte
–, uma obra com tanta unidade e vigor.
Werther foi um testemunho de como a literatura tinha poder de agir na
sociedade. Não foram poucos os suicídios atribuídos ao romance. O bispo,
Lorde Bristol, chegou a acusar Werther de ser uma obra imoral, que levava os
jovens a se suicidarem. Goethe respondeu-lhe, na lata, que se ele falava nesse
tom do seu pobre Werther, com que tom deveria falar dos poderosos da terra.
Com um traço de sua pena, eles mandam milhares de pessoas à guerra – onde
estas se matam e se trucidam –, enquanto a própria Igreja agradece aos céus
por isso e lhes entoa um Te Deum em louvor.
Goethe escreveu o romance em quatro semanas. Sempre se gabou de
que Napoleão havia lido “seu livrinho” sete vezes e o carregava consigo em
sua Biblioteca de Campanha. Quando o imperador francês encontrou o
grande escritor alemão em 02 de outubro de 1808, disse: “Eis um homem” e
o louvou por seus escritos, ao que Goethe, meio descontente pela invasão
exitosa da França na Alemanha, respondeu de maneira lacônica,
desconversando. Ao fim do colóquio, Napoleão convidou-o para visitá-lo em
Paris. O reencontro jamais aconteceu.
O romance de Goethe é inusitadamente curto para os padrões da época –
A nova Heloísa, por exemplo, tem oitocentas páginas. Werther é um fulgor,
um raio atravessando o horizonte da Literatura Universal. Construído sobre
um arcabouço quase dramático, os acontecimentos sucedem-se num
crescendo quase martirizante, anunciando e preparando a catástrofe. Todos os
acontecimentos que rodeiam o núcleo do romance entre Werther e Carlota –
caracterizado pela sua unilateralidade trágica – são simbólicos e antecipam ou
indiciam o comportamento do próprio Werther, justificando seu passo final.
Altissonante na forma e dolorido na exposição de sua tragédia, o personagem
ata o nó da nossa garganta por várias vezes, dói fundo no peito e invoca a
solidariedade do sofrimento.
De sobra no romance, a beleza sintética de uma metáfora, que fez de um
personagem secundário a “pedra de Bolonha”, o fulcro irradiante de um amor
que toca mesmo sem estar presente. O trecho é aquele em que Werther manda
seu criado à casa da amada Carlota apenas para, diz: “ter junto de mim
alguém que tivesse estado em sua presença”. E continua: “Com que
impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo! Não tivesse vergonha e
teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de beijos”. Logo vem a
metáfora e a beleza é muita: “Falam que a pedra de Bolonha, quando exposta
ao sol, absorve os seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-
se o mesmo comigo e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota
haviam pousado em seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na
gola de seu sobretudo, tornava-no tão querido, tão sagrado para mim!
Naquele momento não daria aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão
bem em sua presença...”
Em sua intensidade plena de dor, o Werther jamais deixará de fazer-nos
sentir o sobressalto diante daquilo que é irremediável. Exatamente como a
“pedra de Bolonha”, Werther parece ter absorvido a paixão do mundo na dor
criativa de um gênio, voltando a refleti-la, de novo e sempre, no instante da
leitura. A obra corresponde, em sublime plenitude, ao mesmo amor que todos
– pelo menos os que de fato o entendem: amor e Werther – um dia sentiram,
sentem e sentirão.
Para terminar conforme o trecho de Goethe – que a altissonância
reverente nesses assuntos vai bem, o ceticismo claudica e a literatura,
ademais, é boa –, “Deus te livre de rir disso”, leitor!
Os Sofrimentos do Jovem
Werther
Tudo aquilo que me foi dado encontrarna história do pobre Werther, eu
ajuntei com diligência e agora deposito à vossa frente, sabendo que havereis
de me agradecer por isso. Não podereis negar vossa admiração e vosso amor
ao seu espírito e ao seu caráter, nem esconder vossas lágrimas ao seu
destino.
E tu, boa alma, que sentes o Ímpeto da mesma forma que ele o sentiu,
busca consolo em seu sofrimento e deixa que o livreto seja teu amigo se, por
fado ou culpa própria, não puderes achar outro mais próximo do que ele.
Primeira Parte
Aos 04 de maio de 1771.
Como estou contente de ter partido! Ah, meu amigo, o que é o coração
humano! Deixar-te, a ti que eu tanto amo, de quem eu era inseparável, e estar
contente! Sei que me perdoarás. Não estavam todas as minhas demais
relações como que escolhidas pelo destino a fim de afligir um coração como
o meu? A pobre Leonor! E contudo eu era inocente! Podia eu fazer algo se,
enquanto o encanto teimoso de sua irmã me proporcionava tão agradável
companhia, uma paixão se acendia em meu pobre coração? E todavia... serei
eu totalmente inocente?[2] Não alimentei seus sentimentos? Não me deleitei
com as sinceras expressões daquela criatura, expressões que tantas vezes nos
fizeram rir, embora na realidade fossem tão pouco dignas de riso? Não fiz
eu... Oh, o que é o homem, para se atrever a lamentar-se sobre si mesmo! Eu
quero, dileto amigo, eu te prometo que quero corrigir-me, nunca mais haverei
de, como sempre fiz, beber até a última gota os males que o destino nos
reserva. Quero gozar o presente e o passado será passado para mim. É claro,
caríssimo, que tu tens razão. As dores dos homens seriam menos agudas se
eles não... Deus sabe por que eles são feitos assim! Se ocupar com tanta
assiduidade da fantasia, chamar de volta a lembrança dos males passados, ao
invés de tornar o presente suportável...
Tu és tão bom para comigo que, com certeza, não verás problema em
dizer a minha mãe que estou tentando me ocupar da melhor forma possível
dos negócios dela e que, em breve, haverei de lhe dar notícias a respeito de
seu andamento. Falei com minha tia e nem de longe encontrei a mulher má
que as pessoas tentam fazer dela. Ela é viva e impetuosa, dona do melhor dos
corações. Expus-lhe as queixas de minha mãe sobre o fato de ficar com parte
da herança, ela me deu suas razões, seus motivos e as condições segundo as
quais está pronta a entregar-nos tudo, e inclusive mais do que nós
reclamamos... Resumindo, não me agrada continuar escrevendo acerca disso;
diga a minha mãe que tudo haverá de acabar bem. Neste insignificante
negócio só fiz comprovar mais uma vez, meu caro, que os mal-entendidos e a
indolência talvez causem mais enganos no mundo do que a esperteza e a
maldade. De qualquer modo as duas últimas são, por certo, mais raras.
De resto estou me sentindo muito bem por aqui. A solidão destas
campinas paradisíacas é um bálsamo delicioso para o meu peito, e essa época
de juventude aquenta com toda plenitude meu coração tantas vezes tiritante.
Cada árvore, cada moita é um ramo de flores, e a gente faria gosto em se
transformar num besouro para esvoaçar nesse mar de perfumes e poder sugar
todos os seus alimentos.
A cidade em si é desagradável, mas nos arrabaldes a natureza é de uma
beleza indizível. Foi o que levou o falecido Conde de M... a plantar um
jardim sobre uma daquelas colinas, que se sucedem umas às outras com tanta
variedade, formando vales plenos de delícia. O jardim é simples, e logo à
entrada a gente sente que o seu esboço não foi elaborado por um jardineiro
que domina a ciência, mas por um coração sensível,[3] que ali queria deleitar-
se e gozar-se a si mesmo. Alguma lágrima já consagrei a sua memória, num
pavilhão arruinado que foi o seu lugarejo favorito e hoje é também o meu.
Em breve serei o senhor do jardim; o jardineiro já simpatiza comigo tão-só
pela convivência destes poucos dias e não achará mal se eu ficar por ali em
definitivo.
10 de maio
Uma serenidade admirável domina minha alma inteira, semelhante à
doce manhã primaveril que eu gozo de todo o coração. Estou tão só e minha
vida é feita de alegrias por viver numa região que parece ter sido criada para
almas como a minha. Estou tão feliz, meu amigo, tão mergulhado na
sensação de minha calma existência, que a minha arte sofre com isso. Não
poderia desenhar nada agora, nem sequer um traço, embora jamais tenha sido
tão grande pintor quanto neste instante. Quando a bruma do vale se levanta a
minha volta,[4] e o sol altaneiro descansa sobre a abóbada escura e
impenetrável da minha floresta, e apenas alguns escassos raios deslizam até o
fundo do santuário, ao passo em que eu, deitado no chão entre a relva alta, na
encosta de um riacho, descubro no chão mil plantinhas desconhecidas...
Quando sinto mais perto de meu coração a existência desse minúsculo mundo
que formiga por entre a relva, essa incontável multidão de ínfimos vermes e
insetinhos de todas as formas e imagino a presença do Todo-poderoso, que
nos criou a sua imagem e semelhança, e o hálito do Todo-amado que nos leva
consigo e nos ampara a pairar em eternas delícias... Ah, meu amigo, quando o
mundo infinito começa a despontar assim ante meus olhos e o céu se reflete
todo ele em minha alma, como a imagem de uma amada... Então suspiro
profundamente e penso: Ah! pudesses tu voltar a expressá-lo, pudesses tu
exalar o sentimento e fixar no papel aquilo que vive em ti com tanta
abundância e tanto calor, de maneira que o mesmo papel pudesse se fazer o
espelho de tua alma, como tua alma é o espelho do Deus infinito! Meu
amigo! Mas vou ao chão ante isso, sucumbo ante o poder e a majestade
dessas aparições.[5]
12 de maio
Não sei se erram por esta região espíritos da ilusão, ou se é a quente e
celestial fantasia que se apossa do meu peito, fazendo com que tudo pareça
tão paradisíaco ao meu redor. Logo ali, à entrada do lugar, há uma fonte, uma
fonte à qual estou preso como Melusina[6] e suas irmãs. Ao desceres uma
pequena colina e te achares diante de uma gruta, que desce por cerca de vinte
degraus, verás a mais límpida das águas jorrar através do mármore. O
pequeno muro, que faz a proteção pela parte de cima, as grandes árvores, que
fazem sombra envolvendo o espaço, o frescor do lugar... tudo tem algo tão
insinuante, tão estremecedor. Não passa um dia sem que eu descanse ali por
uma hora. É ali que as moças da vila vêm buscar água, ocupação das mais
inocentes e das mais necessárias, que outrora não era desdenhada nem pelas
filhas dos reis.
Quando estou sentado ali a idéia do patriarcalismo vive de maneira tão
intensa em mim, que fico a pensar como eles todos, os senhores de antanho,
ali se conheciam e ali arranjavam casamento, numa época em que os espíritos
benfazejos erravam em volta das grutas e fontes. Oh, jamais se refrescou à
beira de uma fonte depois de uma penosa caminhada sob um sol ardente
aquele que não é capaz de sentir o que estou sentindo!
13 de maio
Tu perguntas se deves enviar-me os meus livros... Meu caro, te peço
pelo amor de Deus, deixa-os longe do meu pescoço. Não quero mais ser
guiado, animado e afogueado... Este coração já fermenta o bastante por si
próprio. Necessito muito antes de canções que embalem, e essas eu achei à
suficiência em meu Homero. Quantas vezes tenho de ninar o meu sangue
revolto até acalmá-lo... Tu sabes que não existe no mundo nada tão instável,
tão inquieto quanto o meu coração. Se é que tenho necessidade de dizê-lo a
quem tantas vezes carregou o fardo de me ver passar da aflição à digressão,
da doce melancolia à paixão furiosa, meu caro! É por isso que trato meu
coraçãozinho como uma criança doente, satisfazendo-lhe todas as vontades.
[7] Não diga isso adiante, há pessoas que poderiam usá-lo contra mim.
15 de maio
As pessoas simples do lugar já me conhecem e gostam de mim,
sobretudo as crianças. Fiz uma triste constatação. Quando eu, de começo, me
aproximava delas e lhes perguntava, em tom amistoso, sobre isso e aquilo,
algumas creram que eu queria fazer troça com elas e me ignoraram com
bastante rudeza. Não deixei que isso me aborrecesse,apenas senti com mais
vivacidade algo que já havia observado há tempo: Pessoas de uma certa
categoria conservam-se sempre a uma calculada distância do povaréu
comum, como se acreditassem perder algo através da aproximação. E há
passantes e brincalhões daninhos, que só aparentam descer ao pobre povo
para magoá-lo ainda mais com sua alegria doida.
Eu sei muito bem que não somos todos iguais, que não podemos sê-lo,
mas sustento que aquele que acredita ser necessário permanecer longe do
chamado populacho para manter a dignidade, é tão censurável quanto um
covarde, quanto alguém que se esconde de seus inimigos com medo de
sucumbir ao final.
Há pouco fui à fonte e encontrei uma jovem criada que pousara a bilha
no último degrau das escadas e olhava a sua volta, a ver se não vinha uma de
suas companheiras para lhe ajudar a pôr a vasilha sobre a cabeça. Desci e
olhei para ela, perguntando: “Quereis que vos ajude, donzela?” Ela fez-se
rubra como fogo. “Oh, não, senhor!”, respondeu, “não quero causar
transtornos!” Endireitou o apoio almofadado sobre a cabeça, e eu ajudei-a.
Ela agradeceu e subiu logo depois.
17 de maio
Estabeleci relações de toda espécie, mas ainda não achei companhia
efetiva. Não sei o que tenho de atraente aos olhos das pessoas, há tantos que
se agradam de mim e a mim se prendem, que chega a me doer ter de
abandoná-los, depois de os acompanhar por trechos que às vezes se mostram
tão curtos. Se me perguntares como são as pessoas por aqui tenho de te
responder: como em todo lugar! É uma coisa bastante uniforme a espécie
humana. Boa parte dela passa seus dias trabalhando para viver, e o
poucochinho de tempo livre que lhe resta pesa-lhe tanto que busca todos os
meios possíveis para livrar-se dele. Oh, destino dos homens!
Mas é um belo tipo de povo! Se por vezes me esqueço do mundo e gozo,
junto de outras pessoas, os prazeres que ainda são permitidos aos homens,
como o de se entreter a conversar aberta e cordialmente ao redor de uma
mesa bem servida, o de realizar um passeio de carruagem ou o de arranjar
uma dança na hora certa, tudo isso produz em mim um efeito bastante
agradável. Apenas não me agrada lembrar que há tantas outras faculdades
descansando em mim, que bem podem enferrujar se não forem usadas, e por
ora tenho de ocultar com cuidado. Ah, como isso confrange o coração! E,
todavia, ser incompreendido, é esse o destino da gente!
Ah, por que a amiga da minha juventude ficou para trás?! E por que eu a
conheci?! Eu deveria proclamar: és um louco, procuras o que já não está mais
aqui embaixo... Mas foi minha, essa amiga, senti esse coração, essa grande
alma, em cuja presença eu julgava ser mais do que era, porque era tudo o que
podia ser. Meu bom Deus! Ficou inativa sequer uma de minhas faculdades
naquela época? Não podia eu expandir por completo diante dela aquele
admirável sentimento com o qual meu coração abraça a natureza? Não foi o
nosso convívio um eterno tecer das mais finas sensações, dos mais afiados
gracejos? E mesmo as mudanças de humor, que chegavam à indelicadeza de
quando em vez, não eram desenhadas com o selo da genialidade? E agora...
Ah, os anos que ela tinha a mais do que eu a atiraram à cova antes de mim.
Jamais a esquecerei, jamais esquecerei sua retidão de alma e sua divina
indulgência.[8]
Há alguns dias encontrei o jovem V..., um rapaz franco e aberto, com
uma feição até bastante feliz. Ele acaba de sair da Universidade, não se julga
exatamente um sábio, mas acredita, de qualquer forma, saber mais do que os
outros. Também era diligente, coisa que percebi logo. Em resumo, possuía
um certo conhecimento. Como ouvira que eu desenho e conheço o grego,
dois meteoros nestas terras, se agarrou a mim, desentulhou todo o seu saber,
de Batteux a Wood, de De Piles a Winckelmann, me garantiu que leu de cabo
a rabo o primeiro volume da Teoria de Sulzer e que possuía um manuscrito
de Heyne[9] sobre o estudo da antigüidade. Deixei a coisa correr.
Tive o prazer de conhecer ainda um outro homem de mérito. É o bailio
do príncipe,[10] um homem franco e leal. Diz-se que alegra a alma vê-lo em
meio aos filhos, e ele tem nove. Fala-se sobretudo de sua filha mais velha.
Convidou-me a ir visitá-lo e eu irei logo que puder. Mora num pavilhão de
caça do príncipe, há cerca de meia hora daqui. Permitiram-lhe retirar-se para
lá depois da morte da esposa, por lhe ser demasiado penoso viver
alternadamente na cidade e em sua casa.
Além disso, tenho encontrado em meu caminho alguns originais bem
desfigurados, nos quais tudo é insuportável, sobretudo as provas de amizade.
Adeus! Haverás de gostar da carta. É bastante histórica.[11]
22 de maio
Que a vida humana é apenas um sonho outros já disseram, mas também
a mim esta idéia persegue por toda a parte. Quando penso nos limites[12] que
circunscrevem as ativas e investigativas faculdades humanas; quando vejo
que esgotamos todas as nossas forças em satisfazer nossas necessidades, que
apenas tendem a prolongar uma existência miserável; quando constato que a
tranqüilidade a respeito de certas questões não passa de uma resignação
sonhadora, como se a gente tivesse pintado as paredes entre as quais jazemos
presos com feições coloridas e perspectivas risonhas – tudo isso, Guilherme,
me deixa mudo. Meto-me dentro de mim mesmo e acho aí um mundo! Mas
antes em pressentimentos e obscuros desejos que em realidade e ações vivas.
E então tudo paira a minha volta, sorrio e sigo a sonhar, penetrando adiante
no universo.
Que as crianças não sabem o porquê de desejarem algo, todos os
pedagogos estão de acordo. Mas que também homens feitos se arrastem
como crianças, titubeando sobre a face da terra, e, exatamente como elas, não
saibam de onde vêm e para onde vão, até mesmo que não têm um fim
determinado para suas ações, igualmente governados por biscoitos, balas e
chibatas, ninguém faz gosto em acreditar. Quanto a mim, parece-me que não
há realidade mais palpável do que essa.
Concordo de boa vontade, até porque sei o que vais me dizer a respeito
disso, que são exatamente essas as pessoas mais felizes. Essas mesmas que,
como as crianças, vivem o dia-a-dia sem pensar no futuro, arrastam suas
bonecas por aí, vestem-nas, despem-nas, e volteiam cheias de respeito diante
da gaveta onde mamã chaveia os bombons, e quando logram êxito, enfim,
fazendo com que ela os dê, devoram-nos estufando a boca e gritando: Mais!...
Sim, estas é que são criaturas felizes! A coisa também vai bem para aqueles
que dão um título imponente para seus trabalhos vagabundos, ou até para os
seus sofrimentos, e os descrevem como obras gigantescas feitas em prol da
salvação e da prosperidade do gênero humano... Feliz daquele que consegue
proceder assim! Mas aquele que reconhece em sua humildade onde tudo isso
vai parar, quem vê quão gentil é o burguês ao ornamentar seu jardinzinho e
elevá-lo à categoria de paraíso; quem tem noção de como o infeliz se arrasta
infatigável pelo caminho, sob seu fardo, interessado apenas em contemplar
por um minuto a mais a luz do sol – este, asseguro, também é tranqüilo e, ao
construir um mundo dentro de si, é feliz do mesmo jeito por ser humano. E
então, por mais limitado que esteja em seus movimentos, ele mantém no
coração a doce sensação da liberdade, sabendo que poderá deixar o seu
cárcere quando quiser.
26 de maio
Conheces há muito meu modo de viver. Sabes como, quando encontro
um lugar que me convenha, faço ares de dono e construo nele a
cabaninha[13] onde passo a morar com toda a frugalidade. Também aqui
acabo de encontrar um cantinho que me atraiu e me prendeu.
A cerca de uma hora da cidade, encontra-se um lugar que chamam de
Wahlheim.[14] A situação numa colina é muito interessante, e quando se
sobe pelo atalho que conduz até lá, abraça-se o vale inteiro num olhar. Uma
boa senhora, ainda esperta para sua idade, mantém ali uma taverna onde
vende vinho, café e cerveja. Mas o que há de melhor são as duas tílias cujos
galhos espessos cobrem a pracinha em frente à igreja, cercada toda ela por
herdades, pátios e choupanas. Jamais achei um lugartão sossegado, tão
íntimo; e é ali que mando pôr minha mesa, tirada da pousada, e minha
cadeira, bebo meu café e leio meu Homero. A primeira vez em que a sorte de
um acaso me levou para baixo das tílias, num belo meio-dia, achei aquele
lugar tão solitário. Todo mundo havia ido para o campo. Só um rapagote de
cerca de quatro anos estava sentado no chão segurando outro, de mais ou
menos meio ano, acolhido entre suas pernas, com os dois bracinhos
encostados a seu peito, de forma a lhe servir como uma espécie de poltrona.
E apesar da vivacidade com que seus olhos negros giravam à volta, estava
bem tranqüilo. Me causou prazer aquele espetáculo: sentei-me sobre um
arado que jazia ali perto, e desenhei com gosto aquela fraterna atitude.
Acrescentei ao desenho a cerca próxima, a porta de um celeiro e umas rodas
de carroça quebradas, tudo exatamente como se apresentava; depois de ter
passado uma hora achei que havia terminado um desenho interessante, bem
ordenado, sem pôr nele absolutamente nada de minha própria lavra mental.
Isso só fez fortalecer meu propósito de doravante me prender apenas à
natureza. Só ela é infinitamente rica e só ela é que forma os grandes artistas.
Pode-se dizer muito a favor das regras, mais ou menos tanto quanto se pode
dizer para louvar as etiquetas da sociedade burguesa. Um homem que se
forme seguindo-as, jamais produzirá algo falto de gosto e ruim. Da mesma
forma que alguém que se molda segundo as leis e as boas maneiras jamais
será um vizinho insuportável, ou um malvado digno de nota. Mas, em
compensação, as regras, por mais que se diga algo em favor delas, destroem o
verdadeiro sentimento da natureza e sua genuína expressão! Tu dirás com
certeza que isso é por demais duro, que a regra indica apenas um limite, só
faz podar os galhos parasitas, etcétera...
Meu bom amigo, queres que eu faça uma comparação? Com esse tipo de
coisa ocorre a mesma coisa que com o amor. Um coração juvenil pende
inteira e unicamente de uma moça, passa a seu lado todas as horas do dia,
oferece-lhe todas as suas forças, tudo o que possui para lhe deixar claro a
todo instante que se entregou a ela por inteiro. E eis que vem um filisteu, um
homem de boa posição, com cargo público, e lhe diz: “Meu bom rapaz! Isso
de amar é próprio do homem; porém tendes de amar como homem! Dividi
bem o vosso tempo, dedicando parte dele ao trabalho, e as horas de folga à
vossa namorada. Calculai vossa fortuna e, com o que sobrar depois de
atendidas vossas necessidades, não vos proíbo de dar a ela de vez em quando,
mas não com muita freqüência – talvez no aniversário e no dia do seu santo
–, um presentinho...” Se o nosso rapaz seguir esses conselhos, se tornará uma
pessoa bastante útil, e eu até mesmo o recomendaria a qualquer príncipe, a
fim de lhe dar um emprego em sua chancelaria; mas quanto ao amor, adeus...
E se for artista, adeus talento. Ó meus amigos! Por que é que a torrente do
gênio transborda tão poucas vezes e tão poucas vezes chega a ferver, em
encrespadas ondas, sacudindo vossas almas letárgicas? Queridos amigos... É
que além, nas duas margens, habitam homens graves e ponderados, cujas
casinhas ajardinadas, prateleiras de tulipas e campos de hortaliças seriam
levados pela torrente se os mesmos não houvessem sabido defender suas
propriedades do perigo iminente a tempo, construindo diques e desvios.
27 de maio
Perdi-me, pelo que vejo, no entusiasmo, nas comparações, na
declamação e por isso acabei esquecendo de te contar o que foi feito das duas
crianças.
Estava eu sentado por cerca de duas horas em meu arado, absorto em
sensações artísticas, que vieram a dar na carta bastante desconchavada de
ontem. Foi então que, ao cair da tarde, veio em direção aos meninos – que
permaneceram imóveis durante todo esse tempo – uma jovem mulher com
um cestinho no braço, e chamou de longe: “Felipe, tu és de fato um bom
rapaz!” Saudou-me e eu correspondi à saudação. Levantei-me e,
aproximando-me dela, perguntei se era a mãe daquelas crianças. Ela
confirmou e, dando ao mais velho a metade de um pãozinho, tomou o outro
em seus braços e o beijou com o mais intenso amor maternal. “Encarreguei o
meu Felipe”, disse ela, “de cuidar do pequeno e fui com o meu filho mais
velho à cidade, a fim de buscar pão branco, açúcar e uma frigideira de barro.”
Vi que trazia tudo aquilo no cestinho, cuja tampa havia caído. “Quero fazer
uma sopinha para o meu Joãozinho (era este o nome do mais novo) à noite.
Ontem o mais velho, que é um avoado, quebrou a frigideira ao disputar com
Felipe a raspa da papa que eu havia preparado.” Perguntei pelo mais velho e
ela mal conseguiu me responder que ele andava a correr atrás dos gansos no
pasto, quando o próprio apareceu, saltando e trazendo ao segundo um galho
de avelãs. Continuei a conversar com a mulher e soube que era filha do
mestre-escola, e que seu marido havia viajado à Suíça em busca da herança
de um primo... “Quiseram enganá-lo”, disse ela, “e não responderam a suas
cartas, de modo que teve de ir para lá pessoalmente. Deus queira que não
tenha lhe acontecido nada, pois não tenho nenhuma notícia a respeito dele.”
Foi custoso para mim separar-me daquela mulher; dei um cruzado a cada uma
das duas crianças, outro à mãe, a fim de que comprasse um pãozinho para a
sopa do menor quando fosse à cidade, e assim nos separamos.
Te digo, meu amigo, que quando estou a ponto de perder o juízo, todo o
tumulto interior se me apazigua com a visão de uma criatura como aquela,
que percorre o círculo estreito de sua existência em ditoso abandono e
encontra cada dia o necessário; e vê cair as folhas sem pensar em mais nada
senão em que o Inverno está chegando.
Desde então vou para lá com freqüência. As crianças estão habituadas a
mim por completo. Quando tomo café, dou-lhes açúcar, e elas compartilham
comigo o pão com manteiga e o requeijão ao entardecer. Aos domingos não
lhes deixo faltar seu cruzado, e se não estou ali à hora da missa, a taverneira
tem ordens de distribuí-lo.
Elas já confiam em mim e contam-me todo tipo de histórias. O que mais
me diverte são seus ciúmes e os ingênuos arrebates de possessividade quando
se reúnem ali outras crianças da aldeia.
Custou-me muito sossegar a mãe, sempre preocupada com o fato de eles
“estarem incomodando aquele senhor!”
30 de maio
Aquilo que eu te dizia há pouco da pintura pode, por certo, aplicar-se à
poesia. Trata-se apenas de sentir o que é primoroso e ousar exprimi-lo, e isto
é, para ser exato, dizer muito em poucas palavras. Testemunhei hoje uma
cena que, reproduzida, daria o mais belo idílio deste mundo. Mas o que têm a
ver poesia, cena e idílio? Por que temos de andar sempre manietados e
embornalados quando queremos tomar parte num fenômeno da natureza?
Se, depois dessa introdução, esperas qualquer coisa grandiosa e
magnífica, ficarás mais uma vez desiludido. Foi um simples campônio que
suscitou toda a minha emoção... Haverei de, segundo meu costume, contar
mal; e tu haverás de, segundo o teu, achar que exagerei. É Wahlheim mais
uma vez, sempre Wahlheim, que engendra estas maravilhas.
Um grupo havia se reunido à sombra das tílias para tomar café. Como a
companhia não me agradava, encontrei pretexto para ficar afastado dele. Um
jovem camponês saiu de uma casa vizinha e foi consertar qualquer coisa no
arado que eu acabara de desenhar. Agradou-me a sua figura e travei conversa,
perguntando-lhe sobre sua situação pessoal. Acabávamos de nos conhecer e,
como sói acontecer com esse tipo de gente, não tardou em me abrir seu
coração. Contou-me que estava a serviço de uma viúva que o tratava com
bondade. Falou-me tanto dela, elogiou-a tanto, que logo percebi que se
dedicava a ela de corpo e alma. Já não é nenhuma jovem, ele disse, e como as
lembranças de seu primeiro marido não eram nem um pouco agradáveis,
desistira de voltar a se casar. Tudo o que ele contava, deixava claro o quanto
ela era bela a seus olhos, encantadora, a que ponto desejava que ela o
escolhesse para apagar a lembrança dos malefícios de seu primeiro esposo.
Eu teria de repetir palavra porpalavra tudo o que ele disse para conseguir
pintar com clareza a pura inclinação, o amor e a fidelidade daquele homem.
Sim, seria preciso possuir o talento do maior poeta para traduzir a expressão
dos seus gestos, a harmonia da sua voz e o fogo secreto do seu olhar. Não,
nenhuma linguagem seria capaz de exprimir a ternura que animava seus olhos
e suas atitudes. Tudo o que eu pudesse dizer seria grosseiro e rudimentar.
Comoveu-me, sobretudo, o receio que ele demonstrava de que eu chegasse a
interpretar mal suas relações com ela, ou duvidar de sua boa conduta. Que
encanto ouvi-lo falar das feições dela, de seu corpo que, mesmo carecendo de
atrativos juvenis, atraía-o com violência e a ela o encadeava! Só no mais
fundo de minha alma é que posso reproduzir o prazer que senti. Jamais em
minha vida toda vi desejos tão ardentes e afãs tão obsessivos e calorosos
desenhados com tanta pureza. Não me ralhes se eu te confesso que, ao
lembrar de tanta inocência e amor verdadeiro, minha alma queima, que a
imagem daquele afeto e daquela ternura me seguem por toda parte e que,
como se abrasado pelo mesmo ardor, me esfalfo e enlanguesço em busca
dele.
Eu mesmo vou procurá-la, quero vê-la o quanto antes, ou, melhor dito e
depois de pensar um pouco, vou tentar evitá-la. Melhor será vê-la através dos
olhos de seu amante; talvez ante o meu próprio olhar ela não se mostre da
maneira como a vejo agora diante de mim; e por que haveria eu de querer
estragar essa bela imagem?
16 de junho
“Por que não te escrevo?”, perguntas-me, logo tu que és tão sábio?
Deverias adivinhar que me sinto bem, e até que... Curto e grosso, conheci
alguém que me tocou o coração bem de perto. É... Não sei se...
Contar-te, respeitando a ordem dos acontecimentos, como cheguei a
conhecer uma das criaturas mais adoráveis deste mundo, seria muito difícil.
Estou feliz e satisfeito, logo, incapaz de ser um bom historiador.
Um anjo! Arre! Mas isso qualquer um diz da sua, não é verdade? De
qualquer forma, não sou capaz de dizer o quanto ela é perfeita, nem de onde
vem sua perfeição. Basta dizer que ela dominou completamente o meu ser.
Tanta candura com tanto espírito, tanta bondade com tanta firmeza! E
paz de alma em meio a tanta vida real e tanta atividade!
Tudo o que aqui digo a respeito dela não passa de palavreado inútil,
vaga abstração, que não expressa sequer um só dos traços de seu semblante.
Em outra ocasião, talvez... Não, nada de outra ocasião, vou contar-te tudo
agora mesmo. Se não o fizer agora, nunca mais será feito. Pois, cá entre nós,
desde que comecei a escrever esta carta, por três vezes estive a ponto de
deitar a pena e mandar arrear o cavalo para sair. Isso que jurei para mim
mesmo hoje cedo não cavalgar até lá, mas a cada pouco me aproximo da
janela a ver se o sol ainda vai alto...
Não pude resistir, tive de ir até ela. E aqui estou de novo, Guilherme,
[15] para comer meu pão com manteiga de todas as noites e seguir te
escrevendo. Que deleite para a minha alma contemplá-la em meio a seus oito
queridos e amáveis irmãozinhos!
Mas se continuo desse jeito, no fim estarás tão alheio a tudo quanto no
início. Ouve, então, que vou me forçar aos pormenores.
Há dias te escrevi que havia travado relações com o bailio S..., e de
como ele me convidou a ir visitá-lo em seu eremitério ou, muito antes, em
seu pequeno reino. Fui adiando a visita e talvez jamais fosse para lá, não
tivesse o acaso me descoberto o tesouro que repousa escondido naquele retiro
tranqüilo.
Os rapazes de nossa aldeia haviam organizado um baile no campo, no
qual de bom grado aceitei tomar parte. Ofereci o braço a uma boa e afável
moça das redondezas. Era bela, ainda que não tivesse nada de extraordinário,
e ficou combinado que eu pegaria um coche, e acompanharia meu par de
dança e sua prima ao lugar onde aconteceria a festa, levando junto Carlota
S..., a quem encontraríamos no caminho. “Conhecereis uma bela moça”,
disse-me minha acompanhante, quando atravessávamos a larga floresta
desmatada em direção ao pavilhão de caça. “Ficai atento, e não vos
apaixoneis por ela”, acrescentou a prima. “Mas por quê?”, perguntei. “Já está
destinada”, respondeu, “a um galante rapaz, a quem a morte do pai obrigou a
viajar para pôr em ordem seus negócios e tomar posse de uma herança
bastante significativa.” O informe deixou-me quase indiferente.
O sol estava a quinze minutos das colinas quando chegamos à porta do
pátio. O ar estava pesado e as senhoras manifestaram seu receio de uma
borrasca, que parecia estar se formando nas nuvenzinhas cinzentas e
vaporosas que se ajuntavam no horizonte. Fiz com que a preocupação delas
se dissipasse, afetando grandes conhecimentos de meteorologia, ao passo que
começava a crer eu mesmo que uma tempestade poderia aguar o caldo de
nossa festa.
Apeei do coche, e uma criada chegou ao portão pedindo-nos que
esperássemos um instante. A senhorita Carlota viria logo. Atravessei o pátio,
dirigindo-me àquela bem-construída casa, e quando eu havia subido a escada
e adentrava a porta, dei de cara com o mais encantador dos espetáculos que
jamais presenciei. Seis crianças, de dois a onze anos, apinhavam-se na ante-
sala à volta de uma moça de bela feição, estatura mediana, que usava um
vestido branco simples, com laços de um vermelho pálido nos braços e no
peito... Ela segurava um pão preto e o dividia entre os pequenos à sua volta,
dando a cada um seu pedaço, na proporção da idade e do apetite. E dava-os
com tanta doçura...[16] E cada qual dizia com tanta candura seu “muito
obrigado!”, ao pegar a fatia, que, já antes de ser cortada, era esperada pelas
mãozinhas esticadas ao alto. E logo se iam tão contentes com sua merenda,
aos pulos ou silentes, conformes ao seu caráter, em direção à porta do pátio
ver as damas desconhecidas e o coche em que a sua Carlota partiria... “Peço
mil perdões”, disse ela, “por fazer-vos vir até aqui e obrigar as moças a
esperarem. Arrumar-me e dar conta de todas as tarefas da casa, deixando-as
dispostas enquanto estiver fora, fez-me esquecer de dar a merenda aos
pequenos, e eles não querem que ninguém a não ser eu lhes corte o pão.”
Fiz-lhe uma vênia sem maior importância; toda minha alma estava presa
em sua feição, sua voz, seu aspecto. Mal tive tempo de repor-me da surpresa,
quando ela correu à sala para buscar as luvas e o leque. Os pequenos olhavam
para mim assim meio de lado e manifestando certa distância, quando eu
cheguei-me ao mais novo, que mostrava um rosto sumamente feliz. Ele
recuou e naquele momento Carlota chegou, entrou e lhe disse: “Luís, dê a
mão ao senhor seu primo”. O mocinho deu-ma com ar sossegado e eu não
pude me conter, beijei-o cheio de cordialidade apesar de seu narizinho
mucoso. “Primo?”, disse eu estendendo a mão a ela. “Acreditais que eu seja
digno da ventura de ser vosso parente?”
“Oh”, respondeu ela, com um sorriso ladino, “a nossa parentela é assaz
vasta, e seria muito duro para mim experimentar que sois o pior dentre eles.”
Ao partir, encarregou Sofia, a mais velha depois dela, uma menina de cerca
de onze anos, de vigiar as crianças e cumprimentar papai quando ele
regressasse do passeio. E disse aos pequenos que deveriam obedecer à mana
Sofia como se fosse ela mesma que ali estivesse, coisa que alguns dos
pequenos prometeram formalmente. Mas uma loirinha de mais ou menos seis
anos, algo impertinente, disse: “Sim, mas de qualquer forma não és tu,
Carlotinha, e gostaríamos mais se fosses tu”. Os dois rapazes mais velhos
estavam trepados à traseira do coche e, ao meu pedido, ela permitiu que
fossem junto até a entrada da mata se prometessem não fazer diabruras e
segurar-se com firmeza.
Mal havíamos nos acomodado, trocando as mulheres os cumprimentos
devidos, dizendo o que pensavam das vestimentas uma da outra, dando
atenção especial aos chapéus, e de passar em revista a sociedade que em
breve encontraríamos, quando Carlota ordenou ao cocheiro que parasse e
mandou seus irmãos descerem. Estes pediram-lhe mais uma vez que lhes
desse a mão para beijar. O mais velho pôs no ato toda a ternurade que um
moço de quinze anos é capaz, já o segundo fê-lo com muito estouvamento e
vivacidade. Ela deixou que os rapazes a cumprimentassem mais uma vez e
nós seguimos adiante.
A prima perguntou se já terminara o livro que havia lhe mandado há
poucos dias. “Não”, disse Carlota, “ele não me agradou; podeis levá-lo de
volta. O anterior também não era melhor.” Fiquei pasmo quando perguntei
que livros eram aqueles e ela me respondeu...[17] Achava tanto bom senso
em tudo que ela dizia e a cada palavra descobria novos encantos, novos
fulgores de espírito relampejarem em suas feições, o que fazia expandir ainda
mais o seu contentamento à medida que ela sentia que eu a estava
compreendendo.
“Quando eu era mais nova”, disse ela, “nada me agradava a não ser
romances. Sabe Deus o quanto me aprazia retirar-me aos domingos a um
cantinho a fim de partilhar, com todo meu coração, das ditas e desditas de
uma tal Miss Jenny.[18] Também não nego que esse gênero ainda tenha para
mim alguns encantos mas, como hoje me resta tão pouco tempo para chegar
aos livros, o que eu ler tem de se adequar inteiramente ao meu gosto. E o
autor que prefiro é sempre aquele que reflete de modo mais exato o meu
mundo, e em cujas obras sucedem as mesmas coisas que vejo ao meu redor,
aquele cujas histórias interessam e tocam o meu coração como minha própria
vida caseira, que, se não é um paraíso, é, em todo caso, uma fonte de
indizível felicidade.
Esforçava-me por ocultar as emoções que aquelas palavras me
infundiam. Mas não consegui ir longe com isso, pois quando a ouvi falar,
assim de passagem, com tanta sinceridade sobre O vigário de Wakefiel, de ...
[19],[20] saí fora de mim, e pus-me a dizer-lhe tudo que pensava a respeito, e
só ao cabo de certo tempo, quando Carlota já havia dirigido a conversa para
as outras, pude perceber que elas estavam ali, de olhos abertos, como se ali
não tivessem estado. A prima olhou-me por mais de uma vez com um arzinho
irônico, mas eu não lhe dei a menor pelota.
A conversa recaiu no prazer da dança. “Se essa paixão é ou não um
defeito, eu não sei”, disse Carlota, “mas confesso-vos com franqueza que não
conheço nada superior à dança. E quando tenho alguma coisa que me aflige,
basta sentar ao piano, desafinando uma contradança, que logo me ponho de
bem com a vida.”
Como eu me deleitava na contemplação de seus negros olhos durante
esta conversa! Como seus lábios vermelhos e suas faces frescas e vivas
cativavam minha alma inteira! Como, mergulhado no som esplendoroso de
sua fala, às vezes nem sequer ouvia as palavras que ela proferia! Poderás ter
idéia disso, tu que me conheces. Resumindo, quando paramos em frente à
casa onde sucederia a festa, desci do coche como se estivesse sonhando... E
tão perdido em sonhos eu estava no mundo crepuscular à minha volta, que
mal percebia a música que chegava do salão iluminado ao nosso encontro.
O senhor Audran e um certo N. N. – quem consegue guardar todos os
nomes! –, que eram os parceiros de Carlota e da prima, receberam-nos à
portinhola do coche, tomaram as suas damas pela mão e eu subi com a
minha.
Volteamos por aí, dançando minuetos; eu convidava uma dama atrás da
outra, e justamente as menos agraciadas eram as que não se resolviam se
davam ou não sua mão para dançar comigo. Carlota e seu par começaram por
uma contradança inglesa, e já podes compreender como me senti bem quando
ela veio à nossa fila, dançar junto de nós. Era preciso vê-la bailar! Punha na
dança todo seu coração, toda sua alma; seu corpo era uma harmonia só! Ela
estava tão descontraída, tão livre, como se aquilo fosse tudo, como se não
pensasse em mais nada, não sentisse mais nada. Naquele momento, com
certeza, o universo se esfumava ante seus olhos.
Convidei-a para a segunda contradança, e ela me aceitou para a terceira,
afirmando com a franqueza mais amável desse mundo que gostava muito de
dançar a alemã.[21] “É costume por aqui”, prosseguiu ela, “que cada par
ajustado permaneça junto durante a alemã, mas o meu chapeau[22] valsa mal
e agradecer-me-á se o dispensar. A dama que faz par convosco também não
dança melhor, e por isso não se importará. Reparei, nas inglesas, que valsais
bem; e se desejais ser meu durante a alemã, ide pedir-me ao meu cavalheiro,
que eu vou fazer o mesmo a vossa dama.” Dei-lhe a mão depois disso, e
convimos que o par de Carlota conversaria com o meu durante a valsa.
E assim começou! Entretivemo-nos a princípio com mil passagens de
braços. Com que graça, com que agilidade ela fazia seus movimentos! E
quando chegamos à valsa e começamos a girar uns ao redor dos outros como
esferas celestes, houve, a princípio, certa confusão, pois poucos pares sabiam
dançá-la. Fomos bastante prudentes e esperamos que eles se soltassem, e
quando os menos conhecedores deixaram a pista, tomamos conta do salão e,
juntando-nos a outro par, formado por Audran e sua companheira,
recomeçamos com entusiasmo redobrado. Nunca me senti tão solto. Já nem
mais humano era. Ter nos braços a mais encantadora das criaturas, voar com
ela como um furacão até perder a noção de tudo que nos circundava, vendo
tudo se desvanecer... Guilherme, para ser franco, foi naquele momento que
fiz o juramento de que a moça que eu amasse, aquela que eu pretendesse,
jamais valsaria senão comigo, ainda que isso me custasse tudo o que há neste
mundo. Tu me compreendes!
Demos algumas voltas pela sala para tomar ar. Depois ela sentou-se, e as
laranjas que eu pusera de lado, as únicas que ainda restavam, surtiram
excelente efeito. Mas a cada gomo que a vizinha pegava da tigela,
aproveitando-se da minha e da cortesia de Carlota, uma flecha trespassava
meu coração.
À terceira contradança inglesa, éramos o segundo par. Ao passar
dançando por entre as filas – só Deus sabe com quanto deleite eu segurava
seu braço e fitava seus olhos, nos quais brilhava o mais puro e mais inocente
prazer –, eis que vejo aparecer diante de nós uma mulher que me
impressionou por sua fisionomia agradável, ainda que já não estivesse no
verdor dos anos. Ela olha para Carlota a sorrir, levanta um dedo ameaçador e
pronuncia duas vezes o nome de Alberto ao cruzar conosco, em tom mui
significativo.
“Quem é esse Alberto”, disse eu a Carlota, “se não é muita indiscrição
perguntar?” Ela estava a ponto de me responder quando tivemos de nos
separar para formar o grande oito.[23] Ao tornar a passar diante dela,
pareceu-me notar uma ruga de preocupação em sua testa. “Para que deveria
negá-lo?”, disse-me ela, oferecendo-me o braço para passearmos. “Alberto é
um bom homem, com o qual estou, poder-se-ia dizer, comprometida.” Com
efeito, aquilo não era novidade para mim, pois as moças já mo haviam dito
no caminho, e contudo me pareceu tão absolutamente novo de repente... É
que até aquele momento eu ainda não havia estabelecido uma relação direta
entre aquilo que me fora contado e a bela jovem, que em tão breves instantes
se me tornara tão querida. Foi o que bastou, eu me desconcertei, me esqueci
de tudo e me meti entre o par errado, atrapalhando a todos aqui e acolá, de
sorte que Carlota precisou de toda sua presença de espírito para, puxando
daqui e dali, conseguir restabelecer a ordem.[24]
Não havia ainda terminado a dança, quando os relâmpagos que já há
muito víamos brilhar no horizonte, e que eu seguia empenhado em não levar
a sério, começaram a tornar-se mais fortes, até que os trovões dominaram a
música. Três damas saíram das filas e os seus cavalheiros seguiram-nas; a
desordem generalizou-se e a orquestra parou. É natural que, quando um
acidente ou um terror súbito nos surpreende no meio do divertimento, a
impressão causada seja maior do que em qualquer outra ocasião, um pouco
por causa do contraste, outro tanto – e esse viés é mais significativo – por
estarem todos os nossos sentidos vivamente excitados e suscetíveis a receber
tanto mais rápido uma impressão.[25] É a isso que atribuo as estranhas
caretas que vi desabrocharem no rosto de muitas damas. A mais prudente foi
refugiar-se num canto, de costas para a janela e tapando os ouvidos. Outra,de
joelhos diante dela, escondia a cabeça no colo da primeira. Uma terceira se
meteu entre as duas e envolveu sua irmãzinha num mar de lágrimas. Algumas
queriam voltar para casa; outras, que sabiam ainda menos o que fazer, já nem
sequer tinham forças para reprimir os atrevimentos de nossos jovens
estouvados, bastante ocupados em interceptar, nos lábios das belas aflitas, as
ardentes súplicas que faziam ao céu. Uma parte dos homens havia descido
para fumar com tranqüilidade o seu cachimbo. Já a parte restante dos
convivas andava indecisa, quando ocorreu à nossa anfitriã a sábia idéia de
indicar-nos um quarto onde as janelas eram protegidas por cortinas. Mal
havíamos chegado lá, e Carlota já se pôs a formar um círculo de cadeiras.
Depois de todos se sentarem a seu pedido, propôs um jogo.
Vi mais de um que, na esperança de alguma saborosa prenda, lambeu os
beicinhos e se empertigou na cadeira. “Vamos jogar com os números”, disse
ela. “Atenção! Vou andar à volta no círculo da direita para a esquerda, e vós
ireis cantando, cada qual o número que lhe tocar; mas isso tem de ser rápido
como um rastilho de pólvora e quem hesitar ou se enganar receberá uma
bofetada, e assim até mil.” Era um encanto ver aquilo. Ela andava à roda com
o braço estendido. Um, disse o primeiro; dois, o vizinho; três, o seguinte, e
assim os demais, por sua ordem. Ela logo apertou o passo, cada vez mais
depressa. Até que um errou e páf!, uma bofetada, e, à risada do seguinte,
também páf! E assim cada vez mais rápido. Eu mesmo recebi dois tabefes, e
pareceu-me notar, com secreto prazer, que mos dava com mais força que a
qualquer outro. Gargalhadas e uma barulheira geral puseram fim ao jogo
antes de se ter contado até mil. Os mais chegados se reuniram em grupos, a
tempestade passara, e eu segui Carlota à sala. “As bofetadas”, disse-me ela no
caminho, “fizeram com que esquecessem trovoadas e tudo!” Não pude
responder-lhe nada. “Eu era”, prosseguiu ela, “uma das mais medrosas. Mas,
afetando coragem para a dar aos outros, fiz-me eu mesma corajosa.”
Chegamos à janela. Ainda trovejava ao longe e uma chuva esplêndida caía
sobre a terra em doces murmúrios, o ar refrescara-se e trazia-nos em haustos
o perfume que as plantas exalavam. Ela estava parada, apoiando os cotovelos
ao parapeito; seu olhar passeou pela paisagem, elevou-se ao céu e dirigiu-se a
mim, e vi os seus olhos cheios de lágrimas quando pôs sua mão sobre a
minha e disse: “Klopstock!” Lembrei-me logo da ode sublime[26] que lhe
ocupava o pensamento e mergulhei na torrente de sentimentos que ela
derramava sobre mim naquele momento. Não pude suportá-lo, inclinei-me
para a sua mão e beijei-a sob o impulso de lágrimas deleitosas, voltando a
contemplar os seus olhos em seguida... Nobre poeta! Oh, se tivesses visto tua
apoteose naquele olhar! E se eu pudesse não voltar a ouvir jamais teu nome
tantas vezes profanado em outros lábios!
19 de junho
Já não sei mais por onde fiquei em minha narrativa. Tudo o que sei é
que eram duas horas da madrugada quando me deitei à cama, e que se
pudesse conversar contigo ao invés de escrever, teria talvez te mantido
acordado até de manhã.
O que se passou durante o regresso do baile ainda não te contei e nem
tenho tempo de fazê-lo hoje.
Era a mais esplêndida das alvoradas! O bosque coalhado de rocio e o
campo tão fresco à nossa volta... Nossas vizinhas dormitavam. Ela
perguntou-me se eu não queria fazer o mesmo, já que por ela eu não
precisava me preocupar. “Enquanto eu vir esses olhos abertos”, disse eu, e
olhei-a fixamente, “não posso fechar os meus.” Assim permanecemos até a
porta de sua casa e ali nos detivemos. A criada abriu-a em silêncio e ela, com
algumas perguntas, certificou-se de que seu pai e as crianças estavam bem e
continuavam dormindo. Deixei-a pedindo licença para tornar a vê-la nesse
mesmo dia; ela consentiu e eu fui. Desde esse momento, sol, lua, estrelas
podem seguir tranqüilas a sua órbita, que para mim já não há mais dia nem
noite, e o mundo inteiro dissipou-se à minha volta.
21 de junho
Vivo dias tão felizes como só são aqueles que Deus reserva a seus
eleitos. Aconteça o que acontecer, jamais poderei dizer que não experimentei
a felicidade, a felicidade mais pura da vida! Tu conheces o meu Wahlheim.
Ali estou estabelecido a gosto; e dali a Carlota é apenas meia hora... Ali
sinto-me eu próprio... e gozo toda a felicidade que é concedida ao homem.
Como poderia eu ter imaginado, quando elegi esse mesmo Wahlheim
para fazer os meus passeios, que ele estava tão perto do céu! Quantas vezes,
nas minhas longas caminhadas, ora do alto da montanha, ora da planície do
outro lado do rio, descortinei esse pavilhão que encerra hoje todos os meus
sonhos e desejos!
Caro Guilherme, fiz toda sorte de reflexões sobre a ânsia inata do
homem de se expandir, de fazer novas descobertas, de errar aqui e acolá; e
também sobre esse íntimo pendor de se entregar à limitação voluntariamente,
de seguir deslizando pelos trilhos costumeiros, seguindo o ramerrão do
hábito, sem voltar a vista para a direita ou para a esquerda.
É singular! Como me sentia atraído por tudo que jazia em derredor
quando aqui vinha, e da colina contemplava aquele belo vale! Ali o
bosquezinho! Oh, se um dia tu pudesses mergulhar em sua sombra! E mais
além o cume de uma montanha! Oh, se pudesses contemplar dali toda essa
vasta região! Essa cadeia de colinas e esses pacíficos vales! Ah, se eu
pudesse me perder neles... Voava para ali! E regressava sem ter encontrado
aquilo que procurava. Dá-se com a distância o mesmo que com o futuro. Um
horizonte imenso, misterioso, repousa diante de nossa alma; o sentimento
nele mergulha como o nosso olhar, e desejamos, ah! como desejamos,
entregar todo o nosso ser para nos consubstanciarmos num só, grande e
magnífico sentimento... Mas, ah!, corremos, voamos e quando lá chegamos,
quando o longe se faz perto, nada se alterou, e nós encontramo-nos com
nossas mesmas misérias, com os mesmos e estreitos limites, e de novo a
nossa alma suspira pelo mesmo bálsamo que acabou de se esvair.
Assim o mais turbulento dos vagamundos suspira afinal por sua própria
pátria, e acha na sua cabana, no regaço de sua esposa e em meio a seus filhos,
nos cuidados que tem para ganhar seu pão, o deleite que em vão procurava
pelo vasto mundo.
Quando, pela manhã, logo que nasce o sol, vou para o meu querido
Wahlheim, quando eu próprio colho as ervilhas no quintal de minha
hospedeira, quando me sento para as descascar e de passagem ler Homero...
E depois, quando vou escolher uma panela na pequena cozinha, quando me
sirvo da manteiga, ponho as ervilhas ao fogo, tapo o cozido e me sento ao pé
do fogão para as mexer de vez em vez... Ah, é então que sinto com
intensidade como os magníficos e atrevidos amantes de Penélope sacrificam,
retalham e fazem assar bois e porcos![27] Não há nada que me encha de uma
sensação mais plácida e verdadeira do que esses quadros da vida patriarcal,
com os quais eu posso, sem afetação graças a Deus!, pintar o meu modo de
viver atual.
Como me sinto feliz por ter um coração feito para sentir as alegrias
simples e inocentes do homem que põe na sua mesa a cabeça de repolho que
ele mesmo cultivou. E não apenas o repolho, mas também os bons dias, as
belas manhãs em que o plantou, as deliciosas tardes em que o regou, e de
novo volta a gozar em um momento todas aquelas alegrias que experimentou
ao ver o paulatino crescimento da planta!
29 de junho
Anteontem o médico da cidade veio ver o bailio e encontrou-me no
chão, cercado pelos irmãozinhos de Carlota. Alguns deles engatinhavam
sobre mim, outros me beliscavam, enquanto eu lhes fazia cócegas e todos
juntos aprontávamos um grande alvoroço. O doutor, que é uma marionete
sumamente dogmática e, em seus discursos, está sempre ocupado em arranjar
as pregas dos punhos e estufar o peito como um galo de quintal, achou aquilo
abaixo da dignidade de um homem sensato. Notei-o em seu nariz empinado.
Mas eu não me desconcertei, deixei-o palrar a respeito das coisas mais
profundas, e levantei o castelode cartas que as crianças haviam destruído. E
assim, de regresso à cidade, ele com certeza não deixou de contar, a quem
quisesse ouvi-lo, que as crianças do bailio, já de per si tão mal-educadas, as
acabava de estragar por completo esse tal Werther.
Sim, meu caro, é pelas crianças que meu coração mais se interessa neste
mundo. Quando me ponho a examiná-las, e vejo nessas criaturinhas o gérmen
de todas as virtudes, de todas as energias que logo haverão de lhes ser tão
necessárias; quando descubro na sua pertinácia a futura inteireza e solidez de
caráter; quando verifico na sua petulância, e até nas suas astúcias, o humor
jovial e a agilidade para saltar por cima dos perigos do mundo, e tudo isto de
modo tão incorrupto, tão íntegro... ah, então acabo sempre, mas sempre
mesmo, repetindo as áureas palavras do Mestre dos homens: “Se não fordes
como um destes pequeninos”...[28] E pensar que, caríssimo, logo a eles, que
são nossos iguais, a quem deveríamos tomar por modelos, tratamos como se
fossem nossos vassalos. Não, eles não devem ter vontades! Não temos nós as
nossas? E onde reside nosso privilégio? No fato de sermos mais velhos e
sensatos?!
Bom Deus que estás no céu! Vês crianças velhas e crianças novas, e
nada mais, e há muito que o teu Filho nos deu a conhecer aqueles que mais te
aprazem. Mas os homens crêem nele e não o ouvem – e isto também é coisa
velha! – e formam os seus filhos segundo eles próprios e... Adeus,
Guilherme, não quero seguir batendo na mesma tecla.
1o de julho
O que Carlota deve ser para um enfermo, sinto-o no meu próprio e pobre
coração, que anda pior que o de alguém a definhar em seu leito de tísico. Ela
vai passar alguns dias na cidade, na casa de uma boa mulher que, segundo a
opinião dos médicos, se aproxima do fim e, nestes últimos momentos, quer
ter Carlota junto de si.
Fui, na semana passada, visitar com ela o pastor de Santo..., um lugarejo
situado na montanha, há sessenta minutos daqui. Chegamos pelas quatro
horas. Carlota levou consigo a irmã mais velha, aquela que vem depois dela
em idade. Assim que entramos no pátio do presbitério, sombreado por duas
corpulentas nogueiras, achamos o bom velho sentado num banco em frente à
porta. Logo que viu Carlota pareceu recobrar nova vida, esqueceu de seu
bordão nodoso, levantou-se e arriscou ir ao encontro dela. Ela correu para ele,
obrigou-o a sentar-se de novo e, sentando-se ao seu lado, externou-lhe os
cumprimentos de seu pai e acarinhou o estropiado e sujo filho mais novo do
pastor, o mimalho de sua velhice. Tu tinhas de ver como ela se ocupava do
velho, como levantava a voz para que ele a ouvisse, posto que era meio
surdo. Como lhe falava de pessoas que, jovens e robustas, morreram quando
menos se esperava; como gabava as virtudes das águas de Karlsbad,
aprovando a resolução que ele havia tomado de ir para lá no próximo verão;
como achava que ele mostrava melhor cara e um ar mais animado desde a
última vez em que o vira... Enquanto isso, eu havia apresentado meus
respeitos à senhora do pastor. O velho estava radiante, e como eu não pude
me conter no elogio daquelas formosas nogueiras que nos davam uma sombra
tão agradável, pôs-se, ainda que com certa dificuldade, a contar-nos a história
das árvores. “Quanto à mais velha”, disse ele, “não sabemos quem a plantou.
Uns falam que foi um pastor, outros que foi outro. Mas a mais nova tem a
idade da minha mulher, completa cinqüenta anos no mês de outubro. Foi
plantada pelo pai dela na manhã do dia em cuja tarde ela veio a nascer. Era o
meu predecessor, e não há palavras suficientes para dizer o quanto ele amava
esta árvore. É verdade que a mim mesmo ela não é menos querida. À sombra
dela é que estava sentada minha mulher, sobre uma trave, tecendo, quando
eu, então um pobre estudante, vim aqui pela primeira vez, há vinte e sete
anos.” Carlota perguntou-lhe pela filha: ele respondeu que ela havia ido ao
campo com o senhor Schmidt ver os trabalhadores. E o velho prosseguiu sua
narrativa, contando-nos como o seu predecessor se tinha afeiçoado a ele,
como ele agradou à menina, e como começara sendo seu ajudante para acabar
sucedendo-o no posto. A história mal tinha terminado, quando a filha,
acompanhada pelo referido senhor Schmidt, voltou pelo jardim. Ela deu as
boas-vindas à Carlota, cordial e acaloradamente, e eu devo dizer que não me
desagradou; era uma morena desenvolta e bem-feita, que faria a gente passar
de modo mui agradável o curto tempo no campo. O seu namorado, logo
percebemos que era este o título que o senhor Schmidt merecia, era um
homem fino, mas taciturno, e não quis se meter na nossa conversa, por mais
que Carlota o atraísse a ela.
O que mais me intrigou foi crer advertir em seu rosto que era antes por
birra e mau humor do que por falta de espírito que ele fugia a tomar parte na
conversa. Logo depois isso lamentavelmente veio a se tornar ainda mais
claro, pois, tendo Frederica se juntado a Carlota, e de quando em quando
também a mim, o semblante do senhor Schmidt – que já de si era bastante
escuro – obscureceu-se tanto que Carlota não tardou em me puxar pela
manga, dando-me a entender que estava me excedendo nas atenções que dava
a Frederica. Pois bem: nada me incomoda tanto como ver os homens se
atormentarem mutuamente, sobretudo quando são jovens e estão à flor da
idade e, ao invés de gozar com a maior franqueza as alegrias que a vida
proporciona, ficam a deteriorar os poucos dias agradáveis que lhes são
reservados com tolices, para só perceberem demasiado tarde como é
irreparável tudo o que perderam sem desfrutar. Aquilo me mortificou e
quando, ao anoitecer, já de volta ao presbitério, tomávamos leite à uma mesa,
tendo a conversa recaído sobre as mágoas e os prazeres da vida, não pude
impedir-me de agarrar a ocasião pelos cabelos e falar fervorosamente contra
o mau humor.
“Queixamo-nos muitas vezes”, principiei eu, “de que temos tão poucos
dias bons e tantos dias maus, e parece-me que na maior parte delas nos
queixamos sem razão. Se o nosso coração estivesse sempre aberto para gozar
o bem que Deus nos manda todos os dias, teríamos força mais do que
suficiente para suportar o mal quando ele aparece.”
“Mas nós não somos senhores de nosso temperamento”, observou a
mulher do pastor. “Quanto não depende do estado de nosso corpo! Quando
não estamos bem de saúde, tudo anda mal conosco.”
Eu dei-lhe razão. “Pois consideremo-lo”, prossegui eu, “como se fosse
uma doença, e procuremos um remédio para ela.”
“Assim está bem”, disse Carlota; “eu creio, pelo menos, que muito
depende de nós, da posição que adotamos em relação aos momentos de
tristeza. Sei-o por mim mesma. Quando algo me aflige e quer me fazer sentir
molestada, me ponho a saltitar, canto duas ou três modinhas de dança,
subindo e descendo pelo jardim, e logo tudo se dissipa.”
“Era o que eu queria dizer”, repliquei eu, “dá-se com o mau humor o
mesmo que com a preguiça. Ele é, inclusive, uma espécie de preguiça. Nossa
natureza é propensa à indolência, mas quando fazemos um esforço para
livrar-nos dela, o trabalho fica mole e encontramos no labor um verdadeiro
prazer.”
Frederica estava assaz atenta e o moço objetou-me que não somos
senhores de nós mesmos, e ainda menos estava em nossas mãos comandar os
nossos sentimentos.
“Trata-se aqui”, objetei eu, “de uma sensação desagradável, da qual cada
um de nós gostaria de se ver livre; e ninguém conhece a extensão de nossas
forças sem tê-las posto à prova. Por certo um doente consultará todos os
médicos e não recusará o regime mais austero, os remédios mais amargos,
para recobrar a sua desejada saúde.”
Vi que o bom velho tentava tomar parte em nossa discussão e ergui a
voz dirigindo-lhe a palavra. “Prega-se contra tantos vícios”, disse-lhe eu,
“mas não me consta que alguém se tenha ocupado do mau humor no
púlpito.”[29]
“Isso os pregadores da cidade têm de fazer”, respondeu ele, “a gente do
campo não conhece o mau humor; mas também não faria nenhum mal dizer
qualquer coisa a respeito disso de tempos em tempos; seria uma lição para as
nossas mulheres,pelo menos, e para o senhor bailio.”
Todos os convivas riram, ele mesmo o fez de bom grado, até lhe
sobrevir um acesso de tosse que interrompeu por algum tempo a nossa
conversa. Depois disso, o moço retomou a palavra e disse: “Dissestes que o
mau humor é um vício; e isso me parece ser um exagero”.
“Nada disso”, repliquei. “E olha que sou ameno e não sei se merece tal
nome algo com o que causamos tanto dano a nós mesmos e ao próximo. Não
basta o fato de não podermos nos tornar mutuamente felizes? Temos ainda de
nos privar um ao outro do prazer que cada qual pode gozar no íntimo do seu
coração? Citai-me um só homem que, adoecendo de mau humor, seja, não
obstante, bravo o suficiente para dissimulá-lo, guardá-lo só para si, sem
acabar com a festa dos que o rodeiam! Não será o mau humor muito antes
uma insatisfação íntima com a nossa própria indignidade, um
descontentamento com nós mesmos, que sempre vem atado a uma inveja,
fomentada por uma vaidade insana? Vemos homens felizes cuja felicidade
não é obra nossa e isso nos resulta insuportável.”
Carlota pôs-se a rir, pois viu a emoção com que eu falava; e uma lágrima
nos olhos de Frederica serviu-me de acicate para continuar. “Desgraçados
aqueles”, exclamei eu, “que se servem do poder que têm sobre um coração
para lhe roubar as inocentes alegrias que brotam dele espontaneamente! Não
há presente nem atenção no mundo que bastem para compensar um momento
de prazer em si mesmo, envenenado pelo despeito invejoso de um tirano!”
Todo meu coração transbordava, inundado, nesse instante; mil
recordações oprimiam a minha alma e lágrimas assomavam aos meus olhos.
“Oh, se cada um de nós”, exclamei, “fosse capaz de dizer todos os dias:
tu não tens nada melhor a fazer por teus amigos do que respeitar suas alegrias
e acrescer à sua felicidade, participando dela! Poderás tu, acaso, quando uma
angustiosa paixão atormenta o mais íntimo de suas almas, brindar-lhes uma
gota de consolo? Ai de ti quando a derradeira e mais sinistra enfermidade vier
cevar-se na criatura que, na flor da idade, conduziste ao sepulcro, e que jaz
agora em prostração lastimosa, com os olhos voltados ao céu insensível e os
mortais suores secando em sua fronte lívida; ai de ti quando em pé diante do
seu leito, como um condenado, sentires que nada podes fazer com todo o teu
poder, e estiveres lacerado de angústias por dentro, de sorte que de bom
grado darias tudo para infundir àquela moribunda uma gota de conforto, um
raio de coragem!”
A recordação de uma cena semelhante, de que eu fui testemunha,
assaltou-me com todo o seu poder ao proferir essas palavras. Levei o lenço
aos olhos e deixei o grupo, e só a voz de Carlota, chamando-me para
regressarmos juntos, fez-me voltar a mim. Como ela me ralhou no caminho
por botar tanto fogo nas coisas das quais tomava parte, fazendo-me ver que
isso acabaria comigo! Que eu me poupasse!... Oh, meu anjo! E é por ti que
devo viver!
06 de julho
Ela continua junto de sua amiga moribunda, e é sempre a mesma,
sempre a mesma criatura solícita e benfazeja que, para onde olha, acalma as
dores e traz felicidade. Ontem à tarde saiu a passeio com Mariana e a
pequena Amélia; eu sabia, fui encontrá-las e caminhamos juntos. Depois de
passear por uma hora e meia, voltamos para a cidade e chegamos àquela fonte
que já me era tão querida e daquele momento em diante seria mil vezes mais
querida. Carlota sentou-se sobre o murinho e nós ficamos de pé diante dela.
Olhei em volta e, ah!, os tempos em que meu coração estava tão solitário
voltaram a viver em mim de repente. “Querida fonte”, disse eu, “de há muito
não descanso em teu frescor, e por vezes, ao passar rapidamente perto de ti,
nem sequer te olhei!” Lancei os olhos para baixo e vi subir a pequena
Amélia, muito atarefada, trazendo um copo de água... Contemplei Carlota e
senti nela tudo aquilo que eu lhe dedicava.
Neste momento, Amelinha chegou com o copo, Mariana quis pegá-lo:
“Não”, exclamou a pequena com a mais doce das expressões, “não, Lotinha,
tu é que deves beber primeiro”. Fiquei tão encantado com a convicção, com a
bondade com que ela dizia aquilo, que não pude manifestar o que sentia
senão pegando a pequena e beijando-a com tanta força que ela pôs-se a
chorar e a gritar.
“Vós fizestes mal”, disse Carlota. Eu estava consternado. “Vem,
Amelinha!”, continuou ela, pegando-lhe na mão para descer os degraus,
“lava-te na água fresca. Rápido, rápido. Não é nada.” Fiquei a olhar com que
cuidado a pequena esfregava as bochechas com suas mãozinhas molhadas, e
com que boa fé ela acreditava que aquela fonte maravilhosa tirava toda a
nódoa de cima de si e evitava a vergonha de lhe nascer uma barba assaz
horrível. Por mais que Carlota dissesse basta, a pequena continuava a
esfregar-se, como se muita água resolvesse mais do que pouca... Em verdade
eu te afirmo, Guilherme, nunca assisti com tanto fervor a um batismo, e
quando Carlota subiu, ter-me-ia de boa vontade prostrado diante dela como
diante de um profeta que acaba de apagar as iniqüidades todas de uma nação
inteira.
À noite, não pude conter-me e contei, com o coração cheio de alegria,
aquela cena a um homem que eu supunha sensível porque tem inteligência...
Mas a quem eu me dirigi! Ele disse que Carlota tinha feito muito mal, que
nunca se devia iludir as crianças, pois isso significava dar origem a uma
infinidade de enganos e abrir caminho à superstição, contra a qual era preciso
precavê-las desde o começo... Lembrei-me que ele tinha batizado um dos
seus filhos há oito dias, deixei-o falando sozinho e mantive-me fiel à verdade:
devemos fazer com as crianças como Deus faz conosco, Ele que nunca nos
deixa tão felizes como quando nos permite vaguear em nossas doces ilusões.
08 de julho
Como a gente é criança! Quanto não creditamos a um simples olhar!
Como a gente é criança!
Tínhamos ido a Wahlheim. As senhoras saíram na frente e, durante o
nosso passeio, pareceu-me ver nos olhos negros de Carlota... Eu sou um
doido, perdoa-me... Tinhas de vê-los, esses olhos! Para ser breve, pois estou
caindo de sono, observe que quando as mulheres subiram ao coche estavam
em volta dele o jovem W..., Selstadt, Audran e eu. Junto ao estribo elas
palravam com os rapagões que, por certo, se mostravam bastante levianos e
alegres. Busquei os olhos de Carlota... Ah, eles passeavam de um rosto a
outro! Mas a mim, a mim... A mim, o único que estava ali só por causa dela,
eles não se dirigiam! Meu coração dizia a ela milhares de adeuses! E ela não
me olhava! O coche arrancou e uma lágrima brincou em meus olhos. Segui-a
com o olhar! E eis que vi assomar na portinhola o penteado de Carlota, que se
voltava para me ver... Ah! Seria para mim? Meu caro! Debato-me nessa
incerteza! E ela é o meu consolo. Talvez tenha se voltado para me olhar!
Talvez... Boa-noite! Oh, como eu sou criança!
10 de julho
Devias ver o papel de bobo que eu faço quando me falam dela em
alguma reunião. E quando perguntam se ela me agrada, então... Agradar!
Odeio esta palavra até a morte! Qual seria o homem a quem Carlota faria tão-
somente agradar? Que não se deixaria dominar e encher em todos os sentidos
e sentimentos por sua pessoa? Agradar! Não faz muito alguém me perguntou
se Ossian[30] me agradava!
11 de julho
A senhora M... está muito mal. Rezo por sua vida, porque sofro com
Carlota. De quando em quando vou vê-la junto com minha amiga, e hoje ela
me contou um episódio singular... O velho M... é um tipo mofino e avaro que
atormentou a mulher a vida toda, mantendo-a enclausurada e restringindo sua
liberdade; mas ela sempre soube, apesar de tudo, livrar-se da prisão muito
bem. Há poucos dias, quando o médico a declarou condenada, mandou
chamar seu marido – Carlota estava no quarto – e falou-lhe o seguinte:
“Tenho de confessar-te uma coisa que depois de minha morte poderia vir a
causar confusão e mágoa. Governei a casa até agora com tanta ordem e
economia quanto me foi possível, mas tens de me perdoar por ter te enganado
durante trinta anos. No começo de nosso casamento fixaste uma soma
demasiado módica para amesa e as outras despesas da casa. A nossa vida
melhorou, nossos gastos aumentaram e eu nunca pude conseguir que tu
aumentasses a soma fixada no começo... Para ser breve, tu sabes que nos
tempos em que nossas despesas eram maiores, exigias que elas fossem
satisfeitas com sete florins por semana. Submeti-me, mas a cada sete dias
tirava o que faltava da gaveta, sem recear que as suspeitas do furto caíssem
sobre a própria dona da casa. Nada dissipei e, mesmo que não tivesse feito a
confissão, iria tranqüila ao encontro da eternidade se não temesse que aquela
que cuidar da casa depois de mim não saiba arranjar-se com o pouco que lhe
darias, e de quebra te defenderias afirmando sempre que tua primeira mulher
não havia necessitado de mais do que isso.”
Conversei com Carlota sobre a inacreditável cegueira da alma humana,
de como um homem não chega a desconfiar que há alguma coisa por trás do
fato de alguém conseguir sustentar com sete florins uma despesa que não
custaria pelo menos o dobro do dinheiro. Mas, que fazer, eu mesmo conheci
pessoas capazes de acreditar que tinham em sua casa a bilha de azeite
inesgotável do profeta.[31]
13 de julho
Não, não me engano! Leio em seus olhos negros o sincero interesse que
tem por mim e por meu destino. Sim, sinto, e nisso posso apelar ao meu
coração, sinto que ela... Oh, devo, ou melhor, sequer posso fazer o céu inteiro
caber nessas palavras... e dizer que ela me ama?
Me ama! E tanto mais me estimo por isso! Quanto eu me... A ti eu posso
dizê-lo sem perigo, tu compreendes bem essas coisas... Sim, quanto eu me
adoro desde que ela me ama!
Perguntarás se isso é presunção ou apenas o sentimento das verdadeiras
circunstâncias em que me encontro? Não conheço o homem que eu temia
encontrar no coração de Carlota e, todavia... quando ela fala de seu noivo
com tanto calor, com tanto amor... acontece comigo o que acontece àquele do
qual arrancam todos os títulos e todas as honras, para ao fim obrigá-lo a
entregar a espada.
16 de julho
Oh, como o sangue corre quente em minhas veias quando os meus dedos
tocam os dela por acaso, quando os nossos pés se encontram debaixo da
mesa! Puxo-os de volta como se tivesse tocado o fogo, mas uma força secreta
os atrai de novo... e meus sentidos se turvam tanto! Ah! E sua inocência, sua
pureza de alma não lhe permitem perceber o quanto suas mais fugazes
confianças me fazem sofrer! Quando está falando e põe sua mão na minha,
quando se aproxima de mim no ânimo da conversa a ponto de me fazer sentir
o divino hálito de sua boca em meus lábios... creio que serei arrojado à terra
como se ferido por um raio... E, Guilherme, meu caro! Se eu alguma vez me
atrevesse àquele céu, àquela confiança... Tu me entendes. Não, meu coração
não está deteriorado a esse ponto! Mas fraco... Fraco ele está! Mas e a
fraqueza já não é uma espécie de corrupção?
Ela é sagrada para mim. Todo meu desejo emudece em sua presença.
Não sei jamais o que se passa comigo quando estou a seu lado; parece que a
minha alma se revolve em todos os meus nervos... Há uma melodia que ela
toca ao piano com a força de um anjo, tão sensível e tão espirituosa! É sua
ária favorita! E ela livra-me de todas as mágoas, de todas as confusões, de
todas as manias, apenas ouço a primeira nota.
Estimo não ser inverossímil nada do que dizem a respeito do poder
mágico da música antiga.[32] Como me prende a mais simples das canções!
E como ela sabe me fazer ouvi-la tantas vezes, justo nos momentos em que
sinto vontade de meter-me uma bala na cabeça! Então a turvação e as trevas
da minha alma se dissipam e volto a respirar com mais liberdade.
18 de julho
Guilherme, o que é o mundo para o nosso coração sem amor? O mesmo
que uma lanterna mágica[33] sem luz! Mal colocas dentro dela a lamparina e
já se projetam imagens das mais coloridas na parede branca! E mesmo que
todas não sejam mais do que efêmeros fantasmas, elas nos fazem felizes
enquanto permanecemos ali, acordados, e como crianças nos extasiamos com
suas aparições maravilhosas. Hoje não pude ir ver Carlota, uma visita
inesperada me segurou em casa. Que havia a fazer? Mandei o meu criado ao
encontro dela, só para ter junto de mim alguém que tivesse estado em sua
presença. Com que impaciência o esperei, com que alegria tornei a vê-lo!
Não tivesse vergonha e teria me atirado ao seu pescoço e coberto seu rosto de
beijos.
Falam que a pedra de Bolonha,[34] quando exposta ao sol, absorve os
seus raios e reluz por algum tempo durante a noite. Dava-se o mesmo comigo
e aquele rapaz. A lembrança de que os olhos de Carlota haviam pousado em
seu rosto, em suas faces, nos botões de sua casaca e na gola de seu sobretudo,
tornava-o tão querido, tão sagrado para mim! Naquele momento não daria
aquele rapaz nem por mil táleres! Me sentia tão bem em sua presença... Deus
te livre de rir disso, Guilherme! Serão sempre fantasmas os responsáveis por
nos sentirmos bem?
19 de julho
Vou vê-la!, exclamo pela manhã quando desperto e olho com serenidade
em direção ao sol nascente. Vou vê-la! E já não tenho qualquer outro desejo
para todo aquele dia! Tudo, tudo se afoga nessa perspectiva.
20 de julho
A vossa idéia de que eu partisse com o embaixador para ... não
corresponde, pelo menos desta vez, aos meus planos mais íntimos. Não me
agrada o fato de estar subordinado a alguém, e ademais todos sabemos que
esse homem é um sujeito insuportável. Minha mãe gostaria de me ver em
atividade, dizes tu; isso me faz rir. Não estou ativo agora por acaso? E não
vem a ser igual, no final das contas, contar ervilhas ou lentilhas? Tudo nessa
vida acaba em bagatela e aquele que, para agradar aos outros se mata
trabalhando por dinheiro, honras ou o que for, sem que a isso o mova sua
própria paixão ou necessidade, é, com certeza, um tolo.
24 de julho
Visto teres tanto empenho em que eu não deixe o desenho, faria melhor
em calar-me sobre este ponto do que confessar-te que já há muito não me
ocupo dele.
Nunca fui mais feliz, nunca a minha sensibilidade pela natureza,
inclusive pela mais mísera das pedrinhas ou pelo fiozinho de erva mais
insignificante, foi mais plena e mais viva do que agora. Todavia... não sei
como me expressar... a minha imaginação tornou-se tão fraca; tudo ondula e
vacila de tal maneira diante de minha alma que não consigo apanhar um
simples contorno. Por vezes me parece que, se eu tivesse argila ou cera,
poderia moldá-lo muito bem e, se isto se prolonga, pego na argila e amasso-
a... ainda que de tudo não saia mais que um bolo disforme.
Já comecei por três vezes o retrato de Carlota, e três vezes me
envergonhei; o que me magoa tanto mais, tendo em vista o fato de que há
pouco conseguia dominar bem a semelhança. Limitei-me a fazer um esboço e
tenho de me contentar com ele.
Sim, querida Carlota, cuidarei de tudo e tudo farei; bem que poderias me
dar alguns encargos por mais vezes, muito mais vezes. Peço-vos uma coisa:
nada de areia nas cartas que me escreverdes! A de hoje eu levei aos lábios e
logo os meus dentes rangiam.
26 de julho
Mais de uma vez fiz o propósito de não vê-la tão amiúde. Sim, mas
quem poderia cumprir sua palavra? Sucumbo todos os dias à tentação e todas
as noites volto a repetir solenemente a jura: amanhã não irás, e quando chega
a manhã sempre encontro uma razão irresistível para ir vê-la e, antes de me
dar por conta, estou ao pé dela. Ora é ela quem me diz à noite: “Amanhã
virás, não é verdade?” Quem seria capaz de resistir... Ora me encarrega de
um recado e acho conveniente ir eu mesmo dar-lhe a resposta. Ou então o dia
está assim tão belo que eu vou a Wahlheim, e quando eu estou lá, é apenas
mais meia hora até a casa dela... Estou demasiado perto da sua atmosfera... A
sua vizinhança me atrai e num vu estou junto a ela! A minha avó contava-me
a história de uma montanha de imã:[35] os navios que se aproximavam por
demais, perdiam de repente suas ferragens, os pregos voavam para a
montanha e os pobres marinheiros naufragavam entre as tábuas do navio, que
desabavam sob seus pés.
30 de julho
Alberto chegou e eu vou partir.

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