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1 LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE: OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E O CONSTITUCIONALISMO MODERNO Adriano Lino Mendonça1 Vânia Rubia Farias Vlach2 RESUMO: Este trabalho tem o escopo de examinar o desenvolvimento teórico do princípio da dignidade da pessoa humana, entendendo-o na qualidade de antecedente lógico dos direitos fundamentais, isto é, como substrato das normas referentes aos direitos do homem. Analisa-se, também, a experiência inglesa de limitação do poder real, bem como as primeiras normas que visaram demarcar, ainda que de forma tímida, os direitos individuais dos cidadãos em conjunto com a arquitetura legislativa do princípio da legalidade, a abster o Estado de determinadas ações, respeitando as individualidades dos cidadãos. Ainda, demonstra-se que o fenômeno dos direitos fundamentais desenvolveu-se por meio de uma lógica conjunta de interações histórico-culturais, observando-se que as experiências inglesas implicaram efeitos nas colônias norte-americanas, culminando com o processo de independência em 1776. Além disso, ressalta-se o papel desempenhado pelo pensamento iluminista e pelas teorias liberais enquanto âmago dos direitos humanos de primeira geração, a sublinhar as prerrogativas inerentes aos indivíduos e, a contrario sensu, os deveres do Estado. A Revolução Francesa é examinada sob a perspectiva da consolidação dos direitos fundamentais, ressaltando-se o debate referente aos direitos sociais e a sedimentação da dignidade da pessoa humana, salientando-se que a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão 1789 teve uma amplitude ainda maior do que tivera as declarações inglesa e norte-americana. Outrossim, estuda-se a solidificação dos direitos sociais, possível apenas quando a modificação do ambiente histórico-cultural no mundo foi capaz de propiciar a mitigação da visão liberal e, por conseqüência, consolidar a democracia social, avançando para a segunda geração dos direitos fundamentais. PALAVRAS-CHAVE: Declaração dos direitos – Constituição – Direitos e deveres - História. 1 O bolsista é aluno da Faculdade de Direito Professor Jacy de Assis (FADIR), da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E-mail: adrianolinomendonca@yahoo.com.br. 2 A orientadora é Professora Doutora do Instituto de Geografia da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). E- mail: vaniavlach@netsite.com.br 2 LIBERTY, EQUALITY AND FRATERNITY: THE FUNDAMENTAL RIGHTS AND THE MODERN CONSTITUTIONALISM ABSTRACT: This work examines the theoretical development of the human being dignity principle, understood as a logical antecedent of the fundamental rights, that is, as substratum of the norms regarding man's rights. It is also analyzed the English experience of the royal power limitation, as well as the former norms that sought to demarcate, although in a timid way, the citizens' individual rights together with the legislative architecture of the principle of legality, to refrain the State from certain actions and at the same time respecting the citizens' individualities. Still, it is demonstrated that the phenomenon of the fundamental rights was developed through a united logic of historical-cultural interactions, being observed that the English experiences implicated effects in the North American colonies, culminating with the independence process in 1776. Besides, it is evidenced the role played by the illuminist thought and by the liberal theories while essence of the human rights of first generation, to underline the individuals inherent prerogatives and, in a counter sense, the duties of the State. French Revolution is examined under the perspective of the consolidation of the fundamental rights, being pointed out the debate regarding the social rights and the sedimentation of the human being's dignity. It is argued that the Declaration of Man's Rights and of the Citizen (1789) had a much larger width than English and North American declarations had had. In the same way the solidification of the social rights is studied. That was possible when the modification of the historical-cultural atmosphere in the world was able to propitiate the mitigation of the liberal vision and, for consequence, to consolidate the social democracy, while moving forward toward the second generation of the fundamental rights. KEYWORDS: Declaration or rights – Constitution – Rights and duties - History 3 INTRODUÇÃO Para se conhecer melhor o desenvolvimento dos direitos fundamentais do homem, faz-se necessário estudar o seu antecedente lógico, isto é, o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como analisar as positivações, ou seja, as normas jurídico-constitucionais sobre o tema, as quais são os conseqüentes lógicos das prerrogativas essenciais aos homens. A dignidade da pessoa humana é o núcleo irradiador das proposições normativas referentes à proteção do homem – antecedente lógico –, e as conseqüências extraídas do conceito concretizam-se nos direitos fundamentais do homem, haja vista que visam servir de fulcro às normas de defesa ao ser humano. Para atingir o mister objetivado pelo trabalho, almeja-se entender como se deu a cristalização teórica do princípio da dignidade da pessoa humana, perpassando por alguns dos principais ambientes intelectuais em que tal conceito foi debatido e, por conseqüência, modelado. Assim, preliminarmente, examina-se a conceituação da dignidade da pessoa humana para, em seguida, observar-se as positivações constitucionais, buscando entender o processo de solidificação dos direitos fundamentais no Mundo. Em outras palavras, busca-se esclarecer as nuanças do princípio da dignidade da pessoa humana para, em seguida, estudar o constitucionalismo ocidental, tendo como ponto de partida a limitação do poder absolutista na Europa. No campo dos debates intelectuais, o constitucionalismo transformou-se numa forma de mitigar a força persuasiva da teoria contratualista clássica e da teoria da origem divina do poder real, as quais se desenvolveram, basicamente, entre os séculos XVI e XVIII, e tiveram como marca essencial a busca da fundamentação da existência e da legitimação do poder absoluto do monarca. A teoria da origem divina do poder real propagava que o rei era o representante de Deus na Terra e que a sua legitimidade não deveria, por isso, ser aferida entre os homens, mas sim, por meio de sua ligação divina. Ademais, por essa teoria, quem desobedecia às ordens do rei negava a vontade divina, sendo não só um subversor da ordem pública, como também um pecador de primeira grandeza. (COTRIM, 2001:128). O contratualismo clássico apregoava que o poder do rei advinha de um pacto entre os homens, com o escopo de conceder ao 4 monarca, poderes ilimitados, em troca da proteção ao cidadão, promovida pelo Estado, e com a finalidade de superar a situação de barbárie que reinava antes da formação do Estado. Como a carta constitucional também é um pacto – entre os cidadãos e o Estado –, levantaram-se vozes na defesa de que um novo pacto, embasadas no postulado jurídico reconhecido segundo o qual uma lei nova revoga a anterior nos aspectos contraditórios, o que poderia representar um abrandamento do poder real via promulgação de uma lei constitucional. (WEFFORT, 2003). Nesse sentido, registre-se que a promulgação da Carta Magna Inglesa, em 1215, marcou o início da derrocada do poder absoluto do rei e inaugurou a era da limitação do poder estatal, porquantoesta Carta motivou diversos países a seguirem o mesmo caminho, qual seja: o de reduzir a discricionariedade das ações dos governantes, a circunscrever as condutas do ente estatal pela legalidade. Aborda-se, ainda, como implicação direta das transformações européias no feitio do poder estatal, o movimento emancipatório ocorrido nas colônias norte-americanas e, em conseqüência, estuda-se o “Bill of Rights” norte-americano, e a configuração da estrutura do Estado, modelado após a promulgação da Constituição, em 17 de setembro de 1787. Além disso, aponta-se a importância do pensamento liberal nesse contexto, com ênfase ao movimento iluminista, salientando-se que foram essas idéias que nortearam as modificações sociais por intermédio das chamadas revoluções burguesas, as quais deram a tônica das constituições contemporâneas de diversos Estados. A Revolução Francesa foi um marco na implantação das idéias liberais e da superação do sistema feudal de produção no continente europeu. Contraditando ao “Bills of Rights” norte-americano, percebe-se que as discussões teóricas e a própria Declaração francesa de 1789, tiveram um maior alcance, pois os franceses estavam persuadidos de que a Revolução representava uma mudança não só para os franceses, mas para todos os homens do Mundo, diferentemente dos norte-americanos, que tinham como objetivo consolidar a independência e manter as idéias escravocras defendidas pela elite agro- exportadora. Todavia, o ambiente histórico da Revolução Francesa não propiciou a implantação dos direitos sociais, limitando- se a garantir os direitos individuais, os chamados direitos fundamentais de primeira 5 geração. Entretanto, o afirmar dos movimentos operários, aliado à notoriedade das correntes teóricas como o anarquismo, socialismo e o comunismo, forçaram o certame sobre os direitos sociais e acerca do papel desempenhado pelo Estado frente às questões sociais. Não obstante todo o desenvolvimento francês, os direitos sociais foram soerguidos à condição de norma constitucional, pela primeira vez no Mundo, no México, em 5 de fevereiro de 1917. Foi a primeira Carta Constitucional a considerar os direitos trabalhistas como direitos fundamentais do homem, no mesmo patamar que já se havia concedido aos direitos individuais, lançando- se os esteios da Democracia Social. Na Europa, apenas após a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), houve, por causa dos estragos bélicos, ambiente profícuo à concretização dos direitos sociais. A Constituição da Alemanha de 1919, a chamada Lei Fundamental de Weimar, foi o principal acontecimento na direção dos direitos sociais na Europa, dando contornos mais nítidos ao Estado Social de Direito, incluindo na pauta estatal a defesa dos direitos econômicos e sociais, além dos direitos civis e políticos conquistados anteriormente. Ainda, evidencia-se que o exame dos textos legislativos não importa num completo conhecimento do fenômeno social, pois não raras vezes os textos legais não se transformam em realidade fática. Todavia, o estudo dos textos legais mostra uma parte importante das mudanças de pensamento social e, quando interpretado em conjunto com os acontecimentos históricos, pode trazer o entendimento necessário para se compreender o fenômeno social. MATERIAL E MÉTODO Para a concretização desta pesquisa, foram utilizadas as referências bibliográficas citadas ao final do trabalho e as cartas constitucionais, bem como as declarações de direitos pertinentes ao tema, enfatizando-se os avanços e as conquistas logradas pelo homem e a conseqüente diminuição do poder do Estado. Na busca de alcançar os objetivos do estudo, usa-se o processo metodológico de raciocínio indutivo, isto é: partiu-se das experiências particulares com o objetivo de entender o processo histórico de desenvoltura dos direitos fundamentais do homem. Em consonância com o plano de trabalho, buscou-se, pela leitura dos textos relativos ao assunto, fazer um apanhado 6 teórico, sintetizando os principais argumentos dos mais variados autores e adicionando as percepções trazidas no contexto da hermenêutica dos textos legais. Após a realização da pesquisa bibliográfica, passou-se à redação deste artigo, para registrar os resultados alcançados pelo trabalho. RESULTADOS E DISCUSSÃO 1 – A ONTOLOGIA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA Um dos conceitos mais importantes que serve de orientação às modernas legislações constitucionais, fulcro sobre o qual se arraigam os direitos fundamentais, é, sem dúvida, o conceito da dignidade da pessoa humana. Salta aos olhos uma aparente redundância na nomenclatura, pois, aparentemente, bastaria dizer que a dignidade é da pessoa, sem a adjetivação “humana”. Contudo, pode-se afirmar que há uma necessidade prática, arrimada numa explicação teórica, de se denominar o princípio em exame dessa maneira. Para se entender melhor o conteúdo e a denominação do princípio da dignidade da pessoa humana, urge direcionar a atenção para a evolução histórica do conceito. A primeira fase do desenvolvimento teórico do conceito de dignidade da pessoa humana remonta à Idade Antiga, especialmente ao pensamento estóico, o qual surgiu em Atenas por volta do ano 300 a.C., geralmente atribuído à Zenão de Eléia. O estoicismo apregoava que todos os seres humanos são iguais em dignidade, advindos duma unívoca razão (“logos”) universal (ABRÃO, 2004:74). Com o escopo de sustentar a aludida tese, os estóicos lançaram mão de dois conceitos, representados pelas palavras “hypóstasis” e “prósopon”. Aquela foi traduzida para o latim como “substantia” (substância), para manifestar o substrato inerente a todos os indivíduos, ao passo que a palavra “prósopon”, que designava as máscaras usadas no teatro grego, mormente para representar personagens femininas (em função da impossibilidade da participação das mulheres nas encenações teatrais), foi transposta para o latim como “persona” (pessoa). Com isso, os estóicos quiseram explicitar que, apesar da aparente diferença existente entre os homens, representada metaforicamente pela máscara (“prósopon”), não existe uma variação essencial nos seres; são todos iguais, diferindo, apenas, quanto 7 ao papel desempenhado neste enorme teatro chamado universo. (COMPARATO, 2004). No que tange à visão teológica, não se olvide a preceituação arrogada, tanto pelo Antigo quanto pelo Novo Testamento, de uma semelhança imanente entre Deus e os seres humanos, para mostrar, como conseqüência lógica, a existência duma especial dignidade imputada à pessoa humana (SARLET, 2002). Mesmo diante dessa constatação, continua-se a exaltar a importância do pensamento estóico até mesmo para a concepção religiosa sobre o tema, haja vista que a famosa porfia entre os doutores da Igreja Católica acerca da Divina Trindade, exemplifica, sobremaneira, o mérito do estoicismo. Havia duas correntes antinômicas no seio da cúpula da Igreja Católica: a monofisista e a ariana. Os monofisistas asseveravam que Cristo possuía uma natureza una, puramente divina, e descartavam sua natureza humana. Os arianos, em posição antagônica, afirmavam que Cristo havia sido gerado por Deus, não tendo natureza intrínseca a Ele. Para por fim às divergências, as autoridadeseclesiásticas reuniram-se em Nicéia, no ano de 325, quando realizaram o primeiro concílio ecumênico da história da Igreja Católica. Diante da dicotomia de teses, ficou decidido, tendo como baluarte teórico os conceitos estóicos de “hypóstasis” e “prósopon”, que, em consonância com o dogma da fé cristã, Jesus Cristo apresenta duas essências (“hypóstasis”), uma divina e outra humana, em uma só pessoa, ou seja, possui uma só aparência. Diante disso, ficou confirmada a Divina Trindade; um ser com aparência de homem e com duas essências, uma humana e outra divina. (COMPARATO, 2005). A visão oriunda do Concílio de Nicéia vigeu soberana por muito tempo, até Boécio, no século VI, elaborar outra explicação sobre a dignidade da pessoa humana. Utilizando-se da metodologia aristotélica, considerou que existiria uma identificação entre a substância e a pessoa, porquanto a pessoa é, nesse sentido, a especificação individual da substância racional. Assim, a pessoa (“prósopon”) não é a exterioridade do indivíduo, mas a própria forma que modela a matéria, ou seja, é a substância que caracteriza o ser. A problemática do aparente pleonasmo pode ser vencida quando se compreende a construção teórica do conceito: existe uma igualdade substancial, que é o próprio centro irradiador dos direitos humanos, e as diferenças pessoais (a individualidade), que também devem ser 8 respeitadas. Além disso, do ponto de vista pragmático, basta lembrar que o termo dignidade é polissêmico, podendo ser utilizado, v.g., para designar tratamentos honoríficos, ou um patamar hierárquico desempenhado em uma dada empresa. Para dar maior densidade ao conceito e menor extensão à sua aplicação, e evitar que ocorram distorções, é necessário deixar claro que o conceito de dignidade da pessoa humana leva em consideração tanto os aspectos intrínsecos aos homens, quanto os extrínsecos, a proteger a igualdade e respeitar a diferença. 2 – A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E O FENÔMENO NORMATIVO Com a necessidade de laicizar a explicação e normalizar o princípio, veio a dificuldade de conceituá-lo. Qual a origem da idéia de dignidade da pessoa humana no plano normativo? São várias as explicações, mas pode- se sintetizá-las em duas principais correntes teóricas, a saber: a jus naturalista e a ficcionista. A explicação jus naturalista observa que a dignidade da pessoa humana advém de um direito imanente à natureza do homem cuja vigência é indeterminada, prescindindo, por conseguinte, das positivações legislativas. Dessa forma, explicita-se a idéia de direito natural, enquanto uma qualidade inata, inerente à condição de ser humana, pelo simples fato de ser um ente racional, que se diferencia dessa forma dos demais seres, os quais são desprovidos de dignidade. No que se refere à análise dos ficcionistas, a dignidade humana passa a ser encarada como criação técnica do direito; não remonta a nenhum direito de natureza, mas, sim, resulta da criação da mente do legislador, o qual criou tal conceito com a finalidade de amparar os seres humanos. Nesse sentido, embute-se uma noção de conceituação jurídica apriorística, a antever as necessidades humanas e discipliná-las por meio da racionalidade técnica do direito. Quando se examina a origem desse instituto, observa-se que o entendimento jus naturalista carece de concretude e abusa das abstrações metafísicas. Por outro lado, a idéia de ficção jurídica pressupõe um direito auto-suficiente, que codifica a priori seus conceitos e normas, não levando em consideração os acontecimentos histórico- culturais como substrato inerente às normas jurídicas fundamentais. O juízo mais razoável no que se refere ao conceito de dignidade da pessoa 9 humana é aquele que busca compreendê-lo tendo por base as relações sócio-culturais – daí a dificuldade que o Direito, sobretudo na esfera internacional, possui para elaborar conceitos universais sobre a dignidade da pessoa humana e, por conseguinte, dos direitos fundamentais, porque as multiplicidades culturais são, aparentemente, entraves à realização desse mister. Dessa forma, para se compreender o fenômeno da positivação das prerrogativas inerentes à dignidade da pessoa humana, cumpre estudar a História, que propiciou a consolidação dos direitos fundamentais em conjunto com as declarações, a mostrar que os Direitos Humanos foram legitimados pela cultura humana sob a desenvoltura da História mundial. 3 – O CONSTITUCIONALISMO INGLÊS A Inglaterra contribuiu sobremodo para a instauração da era do constitucionalismo no Mundo e para a positivação dos direitos limitativos da atuação do Estado frente aos particulares. É verdade que o exame dos textos legislativos não comporta a integralidade do fenômeno social; do contrário, redundaria num anacronismo manifesto. Salienta-se que entre a lei e a realidade pode haver disparidades; não se pode interpretar a produção normativa distante da vontade social e política. Contudo, junto com as mudanças legais, advêm mudanças políticas, as quais, sobretudo no caso inglês, representaram significativas ferramentas de compreensão do comportamento social. Diante da instabilidade política e da convulsão social, motivada pela insatisfação dos barões que ameaçavam o poder do Rei João da Inglaterra – conhecido historicamente como João Sem Terra –, foi prolatada a famosa Carta Magna das Liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a outorga das liberdades da Igreja e do reino inglês (“Magna Charta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliae”), no dia 15 de junho de 1215, que iniciou a era das normas limitativas do poder político. (COMPARATO, 2005). Observa-se que, na Idade Antiga, alguns impérios possuíam constituições escritas, com destaque para o Império Romano. Contudo, limitou-se, em Roma, a disciplinar as regras de administração, inclusive inseridas no “jus civile”, a demonstrar a feição de direito privado das normas, não compatibilizando com o que se 10 entende, hoje, por constituição – norma pública de garantia da limitação da discricionariedade do Estado. A Carta Magna representou um pacto entre o Rei João e os barões ingleses, a demarcar uma sucessão de obrigações; nenhum monarca houvera sido adstrito em seu poder real, até aquele momento. A importância da Carta Magna não está no cunho técnico do documento, mas sim, na demonstração de que o aparentemente inexorável poder absoluto do rei dava sinais de enfraquecimento, explicitando o início de uma nova era, cujo cerne enraizará os limites do poder estatal e o necessário respeito à vontade do corpo social. Além disso, enfatiza-se que o documento sob exame não pode ser considerado uma constituição na acepção e simbologia modernas, porque sua validade restringia-se aos interesses estritos dos barões e do Rei (um pacto entre os poderes feudais). Ademais, ao examinar um antigo documento legislativo, deve-se ter em mente que, entre a edição e a efetiva atuação dos preceitos legais, existe um enorme abismo, que não se pode perder de vista. Sem embargo, podem-se destacar, como importantes prerrogativas concedidas pela Carta Magna, o princípio da proporcionalidade da pena, ao estipular no artigo 203 que, para os delitosgraves, a pena deveria ser de mesma monta da ofensa ao bem jurídico, para ressaltar que não haveria punição aos delitos de pequeno potencial ofensivo. Isso diminuiu a índole de vingança que permeava o direito penal da época. Os confiscos abusivos, práticas recorrentes à época, foram tidos como ilegais – artigos 30 e 31 – a partir da vigência da Carta na Inglaterra, a demarcar os limites da discricionariedade do Estado frente aos interesses individuais, embasando as condutas dos agentes estatais na legalidade. Encontram-se, ainda, nos artigos 39 e 45, o princípio do devido processo legal (due process of law) e o princípio do juízo natural, assegurando aos homens livres o direito de serem julgados por juízes legais e de acordo com as leis da terra, impedindo, dessa maneira, a instalação de juízo de exceção. Ainda, pelo artigo 40, a Justiça passou a ser gratuita e sua prestação inescusável pelo Estado, simbolizando o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, hoje recorrente nas constituições modernas. 3 A Carta Magna, em sua gênese, não foi dividida em artigos. A divisão aqui apontada leva em conta a sistemática utilizada pelo jurista Fábio Konder Comparato (2005). 11 Após a Carta Magna, outra notável legislação inglesa é, sem hesitação, a Lei de Hábeas Corpus de 1679, a qual permitia que as prisões arbitrárias fossem revogadas, impedindo que o rei pudesse prender os opositores do regime. A Lei de Hábeas Corpus, ao circunscrever a atuação do rei à legalidade, mostrava-se em perfeita consonância com a Carta Magna; até então, a ausência de nítida separação dos poderes, permitia que o rei ordenasse a prisão de quem ele bem entendesse, transformando o direito penal em instrumento de medo e de repressão ilegítima. As disputas políticas e religiosas trouxeram nova instabilidade ao poder do rei. Com a fuga do Rei Jaime II para a França, o parlamento declarou o trono vago. O novo rei foi escolhido pelo Parlamento, em 1689, e assumiu o trono após aceitar algumas concessões impostas pelo Parlamento; a mais importante delas, o respeito ao “Bill of Rights”, carta de direitos, a qual se transformou na verdadeira Lei Fundamental do Reino inglês. A Carta de Direitos Inglesa promoveu a separação dos Poderes, dando maior autonomia ao Parlamento e concedendo-lhe competência exclusiva para legislar. Assim, ao diminuir ainda mais o poder do rei, esta carta instaurou o início da monarquia constitucional, pondo fim à monarquia absolutista; agora o rei encontrava-se, incondicionalmente, adstrito a uma Constituição cuja observância era obrigatória. Importante prerrogativa conquistada pelo Parlamento inglês e que resguardava a manutenção do referido órgão, foi a imunidade de seus membros, no que tange à exposição das suas idéias ou críticas ao rei, bem como no que alude aos procedimentos utilizados pelos mesmos no Parlamento, impedindo a perseguição política. O “Bill of Rights”, do ponto de vista técnico-jurídico, trouxe à baila importantes inovações, como o direito de petição, consagrado pelo constitucionalismo moderno, que permite ao cidadão pleitear informações ou ações junto ao poder público. Ademais, a partir desse documento legislativo, instituiu-se, na Inglaterra, o júri popular, asseverando que os jurados deveriam ser devidamente alistados e sorteados, para assegurar a necessária imparcialidade, além de proibir a aplicação de penas cruéis. O desenvolvimento legislativo inglês é expressão do resultado das lutas políticas da sociedade, com implicações internas e, sobremodo, externas, influenciando diversos 12 Estados, a demonstrar que as antigas bases do Estado absolutista minavam-se. E que as modernas constituições limitavam o poder do Estado, atentando para a vontade coletiva. Por isso mesmo, não tardou a aparecer variações na formatação do Estado ocidental, que, no mínimo, questionavam as prerrogativas ilimitadas dos governantes. Posteriormente, tais questionamentos começaram a se disseminar por diversos países. 4 - A REVOLUÇÃO AMERICANA As modificações no feitio do poder estatal na Inglaterra foram, em lagar medida, o azo dos movimentos de emancipação nas treze colônias inglesas da América do Norte. É verdade que as idéias oriundas da Europa foram importantes fatores exógenos. Contudo, não se pode negligenciar a existência de vetores endógenos, isto é, de elementos intrínsecos ao próprio modo de vida americano, tais como a presença duma certa unicidade cultural e religiosa, as quais favoreceram, substancialmente, a Revolução Americana. “A identidade de uma nação é de natureza predominantemente cultural, formando um conjunto próprio de costumes, valores e visões do mundo. É essa especificidade cultural que distingue uma nação das demais e acaba por torná-la um Estado independente. No caso dos Estados Unidos, o patrimônio cultural próprio formou-se, desde os primórdios da colonização, em contraste com os valores sociais e costumes políticos vigentes na Grã- Bretanha. A independência das treze colônias britânicas da América do Norte era, portanto, um resultado histórico previsível e inelutável”. (COMPARATO, 2005:95). Contudo, as idéias de liberdade originárias da Europa, sobretudo da Inglaterra e da França, podem ser vistas como o conteúdo ideológico do movimento de independência das colônias americanas. Ademais, outros fatores corroboraram com a luta pela emancipação. Com o advento da guerra entre a Inglaterra e a França, pela ocupação de territórios canadenses, o Reino Britânico viu-se excessivamente onerado pelos gastos bélicos. Com a finalidade de balancear as receitas, a Inglaterra promoveu modificações na política monetária e um processo de super-tributação aos colonos da América do Norte. Entre as medidas adotadas pela Coroa inglesa, com referência à política monetária, destaca-se a diminuição do papel-moeda circulante na colônia (Currency Act), o que causou uma significativa retração da base monetária, isto é, houve escassez de papel 13 moeda em circulação nas colônias, o que causou graves problemas de iliquidez econômica. No que concerne às medidas tributárias, casou grande consternação social a imposição aos colonos de novos impostos, tais como a Lei do Açúcar, que estabelecia a proibição de importação de aguardente estrangeira e a determinação de taxas sobre a importação do açúcar que não procedesse das Antilhas Britânicas; a Lei do Selo, a qual estipulava taxas sobre documentos comerciais, jornais e livros. Outros normativos britânicos trouxeram indignação aos norte-americanos: é o caso da Lei do Alojamento, que obrigava os colonos a fornecerem alojamentos e refeições aos soldados ingleses que estavam em campanha contra a França; e a Lei do Chá, que concedia o monopólio da venda de chás à Companhia das Índias Orientais. (COTRIM, 2001). Diante desse quadro insustentável de pressão econômica e expropriação dos lucros por meio de uma implacável política tributária, formou-se um ambiente extremamente profícuo à disseminação de pensamentos libertários. Nesse contexto, revoltas sucederam-se; os discursos dos colonos eram cada vez mais fortes, sinalizando para uma ruptura do pacto colonial. Assim, em 1774, representantes das treze colônias reuniram-se na cidadede Filadélfia, para a realização de um congresso. Essa foi a primeira reunião dos colonos e tornou-se importante, porquanto foi nesse encontro que Thomas Jefferson redigiu o famoso “A Sumary View of the Rights of British America”, em cujo conteúdo trouxe as premissas que serviriam de sustentáculo à Declaração de Independência das colônias. Observa-se, por exemplo, teses como: direito de autodeterminação dos povos livres, igualdade entre os homens, a defesa de direitos derivados da natureza humana e a defesa da dignidade da pessoa humana, conquanto muitas dessas teses foram suprimidas e não compuseram o texto final da Declaração do Congresso de 1776: “O Congresso Continental de 1776, no entanto, reduziu em cerca de um terço o original de Jefferson, suprimindo notadamente o seguinte trecho, em que se condenava o tráfico negreiro em termos grandiloqüentes: ‘Ele (o rei Jorge III) empreendeu uma guerra cruel contra a própria natureza humana, ao violar os seus mais sagrados direitos à vida e à liberdade, nas pessoas de um povo distante que jamais o ofendeu, capturando-as e transportando-as como escravos em 14 outro hemisfério, quando não fazendo-as (sic) morrer miseravelmente durante a viagem. Essa operação bélica de pirataria, o opróbrio de potências infiéis, é a guerra empreendida pelo Rei cristão da Grã-Bretanha. Decidido a manter aberto um mercado em que seres humanos seriam comprados e vendidos, ele prostituiu seu poder de veto, ao suprimir toda iniciativa legislativa de proibir ou restringir esse comércio execrável. E para que esse conjunto de horrores nada fique a dever ao acaso, ele está agora incitado aquelas mesmas pessoas a levantar armas contra nós, de modo a conquistar a liberdade da qual ele as privou, pelo assassínio do povo em cujo seio elas foram introduzidas: compensando, por essa forma, os crimes cometidos contra as liberdades de um povo com os crimes que ele o força a cometer contra as vidas do outro povo”. (COMPARATO, 2005:101). A análise do Bill of Rights norte- americano traz como resulta a constatação de que foi inspirado no Bill of Rights inglês de 1679, ao positivar os chamados “direitos de natureza” e na sua substância filosófica teve como fonte o pensamento liberal, propugnado, sobretudo, por John Locke, e pelo pensamento ilustrado de Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau. Com a promulgação da Constituição em 17 de setembro de 1787, Os Estados Unidos da América tornaram-se os pioneiros no constitucionalismo moderno, na sua acepção técnico-jurídica. Não se olvida, porém, as experiências gregas e romanas, mas os esforços dos antigos se limitaram a uma constituição preocupada com a estrutura social. Os Estados Unidos inovaram ao conceberem a Constituição como um ato causa da vontade política e como um instrumento de proteção do cidadão, enquanto efeito prático. Ademais, os norte-americanos demarcaram, desde o início, o princípio da supremacia da Constituição, zelando e garantindo, assim, pela estabilidade jurídico- constitucional, os direitos humanos. Ademais, a Carta norte-americana ganhou um feitio rígido, só podendo ser mudada pelo Poder Legislativo, em processo solene. Com essas medidas, os constituintes frustraram qualquer tentativa de uma possível burla dos direitos constitucionais proclamados pela Assembléia. (MORAES, 2006). No plano técnico-jurídico, a Constituição dos Estados Unidos da América adotou como forma de organização do Estado, o Federalismo e, como regime político, a República Presidencialista. Adotou-se a tripartição dos poderes nos moldes da doutrina defendida por Montesquieu, sendo o Legislativo em sistema bicameral, remontando à tradição 15 anglo-saxônica, composta por um Senado e uma Câmara de Representantes. O Judiciário foi organizado através de tribunais inferiores e da Suprema Corte, o órgão máximo do Poder Judicante, responsável por, em última instância, interpretar a Constituição Federal. A Constituição dos Estados Unidos da América foi o principal modelo de organização do Estado, utilizado no Brasil quando da instauração da República: “Após a Proclamação da República através do Decreto n. 1 de 15 de novembro de 1889, tornou-se imperativo obrar uma nova constituição, pois a antiga não coadunava com os ideais republicanos. De fato, a nova Constituição foi aprovada em 24 de fevereiro de 1891, tendo como principal artífice Ruy Barbosa, notório intelectual da época, o qual confeccionou o projeto, profundamente influenciado pela Constituição dos Estados Unidos da América de 1787. Ele era um entusiasta do constitucionalismo norte americano e, em função disso, a primeira Lei Republicana do Brasil acabou muito parecida com a Constituição dos Estados Unidos da América. Além desta influência, algumas lacunas foram preenchidas tendo por base as constituições da Argentina e da Suíça.” (MENDONÇA & VLACH, 2006:8). Apesar de todos os avanços representados pela Revolução Americana, não se pode esquecer que o discurso de defesa da pluralidade, da dignidade da pessoa humana e da liberdade, foi vencido pelo interesse da elite que dependia do trabalho escravo para manter seus lucros, sustentando o sistema escravocrata advindo dos tempos coloniais, alijando os negros, índios e seus descendentes dos progressos e das garantias que a Constituição trazia consigo e, mais tarde, promovendo um verdadeiro genocídio contra as comunidades indígenas que habitavam, sobretudo, o oeste do território norte-americano. Mas, se, pelo lado prático, a Constituição norte-americana não acompanhou os discursos contumazes dos membros dos constituintes pela defesa da dignidade da pessoa humana, por outro ângulo, cumpriu um importante papel histórico: a técnica constitucional e os discursos inflamados pela liberdade dos povos inspiraram mudanças em todo o mundo, e deram maior visibilidade ao pensamento liberal. 5 – PENSAMENTO LIBERAL O pensamento liberal surgiu num contexto de críticas ao conjunto de características sociais, políticas, econômicas e culturais do chamado “Antigo Regime”. A sociedade do “Antigo Regime” era caracterizada, no plano político, pelo poder 16 absoluto do rei, por uma divisão social rígida – os estamentos –, e na esfera econômica, coexistiam o sistema feudal de produção e o ascendente sistema capitalista. Na seara cultural, era marcada por uma forte intervenção do Estado e da Igreja Católica, impedindo a liberdade de pensamento, impondo um padrão de convicção filosófica e religiosa, cuja inobservância implicava em duras sanções por parte do Estado. Nesse contexto, a burguesia comercial, classe social ascendente, a qual ainda não influía nas decisões políticas do Estado, mostrou-se insatisfeita com a condição social que ocupava e desenvolveu um pensamento crítico ao “Antigo Regime”, formando, por conseguinte, uma corrente de pensamento que traduzia os seus interesses. Assim, para os burgueses, o Estado deveria acumular riqueza para demonstrar verdadeiramente o seu poderio. Para alcançar esse desiderato, na visão burguesa, era indispensável operar um processo expansionista das atividades capitalistas. E só havia um meio para conquistar esse objetivo: abandonar a visão mercantilista e conceder liberdade nos negócios e poder político à classe burguesa. Dessa forma, a idéia de defesa da liberdade conjugou-se com as críticas à estruturasocial do “Antigo Regime”, conquistando a participação dos intelectuais que advogavam um movimento cultural conhecido como Iluminismo. O Iluminismo foi uma corrente de pensamento que defendia a igualdade no comércio: independente do estamento social, todos possuíam o direito às mesmas oportunidades de contratar e não deveriam pagar tributos diferenciados em função da classe social a que pertenciam. Com isso, os iluministas propugnavam a isonomia jurídica, pondo fim aos privilégios da nobreza. Eram favoráveis à tolerância religiosa e filosófica, contraditando a imposição cultural do Estado e da Igreja Católica. Defendiam, também, o fim da escravidão, entendendo que a liberdade pessoal e social era um direito natural do homem, e que a propriedade privada era uma condição natural do indivíduo. Entre os pensadores que compunham a corrente iluminista, destaca-se Montesquieu, o qual defendeu a separação dos poderes sociais, ressaltando que Estado e Igreja não deveriam se misturar, haja vista que: “Não se deve de modo algum estatuir pelas leis divinas o que deve sê-lo pelas leis humanas, nem regulamentar pelas leis humanas o que deve ser feito pelas leis divinas”. ( apud Abrão 2005: 277). 17 Com referência aos poderes do Estado, Montesquieu defendia a separação dos mesmos. Assim, qualquer tipo de Estado, despótico, monárquico ou democrático, possui três poderes: o legislativo, o executivo e o judiciário. Contudo, apesar da separação, os poderes deveriam se auto-interagir, limitando-se mutuamente, tendendo ao equilíbrio. Montesquieu defendia que o conhecimento do espírito das leis torna possível o conhecimento da natureza do governo: “É preciso conhecer quais são as leis que derivam diretamente dessa natureza e que, conseqüentemente, são as primeiras leis fundamentais”. (MONTESQUIEU, 2005:45). Assim, pela lei fundamental da República, o povo deve possuir o poder soberano; pela lei fundamental do Despotismo, o príncipe deve exercer o poder como lhe convém e, pela lei fundamental da Monarquia, o príncipe possui o poder soberano, mas o exerce segundo as leis postas pelo poder legisferante. Até a liberdade pode ser definida por meio do exame das leis, pois, para Montesquieu: “Num Estado, isto é, numa sociedade em que há leis, a liberdade não pode consistir senão em poder fazer o que se deve querer e em não ser constrangido a fazer o que não se deve desejar. (…) A liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem; se um cidadão pudesse fazer tudo o que elas proíbem, não teria mais liberdade, porque os outros também teriam tal poder”. (MONTESQUIEU, 2005:200). Outro destacado pensador iluminista foi Jean-Jacques Rousseau. Sobretudo em sua obra Do Contrato Social, Rousseau questionou a legitimidade da soberania do Estado frente à sociedade civil, colocando-se em contraponto com o pensamento político clássico, mormente o referente à John Locke e Thomas Hobbes. Rousseau não viu o contrato social como um pacto que pôs fim à guerra, como dissera Hobbes, e nem como um instrumento que garantiu o usufruto dos bens privados, como defendera Locke. Dessa forma, asseverou: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros. O que se crê senhor dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como adveio tal mudança? Ignoro-o. Que poderá legitimá-la? Creio poder resolver esta questão.” (ROUSSEAU, 2005:53). Para Jean-Jacques Rousseau, o Estado deveria ser governado segundo a vontade geral do conjunto da população que compõe a sociedade civil, com vistas ao bem 18 comum. Somente com a participação popular, se poderia soerguer a igualdade jurídica, haja vista que o legítimo contrato social representou, de um lado, a mitigação da liberdade incondicional, a qual o homem goza no estado de natureza e, de outro, a aquisição da liberdade civil, implicando no nascimento do direito de cidadania, cuja isonomia e a participação política são seus corolários. Por defender a ampliação da participação política da população, o pensamento de Rousseau convinha à burguesia, que almejava influir nas decisões do Estado. Assim, Rousseau passou para a História como defensor da burguesia e como o filósofo da Revolução Francesa. Na seara econômica, o pensamento liberal ganhou destaque, primeiro com o pensamento menos elaborado dos fisiocratas e, posteriormente, com o mais engenhoso pensamento de Adam Smith. A palavra fisiocrata tem origem no grego, physis: natureza e kratos: poder. Os Fisiocratas formaram uma escola de pensamento que teve maior expressão na França. Defendiam que a intervenção do Estado na economia era um erro, pois havia leis naturais que orquestravam, por si, a desenvoltura do fenômeno econômico: Laissez faire, laissez passer. Le monde va de lui-même (Deixai fazer, deixai passar. O Mundo anda por si mesmo), a síntese de sua proposta. Opunham-se à política do mercantilismo, entendendo que a riqueza econômica advinha da terra e que a indústria e o comércio apenas transformavam ou faziam circular a riqueza natural; por conseguinte, valorizavam a agricultura em grande escala, por meio da implantação de um capitalismo agrário. O grande mérito do pensamento fisiocrata foi preparar o terreno teórico para o pensamento de Adam Smith, mormente com a defesa da livre concorrência, a qual se tornou a alcunha do pensamento liberal moderno. Adam Smith é considerado o fundador da Economia enquanto ciência, por propor “uma interpretação abrangente dos fenômenos econômicos, organizados segundo um sistema de leis, que explica a interação dos seus diversos agentes.” (POSSAS, 1997:15). Advogava a existência de leis mercadológicas que dirigem o mercado; a chamada “mão invisível”. “A ‘mão invisível’ é uma imagem metafórica, pela qual Smith argumentava que, apesar de as decisões numa economia de mercado serem tomadas de modo descentralizado pelos produtores, seguindo seus próprios interesses egoístas, elas levam à consecução dos 19 melhores interesses do conjunto da sociedade. A mão invisível do livre comércio é que dá coerência e eficácia a essas decisões e que compatibiliza (sic) busca de interesses privados e bem público”. (POSSAS, 1997:15). Smith refutou que a intervenção do Estado se fazia necessária porque o egoísmo dos agentes econômicos dissolveria o equilíbrio do mercado, sendo prescindível, em regra, a gerência do Estado para impor a tranqüilidade. Para Smith, a busca do bem individual proporciona o bem coletivo. “O pressuposto de que todo o comportamento econômico se baseava em motivos egoístas e gananciosos devia tornar-se o fundamento da economia neoclássica, em fins do século XIV e começo do século XX.” (HUNT, 1991:78). Smith divergiu dos fisiocratas, os quais diziam que a riqueza advinha da terra, enfatizando que a riqueza de uma nação tem o trabalho como núcleo, sendo a divisão do trabalho a forma de optimizar a geração dessa riqueza: o trabalho cria a riqueza e a divisão social do trabalho a amplia. A ampliação da riqueza se dá fundamentalmente num capitalismo industrial, pois reúne as condições necessárias para o desenvolvimento da divisão social do trabalho. Suas propostas ficaram conhecidas como Liberalismo Econômico e sua obra, A Riqueza das Nações, constituiu-se no sustentáculo teórico do capitalismoliberal. Em linhas gerais, foram essas idéias que nortearam as modificações sociais das chamadas revoluções burguesas, das quais a mais importante foi, sem dúvida, a Revolução Francesa de 1789, principalmente pelas visões jurídicas extraídas das Leis francesas e da Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789. 6–PENSAMENTO FRANCÊS NO PERÍODO PÓS-REVOLUÇÃO A Revolução Francesa marcou a implantação de uma boa parte das idéias liberais, superando, de vez, o sistema feudal de produção, na Europa. A Queda da Bastilha simbolizou, também, o acesso definitivo da burguesia no poder político e a derrocada do “Antigo Regime” na França. Em 26 de agosto de 1789, a Assembléia Nacional Constituinte promulgou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, documento que influenciou a Europa e a América, persuadindo os povos sobre as vantagens do liberalismo democrático, e a motivar movimentos similares em diversas partes do 20 Mundo, inclusive na colônia brasileira (Conjuração Baiana, em 1798). É inegável a maior amplitude dos argumentos da Declaração francesa em contraste com o “Bills of Rights” norte- americano, porquanto os franceses estavam convencidos de que a Revolução Francesa defendia direitos dos povos e que os direitos declarados ultrapassavam as fronteiras culturais francesas, atingindo todos os homens, sem qualquer distinção. “Foi em razão desse espírito de universalismo militante que Tocqueville considerou a Revolução Francesa mais próxima dos grandes movimentos religiosos do que das revoluções políticas. ‘Vimo-la (a Revolução Francesa) aproximar ou separar os homens, a despeito das leis, das tradições, dos temperamentos, da língua, transformando por vezes os compatriotas em inimigos e os estrangeiros em irmãos; ou antes, ela formou, acima de todas as nacionalidades particulares, uma pátria intelectual comum, da qual os homens de todas as nações puderam tornar-se cidadãos’.” (COMPARATO, 2005: 131). Dentre os principais elementos da Declaração francesa, destaca-se a busca do respeito à pessoa humana, a defesa da liberdade e da isonomia jurídica entre os cidadãos, repudiando as prerrogativas estamentais; o direito à propriedade individual elevado à categoria de direito inerentes ao ser humano, como propugnava John Locke; o direito de resistência à opressão política, consoante ao que defendeu Jean Jacques Rousseau; e a defesa da liberdade de pensamento e de opinião. (ABRÃO, 2004) É digno de observação que, ao contrário da Revolução norte-americana, a Revolução Francesa teve, no conteúdo ideológico, a prevalência das idéias liberais, o que propiciou uma ampla discussão sobre a escravidão, haja vista que – conforme já se afirmou – o trabalho assalariado era considerado como condição sine qua non para a concretização da expansão capitalista dos países que possuíam um processo industrial mais adiantado, como era o caso dos países europeus. Apesar disso, somente em 1848, a França oficializou o fim da escravidão nas colônias. Nos Estados Unidos da América, as idéias escravocras eram recepcionadas pela elite agrária com mentalidade exportadora, considerando dispensável a formação de um mercado de consumo interno, o que, a contrario sensu, justificaria o fim da escravidão. Além da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, colocada como preâmbulo da Constituição francesa 21 promulgada em 3 de setembro de 1791, no corpo da Constituição havia, igualmente, uma declaração de direitos que completava o sentido daquela. A declaração da Constituição de 1791 foi a primeira a reconhecer, ainda que de forma tímida, os direitos humanos de caráter social: “Será criado e organizado um estabelecimento geral de Assistência Pública, para educar as crianças abandonadas, ajudar os enfermos pobres e fornecer trabalho aos pobres válidos que não tenham podido encontrá-lo. Será criada e organizada uma Instrução pública comum a todos os cidadãos, gratuita no que concerne às partes do ensino indispensável a todos os homens (…).” (COMPARATO, 2005:157) A primeira Constituição francesa da pós-revolução contemplou a chamada cláusula pétrea, uma inovação que, somada ao princípio da supremacia da constituição, nascida da genialidade norte-americana, tinha como objetivo garantir a plena vigência dos direitos fundamentais. A cláusula pétrea consiste em impedir que o Poder Legislativo prolate algum ato normativo que prejudique ou impeça o pleno exercício dos direitos fundamentais, garantidos pela Constituição, tendo em vista respeitar a absoluta estabilidade das prerrogativas. Com a novel Carta constitucional, a França tornou-se uma monarquia constitucional; o rei deveria, por princípio, governar sob a égide da Constituição. Extinguiram-se os privilégios estamentais, instaurando-se um regime de isonomia jurídica, atendendo aos anseios da classe burguesa. Na seara econômica, a Lei defendia a liberdade comercial, nos moldes da doutrina liberal. Garantia-se que o Estado não interferiria na economia, de maneira que as leis do mercado dirigissem a sua trajetória. A liberdade religiosa foi propugnada na Constituinte e consolidada na Constituição de 1791. O poder do Estado foi demarcado e, em via de conseqüência, destacado da Igreja, retirando-a da vida política do Estado francês. O Estado era soberano e dividia os seus poderes em executivo, legislativo e judiciário. A eleição para a escolha dos representantes do Parlamento era realizada por sufrágio censitário. Contudo, a Constituição de 1791 não aboliu a escravidão nas colônias francesas e proibiu a manifestação dos trabalhadores para reivindicar melhores condições de trabalho, desrespeitando a própria Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, mostrando que somente 22 parte das idéias iluministas fora implantada pelo Estado francês. A tentativa frustrada de destituir a família real, de promover uma contra- revolução com apoio do exército austro- prussiano, precipitou o fim da vigência da Constituição de 1791 e do regime monárquico-constitucional. Foi convocada uma nova Assembléia Constituinte que, sob a influência da experiência norte-americana, foi denominada de Convenção. (COTRIM, 2001:261). Com o início dos trabalhos da Convenção, em 21 de setembro de 1792, houve consenso entre os membros sobre a extinção do regime monárquico e a instauração do regime republicano. À moda da Carta revogada, a Constituição de 1793 instituiu uma declaração de direitos, depois de muito debate entre os girondinos e os jacobinos acerca da prevalência dos direitos individuais ou dos direitos sociais, chegando a um acordo que propiciou a promulgação da declaração. “A declaração de direito da Constituição de 1793, de modo geral, limitou-se a enfatizar o conteúdo das declarações anteriores. Contrariamente à opinião tradicionalmente estabelecida, ela não representou avanço algum em matéria de direitos sociais, em comparação com a Constituição de 1791.” (COMPARATO, 2005:151). A Carta de 1793 reconheceu, nos artigos 25 e 26, que a soberania, como enfatizara Rousseau, pertencia ao povo, erradicando o voto privilegiado da Lei de 1791. Além disso, legitimou o direito de resistência contra a tirania do Estado, nos moldes de John Locke, afirmando, no artigo 35, que a insurreiçãopopular é um direito sagrado e um dever indispensável do cidadão. Contudo, com a instabilidade política imanente ao momento revolucionário francês, a Constituição de 1793 não chegou à plena vigência. A tomada do poder pelos girondinos, os quais objetavam a legitimidade dos direitos sociais insertos na declaração, e a insurreição dos sans-culottes em 21 de março de 1795, forçaram a votação de uma nova Constituição, promulgada em 22 de agosto de 1795. A soberania popular declarada pela Carta de 1793 não foi repetida, preferindo-se uma forma mais genérica, declarando-se a universalidade dos cidadãos como sendo a personificação da soberania popular. A divisão dos Poderes foi reforçada, adotando-se, fidedignamente, o modelo teórico de Montesquieu. A Constituição de 1795 reduziu a proteção dos direitos 23 fundamentais em relação à Lei revogada. Nesse sentido: “Entre os direitos fundamentais já não se incluem nem o de ‘resistência à opressão’, nem as liberdade de opinião, de expressão e de culto, nem tampouco os direitos sociais consagrados nas declarações anteriores: o direito ao trabalho, à assistência pública e à instrução. Considera-se inexistente a ‘garantia social’(…).”(COMPARATO, 2005:152). O que mais chama a atenção é, sem dúvida, a declaração de deveres que a Constituição de 1795 trouxe em seu bojo. Houve uma incongruência lógica, haja vista que, a todo direito declarado corresponde, via de conseqüência, um dever proporcional. Ademais, as prerrogativas fundamentais, a rigor, na qualidade de deveres, são dirigidas ao detentor do poder, na maioria das vezes, o próprio Estado. Apagogicamente, levou-se a uma espécie de “direitos humanos para o Estado”, como ressaltou Fábio Konder Comparato. (2005:153). Apesar da instabilidade das constituições promulgadas na fase pós- revolução francesa, o nível do debate teórico acerca dos direitos fundamentais e do próprio papel desempenhado pelas leis constitucionais para a concretização do feitio do poder estatal, contribuiu substantivamente para a consolidação do fenômeno que pode ser denominado de constitucionalismo ocidental. Preponderantemente, houve, nessa época, um grande avanço no que tange aos direitos fundamentais de primeira geração, isto é: os direitos civis e políticos, mas os chamados direitos fundamentais de segunda geração, compostos pelos direitos sociais e econômicos, não encontraram ambiente histórico-cultural profícuo para semeadura dos mesmos, apesar dos esforços despendidos pelos jacobinos na direção de legitimá-los, já que a visão liberal da atuação do Estado conflitava, demasiadamente, com as prerrogativas de natureza socioeconômica. O decantado lema da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade – não foi alcançado na íntegra pelas modificações operadas pelo processo. Pode-se dizer que a Revolução concretizou apenas a primeira etapa dos objetivos, ou seja, consolidou a liberdade, mas a igualdade substancial e a fraternidade ficaram como discussões cerebrinas, a compor outras etapas da evolução histórica dos direitos fundamentais. Os direitos sociais ficaram à margem dos debates até o advento da Constituição Francesa de 1848, pois a efervescência dos 24 movimentos proletários – a chamada primavera dos povos – deu vitalidade às discussões sobre as questões sociais e sobre o verdadeiro papel desempenhado pelo Estado. A Lei de 1848 misturou a teoria liberal da redução dos gastos públicos com a gerência do Estado nos problemas sociais, a prever a responsabilidade do Estado com relação a algumas políticas de cunho social. A Constituição, em seu artigo 13, dizia que garantiria aos cidadãos a liberdade de trabalho e favoreceria a isonomia nas relações entre empregado e empregador. Além disso, defendia que o Estado deveria ocupar o trabalhador desempregado em obras públicas e proteger as crianças, os doentes e os idosos sem recursos, direitos que mais tarde comporiam os conceitos fundamentais do Estado do Bem-Estar Social, sob a tutela intelectual do pensador inglês John Maynard Keynes. Além dos tímidos avanços concernentes aos direitos sociais, a Carta francesa de 1848 aboliu a pena de morte para crime político e tornou ilegal a escravidão, importando nas principais alterações no que diz respeito aos direitos fundamentais do homem, quando comparada às antigas constituições. 7 – CONSOLIDAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DE SEGUNDA GERAÇÃO A solidificação dos movimentos operários, aliada ao surgimento de correntes teóricas como o anarquismo, socialismo e o comunismo, forçaram o debate sobre os direitos sociais e acerca do papel desempenhado pelo Estado frente às mazelas sociais. Apesar de todo o desenvolvimento teórico e prático dos países europeus, foi no México que os direitos sociais, pela primeira vez, ganharam amplo destaque, sendo colocados em nível constitucional. A Constituição Política dos Estados Unidos do México, promulgada em 5 de fevereiro de 1917, foi um verdadeiro divisor de águas no direito constitucional contemporâneo. Foi a primeira Carta no mundo a considerar os direitos trabalhistas como direitos fundamentais do homem, no mesmo patamar que já se havia concedido aos direitos individuais, isto é, aos direitos fundamentais de primeira geração. A Lei mexicana é uma prova da disseminação dos direitos fundamentais no Mundo, pois, muito embora as discussões referentes aos direitos humanos tenham ficado, num primeiro momento, adstritas à 25 Europa e aos Estados Unidos da América, a influência chegou a outros países, já que há experiências históricas que, conquanto ocorram em um determinado espaço geográfico, tornam-se eventos com implicação na cultura mundial, não se limitando ao país no qual ocorreu. A Carta do México antecipou um evento que, na Europa, só se consolidaria após a Primeira Guerra Mundial, qual seja: o entendimento de que os direitos humanos de segunda geração deveriam, a exemplo dos direitos individuais, ganharem status de norma constitucional. Nesse diapasão, a Constituição do México de 1917 limitou a jornada de trabalho em oito horas por dia para o trabalho diurno e de sete horas para o trabalho noturno. Fixou que os jovens maiores de 12 anos e menores de 16 anos, teriam jornada especial de trabalho não excedente a seis horas por dia. Estatuiu, também, uma idade mínima para o jovem ingressar no mercado de trabalho, não sendo permitida a contratação de trabalhadores com menos de 12 anos de idade. Garantiu, ainda, o descanso semanal obrigatório, assegurando que, para cada seis dias trabalhados, o trabalhador teria direito a pelo menos um dia de descanso. A Lei proibiu, outrossim, o trabalho insalubre para as mulheres e para os menores de 16 anos. Além disso, destaca-se que a Lei mexicana protegeu a maternidade, garantindo que as trabalhadoras grávidas não deveriam realizar trabalhos físicos que exigissem esforço considerável três meses antes do parto, e desfrutariam de descanso no mês seguinte ao parto e, no período de lactação, teriam dois descansos extraordinários por semana, de meia hora cada um, para amamentar os filhos, com a garantia de manutenção do emprego e percebendo salário integral durante o período. É importante lembrar que essas modificações nas prerrogativas fundamentaisnão surgiram pela livre e espontânea vontade dos governantes. As mudanças de paradigma jurídico ocorrem sempre motivadas pelo aprofundamento das tensões sociais, e culminam com a ruptura dos padrões jurídicos tradicionais. O principal mister executado pela Constituição mexicana de 1917 foi a ruptura com o paradigma liberal do trabalho. O trabalho era visto como uma mercadoria pelos liberais, sujeitando-se às oscilações das leis do mercado, deixando o trabalhador à mercê das intenções do empregador, sejam elas quais fossem. Ao fundar o princípio da 26 isonomia substancial entre empregado e empregador, a Lei do México rompeu com um ambiente de legitimação das explorações mercantis do trabalho, lançando os sustentáculos do Estado Social de Direito. Em novo passo, com as modificações advindas em decorrência da Primeira Guerra Mundial, a Constituição de Weimar de 1919 foi um importante acontecimento que influenciou favoravelmente as instituições sociais européias. Por meio da Lei de Weimar, o Estado Social de Direito ganhou contornos mais definidos em relação à Constituição mexicana de 1917, o que implicou na consolidação da democracia social do pós Segunda Guerra Mundial, a contemplar os direitos civis e políticos, bem como os direitos sociais e econômicos. O artigo 153 da Lei alemã foi uma verdadeira inovação no trato com a propriedade privada, salientando que a propriedade trás em si obrigações, as quais os proprietários deveriam observar. Se, antes, pelo pensamento liberal, a propriedade era somente um direito do proprietário, doravante passou a representar um direito e um dever, porquanto seu uso deve caminhar em direção do bem comum. Tem-se, dessa forma, a gênese do moderno princípio da função social da propriedade. À moda da Lei mexicana, os direitos trabalhistas e previdenciários são guindados à condição de dogma constitucional. Ambas as constituições foram importantíssimas para a concretização dos direitos sociais e econômicos, e por romperem com a visão liberal, lançando as bases da democracia social no Mundo. Contudo, nos dias hodiernos, tem ganhado força o discurso a favor dos direitos fundamentais de terceira geração, a completar os objetivos propostos pela Revolução Francesa. Assim, os direitos fundamentais de terceira geração compreendem os direitos de solidariedade ou fraternidade, englobam o direito a um meio ambiente equilibrado, a uma qualidade de vida saudável, incluindo-se o direito ao progresso, à paz, à autodeterminação dos povos, por meio da cooperação entre os Estados. Ainda não ocorreu a implantação plena dos direitos fundamentais de terceira geração, pois muitos Estados, sobretudo as potências econômicas e bélicas, não reconhecem a legitimidade de tais direitos, haja vista que a busca do equilíbrio ecológico, por exemplo, resultaria em perdas econômicas. Também, não se olvida que a guerra é considerada uma empresa lucrativa; além de movimentar a indústria de 27 armamento e munição, ainda é um meio utilizado para se conquistar mercados e influência política direta, v.g., a guerra Estados Unidos contra o Iraque, iniciada em 2003. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da pesquisa, sobressai o mérito do princípio da dignidade da pessoa humana enquanto núcleo nascedouro dos direitos fundamentais do homem e dos conseqüentes limites de atuação do poder estatal frente aos cidadãos. Com referência à ontologia do princípio da dignidade da pessoa humana, no atual estágio da compreensão da expressão do direito, deve-se levar em conta, fundamentalmente, a fenomenologia jurídica, isto é, analisar a manifestação das prerrogativas fundamentais, atentando-se para o conjunto de fatos que compõem a realidade concreta, e deixar de lado os estudos fixos e abstratos, dando primazia aos aspectos históricos e sócio-culturais, os quais se constituem no verdadeiro e legítimo motor do desenvolvimento legislativo de qualquer Estado. A consideração de que as relações sócio-culturais são as causas motoras do nascimento das proposições normativas, implica, observando a multiplicidade cultural existente no mundo, numa suposta impossibilidade de se elaborar normas cujos conceitos tenham validade universal (o que pressupõe a mesma convivência social nas mais diversas partes do globo terrestre). Entretanto, deve-se relevar que os direitos humanos, bem como o próprio teor do princípio da dignidade da pessoa humana, lidam com uma fração das prerrogativas afetas aos homens. Por mais que elas dependam das manifestações sócio-culturais, os seus objetivos já estão disseminados pelo mundo, não se podendo aceitar mitigações quanto ao direito à vida, à dignidade humana, sob o pretexto de que as diferenças culturais locais determinariam um tratamento diferenciado dos direitos humanos. Se, por um lado, não existe um direito anterior e superior a todos os homens, dando a feição de um direito de natureza metafísico, por outro, se deve observar que, na sistemática dos direitos humanos, já se consolidou o necessário respeito aos homens, preservando-lhes sua dignidade, incluindo a liberdade nas suas mais variadas instâncias, como a própria independência cultural. Dessa maneira, proclama-se a existência de uma cultura humana universal, 28 pois as pessoas, por serem da mesma espécie, possuem necessidades idênticas, ligadas a sua racionalidade, sem a observância das quais não se poderia falar em dignidade da pessoa humana. Lembra-se que existe uma História mundial, cuja trajetória não influencia apenas esse ou aquele país, mas sim, todos os seres humanos, ainda que não de forma simultânea. Com isso, não se quer negar a existência da cultura local, mas, sim, realçar a existência de uma cultura global, modelada por acontecimentos históricos de implicação mundial, e uma cultura local a ser respeitada, porquanto a própria cultura global, por intermédio dos postulados dos direitos humanos, defende a manutenção e o respeito às diferenças culturais, preservando a riqueza da diversidade. Afirma-se, assim, a existência de uma cultura universal, perpetuada sobre a base da desenvoltura de uma História universal, a qual é a legítima substância dos direitos fundamentais do homem, cuja validade, eficácia e vigência transcendem fronteiras e se harmonizam com qualquer cultura local legítima. Os propalados entraves entre as culturas locais e os direitos fundamentais do homem são, na verdade, eventuais incompatibilidades entre a prática política local que, em muitos Estados, representa a vontade de uma minoria que detém o poder político e econômico, que insiste em não respeitar a dignidade humana, dando estatuto de cultura às práticas políticas que desrespeitam os direitos humanos, promovendo um verdadeiro paralogismo com a finalidade espúria de não observar as prerrogativas essenciais do homem. Verifica-se, também, que não há uma relação de perfeita identidade entre os direitos humanos positivados e os direitos humanos desenvolvidos no plano teórico com base nos acontecimentos histórico- culturais com expressão universal, os quais compõem algo mais amplo, denominado de princípio da dignidade da pessoa humana. A relação entre estes dois fenômenos pode, de forma didática, ser representada graficamente por dois círculos concêntricos, em que o círculomaior alude ao desenvolvimento teórico, e o menor refere-se às prerrogativas positivadas, a enfatizar a existência de uma lacuna que precisa ser preenchida, para se chegar ao ápice dos direitos fundamentais. Busca-se, ainda hoje, a afirmação dos direitos fundamentais de terceira geração, a grande empreitada para os defensores das prerrogativas essenciais aos homens. Mas, como se observou ao longo desse trabalho, 29 somente em um contexto histórico e cultural adequado, idéias novas podem se solidificar. Foram necessárias revoltas violentas e profundas modificações na óptica de análise do poder do Estado, para a confirmação dos direitos fundamentais de primeira geração. Com relação aos direitos sociais, somente se solidificaram com os movimentos operários e os resultados nefastos de duas grandes guerras mundiais. As catástrofes ecológicas, o derretimento das calotas polares, o superaquecimento da Terra em função do aceleramento do efeito estufa, decorrente da emissão desgovernada de gases e a agressão à camada de ozônio, têm provocado o debate sobre a necessidade de se criar regras que inibam a degradação do meio ambiente, sob o baluarte de que um meio ambiente saudável é um direito de todo ser humano. Além disso, a esdrúxula invasão do Iraque pelos Estados Unidos com o fito de satisfazer necessidades econômicas ligadas ao comércio de hidrocarbonetos, desrespeitando a vontade do organismo multilateral máximo, a Organização das Nações Unidas - ONU, a qual os Estados Unidos pertencem, bem como a corrida nuclear armamentista que se assiste nos dias hodiernos, realçaram o certame sobre a imperatividade da busca de harmonia entre os Estados e a fixação de normas supranacionais ligadas à garantia da paz mundial. Vive-se num momento histórico que determina a urgência das mudanças de padrão cultural do homem moderno. O ser humano consciente não tem admitido, com passividade, as agressões ao meio ambiente e aos países mais frágeis, econômica e belicamente. Dessa forma, aponta-se para a importância da afirmação dos direitos fundamentais de terceira geração, sob pena de o mundo se transformar em um lugar impossível de se viver e conviver. REFERÊNCIAS - ABRÃO, Bernadette Siqueira., 2004, A História da Filosofia. São Paulo: Editora Nova Cultura, 2004. - ACQUAVIVA, Marcus Cláudio. Dicionário Jurídico Brasileiro. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1995. - ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-Violência. São Paulo: Editora Atlas, 2001. - CARNEIRO, Ricardo. Os Clássicos da Economia. São Paulo: Editora Ática, 1997. - CARVALHO, José Luiz Tuffani de. Constituições Estrangeiras. 1ªedição, Rio de Janeiro: Editora Espaço Jurídico, 2003. 30 - COMPARATO, Fábio Konder. 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