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DIÁLOGOS E MEMÓRIA NO TEATRO DE NELSON RODRIGUES Claudiomar Pedro da Silva (UNEMAT) 1 Resumo: Este trabalho trata dos aspectos da memória no texto cênico Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. No recorte, será abordada a memória enquanto busca de um discurso quando se faz necessário em um dado momento. Neste sentido, a busca do passado pela memória é definida pela tentativa de restabelecer a unidade interior, rompida pelo estado de choque. Assim, a noção de tempo contínuo e linear é abalada, de modo que o passado seja ativado pela memória, passando a ser considerado parte do presente, cujos diálogos exteriorizam a montagem imagística da mente de Alaíde. Palavras-chave: Memória, Teatro, Passado, Presente. Abstract: This work deals with aspects of memory in scenic text “Dress of Fianceé”, of Nelson Rodrigues. In the analysis, will be addressed memory while searching for a speech when it is necessary at a given time. In this sense, the search for the memory of the past is defined by the attempt to restore unity within, broken by shock. Thus, the notion of continuous and linear time is shaken, so that the past is activated by memory, then be considered part of the present, whose dialogue externalized assembling imagery from the mind of Alaíde. Keywords: Memory, Theater, Past, Present. Neste trabalho, o objetivo central é evidenciar o plano da memória na peça Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues. Em vinte e oito de dezembro 1943, de acordo com os críticos, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, estréia não só uma peça de Nelson Rodrigues, como também o início do teatro moderno brasileiro. Conforme Sábato Magaldi (2004), a data de estréia tornou-se marcante para o teatro brasileiro, uma vez que, ao mesmo tempo em que Nelson dava uma dimensão insuspeitada à nossa dramaturgia, o grupo de amador de Os Comediantes, dirigido pelo polonês Zbigni Ziembinski, que chegara ao Brasil durante a Segunda Guerra Mundial, renovava o nosso espetáculo. Pode-se dizer que Vestido de Noiva, inaugurou um modo de fazer teatro nunca antes visto nacionalmente, utilizando recursos inéditos. Rompendo com os padrões estéticos da época, Vestido de Noiva é posto no nível das grandes produções mundiais, mostrando inovações estilísticas do drama moderno. De acordo com Facina (2004), há registros de opiniões e méritos que atestam a importância da obra por intelectuais como Manuel Bandeira, Gilberto Freyre e Augusto Frederico Schmidt, reconhecendo a peça de Nelson como um processo de revolução que conseguiu elevar a literatura dramática nacional a patamares universais. Em meados da década de 1980, Sabáto Magaldi relata que Nelson Rodrigues solicitou que ele organizasse a edição de seu Teatro Completo, na introdução do primeiro livro o organizador revela a dificuldade de reunir peças que experimentaram várias direções e estilos. Ao organizar a publicação que compreende dezessete títulos, realizou uma classificação em quatro grupos, preservando uma certa simetria, sem violentação do espírito da obra. Nesse sentido, como a peça Vestido de Noiva é estruturada na esfera psíquica, foi classificada como peça psicológica. A peça rompe a ordem cronológica e espacial dos fatos e foge da tessitura estritamente linear, utilizando a técnica das ações simultâneas, denominada pelo autor tragédia em três atos e dividia em três planos: realidade, memória e alucinação. “(Cenário – 1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários – Mestrado Acadêmico, Campus Universitário de Tangará da Serra. dividido em 3 planos: 1º plano: alucinação; 2º plano: memória; 3º plano: realidade. Quatro arcos no plano da memória; duas escadas laterais. Trevas.)” (RODRIGUES, 1981, p. 109). O plano da realidade é utilizado pelo autor para situar os acontecimentos, indicando o tempo linear da história, portanto, surge de vez em quando. O texto inicia com indicador de um acidente “MICROFONE – Buzina de automóvel. Rumor de derrapagem violenta. Som de vidraças partidas. Silêncio. Assistência. Silêncio.” (RODRIGUES, 1981, p. 109). Em seguida, repórteres anunciam o acidente: PIMENTA – É o Diário? REDATOR – É. PIMENTA – Aqui é o Pimenta. CARIOCA-REPÓRTER – É A Noite? PIMENTA – Um automóvel acaba de pegar uma mulher. REDATOR D’A NOITE – O que é que há? PIMENTA – Aqui na Glória, perto do relógio. REDATOR D’A NOITE – Onde? CARIOCA-REPÓRTER – Na Glória. PIMENTA – A assistência já levou. CARIÓCA-REPÓRTER – Mais ou menos no relógio. Atravessou na frente do bonde. REDATOR D’A NOITE – Relógio. PIMENTA – O chofer fugiu. REDATOR D’A NOITE – O.K. CARIOCA-REPÓRTER – O chofer meteu o pé. PIMENTA – Bonita, bem vestida. REDATOR D’A NOITE – Morreu? CARIOCA-REPÓRTER – Ainda não. Mas vai. (RODRIGUES, 1981, p. 111). O plano da realidade é responsável pelos diálogos rápidos e precisos. Mais adiante a mulher se encontra na mesa de operação rodeada de médicos. E, depois de muitos esforços, os médicos dão por encerrados os trabalhos cirúrgicos e o repórter anuncia a morte de Alaíde “PIMENTA – Chegou aqui em estado de choque. Morreu sem recobrar os sentidos; não sofreu nada.” (RODRIGUES, 1981, p. 161). Os planos da alucinação e da memória são mais explorados por Nelson, isto é, eles são justificados pelos diálogos e pelas situações que projetam o exterior da mente de Alaíde que mesmo em delírio evidencia-se na busca de uma situação de equilíbrio. Ela reconta sua história buscando estabelecer sua identidade. “ALAÍDE (fica em suspenso) – Não sei. (em dúvida) Me esqueci de tudo. Não tenho memória – sou uma mulher sem memória. (impressionada) Mas todo o mundo tem um passado; eu também devo ter – ora essa!” (RODRIGUES, 1981, p. 112). Esses planos se passam no subconsciente da protagonista, pois a distinção dos planos da memória e da alucinação não obedece a fronteiras rígidas. A memória deveria conter-se nos acontecimentos do passado, enquanto as cenas em que aparece Clessi, por exemplo, pertenceriam naturalmente ao território do delírio. Mas na mente em decomposição de Alaíde, os dois planos às vezes se confundem e estão inscritos na lembrança episódios que só podem ter consistência no plano alucinatório. (MAGALDI, 2004, p. 21). O passado surge no plano da memória, instigado pela figura de uma confidente. Trata-se de um papel que é assumido por Madame Clessi para ajudar Alaíde a compor sua história, principalmente nos momentos em que as imagens do passado e do presente se confundem e as lembranças não têm mais uma sequência cronológica. Tal aspecto deixa evidente que a fronteira entre a alucinação e a memória não está bem demarcada. Instigada pelo diálogo com Madame Clessi, Alaíde ativa o plano da memória em plena alucinação, uma vez que, “[...] desde que pedimos aos fatos indicações precisas para resolver o problema, é para o terreno da memória que nos vemos transportados.” (BERGSON, 1999, p. 06). E movida pela recordação para atender ao questionamento de “MADAME CLESSI – Deixa o homem! Como foi que você soube do meu nome.” (RODRIGUES, 1981, p. 115). Ao responder, Alaíde procura recordar como foi o diálogo de seu pai com sua mãe, falando a respeito do quarto que há tempo atrás era de Clessi. Porém, é no plano da alucinação que o questionamento é de fato atendido: “ALAÍDE – Lá vi a mala – com as roupas, as ligas, o espartilho cor-de-rosa. Encontrei o diário. (arrebatada) Tão lindo, ele!” (RODRIGUES, 1981, p. 116). Como as fronteiras entre alucinação e memória não são bem definidas, ao findar o primeiro ato, Nelson Rodrigues apresenta o som de uma Marcha Nupcial, aproximando imagens do casamento de Alaíde com Pedro.De fato, observo que a dimensão, a forma, a própria cor dos objetos exteriores se modificam conforme meu corpo se aproxima ou se afasta deles, que a força dos odores, a intensidade dos sons aumentam e diminuem com a distância, enfim, que essa própria distância representa sobretudo a medida na qual os corpos circundantes são assegurados, de algum modo, contra a ação imediata de meu corpo. À medida que meu horizonte se alarga, as imagens que me cercam parecem desenhar-se sobre um fundo mais uniforme e tornar- se indiferentes para mim. (BERGSON, 1999, p. 15). Conforme Bergson (1999), ao ouvir um som como uma “Marcha Nupcial” o indivíduo pode ativar a memória e a percepção da consciência, aproximando lembranças vividas para o momento do diálogo, como ocorre com Alaíde ao falar de seu casamento. Pois, aos dados vivenciados no presente estão engendrados com informações de experiências vivenciadas pelos personagens em um tempo passado. No início do segundo ato, impaciente com a própria memória, Alaíde não consegue, num primeiro momento, identificar a presença de outra pessoa enquanto se apronta para o casamento. Nesse caso, a matéria torna-se diferente da representação que se tem e, consequentemente, nenhuma imagem é constituída, pois “diante dela coloca-se uma consciência vazia de imagens, da qual não podemos fazer nenhuma ideia” (BERGSON, 1999, p. 18). Desorientada em sua própria consciência, Alaíde é guiada por Madame, como é possível observar no fragmento abaixo: CLESSI (microfone) – Ah! Quer ver uma coisa? Quem foi que D. Laura beijou na testa, depois que falou com você? (diante do espelho, Alaíde está retocando a toilette, ajeitando os cabelos, recuando e aproximando o rosto do espelho etc) CLESSI (microfone) – Ah! outra coisa! Quem foi que vestiu você? Foi sua mãe? Não? Pois é, Alaíde! (Luz amortecida em penumbra. Entra uma mulher, quase que magicamente. Um véu tapa-lhe o rosto. Luz normal.) CLESSI (microfone) – Não disse que tinha que ter mais gente? Olha aí! (noutro tom) A mulher de véu! (RODRIGUES, 1981, p. 129-130). Ao identificar a “Mulher de Véu”, alguns movimentos que contribuem para a constituição desta imagem são esclarecidos para Alaíde e, com isso, o esforço da memória exigido prolonga a constituição de uma pluralidade de imagens. Diante das múltiplas imagens, a misteriosa “Mulher de Véu” é desvendada. No entanto, no plano da alucinação os fatos são esclarecidos, quando “CLESSI (admirada) – Quer dizer que Lúcia e a mulher de véu são a mesma pessoa!” (RODRIGUES, 1981, p. 145). Uma criação no plano da alucinação ocorre no terceiro ato quando os diálogos convergem para o namorado de Clessi e o assassinato. As imagens passadas e reproduzidas no plano da alucinação ativam a memória e as imagens construídas são do devaneio. Madame, em conversa com o namorado, que lhe propõe: NAMORADO – Sabe o que a gente podia fazer? CLESSI (acariciando-o nos cabelos) – O quê? NAMORADO – Adivinhe. CLESSI – Diga. NAMORADO (baixo) – Morrer juntos. (face a face, os dois) Vamos? (RODRIGUES, 1981, p. 151). A percepção reiterada pela cena mostra Clessi recontando acontecimentos que precederam sua morte. Fato ocorrido em 1905, de acordo com o autor, data também lembrada por Alaíde, informação por ela obtida de um jornal. A personagem busca no passado a lembrança. Contudo, a personagem dialoga acerca de sua morte com um certo nível de naturalidade, uma vez que “Se a lembrança de uma grande dor, por exemplo, não é mais que uma dor fraca, inversamente uma dor intensa que experimento acabará diminuindo, por ser uma grande dor rememorada.” (BERGSON, 1999, p. 159). As inovações que Nelson Rodrigues apresenta em Vestido de Noiva dão ao teatro brasileiro a condição de moderno, lidando com matérias tão complexas como memória, realidade, alucinação e passado. O autor faz com que Alaíde transite do passado para o presente inúmeras vezes em diferentes situações, com relações sociais diferenciadas e com diversos outros personagens, mediada pelo plano da alucinação. A todo o momento, “o esforço da memória se volta para a reconstituição da cena do casamento, passagem capital na psicologia da jovem, como de resto de toda a antiga mentalidade familiar brasileira.” (MAGALDI, 2004, p. 20). Apesar de a protagonista estar dividida entre o delírio e o esforço em ordenar a memória, mesmo depois de sua morte sucedem cenas de remorso e Lúcia recuperando Pedro, casando-se novamente com ele. Mesmo a peça sendo dividida em três planos – alucinação, memória e realidade – quando finda a peça não se pode ter total certeza do que foi verdadeiramente real, memória ou alucinação da personagem. Exemplo disso é quando Lúcia pede o bouquet, eis que aparece Alaíde como um fantasma em sua direção e todos ficam imóveis. “Apaga-se, então, toda a cena, só ficando iluminado, sob uma luz lunar, o túmulo de Alaíde. Crescendo da Marcha Fúnebre. Trevas.” (RODRIGUES, 1981, p. 167). Prova de que as cenas são repletas de inovações estruturais, o desfecho da peça apresenta uma marcha fúnebre que se sobrepõe a uma marcha nupcial. Os deslocamentos entre passado e presente muitas vezes explicam os problemas ligados a transmissão da memória. Nesse sentido, a percepção da memória explorada por Nelson Rodrigues faz com que a protagonista, mesmo em delírio, busque marcas do passado para justificar situações projetadas em sua mente. Assim, podemos concluir que além da ficção o teatro rodriguiano com a peça Vestido de Noiva está inserido na memória da cultura brasileira ocupando um lugar de prestígio. Referências BERGSON, Henri. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1999. FACINA, Adriana. Santos e canalhas: uma análise antropológica da obra de Nelson Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues. São Paulo: Global, 2004. RODRIGUES, Nelson. Teatro completo I: peças psicológicas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.