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Lagazzi, Suzy (Texto e autoria)

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Orlandi, Eni P.
Introdução às ciências da linguagem - Discurso e
textualidade / Suzy Lagazzi-Rodrigues e Eni P. Orlandi
(orgs.) - Pontes Editores, 2006 : Campinas. SP.
ISBN 85-7113- 227 -5
I. Língüística - Teoria Lingüística 2. Análise de Discurso
3. Semi6tica - Semiologia 4. Texto - Comunicação escrita
5. Filologia I. Título lI. Autores 111.Eni P. Orlandi
IV. SuzyLagazzi-Rodrigues
CDD - 410
- 412
- 001.543
Índices para catálogo sistemático:
I. Língüística : Teoria Lingüística 410
2. Análise de discurso 410
3. Semi6tica : semiologia 412
4. Texto: comunicação escrita 001.543
5. Filologia 410
IntroduçãO dS Ciêncids dd Lingudgem: DISCURSO E TEXTUAlIDADE
SOARES BARBOZA, J. Grammatica philosóphica da língua portuguesa; princípios da
grammatica geral applicados a nossa linguagem. Lisboa: Academia Real das Sciên-
das, 1830.
VAL, M. da G. C. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
WEINRICH, H. (1964). Le temps. Paris: Seuil, 1973.
80
IntroduçãO dS Ciêncids dd Linguagem: DISCURSO E TEXTUAlIDADE
TEXTO E AUTORIA
Suzy Lagazzi-Rodrigues
81
Inlroduçcio às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
Introdução
Nos estudos da linguagem, o texto ocupa um lugar especial. Extremamente fami-
liar aos alunos desde o início do percurso escolar, é bastante comum ver o texto
naturalizado, ao longo dos anos do ensino da língua portuguesa, como espaço de
discussão das idéias dos autores e como espaço de seleção de questões gramaticais. E
por que parece tão familiar, fica difícil defini-lo. O que é um texto?
Essa é uma pergunta que requer várias retomadas em diferentes perspectivas.
Requer que entremos pelos meandros de diferentes teorias. Lemos sobre o texto na
Antigüidade Clássica, como objeto da filologia, nas relações com a retórica e a argu-
mentação, com a análise de discurso, a semiótÍCa e a semiologia, a lingüística do
texto, a semântica da enunciação. Diferentes estudos do texto, diferentes objetos
configurados.
Proponho aqui retomar um outro recorte para o estudo do texto: sua relação
com a autoria. Pouco tematizada durante o percurso escolar, raramente praticada
no espaço da escola, a autoria fica estabelecida e repetida como "qualidade ou con-
dição de autor" e o autor como "escritor de obra artística, literária ou científica"'.
Uma possibilidade sonhada por alguns alunos: "um dia serei escritor!': Uma vonta-
de muitas vezes guardada em poemas e contos que esperam o grande momento de
virem a público e se tornarem um livro! E na grande maioria dos casos, uma condi-
ção nunca aventada por alunos! "Eu, autor?" Entre estes e a autoria, uma enorme
distância!
Essa distância, quando percorrida, faz com que a "qualidade ou condição de
autor" saia do plano mítico no qual é mantida e se torne um conceito produtivo
em nossa relação de sujeito de linguagem com a escrita e com outras linguagens
não-verbais, como o desenho, a pintura, o canto, a dança, o teatro, as produ-
ções imagéticas e fílmicas, o grafite, a tatuagem, enfim, as diferentes formula-
ções significantes. Essa concepção expandida de autoria, no que diz respeito ao
sujeito-autor e às diferentes formas de linguagem, é muito interessante para
discutirmos o texto.
Nos espaços escolarizados, a autoria é uma questão que atinge alunos e também
professores. Fora da escola nos atinge principalmente na sua falta. Quando afirma-
mos que a autoria não deve ser ensinada, e sim praticada, volta sempre a pergunta
pelos modos de se estabelecer essa prática. Uma pergunta atual no espaço equívoco
e contraditório das linguagens.
Para discutirmos a relação entre texto e autoria, neste primeiro momento, intro-
duzo alguns conceitos.
1. Definições retiradas do Novo Dicionário da Língua Portuguesa de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
83
Michel Pêcheux, em O Discurso: Estrutura ou Acontecimento2, fala da opacidade e
da equivocidade da linguagem. Numa belíssima análise do enunciado Ganham~s
("On a gagné"), que percorre a França em 10 de maio de .1981, quando FrançOls
Mitterand é eleito presidente pela aliança socialista-comumsta, Pêcheux confronta
o que denomina "proposições de aparência logicame?te está:el, suscetíveis ?e res,~
posta unívoca (é sim ou não, é x ou y) e formulações IrremedIavel~ente e~UIvocas
(1990:28). Mostra que o enunciado Ganhamos é uma formulação IrremedIavelmen-
te equívoca quando situada no cenário político. Quem ganhou? Ganhou o ,quê?
Quem somos nós? Quem é o conjunto de pessoas que compõe a esqu:rda? ? um
conjunto? Enfim, muitas perguntas cujas respostas nos mo~tram a polI~semIa ?~S
palavras. Trabalhando com a incompletude constitutiva da lInguagem, a ImpossIb~-
lidade de. tudo ser dito, Pêcheux aponta a necessidade de perguntarmos pelos sentI-
dos de colocarmos as interpretações em suspenso, mesmo para o que pode, em
pri~cípio, parecer óbvio. A atualidade dessa análise de Pêcheux no cenário político
brasileiro do momento (2003/2006) é quase desconcertante! As mesmas perguntas
dirigidas a nós, brasileiros, são de uma pertinência atroz!. .
O plebiscito sobre a comercialização de armas de fogo, realIzado no BrasIl em 23
de outubro de 2005, é um outro bom exemplo da necessidade de sempre questionar-
mos os acontecimentos que nos rodeiam, buscarmos a equivocidade em suas formu-
lações. A própria forma da pergunta lançada e as possibilidades de resposta são
indicações marcantes dos silenciamentos feitos: "Você é a favor da proibiçã? da comer-
cialização de armas de fogo?" Sim ou não. A conjunção disjuntiva localIzou o pro-
blema no universo lógico estável, sem meio termos ou relativizações, sem que fosse,?
consideradas tantas diferenças no imenso território brasileiro. As razões e condI-
ções sociais determinantes da comercialização de armas de fogo não tiveram lu~ar
na mobilização governamental, cujo foco da discussão ficou centrado no antagoms-
mo das posições a favor e contra. Algumas vozes isoladas lembraram que a comer-
cialização é uma conseqüência, e que perguntar sobre a conseqüência é, no mínimo,
pular etapas. Portanto, a equivocidade no plebiscito se oferece para a discussão,
para abrir espaço para as muitas questões socialmente relevantes, para colocar em
movimento os vários sentidos silenciados.
A equivocidade, tal como discutida por Pêcheux, não traz o sentido de "erro",
comumente interpretado no senso comum. O equívoco é constitutivo da lingua-
gem. Eni Orlandi (2001) o define como "a falha da língua na história", o que qu~r
dizer que as palavras, em funcionamento, são sempre passíveis de sentidos contradI-
tórios, de diferentes interpretações, porque os fatos se formulam como razões dis-
tintas para as pessoas. Quando dizemos que algo é u,? equívoco, no sentid~ de ~ue
é um erro, estamos desconsiderando outras razões dIferentes das nossas. DIscutIr a
equivocidade é abrir espaço para tornar visível a contradição de diferentes interpre-
tações, é se expor às diferentes formas significantes e, no caso específico da linguagem
verbal, se expor às palavras.
2. A conferência que deu origem ao livro foi proferida em 1983, na Universidade de minois, em l!r~ana-
Champaign. A Publicação americana é de 1988, pela l11inoisUniversity Press, e a tradução brasileira de
Eni Orlandi, publicada pela Pontes Editores.
84
Carlos Drummond de Andrade, no poema O Lutador, diz:
L~tar c~m palavras/ é a luta mais vã.! Entanto lutamos/ mal rompe a manhã.!
Sao mUitas, eu pouc~.! Algumas, tão fortes/ como o javali.! Não me julgo
louco.! Se o fosse, tena/ poder de encantá-las.! Mas lúcido e frio,/ apareço e
tento/ apanhar algumas/ para meu sustento/ num dia de vida.! Deixam-se
enlaçar,! tontas à carícia/ e súbito fogem/ e não há ameaçai e nem há sevícia/
que as traga de novo/ ao centro da praça.
Insisto, solerte.! Busco persuadi-las.! Ser-lhe-ei escravo/ de rara humildade.!
Guardarei sigilo/ de n?sso c.omércio.! Na voz, nenhum travo/ de zanga ou
desgosto.! Sem me OUVIrdeslIzam,! perpassam levíssimas/ e viram-me o rosto.
Lutar com palavras/ parece sem fruto.! Não têm carnee sangue ...! Entretan-
to, luto.
Palavra, palavra/ (digo exasperado),! se me desafias,! aceito o combate.!
Quisera possuir-te/ neste descampado,/ sem roteiro de unha/ ou marca de
dente/ nessa pele clara.! Preferes o amor de uma posse impura/ e que venha o
gozo/ da maior tortura.
Luto corpo a_corpo,/ luto todo o tempo,/ sem maior proveito/ que o da caça
ao vento.! Nao encontro vestes,/ não seguro formas,! é fluido inimigo / que
me dobra os músculos/ e ri-se das normas/ da boa peleja.
Iludo-me às v:zes,! pressinto que a entregai se consumará.! Já vejo palavras/
em c~ro, s.ubmIsso,/ esta me ofertando/ seu velho calor,/ outra sua glória/ feita
de ~11Isteno,!outra seu desdém,! outra seu ciúme,! e um sapiente amor/ me
ensma a frUIr/ de cada palavra/ a essência captada,/ o sutil queixume.! Mas ai!
é o .instante! de entreabrir os olhos:/ entre beijo e boca,! tudo se evapora.
O CIclodo dIa! ora se conclui! e o inútil duelo/ jamais se resolve.! O teu rosto belo,!
ó palavra, esplende/ na curva da noite/ que toda me envolve.! Tamanha paixão/ e
nenhum pecúlio.! Cerradas as portas,/ a luta prossegue/ nas ruas do sono.
~olto à autoria para afirmar que ela está ligada ao trabalho com a equivocidade
da lmguagem. Essa afirmação permite conceber o texto como espaço de autoria, o
que nem sempre foi possível.
2. O texto e o significante verbal
A metade do século passado foi um momento muito produtivo para os estudos
do texto. Para entender a mudança que naquele momento alguns estudiosos pro-
põem p~r~ a relação entre autor e texto, retomo a diferença entre uma abordagem
conteudIstIca do texto e uma abordagem discursiva.
~ enfoque no conteúdo faz do texto um objeto no qual a linguagem é apenas um
m~lO ~e e~pr~ssão de pensamentos e idéias. A tão famosa pergunta "O que o autor
qUISdIzer? SItua bem a abordagem conteudística, que nos anos cinqüenta, e princi-
palmen~e sessenta e setenta do século XX, gera muita insatisfação no que diz respeito
~ ma.neIra pela qual se concebe o autor, a escrita e o texto. Como resposta a essa
msatlsfação, o texto começa a ser pensado, por alguns estudiosos, como um espaço
de possibilidades relacionais, a escrita como um processo envolvendo a sociedade, e
o autor deixa de ser considerado como uma figura constituída por inspiração.
85
Introdução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
Ao invés de inspiração, trabalho com o significante verbal!. . .., .
Abro parênteses para trazer o ~onceit~ de. significante, est~beleCldo na hngUlstlCa
derna em união com o conceito de signIficado por Ferdmand de .Saussure - o~c::dador" da lingüística moderna -, no célebre livro Curso de LingüístIca Geral. Pu-
blic~do em 1916, após a morte de Saussure (1913), esse livro: resultado de uI? t~~b~-
ho de dois de seus alunos, Charles Baliy e Albert Sechehaye. N.o ~~rso. de Lmfulstlca
Geral, a definição de signo nos coloca em contato com o conceito signIficante:
o signo lingüístico une não uma coisa e u.ma p~lavra, mas um, c?nceito e u:na
imagem acústica. Esta não é o som matenal, cOIsapu~amente ftslca, m~s a Im-
pressão (empreinte) psíquica desse som, a represe.ntaçaoque d~le nos da o,te:te-
munho dos nossos sentidos; [...]. O caráter psíqUIco de nossas Imagens acustlcas
aparece claramente quando observamos nossa própria liní?uagem. Sem mover-
mos os lábios nem a língua, podemos falar conosco ou recItar mentalmente um
poema. [...} O signo é, pois, uma entidade psíq~ic~ de duas faces, que pode ser
representada pela figura: Conceito / Imagem acustlca.
Esses dois elementos estão intimamente unidos e um reclama o outro ..Quer ~us-
quemos o sentido da palavra latina arbor, ou ~ palav~a com que o latIm de!lgna
o conceito "árvore'; está claro que somente as vmculaçoes consagradas pela lmgua
nos parecem conformes à realidade, e abandonamos toda e ~ualquer outr~ que se
possa imaginar. [...} Propomo-nos a conservar o term.o sIgno para ~es/~nar o
total e a substituir conceito e imagem acústica respectivamente por SignIficado
e si~nificante; estes dois termos têm a vantagem de assinalar a oposição que os
separa, quer entre si, quer do total de que fazem parte (p. 80-81).
A compreensão que se legitima do Curso de Lingüíst~ca Geral, num prime~ro
momento de estabelecimento da lingüística moderna, vai afirmar que o conceito
'significante' vem colado ao conceito 'significado', ~~m? as «d~~s ,~aces" d~ uI?a folha
de papel ou de uma moeda. Essa compreensão da mtIma un.~~o .entre SignIficado e
significante como uma relação biunívoca, tem como co.ns~quenCla o en~oque, ~ada
vez mais forte, na indissociabilidade entre significado e SignIficante, ou sep, no signo
como conjunto inseparável. Isso tem com~ conseqü~ncia, até a metade do século
XX o desenvolvimento dos estudos lingüísticos formaiS, que se preocupam em esta-
bel~cer os sistemas dos signos fonológicos, morfológicos ~ si~táticos d~s l~nguas, seI?
chegar a pensar na possibilidade de q~e a relação en_tre slgnIfic~do, e SignIficante seja
uma relação sempre em reconfiguraçao, uma relaçao .qu.~, d~shza. .
Contrariando essa leitura formalista do Curso de LmgUlstlca Geral, FrançOls~ Ga-
det e Michel Pêcheux, no livro A Língua Inatingível\ enfocam a grande compleXIdade
da reflexão de Saussure sobre a linguagem, principalmente quando s.e com'p~r~ o
Curso e o trabalho sobre anagramas. Este último trabalho, também deIXado medito
por Saussure5, traz o estudo das repetições dos sons na poesia latina, na forma de
3. Ballye Sechehaye organizaram anotações de aula, tanto suas como de outros alunos, assim como
reconstituíram explicações sobre diferentes pontos tratados nos três cursos dados por Saussure na
Universidade de Genebra entre 1906 e 1911.
4. Publicado na França, em 1981, com o título La langue introuvable. A tradução brasileira é de 2004.
5. Publicados na França por Jean Starobinski, em 1964.
86
Introdução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
anagramas de nomes próprios: palavras ou versos formados pela transposição dos
sons (ou das letras correspondentes) de um nome próprio. Em O que é lingüística, Eni
Orlandi apresenta alguns exemplos interessantes de anagramas: na palavra América
podemos ler Iracema, no verso latino Mors perfecit tua ut essent a seqüência das vogais
repete a seqüência das vogais do nome Cornelius, personagem do poema em questão.
É importante considerar que os anagramas se configuram pela repetição das
formas sonoras, dando ênfase à relação significante na língua, à poesia da língua.
Esse trabalho chama a atenção para uma concepção de língua muito diferente da-
quela considerada como um sistema de signos, consagrada pelo Curso. Por essa
razão, Gadet e Pêcheux afirmam:
diante das teorias que isolam o poético do conjunto da linguagem, como lugar
de efeitos especiais, o trabalho de Saussure (tal como ele é, por exemplo, comen-
tado por Starobinski) faz do poético um deslizamento inerente a toda lingua-
gem: o que Saussure estabeleceu não é uma propriedade do verso saturnino,
nem mesmo da poesia, mas uma propriedade da própria língua. O poeta seria
apenas aquele que consegue levar essapropriedade da linguagem a seus últimos
limites [...] (p.58)
Gadet e Pêcheux chamam atenção, ainda, para discussões do Curso que enfocam
a relação significante na língua, o que mostra a necessidade de nos perguntarmos se
podemos separar o Saussure do Curso do Saussure dos anagramas.
Vale a pena, ainda, retomar as relações associativas apresentadas por Saussure
no Curso. Ele reconhece quatro eixos de associações possíveis na língua:
- ensinamento/ ensinar: associação com base no radical;
- ensinamento/ aprendizagem: associação entre significados;
- ensinamento/ desfiguramento: associação com base no afixo;
- ensinamento/ elemento: associação pelo significante.
Gadet e Pêcheux ressaltam que o quarto eixo dá abertura para que os desloca-
mentos associativos abriguem o imprevisto na língua. Ora, quantas vezes não brin-
camos de inventar novas palavras com base na rima?
O imprevisto mostra que a língua nos escapa. Isso é fundamental para que repen-semos a relação entre sujeito e língua. Somos, necessariamente, sujeitos de lingua-
gem, pegos na poesia da língua! Não há pensamentos e idéias anteriores à lingua-
gem, anteriores à relação entre significantes e significados. Também não há língua
independente dos sujeitos que a colocam em funcionamento. Por isso dizemos que
língua e sujeito se constituem mutuamente.
Enfim, a possibilidade de movimento entre o significante e o significado, vai
permitir pensar a polissemia6 como conseqüência necessária da incompletude da
língua, vai permitir afirmar que a união entre significado e significante se faz no
funcionamento da linguagem.
As discussões feitas sobre texto na metade do século XX, que propõem o trabalho
com o significante verbal, irão tomar o conceito de significante não mais como a
6. Ao discutir a polissemia e a paráfrase, Eni Orlandi (1983) afirma a tensão constante entre esses dois
processos: no que diz respeito ao sentido na linguagem, pensar o mesmo é já apontar para o diferente,
e também o diferente traz a memória do novo.
87
Inlrodução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
contraparte do significado. Instala-se a primazia do significante, consolidada pelos
trabalhos de Jacques Lacan, na área da Psicanálise. "Uma viragem que marca a his-
tória do conceito de signo" (Ducrot e Todorov, 1972: 413), que antes sempre se
pautara pelo domínio do significado. Justamente em decorrência da primazia do
significante, o significado pode ser descolado do pensamento e o texto pode ser
pensado como um espaço de possibilidades relacionais, e não mais como um con-
junto de idéias do autor.
Essa outra maneira de considerar o texto e o processo da escrita recusa a
relação direta e natural entre forma e conteúdo, recusa a oposição entre denota-
ção e conotação. Nessa perspectiva, as palavras não estão coladas às idéias ou às
coisas, e tampouco são indiferentes entre si. Dizer de diferentes maneiras produz
diferentes sentidos, estabelece diferentes referências imaginárias. E isso importa
muito! Essa abordagem da língua não vai privilegiar a informação ou o con-
teúdo, e nem vai considerar que o que se quer dizer já está estabelecido antes de
ser formulado. A forma do dizer, o significante, é a base sobre a qual os sentidos
se produzem, em diferentes condições. E por isso a inspiração deve ser entendida
como um processo relacional entre significantes, e entre significantes e significa-
dos, na história. A autoria se produz, portanto, no trabalho com o significante,
delimitando textos. Um trabalho em que as condições de produção são determi-
nantes.
3. A função autor
Trarei para a cena, agora, o movimento intelectual francês da década de sessenta
do século XX, conhecido como movimento estruturalista. É em meio a esse movi-
mento que começa a ter lugar a abordagem materialista do texto, em oposição à
conteudística. Nessa abordagem, alguns estudiosos se propõem a compreender a
materialidade da língua. Abre-se, então, espaço para que o discurso se configure
como objeto.
Para avançar na discussão sobre texto e autoria retomo dois nomes ligados ao
movimento estruturalista: Roland Barthes e Michel Foucault.
Em meio ao vastíssimo percurso de Barthes, recorto de seu texto Aula7, proferido
em 07 de janeiro de 1977, duas afirmações particularmente marcantes do enfoque
no significante, fundante do movimento estruturalista.
Entendo por literatura não um corpo ou uma seqüência de obras, nem mesmo
um setor de comércio ou de ensino, mas o grafo complexo das pegadas de uma
prática: a prática de escrever.Nela viso, portanto, essencialmente, o texto, isto é, o
tecido dos significantes que constitui a obra, porque o texto é o próprio aflorar da
língua, eporque é no interior da língua que a língua deve ser combatida, desviada:
não pela mensagem de que ela é o instrumento, mas pelo jogo das palavras de que
elaéo teatro. (p.16-17).
7. Nas palavras de Leyla Perrone-Moisés, tradutora de Aula, "A Aula Inaugural pode ser vista como um
prisma ou um caleidoscópio. Toda a obra anterior de Barthes nela está retratada, tudo aí volta,
deformado e reformado do ponto de vista atual, a partir do qual ele olha esse passado de escritura e de
ensino". Esse texto foi a Aula Inaugural da cadeira de Semiologia Literária do Colégio de França.
88
Inlrodução às C iências da Ijnguagem: DISCURSO E TEXTIJALlDADE
{...} as palavras não são mais concebidas ilusoriamente como simples instrumen-
tos, são lançadas como projeções, explosões, vibrações, maquinarias, sabores: a
escritura faz do saber uma festa (p. 21).
Barthes fala na "prática de escrever': prática considerada como trabalho com o
"tecido dos significantes': A língua é o espaço do "jogo das palavras", e estas são
"projeções, explosões, vibrações" que por sua densidade material implodem a uni-
dade da mensagem e da informação. É importante atentar para a negação de Bar-
thes da língua e das palavras como instrumentos de comunicação. Ele recusa essa
abordagem comunicacional conteudística, em sua perspectiva de transmissão de
idéias, sentimentos e pensamentos, na qual a língua é veículo, um suporte indiferen-
te sobre o qual se apóia um conteúdo fechado para transitar entre falante e ouvinte.
Barthes ressalta a abertura na relação com a língua e esse é um ponto importante no
panorama do movimento estruturalista, para o qual
não existe um sistema fechado, mas sim o dinamismo intenso de uma sistemati-
zação em aberto, que, como nos ensina o estudo do processo científico, a cada
instante transforma uma dada resposta no descobrir de uma nova questão (Pra-
do Coelho, 1967).
Além de buscar as relações abertas, o movimento estruturalista também defende
o descentramento do sujeito, princípio que sustenta em grande parte as discussões
de Michel Foucault: a recusa do humanismo, do idealismo, a crítica radical ao ho-
mem-sujeito de sua história, atuante, consciente de suas açõe~.
o principal papel do filósofo, segundo Foucault, consiste, portanto, em derrubar
o obstáculo epistemológico formado pelos privilégios concedidos ao cogito, ao su-
jeito como consciência e substância. Foucault teoriza plenamente a constituição
de uma verdadeira basefilosófica onde se interligam as diversas semióticas, tendo
todas o texto por ponto cardeal e submetendo o homem a uma rede que o dissolve
a contragosto (Dosse, 1993 (1): 371).
o enfoque de Foucault implica,portanto, romper radicalmente com toda pesquisa das
origens ou de um sistema qualquer de causalidade {...} (Idem, 374).
Para compreender a crítica ao homem-sujeito de sua história, vale a pena ler
Louis Althusser, principalmente seu artigo de lo de maio de 1973, intitulado Obser-
vação sobre uma categoria: "PROCESSO SEM SUJEITO NEM FIM (S)". Nesse artigo,
Althusser ressalta que muitos estudiosos idealistas freqüentemente defendem sua
posição retomando o início de uma pequena frase do 18 Brumário de Karl Marx: "Os
homens fazem sua própria história ...". No entanto, nos diz Althusser, essa não é a
citação completa:
Os homens fazem sua própria história, mas não a fazem a partir de elementos
livremente escolhidos, em circunstâncias escolhidas por eles, mas em circunstân-
cias que eles encontram imediatamente diante de si, dadas e herdadas do passado
(p.70).
89
IntroduçãO às Ciências da Linguagem DISCURSO E TEXTUALlIJADE
Em outras palavras, os homens fazem a história que é possível ser feita.
y Foucault, partilhando essa perspectiva não idealista, vaidisc~tir _od~scentra-
mento do sujeito no que diz respeito à autoria. Uma de suas publIcaçoes mteressa-
nos particularmente: O que é um autor? Nessa co~unicação, apre~entada em 22 de
fevereiro de 1969 à Société Française de Philosophte, Foucault analIsa
a maneira como se exerce a função autor no contexto da cultura européia depois
do século XVII (p. 81).
Foucault se propõe a levar às conseqüências a afirmação, defendida por muitos
críticos literários e filósofos do século XX, da "morte do autor". Essa afirmação faz
sentido quando a situamos na discussão sobre o descentramento ?~sujeito.Esses
críticos e filósofos vão afirmar que a escrita do século XX passa a eXIgIr,nos textos, o
apagamento das características individuais daqueles que escrevem. Foucault assim
formula:
[...} a escrita é um jogo ordenado de signos que se deve menos ao seu conteúdo
significativo do que à própria natureza do significante; mas t~m.bém esta regu-
laridade da escrita está sempre a ser experimentada nos seus ltmttes, estando ao
mesmo tempo sempre em vias de ser transgredida e invertida; a escrita desdo-
bra-se como um jogo que vai infalivelmente para além das suas regras, desse
modo as extravasando. Na escrita, não se trata da manifestação ou da exaltação
do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma
questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desapa-
recer. (p. 35).
{...} a marca do escritor não é mais do que a singularidade da sua ausência; é-lhe
necessário representar o papel do morto no jogo da escrita. (p. 36-37).
Portanto, nessa perspectiva, que permite que se formule "que importa quem fala"
- frase que Foucault retoma de Beckett (Idem, p.34) -, ~scr!t~seºi~tançia dQ.J.emil
da expressão. interior º~_gue1!!_~sg~Ye. Não são mais as idéias do ~utor o cern~ do
texto. Sua "morte" abreespªço, como lemos nos recortes transcntos, para o 199~
signi.ficante. Observemos que é a mesma posição defendida por Barthes, que retomeI
anteriormente. Foucault e Barthes reconhecem na relação entre as palavras, ente!!_:__
didas como espaços significantes, a-possibilidade de o texto ir tomando sua forma,
configurar-se como unidade significativa. Os sentidos se produzem na relação com
as formas significantes e a relação entre sujeito e escrita, entre escritor e texto passa
a significar numa delimItação mútua. Ou seja, o sentido não está definido antes,
como uma idéia pré-formada.
Volto a insistir sobre esse ponto porque essa perspectiva é, ainda hoje, muito
diferente da concepção interpretativa reafirmada na maioria das salas de aula de
"Leitura e Produção de Texto", que dicotomiza significado e significa~te, na .ver.dade
pouco ou nada falando sobre o significante, e naturaliza a precedênCIa do sIgmfica-
do, ou conteúdo, exercitando os alunos a "dizerem, com suas próprias palavras, o
que o autor disse no seu texto': Vejam que aí fica definida a impossibilidade de qual-
quer relação de autoria do aluno!
90
Introdução às Ciências da Linguagem DISCURSO E TEXTUALlDADE
Justamente para continuarmos a discussão sobre autoria é importante compreen-
dermos o deslocamento proposto por Foucault ao falar em 'função autor: Entendamos
bem que Foucault não afirma que o autor não existe, ao retomar a temática da "sua
morte': Trata-se, isso sim, como ele mesmo ressalta, de compreender o autor como uma
função e "definir as condições, os domínios em que essa função se exerce" (p.81).
O termo função retira da figura do autor qualquer caráter intrínseco e a situa na
relação com a exterioridade que a constrói, situa o autor na história. Para Foucault,
"a função autor é, assim, característica do modo de existência, de circulação e de
funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade" (p.46) Ao ressal-
tar as razões pelas quais considera importante discutir a função autor, ele aponta
para uma análise histórica dos discursos:
[...} os modos de circulação, de valorizaçãO, de atribuição, de apropriação dos
discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma; a
maneira como se articulam sobre relaçõessociais decifra-se de forma mais direta,
parece-me, no jogo da função autor e nas suas modificações [...} (p. 68-69).
Também no que diz respeito à morte do autor, Foucault acrescenta:
[...} já se pôs em questão o caráter absoluto e o papel fundador do sujeito. Mas
seria preciso talvez voltar a este suspens, não tanto para restaurar o tema de um
sujeito originário, 11J:il~_paraapreender ospontos de inserção, os modos de funcio-
namento e as dependências do sujeito. [...} Em suma, trata-se de retirar ao sujeito
JóiA ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como
uma função variável e cõriij51êxado discurso. (p. 69-70).
E, para finalizar, Foucault afirma:
O autor - ou o que tentei descrevercomo afunção autor - é com certeza apenas uma
das especificaçõespossíveis da função sujeito. Especificaçãopossível, ou necessária?
Olhando para as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, longe
disso, que a função autor permaneça constante na sua forma, na sua complexidade
e mesmo na sua existência. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos
circulassem e fossem recebidossem que a função autor jamais aparecesse.Todos os
discursos,qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que
fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do mur-
múrio. [...} pouco mais se ouviria do que o rumor de uma indiferença: "Que impor-
ta quem fala': (p. 70-71)
Prestemos atenção à segunda parte do trecho acima: "Podemos imaginar ...".
O tempo dos verbos marca a distância entre essa cultura aventada por Foucault
e a nossa cultura: "circulassem", "fossem", "aparecesse", "desenrolar-se-iam", "ouvi-
ria". Estamos longe de dizer "Que importa quem fala". Se por um lado nos propo-
mos a deixar de buscar as idéias do autor, por outro não conseguimos ignorar a
força da função autor em nosso modo de organização social. O autor é "o prin-
cípio de agrupamento do discurso", resume muito bem FoucaUlt em A Ordem do
DiscursO (l97l) .
91
Ao enumerar os traços característicos da função autor, Foucault aponta para o
modo de apropriação particular que essa função determi~a, o que lhe traz implica-
ções jurídicas; aponta para o fato de não se exercer UnIformemente e da mesma
maneira sobre todos os discursos; para a série de operações específicas e complexas
que ligam um discurso a seu produtor; para a sua não correspondência co~ um
indivíduo real, já que pode dar lugar a vários "eus': Essas características permitem a
Foucault falar em "fundadores de discursividades", autores que, segundo ele, produ-
ziram "a possibilidade e a regra de formação de outros textos". , ..
Na discussão apresentada por Foucault, a função autor tem um carater restntiVO.
Delimita nomes que se tornam referência na história e na sociedade. São nomes que
servem para caracterizar um certo modo de ser do discurso: para um discurso, ter um
nome de autor, o fato de se poder dizer "isto foi escrito por fulano" ou "tal indivíduo
é o autor'; indica que esse discurso não é um discurso quotidiano, indiferente, um
discurso flutuante e passageiro, imediatamente consumível, mas que se trata ~e um
discurso que deve ser recebido de certa maneira e que deve, numa determmada
cultura, receber um certo estatuto (Idem, p. 45).
Observamos que esse funcionamento da autoria é pautado pela legitimação. A hm-
ção autor avaliza ou segrega os dizeres e aí está seu caráter institucional com decorrên-
cias jurídicas, principalmente a responsabilidade. Funcionamento extremamente eficaz!
Há, no entanto, uma brecha na discussão de Foucault, que permitiu a expansão
da noção de autoria. Trata-se de pensar o "princípio de agrupamento do discurso"
de maneira geral, sem segregação, ao mesmo tempo como um princípio da textuali-
dade e um processo na textualidade. Vejamos!
4. A autoria na textualidade
Eni Orlandi e Eduardo Guimarães, no artigo Unidade e Dispersão: uma questão
do texto e do sujeito, apresentado em 19858, propõem justamente considerar "a pró-
pria unidade do texto como efeito discursivo que deriva do princípio de autoria"
(1988, p.61). Com isso, a autoria passa a ser um princípio necessário a todo discur-
so, estando "na origem da textualidade': Essa proposta é fundamental pela abran-
gência que constrói.
Localizar o princípio de autoria na origem da textualidade é vincular autor e
texto a uma relação processual, o que é muito diferente de afirmar que o autor é a
origem do texto ou o contrário.
Em um artigo um pouco posterior, Nem escritor, nem sujeito:apenas autor, origi-
nalmente publicado em 19879, Eni Orlandi enfatiza que a função discursiva autor,
ao lado das funções enunciativas de locutor (aquela pela qual o sujeito se representa
como eu no discurso) e de enunciador (a perspectiva que esse eu constrói no discur-
SO)IO, é aquela que o eu assume enquanto produtor de linguagem.
8. Seminário do Departamento de Psicologia Social da pue-sp. Este artigo foi publicado em Discurso e
Leitura (Orlandi, 1988.)
9. Posteriormente publicado também em Discurso e Leitura.
10. Discutidas por Oswald Ducrot em Le dire et le dit (1984).
92
Introduç<io dS C iêncids dd I ingudgem: DISCURSO E TEXTlJALlDADE
Sendo a dimensão discursiva do sujeito que está mais determinada pela relação com
a exterioridade (contexto sócio-histórico), ela está mais submetida às regras das
instituições. Nela são mais visíveis os procedimentos disciplinares (1988, p. 77).
E acrescenta, retomando esse ponto em seu livro Análise de discurso: princípios e
procedimentos (1999), que a função autor é a
mais afetada pelas exigências de coerência, não contradição, responsabilidade etc.
{..,} mais afetada pelo contato com o social e com as coerções {..,} Se o sujeito é
opaco e o discurso não é transparente, no entanto o texto deve ser coerente, não-
contraditório e seu autor deve ser visível, colocando-se na origem de seu dizer. (p.
75-76).
Assumir a autoria colocando-se na origem de seu dizer é fazer do dizer algo
imaginariamente "seu", com "começo, meio e fim", que seja considerado original e
relevante, que tenha clareza e unidade. É, dessa maneira, responsabilizar-se pelo que
foi dito e pelo que foi silenciado. Como ressalta Eni Orlandi, é tornar-se visível e,
com isso, ser identificável e controlável.
Mas colocar-se na origem do seu dizer não é um gesto de vontade. É uma prática
num processo.
Como autor, o sujeito ao mesmo tempo em que reconhece uma exterioridade à qual
ele deve se referir, ele também se remete a sua interioridade, construindo desse modo
sua identidade como autor. Trabalhando a articulação interioridadelexterioridade,
ele "aprende" a assumir o papel de autor e aquilo que ele implica. A esse processo,
chamei (1988) assunção da autoria (Idem, p. 76).
O "aprendizado" da autoria é uma prática no processo da textualidade, prática
de textualização. E acrescento: prática em concomitância. O autor se constitui à
medida que o texto se configura.
Quero ressaltar este ponto. Da mesma maneira que sujeito e linguagem se consti-
tuem mutuamente, também autor e texto mantêm entre si uma relação necessária. O
autor (se) produz (n)o texto, dá ao texto seus limites e se reconhece no texto. O sentido
da autoria depende do efeito de unidade e coesão do texto. Há nesse processo uma
tensão constitutiva: ao mesmo tempo em que um texto precisa ser delimitado por um
autor para receber essa denominação, permite ao autor constituir-se como produtor
desse texto e assim ser nomeado e/ou nomear-se autor desse texto. A pertença é mútua.
Assim como "a própria unidade do texto é um efeito discursivo que deriva do princí-
pio de autoria", o reconhecimento da autoria deriva do efeito de unidade do texto.
Algumas conseqüências são muito importantes a partir desses deslocamentos
propostos para a função autor. Uma delas é que a definição dada pelo dicionário
para a autoria - "a qualidade ou condição de autor" -, a que me referi no início deste
capítulo, passa a fazer sentido como uma possibilidade sempre presente para os
sujeitos de linguagem: nós todos! Talvez poucos conquistem o "nome de autor", para
voltar às palavras de Foucault, e certamente pouquíssimos serão considerados "fun-
dadores de discursividades", mas a responsabilidade da autoria vale, muito mais,
pela ousadia de praticá-la no cotidiano da linguagem.
93
Introdução ,b C iêncid~ dd Lingudgem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
A proposta de expansão da função autor e a discussão do processo de assunção
da autoria desencadearam trabalhos conseqüentes e instigantes para a continuida-
de da reflexão discursiva sobre o texto, num espaço extremamente sensível ao tema:
a escola.
5. Texto e autoria na escola
Já em seu artigo Nem escritor, nem sujeito: apenas autor, Eni Orlandi faz a aproxi-
mação entre escola e autoria, chamando a atenção para a necessidade de que a escola
crie condições para a "passagem da função de sujeito-enunciador para a de sujeito-
autor". Enfatizando a responsabilidade cobrada do autor quanto à unidade do texto,
à clareza, à não-contradição, à correção, Orlandi diz que embora um texto de um
aluno possa trazer diferentes posições enunciativas sobre o tema tratado, é funda-
mental que o efeito de unidade se produza. E esse efeito é dado pela voz do autor.
Retomando Pêcheux, quando afirma que o fato de se considerar como fonte do que
diz é uma ilusão necessária do falante, Orlandi acrescenta:
o que estamos procurando mostrar é a construção e ofuncionamento dessa ilusão
necessária e desse princípio, na escola r...J (p. 81).
Em Discursoda escrita e ensino (1992), Solange Gallo apresenta uma belíssima expe-
riência sobre escrita e autoria, realizada em 1987 na Escola do Sítio, em Campinas, com
uma turma de 5a série. Tendo como objetivo compreender a passagem do discurso da
oralidade para o discurso da escrita, Gallo define o discurso da oralidade (D.O.) como
aquele que produz um sentido ambíguo e inacabado, enquanto o discurso da escrita
(D.E.) produz o sentido de unidade, sendo legitimado institucionalmente. É importante
observar que podemos ter um texto falado e inscrito no discurso da escrita, assim como
um texto escrito inscrito no discurso da oralidade. Gallo ressalta que a passagem do
discurso da oralidade para o discurso da escrita só se faz pela "assunção da autoria":
o que está envolvido é a questão do "acreditar-se" autor, "sentir" que produziu,
realmente, um livro etc., o que, do ponto de vista da Análise do Discurso, éperce-
bido pela forma de representação do sujeito que neste caso "coloca-se no lugar de
autor'; "representa-se como tal'; ocupa uma "posição':Essaforma de constituição
do sujeito é que permite reconhecer a assunção da autoria, realmente. Quando,
no entanto, a autoria se "elabora" mas não é "explicitada" para o sujeito, este não
se constitui como sujeito-autor (aquele que se representa como tal) e a autoria é,
nesse caso, apenas um dos efeitos de sentido produzido pelo D.E.. {...J Sendo
assim, o que está em jogo, aqui, são as formações imaginárias que presidem toda
a produção. Portanto, como se trata de uma "passagem'; o que procuraremos
mostrar é a "autoria" sendo construída enquanto efeito de sentido, para em segui-
da mostrar o sujeito se constituindo enquanto sujeito-autor (p. 99-100).
Num primeiro momento da experiência, Gallo perguntou aos alunos sobre os
personagens de histórias que lhes tinham chamado a atenção. Depois de uma visita
à biblioteca para o conhecimento de outros personagens, chegaram à conclusão de
que tudo era passível de ser personagem. Desenharam, então, o seu personagem e
94
Introdução d~ Cjêncjd~ dd Lingudgem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
descreveram-no, por escrito, detalhadamente. Em círculo e com o desenho escondi-
?o, passaram a descrição para os colegas que, ao recebê-la, tentaram reproduzir a
Imagem também com um desenho. (A diferença entre todos os desenhos foi unâni-
me!) Na seqüência, todos descreveram a sala de aula e passaram a descrição para os
co~egas~descobrindo que, apesar de ser a mesma sala, cada um a enxergava de ma-
neIra dIferente. Gallo ressalta que, com esse primeiro exercício,
as crianças puderam perceber não só que a linguagem não reproduz a realidade
como também que a realidade não é absoluta. (p. 68). '
Na con.tinuidade da experi~n.cia, as crianças escreveram a história do personagem
e em segUida uma aventura VIVIdapor ele. Gallo chama a atenção para a discussão
sobre enredo que t.eve co.m ~s crianças. Ela chamou de enredo a direção do texto e
mostr?u que o escntor va~deIXando de lado muitas direções possíveis que sua história
podena ter tomado,defimndo apenas uma direção. Depois de vários exercícios, pediu
aos ~un~s que ten~ass~~ desc?brir rara onde o sentido de seu texto apontava e o que
ele silenCIava. A pnnCIplO mUito ammadas para descobrir o enredo de suas histórias
logo as crianças ficaram muito angustiadas: "Solange, minha história não tem enredo!
E agora? O que eu faço?': "Vou ter que fazer outra história!': "Vou ter que começar tudo
de n~)V~!':"Por que você não falou isso antes, no começo do ano?': Gallo foi retoman-
do, ..mdl.vl?ualmente e no gra~d~ grupo, a história de cada um, mostrando que a
seque?Clalldade dos fat?s c~nstltu~a uma progressão: o enredo, a direção. As crianças
dever~am perceber a dlreçao e cnar, em função dela, o final da história. Esse final
devena ter, portanto, uma relação conseqüente com o enredo.
Gallo conta que foi difícil para os alunos darem esse passo final. As crianças
mo.str~~am se~ texto para outras pessoas e para os colegas, pedindo opiniões sobre
a ~lst<:>naes~nta e sugestõe~ sobre o final. Mas foi fundamental perceberem que eles
propnos tenam que assumIr o final, assumir a arbitrariedade do sentido construído
enquanto um gesto de autoria! '
A assunçã~ da autoria pelo sujeito, ou seja, a elaboração da Função-Autor consis-
te, em últIma análise, na assunção da "construção" de um "sentido" e de um
''fecho'' organizadores de todo o texto. Esse ''fecho'; apesar de ser um entre tantos
outros possíveis produzirá, para o texto, um efeito de sentido único, como se não
h?uvesse ou:ro possí~:l. C!u:eja:,esse ''fecho'' torna-se ''fim'' por um efeito ideoló-
~1~Opr?,duzldo f~la ,1~Stl~~I,fão onde o t:,xto se inscreve: o efeito que faz parecer
umco o que e multlplo, transparente o que é "ambíguo (p. 58).
Os textos dos alunos foram datilografados (ainda se usava máquinas de escre-
ver!) e encadernados, receberam capa, dedicatória e agradecimentos. Os alunos
também escreveram a história da confecção da história e fizeram uma reflexão sobre
o ~rocesso v~vido. Foram feitas cópias de cada livro, vendidas a parentes e amigos na
nOIte de autografos. Até mesmo uma segunda edição dos livros foi lançada no início
do ano seguinte. Enfim, como afirma Gallo,
as crianças colocaram-se no lugar de alguém que produziu um livro, representan-
do-se, para elas próprias, nessa ''posição'' (p. 76).
95
Introdução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXlUAlIDADE
[...] Pude, assim, me deslocar da posição de detentora do saber,para uma posição
de coordenadora da produção de um saber coletivo (p. 77).
E se no início do ano os comentários dos alunos mostravam desânimo - "Mas
ainda não acabou?", "Ai, chega desta história, vamos fazer outra, vá?" -, no final
mostraram toda a importância da prática realizada: "Mas tem que terminar?", "Aca-
bar justamente agora que eu estou gostando tanto?':
Assim como essa experiência de Solange Gallo, que me encanta pela delicadeza e
ao mesmo tempo pela força da reflexão que instaura, também o trabalho de Claudia
Pfeiffer mostra que ser conseqüente ao unir sensibilidade lingüística e compreensão
teórica produz discussões capazes de afetar o marasmo institucional no qual a escola
muitas vezes se imobiliza.
Em Que autor é este?, dissertação de mestrado defendida em 1995, Claudia Pfeif-
fer analisa o sujeito autor na escola. Contrapondo "o ideal de autor e o modo de
sujeitos escolares se posicionarem como autores de seus textos", Pfeiffer discute essa
relação com base em análises de diferentes produções dos alunos.
Seu primeiro ponto de reflexão diz respeito às críticas costumeiras dos pro-
fessores sobre a pequena capacidade interpretativa dos alunos. A partir de en-
trevistas com professores e alunos, seleção de livros didáticos, gravações de aulas
de história, gramática e literatura, ela estabeleceu uma separação inicial entre
professores que se diziam tradicionais, adotavam o livro didático e acreditavam
na experiência e não em metodologias (grupo 1), professores que não utiliza-
vam diretamente o livro didático mas o usavam como diretriz geral do con-
teúdo a ser dado em aula (grupo 2), e professores que recusavam o livro didá-
tico e as diretrizes de uma gramática normativa (grupo 3). Pfeiffer ressalta que
foi somente nas aulas do grupo 3 que observou "de fato troca dialógica entre os
alunos", o professor tendo uma postura mais relativizada quanto à determina-
ção do que podia ser interpretado, analisado e concluído. Nos grupos 2 e 3 a
cena da sala de aula ficou tomada pelo freqüente uso da metalinguagem (termos
técnicos) e por um trabalho de leitura bastante imobilizado, que legitimava a
interpretação única dos textos, dada pelos literatos e pelos materiais didáticos
adotados. Os professores não se concediam, e não concediam aos alunos, a pos-
sibilidade de derivas. Nesses grupos, diz pfeiffer, o discurso do professor era o
discurso da ciência (discurso da verdade), seja na forma da gramática normati-
va ou da crítica literária.
Pfeiffer ainda discute, no que diz respeito ao contexto escolar, a concepção de litera-
lidade da linguagem (as palavras "coladas" às coisas), a concepção da leitura e da inter-
pretação como duas práticas distintas, o apagamento da oralidade em detrimento da
escrita, a hierarquia estruturante dos livros didáticos quanto ao grau de dificuldade das
tarefas, a divisão estática entre descrição, narração e dissertação, a divisão entre textos
criativos e não-criativos. Pontos todos delicados, nódulos a serem desfeitos.
Uma das grandes contribuições da reflexão de Claudia Pfeiffer é a maneira de afas-
tar sua discussão de uma relação de culpa, que muitas vezes opõe professores e alunos.
Não se trata de culpar os professores ou os próprios alunos pela "pequena capacidade
interpretativa" destes, mas de reconhecer as exigências, os limites, as restrições que o
funcionamento escolar, marcado pelo livro didático, impõe a alunos e a professores. 11 :
lI, Essa é uma discussão extremamente atual, haja vista os programas governamentais (2003-2006) de
distribuição do livro didático ao ensino fundamental e ao ensino médio,
i,
; \
: I
I'
96
Introdução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUAlIDADE
~ es~o!arização~erceiaa constituição da memória discursiva através de seu veto
ln:pltCltOprodUZ1~0pelo uso do livro didático. Quando falamos no livro didático
na~ ~stamo~no.sltmltando ~o seu uso empírico e concreto;estamos falando de um~
pra~~a mazs geral qu,e.conslste na negação da entrada do professor e do aluno na
poslçao de responsablltdade pelo gesto interpretativo O livro dl'dátl' - ,e t p . . co nao preClsa
5 ar resente concret~men~e,p01Sseu uso em épocas anteriores repercute efeitos
sempre, no processo dlscurslvo escolar! :I' ,
Tod~ sujeito possui um corpo social discursivo que lhe forma uma memó . d'-
Cu~sl,va(no c,asouma m,emória de leitura), permitindo-lhe que, por exe:lfo, ~a
fratl~~ de leltura e ;~crtta, formule os sentidos que estão em funcioname~to os
lmpltCltos, os estereotlpos, os não-ditos etc.)." (p. 74). (
Portanto, o ce~ceamento dessa memória discursiva pelo livro didático é um
~o.nodal par~ a .dlscuSSãoda a~toria. na relação com a escola. Falar no im edim~~~-
a lllterpretaçao Imposto pelo lIvro dIdático ao professor e não só ao alunoP e' fu d o
mental! " n a-
Outro po.nto muito interessante da reflexão de Pfeiffer concerne às críticas nor-
malm~nte feItas aos textos dos alunos quanto à sua falta de originalidade R tto a dIscussão sobre cli~hê feita por Maria Cristina Leandro Ferreira (l993)~2~~:~~
er aponta para a necessIdade que o aluno tem de buscar pontos de referencial idade
seâuros par~ 1~der responder às demandas do professor, dentro de padrões valori-
~a os, e o ~ I~ e se aprese~ta, p~ra o aluno, como um desses pontos de referenciali-
ad~. A pratICa escolar, dIZ Pfelffer, exigindo a repetição forma}'3 que "1 .
parafrase, acaba por exi . . ' pnvI egla ar h A glr o mesmo, ou seja, abre as portas para a entrada do
c I~ .e, ml.dasdaomesmo tempo o nega como produção textual aceitável por não ter
ongma I a e. '
fi
Assim, :empre s~ espera muito porparte do aluno, porém esse "muito" é especí-
lCO,pre-determmado [...] (p. 79).
s. A do.rigin.allidaAlde.?ca sign!ficada como mito, sem que haja condições para inclu-
Ive, ISCUtI-a. Ias, essa e uma boa pe t . , . . '
cri~tivo?14Retomando Eni. Orlandi (l996)~~;a~~~a;;:~seq~; ~;~~~i~l: ~c~~: ~:~;
abnrnhespaços para ~ repetIção histórica, criando condições para que o aluno possa
reco ec~r o seu dIzer como parte de sua história.
de Cla~dla_Pf~iffer !~icia a conclusão de sua dissertação afirmando que as condições
pro uçao a pratICa escolar, por ela analisadas, mantém a autoria na escola no
12, Ferreira relaciona o clichê à re 't" d" - ,
identificação do sujeito brasileir~~s enCla, numa ISCussao mUIto interessante sobre o processo de
13, Eni Orlandi, em "Autoria e Inte p t -" (1996) b '
exercl'CI'o ' ' br. re açao esta elece a dIferença entre a repetição empírica (o
mnemomco que tam em trata ", - "
~:;;~~~r~~q::~:~ ~;pe~i\ãO que ~er~st:;e ~o~~áfr:~:~~:~:p~t~~OC%i;;Ó~;(~~~~~i{~~~~ d~~~~~
numa relação de apro epmrl'aoçra~ao~onst~~t1~ad'o dq~es)lgTIlficaque essa repetição faz sentido para o sujeito
Iffiagmana o Izer,
14, Remeto à distinção que E . O I d' A'
criatividad "TIl r an I, em Lmguagem e seu Funcionamento (1983), propõe entre
processo in~~J~~~u~lvl~ade, afirmando a im~ortância de se deslocar a noção de criatividade de um
e genese para contextuahzá-Io na história.
97
Introdução dS Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
limiar entre a repetição formal e a histórica. Para avançar na ~o_mpreensão d?s
modos pelos quais essa prática escolar mantém os alunos na repetlçao formal, Pfelf-
" d t' - "15fer discute o que formula como processo e au onzaçao :
O professor ocupa a posição de quem tem a a~torida1e de ler os textos em sala de
aula, filtrando os sentidos que nestes se constItuem. E o pr~fessor que apresent.ao
sentido único e autorizado de cada texto, para que em seguIda o aluno possa dIzer
estes mesmos sentidos em seu texto, apagando o lugar do professor como produtor
dos sentidos que constrói. .
É desse processo de autorização que quero falar: veJan: qu~ ~ alu~o sofre uma
autorização para ler e escrevervinda do professor (não dIscutIreI aqUIde onde vem
a autorização dada ao professor!). Os textos p~sam por .u,!, processo ~e re-~uto-
rização: são re-autorizados para o aluno. Ou seja, na poslçao de ~utortd~de .m!er-
pretativ(l do professor funciona o processo de uma re-autorla. (atrlbUlç~o e
construção de sentido) que autoriza o aluno a ser autor de determmados ~entldos
e não de outros. O professor apresenta ao aluno a posição de autor de sentIdos que
este pode ocupar. O processo de autorização consiste, então, no ato de dar uma
determinada autoria aos sentidos! (p. 120).
E sintetiza de maneira forte:
O que estou querendo mostrar é que na escolahá a construção de uma e somente
uma possibilidade de autoria, tanto para o aluno quanto para o professor (Idem).
Considerar também o professor como determinado pelas condições da prática esco-
lar, principalmente no que diz respeito ao impedimento à interpretação, faz avançar
muito as discussões sobre a autoria e sobre a produção de textos na escol.a..? professor
dar-se a possibilidade da autoria significa, certamente, a abertura de po~slbill?ades para
que a autoria do aluno possa se produzir. Ainda nas palavras de ClaudIa Pfeiffer:
Assim é que se constitui em uma diferença qualitativa falar em produção de auto-
ria e produção das condições para a autoria (p. 123).
6. Texto e autoria no cotidiano das linguagens
Volto a uma afirmação que fiz anteriormente: a responsabilidade da autoria vale
pela ousadia de praticá-la no cotidiano da linguagem. Nas di.ferentes lin.g~agensI6,
devo acrescentar. E como encarar essa ousadia? O que ela sigmfica no cotldlano das
linguagens? , . '
Uma primeira questão, bastante reafirma.da em vanos .~on:entos deste ca~lt~-
lo, é a relação necessária entre texto e autona. A concomltanCl.a entre a c~nstl!Ul~
ção do autor e do texto é ponto chave para esta discussão. Por ISSOa autona nao e
15. Ao retomar essa discussão em sua tese de doutorado, intitulada Bem Di~er e.Retórica. ,fim lugar para
o Sujeito (2000), Claudia Pfeiffer formula o funcionamento da autonzaçao como simulacro da
autoria", o que ressalta a força da sua reflexão. . .,' .
16. A relação entre texto e linguagens não-verbais é estabelecida. por Orlandl Ja em DIscurso e LeItura e
tem desdobramentos em seus livros Discurso e Texto e em CIdade dos SentIdos (2004).
98
Introdução dS Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALlDADE
uma qualidade, mas uma prática na configuração de um texto. Texto tomado
como delimitação em diferentes formulações significantes, sempre sob a determi-
nação da produção dos efeitos de desfecho, unidade, coesão, coerência e responsa-
bilidade. Não só o texto escrito, composto em palavras, mas também o texto que
busca espacializar a autoria no desenho, nas imagens, na pintura, na música, na
dança, na mímica, no grafite, na tatuagem ... Sem indistinguir as diferentes mate-
rialidades, é importante considerar que elas compõem conjuntos que se colocam
sob a demanda da textualização. Esse é outro ponto a ser ressaltado.
Eni Orlandi, em seu livro Discurso e Texto (2001), discute a textualização e chama
a atenção, nesse processo, para a atualização do discurso em texto, que instaura na
incompletude do discurso um contorno material imaginariamente finito. É conse-
qüente insistir na necessidade desse contorno material imaginariamente finito. Uma
injunção. Ao lado da injunção formulada por Orlandi da significação sobre o sujei-
to (não podemos não significar), entendo a injunção à textualização como uma
demanda sempre presente: devemos textualizar, devemos significar na unidade.
Imaginariamente, essa é uma busca que nos coage e seduz! 17
O cotidiano, muito mais que um espaço indiferente, flutuante e passageiro,
imediatamente consumível, tal como afirmado por Foucault, compreende uma
complexidade de relações em diferentes linguagens. E esse cotidiano, em nossa
sociedade letrada, demanda por textualização nos diferentes modos de formula-
ção significante. Os efeitos de fecho, de unidade, coesão e coerência se impõem no
dia-a-dia, nos mais diversos modos de nos relacionarmos com as linguagens. Por-
tanto, a relação simbólica do sujeito com nossa sociedade se faz sob a injunção de
textualizar. No entanto, essa injunção se propõe como exigência da responsabili-
zação do sujeito pelo texto, sem nomeá-lo como autor. Estamos sob a injunção da
textualização, mas negados como autores possíveis. Essa compreensão é vital! Ve-
mos a generalização que sustenta o discurso jurídico'8 sobre-determinar a relação
de autoria, invisibilizando o autor e responsabilizando o sujeito. Por um lado,
não podemos dizer qualquer coisa e, ao mesmo tempo, tudo o que dizemos é
passível de cobrança: "Você disse isso?", "Repita o que disse se for capaz!", "Não
torne a repetir isso!"... Responsabilizados pelo dizer não somos, no entanto, re-
conhecidos como possíveis autores, no sentido de que nosso dizer possa fazer his-
tória. Não falo necessariamente uma história pública legitimada. As pequenas
histórias podem ter conseqüências inesperadas, abrindo para novas interpreta-
ções, novas possibilidades, ainda que em percursos singulares.
Por isso o desafio e a ousadia de praticar a autoria no cotidiano das linguagens.
Uma prática cotidiana, no sentido de um investimento constante, não apenas nos
espaços institucionalizados. Ousar ser autor. Eu, autor? E por que não? O texto, no
cotidiano, não apenas como responsabilidade pelo dizer, mas como espaço de re-
elaborações na injunção da unidade.
17. Lembrando Pêcheux (1990), as relações de coerção estão contraditoriamente unidas às de identifica-
ção. A coerção nunca é totalmente exterior. Ela se realiza porque é uma possibilidade no processo de
identificação do sujeito coagido. Porém, não há identificação plena, o que significa que sempre há
espaço para a resistência.
18. A generalização na formulação da lei ("Todoaquele que x então y") indetermina o sujeito jurídico
("Qualquer um que x então y") e estende a responsabilidade a todos. Sobre esse ponto remeto a
Pêcheux (1975), Miaille (1980), Lagazzi (1988) e Lagazzi-Rodrigues (1998).
99
InlrOOllCao ", Ciêncic15 dc1I ingllc1gC'm:DrSClJRSO F. TEXTlJALlTlAOF
Em síntese, discutimos a equivocidade e a incompletude da linguagem
para afirmar que, na perspectiva discursiva:
1. O texto não é resultado de inspiração.
2 O texto é resultado de trabalho no confronto material do sujeito com a
linguagem, nas diferentes formas significantes, em condições de produ-
ção específicas.
3. O texto é um espaço de autoria que se constrói em relações significan-
tes possíveis, determinadas historicamente.
4. O texto traz a exigência dos efeitos de fecho, unidade, coesão, coerên-
cia e responsabilidade.
5. Texto e autor constituem-se em concomitância.
6. Nossa sociedade letrada produz uma injunção a textualizar, que res-
ponsabiliza o sujeito pelo texto, negando-o como autor.
7. Ser autor é estar na tensão entre ser responsabilizado pelo dizer e assu-
mir-se origem do texto, autorizando-se na prática cotidiana da autoria.
Formulamos algumas perguntas que sugerem continuidades possíveis
para a discussão do recorte texto e autoria. O convite para que outras
perguntas dêem seqüência a estas fica posto.
1. A textualização com linguagens não-verbais requer procedimentos es-
pecíficos na prática da autoria?
2. O que significa buscar condições para a prática da autoria em espaços
institucionais diferentes da escola? Quais as conseqüências de se pen-
sar a autoria fora dessas fronteiras já legitimadas?
3. Como dar seqüência à relação entre leitura e autoria? Podemos falar
em sobre-determinação da leitura pela escrita? Temos aí processos con-
comitantes?
Todas a bibliografia citada neste capítulo está insistentemente recomen-
dada. Além dessas obras, apresento algumas outras que trazem subsídios
interessantes para que a discussão feita possa ser expandida.
100
Inlroduçdo ,\5 Ciências da Linguagem DISCURSO E TEXTUALlDADE
1. História da alfabetização no Brasil: a constituição de sentidos e
do sujeito da escolarização. SILVA, M.V. da (1998).
T~se de_doutorame~to de Mariza V!eira da Silva, cuja reflexão abre para a
dl~cussao da au.tona e da textualldade na relação com a aquisição da
leitura e da escnta, tendo no processo de alfabetização brasileira e nos
modos de identificação do sujeito analfabeto seu foco organizador.
2. A leitura e os leitores. ORLANDI, E. (org.) (1998).
Artigos que enfocam a leitura e o sujeito-leitor na escola, sob ângulos
bastante inusitados.
3. Gestos de leitura. ORLANDI, E. (org.) (1994).
Este .Iivro apresenta artigos que situam teórica e analiticamente o gesto
de leitura frente ao dispositivo teórico discursivo.
4. Cidade atravessada. ORLANDI, E. (org.) (2001).
Conjunto de análises discursivas que permitirão ao leitor começar a pensar
sobre a relação entre autoria e textualização no espaço público urbano.
5. A ferramenta imperfeita. HENRY, P. (1992).
Esta é uma discussão fundamental sobre a concepção de sujeito, impor-
tante para embasar a reflexão sobre autoria e texto na perspectiva discur-
siva materialista.
6. As formas do silêncio. ORLANDI, E. (1992).
As relações entre autoria, texto e silêncio têm neste livro um ponto de
partida instigante.
7. Discurso fundador: a formação do país e a construção da identi-
dade nacional. ORLANDI, E. (org.) (1993).
Artigos que discutem a construção da identidade nacional brasileira na
perspectiva discursiva e permitem pensar a autoria como elemento im-
portante nesse processo.
8. Língua e cidadania: o português no Brasil. GUIMARÃES, E. e OR-
LANDI, E. (orgs.) (1996).
Também este é um livro cujos artigos trazem reflexões que interessam à
discussão da autoria e da textualização como elementos presentes no
processo de identificação lingüística do cidadão brasileiro.
9. História das idéias lingüísticas: construção do saber metalingüís-
tico e constituição da Língua Nacional. ORLANDI, E. (org.) (2001).
Estes artigos ampliam a discussão sobre o processo de identificação
lingüística do cidadão brasileiro. Constroem um panorama diversificado e
muito consistente sobre o saber metalingüístico e a língua nacional, te-
mas próprios para compreendermos o estabelecimento da autoria e de
diferentes formas de textualização no Brasil.
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Inlrodução às Ciências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALIDADE Inlrodução às (iências da Linguagem: DISCURSO E TEXTUALIDADE
10. Institucionalização dos estudos da linguagem: a disciplinariza-
ção das idéias lingüísticas. ORLANDI, E. e GUIMARÃES, E. (orgs) (2002).
Neste livro, a língua portuguesa, a lingüística e o ensino são tomados no
contraponto entre a disciplinarização e a institucionalização dos estudos
da linguagem, processos que envolvem a discussão de autores e textos
fundamentais no cenário brasileiro.
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