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1 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara As ideias ocidentais de Natureza e a Natureza Selvagem A ideia de natureza não nos remete a uma realidade individual ou a um objeto real. A Natureza é uma representação. Pode ser um metaconceito! Ela traduz uma “maneira de estar no mundo, de apreender pelos sentidos os sentimentos, o pensamento”. Não há uma natureza pura atrás de sua ideia, mas o acesso a ela é através da cultura. Em Homero e Hesíodo (séc. VIII a.C): Natureza ou physis significa o devir, tanto o crescimento quanto a forma, a aparência, o efeito. Hipócrates e os Sofistas: dão à ideia de natureza uma conotação normativa e fazem uma diferenciação dela com a lei, o espírito, a arte (techné). Mais tarde, Natureza passa a significar o conjunto das coisas naturais. Três momentos da representação da Natureza no Ocidente: Heráclito (544-541 a.C): “a natureza ama se esconder”. Ela é enigmática. É representada como uma mulher de véu, a deusa Ísis, identificada a Artemis, sugerindo que a natureza se esconde e dissimula seus segredos. Segundo Hadot, há várias maneiras de reagir a essa dissimulação: a primeira é a de Sócrates que se retira das coisas escondidas para se concentrar na vida moral e política. É a atitude prometéica (de Prometeu que rouba o fogo ou a técnica dos deuses para dá- la aos homens)! Essa visão leva ao uso dos procedimentos técnicos (tortura) para arrancar da natureza seus segredos a fim de a dominar e a explorar. Há três maneiras de atingir esse objetivo: a mecânica, a magia e o método experimental. A partir do séc. XVII, com a Revolução Mecânica, o mecanismo e o método experimental passam a ser vistos como os únicos modos de relação com a natureza e a arte de fabricar do engenheiro se torna o modelo de ciência. A magia foi um passo anterior e procurava discernir os fenômenos provocados por seres invisíveis (deuses ou demônios) escondidos na natureza. Na Renascença, há uma separação entre o sábio e o utilizador da magia. Enquanto o sábio procura um efeito através de uma deformação da natureza, tentando dominá-la; o mágico procede por uma manipulação, num espírito de submissão a ela. Natureza aqui é coisa fabricada ou artefato, isto é, a natureza transformada pela atividade humana para atender aos seus interesses e necessidades. Tudo isso deu origem ao paradigma técnico-científico. Estas reações entendem que o homem está em condições de desvelar os segredos da natureza, mas este desvelamento depende da maneira de compreender a relação entre o homem e a natureza. Se o homem a vê como inimiga, tentará afirmar seu poder contra ela pela técnica e pela dominação, defendendo seus direitos sobre a natureza (atitude prometéica). Se o homem se vê como parte da natureza, ele vê a arte já presente na natureza e a arte humana será um prolongamento da natureza. Não há aqui relação de dominação sobre a natureza. O ocultamento da natureza será um mistério que o homem pode pouco a pouco desvendar. Esssa segunda atitude é denominada por Hadot a atitude órfica (Orfeu que respeita o mistério e o pudor da natureza). Nessa atitude, não se faz violência à natureza através dos procedimentos técnicos. A linguagem da filosofia ou da arte são modos de penetrar os seus mistérios. O Timeu de Platão ilustra bem essa atitude. O nascimento do universo e dos processos naturais derivam da ação divina e o homem pode ter acesso à natureza, através do discurso. Pode-se encontrar no 2 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara movimento do discurso o movimento da gênese das coisas. A arte imita a criação do Demiurgo (artífice do mundo). Aqui a natureza é apenas percebida, contemplada, experimentada como arte e filosofia. Essa atitude reenvia à natureza vivida, isto é, no sentido de lugar de existência do homem, seu habitat. Não há aqui separação entre sujeito e objeto, mas uma unidade entre o homem e a natureza. A natureza é experimentada como um fenômeno pela consciência humana, um segredo, o mistério do ser e da existência. Tudo isso deu origem ao paradigma holístico em que o todo precede as partes e as partes interagem com as demais partes (pensamento mítico das sociedades indígenas). Na terceira atitude ou perspectiva, a natureza é compreendida como produto fabricado pelo Demiurgo que formou o Cosmos a partir da matéria, copiando a Ideia de Cosmos. É a criação do mundo a partir de um ideal. Essa ideia de natureza-artefato também está presente no Timeu de Platão. Mas comparando as noções de Platão e Aristóteles, surgem algumas diferenças. A natureza aristotélica não é um produto, mas uma produção; não seria de natureza técnica, mas de tipo orgânico, aquele de uma natureza viva, criadora e ativa. A natureza aristotélica produz ela mesma seu efeito, como uma natureza poiética. Ela é autônoma, viva, ativa e se desenvolve por ela mesma. Daí surge a distinção entre seres naturais (aqueles que possuem em si mesmos um princípio de movimento e de estabilidade) e seres artificiais fabricados pelas técnicas dos homens (que não possuem tendência inata ao movimento, mas a causa do seu movimento é exterior a eles). Portanto, há três representações dominantes no Ocidente da ideia de Natureza: natureza-artefato (técnico-científica), natureza-habitat (perspectiva fenomenológica) e natureza-poiesis ou também denominada genética. Nos séc. XV e XVI, a natureza é representada numa dupla perspectiva: a técnico- científica em que a magia tenta manipular a natureza, sendo o feiticeiro servidor e assistente da natureza e, de outro lado, a física matemática que pretende transformar a natureza para colocá-la a serviço das necessidades humanas. A perspectiva poiética ou genética não está menos presente a partir da Renascença. Há uma conjugação das atitudes platônica e aristotélica ou das atitudes técnico-científica e genética. Para a filósofa Gloy, nesse período nasce o paradigma holístico (amparado nas filosofias de Leibniz e Schelling). A valorização das paisagens nas pinturas europeias a partir do séc. XV fazem nascer a perspectiva da natureza-habitat com a visão órfica ou com a representação estética da natureza. No entanto, esse valor estético não aparece associado a uma natureza selvagem, sem qualquer intervenção humana. É só a partir do séc. XIX que surge o conceito de natureza selvagem que deve por isso ser preservada e protegida dos homens. A partir de Galileu e sua obra Diálogos sobre os dois grandes sistemas do mundo (1632), a natureza começa a ser vista como uma máquina e, com Bacon, Descartes, Galileu e Newton, o projeto de dominação da natureza se efetiva. A Matemática é utilizada para dominar os fenômenos naturais. O sábio, agora engenheiro, deve reconstruir os mecanismos e as funções da máquina-natureza. A Mecânica passa a ser o modelo para apreender os acontecimentos da natureza. Com Lamarck e sua biologia, a vida é compreendida como composta de propriedades físico-químicas. E, mais tarde, pelo método experimental, os mecanismos 3 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara da natureza podem ser reproduzidos em laboratório. Darwin e sua lei da evolução é herança dessa tradição. A partir de então, a natureza-paisagem, a natureza-máquina e a natureza-naturalista substituem as concepções anteriores de natureza-habitat, da natureza-artefato e da natureza-poiesis constitutivas da ideia ocidental de Natureza. Enfim, na representação fenomenológica, a natureza é misteriosa e bela; na perspectiva genética, ela é ativa e autônoma; numa perspectiva técnico-científica, ela é dominada, fabricada e objetivada. A partir do séc. XVII, dominou a técnico-científica, reduzindo muito o espaço das duas outras perspectivas. Cada uma dessas três representações, estimula um tipo de atitude ou relação do homem com a natureza. Na Natureza-habitat, contempla-se a natureza (ex: umpasseio pela montanha); na natureza-máquina-artefato, transforma-se a natureza (produção agrícola) e na natureza poiesis/naturalista/genética, observa-se a natureza (ex: preservação de uma espécie ou de um ecossistema). Hoje em dia, a atitude técnico- científica se vê nas biotecnologias, na biologia sintética, na construção de vilas funcionais como Brasília e de vilas tecnológicas como Abu Dhabi ou com a instalação de centrais eólicas, por toda parte. Mas as atitudes fenomenológica e genética também sobrevivem ainda na agricultura biológica, na compensação ecológica, na criação de parques naturais. Ética ambiental: pretende ir além do ponto de vista estritamente técnico-científico sobre a natureza e abrir caminho para a visão genética e fenomenológica, repensando a natureza-habitat (sem reduzi-la a uma paisagem) e a natureza-poiesis (sem reduzi-la a uma mera história natural das espécies). A partir do séc. XVII, deu-se também a dissociação entre a natureza e o homem, a cisão entre o espírito e a matéria. Descola, antropólogo francês, diz que o Ocidente foi a única cultura a conceber a natureza, dissociando-a dos homens. No entanto, países de culturas milenares como Japão, China, Índia e Brasil adotam cada vez mais o modo de vida consumista dos países industrializados. Diante da diversidade de culturas, o eticista é convocado a elaborar uma ética ecológica internacional adaptada à diversidade de regiões e culturas. É preciso buscar as éticas ambientais das culturas pré-colombianas e pré-industriais que sabiam limitar os impactos das tecnologias pré-industriais. Outras éticas e visões da natureza podem conviver e dialogar com a visão predominantemente técnico-científica. A ideia de natureza selvagem (wilderness) nos EUA: mais antiga e mais popular ideia de natureza naquele país. Um historiador indiano, Ramachandra Guha, avalia o selvagem do ponto de vista do terceiro mundo, dizendo que ela não ajudou a proteger a natureza, mas a criar, em detrimento da população local, parques de atração para americanos ricos. Um historiador americano, William Cronon, vê nessa ideia de selvagem uma construção social, uma criação humana, tipicamente americana, mais precisamente branca, masculina e racista (Larrère, p. 26). O selvagem é produto de uma civilização. Callicot e Michael Nelson fazem a crítica dessa ideia e dizem que ela ainda persiste no presente. O selvagem é uma qualidade do que é silvestre e há em nós uma aspiração ao silvestre que é nosso desejo de liberdade, presente não somente nos homens, mas também em todos os seres vivos. Para Thoreau, das florestas e do selvagem proveem a força e o alimento que fortificam a humanidade (p. 27). Wilderness 4 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara vem de will (vontade, incontrolado, voluntário, que escapa à regra e à disciplina). Selvagem é então o que escapa ao controle dos homens. Na Bíblia, o selvagem designa as regiões habitadas pelos espíritos maus, lugar de provação ou de abandono de Deus. Por isso, para os colonos puritanos protestantes que colonizaram os EUA, transformar o selvagem significava uma tarefa da civilização, mas também um dever sagrado. O selvagem lembra uma natureza corrompida contra a qual é necessário lutar. Mas a provação pode conduzir tanto à redenção como à perdição. No entanto, para Thoreau ou Emerson, a ideia de selvagem é transformada de lugar do mal em obra de Deus onde se pode ver as imagens e reflexos das coisas divinas (p. 28). O homem chafurda a natureza, se apropriando dela. Assim, wilderness designa tanto o que é próprio do campo ou da selva como um espaço de natureza selvagem, o que está dentro de nós como o que está fora de nós. A selvageria se torna então “a natureza romântica subjetivada ou espiritualizada”, uma projeção do eu interior ou, na dimensão coletiva, designa os mitos e seres misteriosos que se deixam ler nas paisagens (pág. 29). Wilderness associa assim dois tipos de valores: a ideia de liberdade e de autonomia e a ideia de natureza como um processo que se segue por si mesmo, de uma continuidade causal. O wilderness act define a natureza selvagem como espaço não habitado pelo homem de forma permanente, sem influência humana, primitivo, não afetado pela presença humana. Trata-se de uma definição em oposição ao homem e à civilização. Dentro dessa concepção, faz-se necessário preservar os lugares selvagens por uma gestão apropriada e, por outro lado, isso significaria também impedir o homem de se contaminar do selvagem. A ideia dominante, nessa perspectiva, é a de uma natureza que se desenvolve por suas próprias forças internas. A lei de preservação proibia qualquer máquina motorizada nesses espaços, lugares sem estradas, portanto, por onde podem entrar fauna ou flora estranhas e os homens com suas armas. O wilderness deveria oferecer, segundo o presidente Roosevelt, espaços onde eles poderão, como os pioneiros, se confrontar com o selvagem. Os espaços preservados são então vistos como espaço de recreação (caça, canoagem, etc), mas também como lugar de redenção religiosa ou reabastecimento espiritual ou ainda de confronto viril com as forças da natureza. Mesmo a vendo assim, a natureza não deixa de ser compreendida como possuindo um valor instrumental ou de uso. Concluindo, para os teóricos americanos, é o selvagem que define a natureza como não domesticada. Essa definição contém um problema: a natureza não é natureza senão quando não há pessoa dentro dela. Como então protegê-la se não se pode entrar nela? Callicott regrupa os críticos da ideia de natureza selvagem em três grupos: os etnocêntricos, os dualistas e os que possuem uma visão estática da natureza. William Cronon mostra como os índios também transformaram a natureza bem antes da chegada dos europeus, o que coloca em questão a ideia de natureza virgem encontrada pelos colonos. Logo, a wilderness é um produto da colonização americana, um momento da história humana. Três componentes estão presentes nessa ideia: o sublime (Kant) que se aloja na natureza selvagem, o primitivismo de Rousseau como antídoto contra os males da civilização que convida a uma vida mais simples. Terceiro, os colonos europeus encontraram no confronto com a natureza selvagem seus próprios valores de liberdade e igualdade descobertos na relação com a natureza (o que não foi possível na Europa). Por isso, a ideia de wilderness pode conter uma dimensão democrática ao permitir a descoberta de valores universais acessíveis a todos os homens. Cronon vê ainda nessa 5 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara ideia de uma vida mais simples e mais rude uma forma tipicamente burguesa das classes médias urbanas que criticavam a modernidade. Eles querem usar estes lugares para caçar e pescar! A preservação deles lembrava o aspecto primitivo do selvagem que lembrava a América pré-colombiana. Mas essa América selvagem nunca existiu se se toma em consideração as guerras de conquista contra os índios, as epidemias dos primeiros contatos, etc. Logo se vê que a ideia de wilderness é um mito, uma criação cultural imposta pelos colonos europeus para criar uma realidade inexistente. Denunciar o etnocentrismo da ideia de wilderness é fazer aparecer o dualismo que separa homem e natureza, algo tipicamente ocidental. O dualismo tem suas raízes na filosofia greco-romana (só os homens são racionais!), na tradição judaico-cristã (só o homem tem alma e é um ser de graça e não de natureza) e na modernidade científica que separa o sujeito do objeto. Esse dualismo contraria Darwin que ensinou, pela lei da evolução, que o homem co-evoluiu com os demais seres naturais. Assim, a ideia americana de wilderness é anterior aos desenvolvimentos científicos (da Teoria da evolução, da ecologia) que podem contradizê-la ou corrigi-la (pág. 37). Portanto, Colombo não encontrou uma natureza totalmente virgem e, poroutro lado, nem toda intervenção humana na natureza pode modificá-la, devendo por isso mantê-la longe do contato humano. Isso conduz a uma visão estática da natureza. Essa visão de natureza estática foi, a partir dos anos 80, substituída por uma visão dinâmica de uma natureza em fluxo. Os ecossistemas são entidades abertas às modificações incertas, expostas às perturbações e sem uma direção fixa. As reservas de biodiversidade precisam ao contrário ser gestionadas pelo homem. A filósofa eco- feminista australiana, Val Plumwood, vê um paralelismo entre a dominação das mulheres pelos homens e aquela de dominação da natureza. O dualismo reafirma um dos lados e desvaloriza o outro. Com isso, uma natureza fechada à intervenção humana não somente prejudica os índios que não podem aí entrar como também a natureza não ganha com uma tal proteção. Os colonos que chegaram à América, à Oceania e à África crendo poder encontrar aí uma natureza selvagem, naturalizaram as terras já habitadas: da cultura deles (europeia e dualista), eles fizeram uma natureza rígida e estática. Desembaraçar essa natureza então do dualismo seria descolonizá-la! Muitos defensores da ideia de wilderness admitem que não há uma separação rígida entre natureza e cultura, entre selvagem e doméstico, mas um continuum. A polarização entre natureza e cultura não desaparece. Uma posição intermediária é a de Dale Jamieson que admite uma diferença de grau entre o selvagem e o civilizado que permite escapar à redução do normativo ao descritivo à qual conduz o monismo e manter as normas de comportamento. Assim, as formas de intervenção humana na natureza não são equivalentes e nem fazem todas elas desaparecer a natureza. Jamieson diz que não se pode confundir o efeito de uma ação e o que é seu produto. Do fato de que as ações humanas afetam globalmente a biosfera, não se pode concluir que este é um produto da obra humana. O ar está poluído tanto no alto do Himalaia como em cima da Torre Eiffel. Logo, o wilderness não pode ser definido como aquilo que “jamais foi afetado pela ação humana” e deve-se preferir a ideia de continuidade causal à da pureza das origens. Fala-se então em refazer a ideia de selvagem ou reencontrar a natureza atrás de sua decoração. Com o aparecimento da Biologia da conservação que luta contra o desaparecimento das espécies pelo qual os homens são responsáveis, a ideia de 6 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara biodiversidade faz passar de uma visão estática e quantitativa da diversidade a uma concepção qualitativa e dinâmica. Retoma-se então a ideia de wilderness, pois são necessários espaços de luta contra a erosão da biodiversidade. Os espaços verdes são isolados e isso não permite a sobrevivência das espécies. É preciso então religá-los por meio de corredores verdes que permitem aos grandes predadores circularem entre os espaços. Esses grandes predadores não suportam a presença humana e eles são indispensáveis à sobrevivência dos pequenos predadores e dos pequenos mamíferos, répteis e pássaros. O movimento da deep ecology retoma então a ideia de wilderness e de toda a natureza selvagem. Não se trata mais de oferecer aos homens espaços de lazer, mas é necessário preservar a natureza em toda sua complexidade, em seu valor intrínseco. O ecologista suíço Arne Naess fala de igualitarismo biocêntrico, defendendo reconhecer à natureza seus direitos, deixando um espaço aos seres viventes que não suportam a presença humana. A partir de 1991, Callicott fala de desenvolvimento durável, o que significa não mais a preservação de espaços naturais contra a presença humana, mas estende as preocupações ambientais a todas as práticas humanas, incluindo os espaços habitados pelo homem. Ele não diz que todas as atividades econômicas devem ser, por definição, excluídas dos espaços de biodiversidade. Pode-se também ter uma compreensão da natureza como uma alteridade a ser respeitada sem cair de novo no dualismo que exclui a presença humana da natureza selvagem. Essa experiência nos faz descobrir a dimensão moral de nossa relação à natureza. A natureza compreendida como autônoma cuja existência no tempo é contínua e que existe independente de nós, essa autonomia da natureza não humana corrige a arrogância humana (William Cronon). A experiência holística do todo, de que pertencemos a uma natureza englobante, a um mundo mais vasto do qual somos apenas uma parte se torna experiência religiosa. É preciso então sair da ideia de que a experiência do wilderness é solitária. É preciso sair da relação de exclusão entre natureza e sociedade, encontrar formas de cohabitação. Os Valores e a Natureza Podemos falar de dois tipos de valor atribuídos à natureza: o valor instrumental e o valor intrínseco. Gérard Hess propõe diferenciar três categorias de valor da natureza: os valores relacionais, o valor intrínseco e o valor moral. Valor não é nem uma propriedade quantitativa (como a forma e a massa) nem qualitativa (como a cor e o gosto), mas uma propriedade axiológica. As duas primeiras são descritivas enquanto a axiológica não o é. O valor traduz um julgamento dos seres ou dos objetos e às propriedades que estes possam ter. No homem, o valor se exprime na linguagem articulada, embora isso não seja indispensável. Basta apenas um comportamento que manifeste uma intenção. Ex: alguém que se desloca de bicicleta e não de carro, revela que o carro pode ser perigoso ou um gato que recusa sua ração mostra que não tem fome. O girassol, ao se virar para o sol, valoriza seu meio e manifesta, por seu comportamento, a propriedade de ser benéfico para sua própria maturação? Eis um dos pontos da discussão sobre valor intrínseco. O valor então traduz ao mesmo tempo um julgamento e uma propriedade. Dois aspectos do valor devem então ser tomados em consideração: o aspecto epistêmico 7 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara (relação de conhecimento, crença ou de interesse da pessoa que avalia um estado de coisas ou um objeto) e o aspecto ontológico. Ele pode ser subjetivo ou objetivo. O aspecto epistêmico é subjetivo quando o valor de verdade do conteúdo da avaliação depende de uma disposição, de um sentimento, de crenças ou de interesses do avaliador. Ele é objetivo quando o valor de verdade é independente de interesses, crenças ou certas disposições do avaliador. Ex: achar alguém simpático ou antipático é altamente subjetivo, pois depende de minha disposição ou do meu sentimento de amizade para com uma pessoa. Logo, esse valor é epistemicamente subjetivo! Quando o valor independe das crenças, interesses e sentimentos do avaliador, dizemos que ele é objetivo. Logo, o aspecto ontológico do valor diz respeito ao modo de ser do valor. O modo de ser do valor é subjetivo já que supõe sempre um ser consciente que efetue a avaliação e, sem esse ser consciente, não há valor. No caso da minha simpatia por alguém, esse valor é epistemicamente subjetivo e ontologicamente subjetivo. Quando falamos do Parque Nacional do Itatiaia como magnífico, essa avaliação depende de mim como avaliador, do meu gosto e a beleza do Parque depende de mim como o observador que o contempla, o que torna a beleza vista no parque um valor ontologicamente subjetivo. Aqui, o avaliador epistêmico coincide com o avaliador ontológico. O valor de beleza ou de ser magnífico é uma propriedade axiológica de uma entidade objetiva: o parque do Itatiaia, mas essa característica não se separa da atividade contemplativa. Logo, essa identidade entre o avaliador epistêmico e o avaliador ontológico é uma característica de todos os valores relacionais. Um outro exemplo ajuda a entender valores epistemicamente objetivos. Se um cachorro manca de um perna ou se uma planta procura água, concluo que ele tem dor e a planta tem sede. Nesse caso, constatar a dor do cachorro ou a sede de uma planta não dependemde um sentimento pessoal ou de minha opinião. Outros observadores, além de mim, constatarão o mesmo. Por que? A dor do cachorro não é vivida por aquele que a constata, isto é, pelo avaliador epistêmico, mas reenvia a um avaliador ontológico, isto é, a um ser consciente capaz de sentir a dor do cachorro. Logo, a dor do cachorro é epistemicamente objetiva e ontologicamente subjetiva. Pode-se dizer o mesmo para o desejo ou a necessidade de uma planta? O desejo de água da planta pode ser descrito como um fato biológico desprovido de valor. Seu modo de ser não é subjetivo como aquele de um ser consciente. Trata-se então de um valor epistemicamente objetivo e ontologicamente objetivo. Isso nos remete a uma outra questão: podem existir valores sem a presença de uma consciência humana? Os valores não supõem então uma forma ou outra de subjetividade, seja do ponto de vista epistêmico do julgamento, seja do ponto de vista ontológico das entidades? Em outras palavras, existem valores epistemicamente objetivos e ao mesmo tempo ontologicamente objetivos? Eis a discussão da ética ambiental! A oposição subjetivo/objetivo se desdobra sobre os dois planos: epistêmico e ontológico. No plano epistêmico, a questão é saber em que medida o valor atribuído a uma entidade depende ou não de crenças, interesses ou sentimentos do avaliador. Mas no plano ontológico, trata-se de saber se existe um modo de ser objetivo do valor ou se a ontologia do valor é sempre de ordem subjetiva. 8 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara Quando falamos da Natureza, nos perguntamos se ela é portadora de valor em si mesma (valor intrínseco) e se ela deve ser levada em conta moralmente. Para abordar essa questão, Hess distingue três classes de valores relacionais: valores instrumentais ou de uso, valores de não-uso e, por fim, valores inerentes ou de existência. Valores instrumentais da Natureza: as coisas ou os seres da natureza atendem a uma finalidade dos homens. Ex: as árvores servem pra fazer casas e móveis, o carvão para a energia, a terra para produzir alimentos... A floresta, no caso, é um meio a serviço de um fim. Chama-se a isso valor de consumo. A floresta não é valorizada por ela mesma ou por seu valor intrínseco, mas somente como um meio para um fim. Uma floresta, por exemplo, que é preservada como lugar de lazer e de esporte tem um valor de uso. Em ambos os casos (valor de uso e de consumo) temos valores instrumentais. Valores de não uso: posso deixar de destruir a floresta por que vejo nela um valor estético ou sagrado e isso nos conduz aos valores afetivos ou estéticos. Posso também decidir preservá-la porque ela é o habitat natural de certas espécies que perecerão se ela não mais existir. Nesse caso, há um valor intrínseco na natureza ou nos animais que dela dependem. Posso ainda decidir preservá-la por causa das gerações futuras para que elas possam gozar do prazer de contemplá-la e usar seu espaço. Trata-se aqui de renunciar a um valor de uso pelas gerações atuais em nome dos direitos das gerações futuras (altruísmo intergeneracional ou interpessoal). Os outros indivíduos são nesse caso considerados fins em si mesmos. Eles escapam a toda forma de avaliação econômica. Valores inerentes ou de existência: o termo inerente designa uma propriedade que pertence à própria coisa. Há três tipos de valores inerentes, segundo Hess: valores afetivos, valores estéticos e valores morais. Uma coisa tem valor afetivo por razões ligadas à sua história, significação simbólica ou espiritual, por ser um patrimônio cultural ou identitário. Nesse caso, as coisas ou seres da natureza são valorizados por eles mesmos ou em si mesmos. Não se trata aqui de simples objetos de uso, mas de objetos que são entidades singulares ou que têm para mim um valor afetivo (uma paisagem da minha infância, a casa de meus avós) ou estético (a beleza singular de um lugar ou paisagem me levam a querer preservá-lo). Ambos os casos refletem valores epistemicamente subjetivos e também ontologicamente subjetivos porque dependem de uma consciência avaliadora. São valores que dependem da experiência humana com os objetos. Valores afetivos e estéticos não são incompatíveis com os valores de uso porque praticar esporte numa floresta não me impede de apreciar sua beleza. Valor intrínseco da Natureza: intrínseco diz respeito a uma característica que é própria a uma coisa, que é possuída por ela mesma interiormente. Alguns acham que estes valores não podem ser atribuídos à natureza em si e outros acham que eles são fundamentais a uma ética ambiental. Dois aspectos do valor intrínseco: o primeiro é a ideia de que uma coisa é valorizada por ela mesma, como fim em si e não em relação com um outro fim exterior a ela ou de maneira extrínseca. É o oposto do valor instrumental. Se se atribui um valor intrínseco à natureza, isso significa que seu valor não depende de nenhum indivíduo ou pessoa singular, mas esse valor é totalmente objetivo, isto é, ver na natureza um valor objetivo é vê-la independente de crenças, interesses e desejos individuais, vê-la como um fim em 9 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara si mesma. O valor intrínseco reivindica total objetividade daquilo que possui valor sem depender daquele que julga. O filósofo Kant só via o ser humano como um fim em si mesmo! Muitos autores da ética ambiental veem fins em si mesmos nos animais, nas plantas, em paisagens, espécies, ecossistemas, na terra. Outros eticistas, como os utilitaristas, veem valor intrínseco nos animais por considerá- los seres sensíveis que podem experimentar sofrimento. Isso significa que eles possuem valor epistemicamente objetivo, mas também ontologicamente subjetivo, pois seriam seres conscientes capazes, por exemplo, de utilizar seu ambiente para satisfazer suas próprias necessidades. Assim, eles manifestam o valor intrínseco de sua existência, de certas atividades ou comportamentos. Não se trata aqui de valores inerentes ou de existência que são epistemicamente subjetivos e ontologicamente também subjetivos. O valor intrínseco dos seres conscientes (humanos e não humanos) é então epistemicamente objetivo e ontologicamente subjetivo. Mas e quanto aos seres vivos não dotados de consciência como as plantas, uma espécie, um ecossistema ou a Terra? Alguns autores sustentam que eles têm valor intrínseco, mesmo não sendo dotados de consciência; outros, no entanto, pensam que não podem tê-lo por causa da ausência de um avaliador. Há filósofos que sustentam ser possível falar de um ser vivente não consciente como as plantas, as espécies, os ecossistemas, a terra, etc. Nesse caso, pode-se falar de valor intrínseco numa dimensão ontologicamente objetiva. O plano ontológico reenvia ao problema do acesso pelo homem ao valor intrínseco da natureza (problema de ordem epistemológica). No entanto, o modo de ser do valor intrínseco difere, segundo os autores: para alguns ele é subjetivo e para outros ele pode ser objetivo. As condições de acesso ao valor intrínseco da natureza variam: pode ser pela emoção (compaixão, piedade), pela intuição (empatia ou simpatia), pelo conhecimento empírico e objetivo (psicologia animal, ecologia, biologia da evolução, etc) ou por um conhecimento conceitual a priori (na linha platônica). No plano epistemológico, a justificação do valor intrínseco da natureza repousa sobre a pressuposição da capacidade avaliativa das entidades. Isso leva ao problema moral dos seres da natureza. No entanto, o valor intrínseco não se confunde com o valor moral, pois possuir um valor intrínseco não significa que seja digna de respeito moral, mas o valor intrínseco é um valor para a moral. O simples reconhecimento de que o valor intrínseco não depende de meus interesses, desejos ou de meu ponto de vista pessoal leva à pergunta de seu estatuto moral. O Valor moral da NaturezaDizer que um ser natural possui um valor intrínseco não é suficiente para a consideração de seu valor moral. O caráter de moralidade é atribuído a condutas, comportamentos, disposições, um caráter ou uma pessoa. Pode-se falar da moralidade de uma ação ou de uma pessoa. Ela caracteriza assim um ser capaz de agir moralmente, o que não é o caso dos seres naturais não humanos. Uma entidade natural não possui um valor moral. Falar da moralidade das entidades naturais e de seu valor, em ética ambiental, não significa tratá-los como agente moral, mas somente sob o aspecto do paciente moral. 10 Curso de Ética ambiental – PGTA – Prof. Ozanan Carrara O valor moral é um valor inerente e as entidades que possuem um tal valor merecem ser preservadas. Dizer que uma espécie, um ecossistema, uma planta tem valor moral exige da parte dos seres humanos uma certa disposição ou comportamento com relação a eles. O valor moral da natureza exige que ela seja digna de respeito e que seu valor intrínseco é moralmente pertinente e que deve ser levado em conta em nossas ações e decisões. Se um animal, uma planta ou um ecossistema possui um valor moral para mim, isso implica que eles devem ser considerados por eles mesmos como fins em si e não em função do fim que eles possuem para mim ou para minha ação. Cabe aos eticistas do meio ambiente desenvolver as razões que justificam ou rejeitam a atribuição de um valor moral aos animais, aos vegetais, aos ecossistemas, às espécies, à biosfera. E, nesse caso, eles podem se apoiar sobre o valor intrínseco desses seres. O valor moral é ontologicamente subjetivo, isto é, seu modo de ser é o sujeito moral que é o ser chamado a agir moralmente e possui as capacidades para tal comportamento. Esse sujeito não existe na natureza. Só o homem é sujeito moral, isto é, só ele pode agir moralmente e possui as capacidades para tal. Referências HESS, Gérard. Éthiques de la Nature. Éthique et philosophie morale. Paris : PUF, 2013. LARRÈRE, Catherine et LARRÈRE, Raphael. Penser et agir avec la nature. Une enquête philosophique. Paris : La Découverte, 2015.
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