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AMARAL Codificação


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AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 216-220. 
 
11. A SISTEMATIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL. O PROCESSO DE CODIFICAÇÃO 
 
Produto do jusracionalismo é a concepção do direito como sistema, conjunto unitário e coerente 
de princípios e normas jurídicas. Partindo da formulação de conceitos gerais e utilizando o método dedutivo, 
por meio de uma demonstratio more geometrico, aplica‐se o método cartesiano ao direito e chega‐se à 
ideia de sistema jurídico, do que a jurisprudência dos conceitos, de Puchta e Windscheid, e a parte geral 
dos códigos civis são a melhor expressão. 
Entende‐se que a ideia de sistema permite uma compreensão melhor do direito, não só de ordem 
didática como também de direito comparado, na medida em que autoriza o confronto e o relacionamento 
entre sistemas diversos. Além disso, possibilita compreender a matéria social em que se insere o sistema 
jurídico, isto é, as relações sociais e os valores determinantes do agir em sociedade, e, ainda, a 
interpenetração do direito com os demais sistemas que formam o universo social, como o econômico, o 
político e o religioso. O direito surge, assim, como um sistema de controle que emerge da vida, da 
sociedade, não podendo isolar ‐se da realidade que o produz. Já Savigny dizia que a ciência e a história do 
direito são inseparáveis do estudo da sociedade que lhe for contemporânea. 
A ideia de sistema liga‐se diretamente à de codificação, agrupamento de normas jurídicas da 
mesma natureza em um corpo unitário e homogêneo. Difere essa da compilação, mero ajuntamento de 
leis, geralmente por ordem cronológica, e da consolidação, que é a reunião de leis pelo critério da matéria, 
simplificando‐se e apresentando‐se no seu último estágio81. Em senso estrito, codificação significa o 
processo legislativo, verdadeiramente revolucionário, que marcou os séculos XVIII e XIX, de acordo com 
os critérios científicos decorrentes do jusnaturalismo e do iluminismo, e que produziu os códigos, leis gerais 
e sistemáticas82. 
Sua causa imediata é a necessidade de unificar e uniformizar a legislação vigente em determinada 
matéria, simplificando o direito e facilitando o seu conhecimento, dando‐lhe ainda mais certeza e 
estabilidade. Eventualmente, constitui‐se em instrumento de reforma de sociedade como reflexo da 
evolução social. Seu fundamento filosófico ou ideológico é o jusracionalismo, que vê nos códigos o 
instrumento de planejamento global da sociedade pela reordenação sistemática e inovadora da matéria 
jurídica, pelo que se afirma que “os códigos jusnaturalistas foram atos de transformação revolucionária”83. 
A codificação apresenta vantagens, como a de simplificar o sistema jurídico, facilitando o 
conhecimento e a realização do direito, permitindo ainda elaborar os princípios gerais do ordenamento que 
“servirão de base para adaptar o direito à complexidade da vida real”, o que explica o triunfo da codificação. 
Como inconveniente, afirma‐se que a codificação impede o desenvolvimento do direito, produto da vida 
social que não pode ficar circunscrito, limitado, aprisionado por estruturas formais e abstratas84. 
 
81 Teixeira de Freitas. Contrato para coligir e classificar toda a legislação pátria e consolidar a civil, in: Silvio Meira. Teixeira de 
Freitas. O jurisconsulto do império, p. 101. 
82 Castan Tobeñas, p. 204. O código apresenta‐se como um sistema de regras organicamente subordinadas e coordenadas, com 
pretensões de generalidade e plenitude, agrupadas em institutos e redigidas de modo conciso (De los Mozos, p. 190). 
83 Wieacker p. 367. Molitor‐Schlosser. Perfiles de la nueva historia del derecho privado, p. 61. 
84 A expressão máxima da controvérsia sobre as vantagens e inconvenientes da codificação encontra‐se na polêmica travada no 
século XIX, entre o professor de direito civil da Universidade de Heidelberg, Antor Friedrich Justus Thibaut (1772 a 1840), admirador 
da França revolucionária e do seu Código Civil, defendendo a codificação no seu opúsculo Acerca da necessidade de um direito civil 
geral para a Alemanha (Uber die Notwendigkeit eines allgemeinem bürgerlichen Rechts für Deutschland 1814) e o professor de 
direito Friedrich Carl von Savigny (1779 a 1861), contrário a ela no famoso ensaio Da vocação no nosso tempo para a legislação e 
a ciência do direito (Vom Beruf unserer Zeit für Gesetzge‐bung und Rechtswissenschaft, 1814). 
 
A codificação é fenômeno histórico frequente na vida dos povos, havendo, todavia, grande 
diferença entre as codificações antigas e as modernas. As antigas tinham um caráter mais geral, visando 
a totalidade do direito, enquanto que as modernas são especiais, disciplinando um só ramo jurídico. As 
primeiras surgiam como simples compilações, já as modernas apresentam‐se sob a forma sistemática. Os 
códigos antigos recolhiam leis, doutrinas, princípios jurídicos, enquanto os modernos contêm, apenas, 
preceitos legais, que enunciam regras ou, eventualmente princípios. Os códigos antigos eram difusamente 
redigidos, os modernos são redigidos de forma breve e concisa. 
O código passou também a ser, na esfera do direito privado, a garantia das liberdades civis e do 
predomínio do poder legislativo sobre o judiciário, assegurando a autonomia do indivíduo contra a 
ingerência do poder estatal, como fazem, no direito público, as declarações de direitos e as constituições. 
Ocupava o centro da disciplina social. 
Conjugam‐se, assim, os códigos civis e as constituições, criando uma nova organização jurídica da 
sociedade, e realizando o espírito da época, o “individualismo jurídico próprio do pensamento liberal”, que 
se exprime na divisão do direito em público e privado, na garantia da liberdade dos indivíduos, e na 
concepção da centralidade do direito em face da política e da filosofia. 
Os exemplos historicamente mais importantes desse processo de codificação, tanto pela 
importância político‐ideológica que encarnavam quanto pelo exemplo que ofereceram às codificações 
posteriores, são os Códigos Civis francês e alemão. 
 
12. O CÓDIGO CIVIL FRANCÊS 
 
O Código Civil francês é o primeiro das codificações modernas. Promulgado em 21 de março de 
1804, elaborou‐o uma comissão formada por Napoleão Bonaparte e constituída por Portalis (1746‐1807), 
Tronchet (1726‐1806), Bigot de Préameneu (1747‐1825) e Maleville, todos juristas práticos. O material 
com que trabalharam foram os costumes, o direito romano, recolhido por grandes jurisconsultos como 
Domat e Pothier, este o mais importante jurista francês de sua época, as Ordenações Reais, as leis da 
Revolução e, ainda, secundariamente, a jurisprudência dos antigos parlamentos e o direito canônico. 
Ideologicamente, caracteriza‐se o Código Civil francês por seu laicismo, isto é, a separação da 
Igreja em matéria de estado civil ou de casamento, e por seu individualismo, expressão civilista da 
Declaração dos Direitos de 1789, manifesto nos princípios da igualdade, liberdade e espiritualidade do 
homem85. É a igualdade, a liberdade econômica e a autonomia da vontade garantidas em um corpo jurídico 
de elaboração essencialmente prática. Representa o triunfo do individualismo liberal, expresso no caráter 
absoluto do direito de propriedade e no princípio da liberdade contratual contido no art. 1.134, que afirma 
ser o contrato lei entre as partes. 
O Código Civil passou a denominar‐se, em 1807, Código de Napoleão, depois, novamente, Código 
Civil dos franceses, em 1814 e, finalmente, Código de Napoleão, em 1852. Contém as premissas filosóficas 
de toda a legislação burguesa, sendo o modelo específico das relações entre o humanismo jurídico e a 
ordem civil. Foi, assim, o instrumento jurídico da ideologia e do espírito da Revolução Francesa86. Quanto 
à forma, é reconhecidamente conciso e preciso. Sua influência foi notável. Além de adotado por alguns 
Estados, como a Bélgica, influiu na elaboração dos Códigos Civis da Holanda, Romênia, Portugal, Mônaco, 
Egito, Baixo Canadá, Luisiana, e dospaíses da América Central e América do Sul. 
 
85 Jean Carbonnier. Droit civil. Introduction, Les personnes, p. 66. 
86 André‐Jean Arnaud. Essai d’analyse structurale du code civil français, p. 12. 
 
13. O CÓDIGO CIVIL ALEMÃO 
 
O Código Civil alemão aprovou‐se em 1º de julho de 1896 e entrou em vigor em 1º de janeiro de 
1900. Compondo‐se de duas partes, uma geral e uma especial, representa a síntese dos estudos 
doutrinários desenvolvidos na Alemanha no curso do século XIX, tomando por base o direito romano, que 
lhe ofereceu a matéria e os conceitos técnicos, principalmente na parte geral e no direito das obrigações, 
e o direito germânico, que o influenciou nos direitos reais, família e sucessão. É um código sistemático, 
profundo, rigoroso, dogmático, no sentido de uma construção lógica, racional. Apresenta, como vantagens, 
a disciplina lógica, a universalidade ou amplitude, e, como defeitos, a falta de clareza, a abstração 
demasiada, a dificuldade de compreensão pelo povo. 
Do ponto de vista da técnica jurídica, suas normas têm elevado nível de abstração e elasticidade, 
o que permite à jurisprudência adaptar seus dispositivos a muitas e distintas situações de fato. O esmerado 
rigor técnico de suas construções jurídicas e certa obscuridade na linguagem tornam‐no acessível, todavia, 
somente aos juristas. Do ponto de vista moral, confere grande valor à boa‐fé na interpretação dos contratos 
e à função educadora dos costumes. Do ponto de vista político e econômico, corresponde à ordem privada 
da época de sua redação, consagrando os princípios do individualismo87. 
Sua influência é notável em códigos de vários países como o Brasil, Japão, Suíça, China e Grécia. 
Foi recentemente objeto de um processo de recodificação, no campo das obrigações, por meio de uma lei 
que entrou em vigor em 1º de janeiro de 2002. 
 
87 Wieacker, p. 477.